sexta-feira, 23 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6221: Agenda cultural (73): Teatro: Dor Fantasma, com textos do nosso camarada Manuel Bastos, na Casa Conveniente, Cais do Sodré, Lisboa, de 26 de Abril a 2 de Maio

1. O nosso camarada Manuel Bastos (ou Manuel Correia de Bastos),  membro da nossa Tabanca Grande, combatente em Moçambique, fundador e editor do blogue Cacimbo, autor do romance Cacimbados (não confundir com Manuel Bastos, que esteve em Bambadinca, CCAV 678, 1965/66), solicitou-nos a divulgação do seguinte espectáculo:



teatromosca
DOR FANTASMA, na Casa Conveniente [Lisboa]
Depois de ter estreado Dor Fantasma, com textos de Manuel Bastos e direcção de Mário Trigo, no Porto, no Estúdio Zero, em Novembro do ano passado, depois da apresentação em Sintra, na Casa de Teatro de Sintra, em Janeiro deste ano, o espectáculo é reposto, agora na Casa Conveniente, em Lisboa (Cais do Sodré), de 26 de Abril a 2 de Maio, de segunda-feira a domingo, sempre às 21.30h.
textos: MANUEL BASTOS
direcção: MÁRIO TRIGO
co-produção: teatromosca e Teatro Focus
acolhimento: Casa Conveniente

PONTO DE PARTIDA
Desde 2007, o teatromosca tem vindo a desenvolver um ciclo de pequenos projectos dedicado ao tema da guerra (colonial ou de independência) nas ex-colónias portuguesas. Entre 2007 e 2008, foram apresentadas três “fases preparatórias” do projecto teatral IGNARA#GUERRA COLONIAL, que culminará, em 2012, com a apresentação do espectáculo final homónimo.
No início de 2009, o teatromosca associou-se ao Teatro Focus para levar a cena uma nova versão, em formato reduzido, do espectáculo INFA72, com texto de Fernando Sousa e direcção de Mário Trigo.
Agora, apresentamos uma nova produção com textos de Manuel Bastos, ex-combatente, um espectáculo que visa dar voz ao que, regularmente, não é dito e revelar o que, usualmente, permanece camuflado.
Com Dor Fantasma, tentamos dar plano às histórias particulares, aos relatos pessoais e, de certa forma, íntimos daqueles que viveram/ ainda vivem a guerra, procurando fazer uma reflexão em torno da História, numa dialéctica entre a memória individual e a relevância e incorporação da mesma na memória colectiva.

SINOPSE
Este espectáculo constitui-se como um «monólogo a duas vozes», no qual duas personagens – um combatente e uma mulher - relatam episódios da «sua guerra», avaliando-a até às suas ínfimas, imponderáveis consequências.

Os «fait-divers» do teatro de guerra - entenda-se, o conjunto de acontecimentos que, em meio do caos, instituem essa espécie de perverso «padrão de normalidade» - são permanentemente desmontados pelo olhar lúcido, clínico, distanciado das personagens, apostadas em transmutar o horror da guerra em material de reflexão política (apartidária) ou em exercício extremo de auto-conhecimento.

A deliberada inclusão da personagem feminina na colagem de que o guião resulta- caucionada pela tematização que Manuel Bastos, atentamente, lhe vota - corresponde à candente necessidade de reconhecimento do papel (ainda hoje secundado) que a mulher portuguesa desempenhou antes, durante e depois do conflito armado aduzido.




O Manuel Bastos mantém, desde 2003,  um dos mais antigos Blogues sobre a Guerra Colonial, O Cacimbo. É autor do romance Cacimbados: a vida por um fio (Vila Nova de Gaia: 7 Dias 6 Noites, 2008)




SOBRE O AUTOR > Manuel Correia de Bastos

(i) Nasceu na vila de Aguim, no concelho de Anadia, em 1950.

(ii) Foi mobilizado para ex-colónia de Moçambique com o posto de furriel miliciano, no cumprimento do serviço militar obrigatório

(iii) Chegou a Moçambique no dia 12 de Fevereiro de 1972 onde estve em actividade operacional até ser gravemente ferido em combate no dia 4 de Junho de 1972, devido à deflagração de uma mina anti-pessoal;

(iv) Tem escrito crónicas sobre a guerra colonial especialmente no Jornal da Associação dos Deficientes das Forças Armadas;

(iv) Mantém desde 2003 um dos mais antigos Blogs sobre a Guerra Colonial, O Cacimbo, em http://cacimbo.blogspot.com/.

Embora a crítica especializada ainda não tenha «descoberto» este autor seminal, trata-se, sem dúvida, do ponto de vista literário, uma das vozes mais surpreendentes que têm, nos últimos anos, riscado a oferta editorial sobre o tema, ombreando, sem dúvida, com nomes tão fundamentais como António Lobo Antunes, Lídia Jorge, Manuel Alegre, Fernando Assis Pacheco, entre outros.

Da sua escrita pode destacar-se o modo como, glosando um tema tão «obsceno» como é a guerra (a sua, de um modo muito particular), consegue, munindo-se de metáforas límpidas e eficazes, atingir um lirismo de profundo fôlego filosófico de pendor filantrópico.

SOBRE O ENCENADOR > Mário Trigo

(i) Fundador e Director Artístico da Associação Cultural Teatro Focus, tem vindo a trabalhar, de há seis anos a esta parte, textos sobre a guerra colonial.
(ii) Em 2006, com efeito, fechou - com Companhia de Caçadores, em cena na Casa dos Dias da Água, em Lisboa (espectáculo contemplado com um apoio pontual do Instituto das Artes) - um ciclo de três encenações subordinadas ao tema (as outras duas foram Violeta - Puta de Guerra, em cena na Sala-Estúdio do Teatro da Trindade, em 2004; e Infa 72, no Teatro Taborda, 2002) todas em colaboração com o dramaturgo (e ex-combatente) Fernando Sousa. As suas encenações têm merecido a aclamação da crítica, pelo rigor, qualidade e coerência demonstrados.

Ficha artística e técnica

 Designação do espectáculo: «Dor Fantasma» - a partir de textos de Manuel Bastos
Direcção: Mário Trigo
Dramaturgia: Paulo Campos dos Reis
Interpretação: Filipe Araújo e Susana Gaspar
ssistência de encenação: Diana Alves
Desenho de luz: Carlos Arroja
Grafismo: Alex Gozblau
Direcção de produção: Pedro Alves
Produção: teatromosca e Teatro Focus
Co-produção: Fábrica da Pólvora - Clube Português de Artes e Ideias
Acolhimento: Associação Terra na Boca, As Boas Raparigas, Casa de Teatro de Sintra e Casa Conveniente
Apoio: Câmara Municipal de Sintra, Junta de Freguesia de Santa Maria e S. Miguel, Junta de Freguesia de Mira Sintra, Artistas Unidos, 5àSEC [Rio de Mouro], Relevo Branco, Jornal de Sintra, Jornal Actual Sintra, Jornal O Correio da Cidade, CTT, Rádio Clube de Sintra e Sporting Club de Lourel

de 26 de Abril a 2 de Maio
de segunda a domingo 21.30h


Casa Conveniente (Cais do Sodré - Lisboa)
bilhetes 5€ (preço único)
Skype teatromosca

bilhetes à venda no local e nas Estações de Correio ou em http://www.ctt.pt/

teatromosca
Casa da Cultura de Mira Sintra

Avenida 25 de Abril, Largo da Igreja de Mira Sintra
2735-400 Cacém
Tel.: (351) 91 461 69 49 (351) 96 340 32 55teatromosca@gmail.com teatromosca@hotmail.com
http://teatromosca.com.sapo.pt/

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Nota de MR:
Vd. último poste da série em:

Guiné 63/74 - P6220: O 6º aniversário do nosso blogue (16): Um Blogue? Sei lá o que é isso! (Paulo Santiago)

1. Mensagem de Paulo Santiago* (ex-Alf Mil do Pel Caç Nat 53, Saltinho, 1970/72), com data de 22 de Abril de 2010:

Camaradas

Entrei, pacificamente, nesta Tabanca em 26 de Junho de 2006, e por cá me tenho aguentado com muita satisfação e bem estar.

Muitos tabanqueiros chegaram a esta morança, porque houve um ou uns tabanqueiros que disseram: é pá, anda aí na net um Régulo, o Luís Graça Baldé, também há quem o conheça por Mamadú Henriques, construiu um Reordenamento, onde se exorcisam antigos fantasmas e se faz blogoterapia... A mim ninguém me deu esta dica.

Em Fevereiro de 2005, fui à Guiné acompanhado pelo meu filho João, sozinhos, malucos, chamaram-nos, e antes da partida, tive de ir à GNR, era na altura arguido com termo de identidade e residência, chamavam-me arruaceiro, tinha batido numa senhora, era a acusação, e assim tive de comunicar a minha ausência para aquela terra vermelha da qual tinha imensas saudades.

A viagem foi um arraial de emoções, está descrita por aí, mas aconteceu que vim mais apanhado, aquele meu encontro, no Quirafo, com a carcassa da GMC, deixou-me arrasado. Tenho de contar esta tragédia, tenho de dar porrada em quem provocou esta mortandade. Como fazê-lo? interrogava-me.

Entretanto, a minha mulher ofereceu-me este portátil, onde continuo a clicar com um só dedo, e um dia um amigo diz-me: oh caralho, tens de fazer um blogue para descarregares essas merdas que tens na cabeça. Um blogue? sei lá o que é isso, respondi-lhe. Mas, esse meu amigo deixou-me umas instruções, e penso que andava à procura de um nome para o tal imaginário blogue, e quando escrevo Guiné, aparece-me a página que bem conheceis. CCAÇ 12, Bambadinca, e aparece-me a foto do Vacas de Carvalho, de lenço amarelo, sentado na torre da Daimller, e recuei a Outubro-Novembro de 1971, era o único que conhecia... e assim entrei para o Luís Graça e Camaradas da Guiné.

Descarreguei tudo. Hoje sinto que sou outro graças ao Luís, não serei o único, estou a lembrar-me do Batista que será uma pessoa diferente daquela que conheci, juntamente com o Álvaro Basto, há três anos atrás. Lembro, recentemente, a guineense Neusa Danho, filha do 1.º Sargento Miliciano Cristóvão Santos, que graças ao blogue conseguiu encontrar camaradas do pai, falecido quando ela era recém nascida. Hoje, curiosamente, recebi um telefonema da Cidália Cunha, viúva do 1.º Cabo António Ferreira, e notei que era outra pessoa, agora já fez o luto, e também aqui graças ao Graça.

Luís, tu criaste esta imensa Tabanca de afectos, mereces o meu/nosso reconhecimento.

Neste aniversário recebe um grande abraço de amizade, extensivo ao Briote, ao Vinhal e ao Magalhães Ribeiro. Agora, graças a vós, os nossos filhos já sabem onde os pais andaram na juventude.
Bem-Hajam!
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 13 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6150: O Spínola que eu conheci (8): O Militar que foi meu Comandante-Chefe (Paulo Santiago)

Vd. último poste da série de 23 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6219: O 6º aniversário do nosso blogue (15): Seis anos de vida! É Obra! Vamos reflectir (Hélder Sousa)

Guiné 63/74 - P6219: O 6º aniversário do nosso blogue (15): Seis anos de vida! É Obra! Vamos reflectir (Hélder Sousa)

Texto enviado hoje mesmo pelo nosso camarada Hélder Valério Sousa* (ex-Fur Mil de TRMS TSF, Piche e Bissau, 1970/72) alusivo ao aniversário do nosso Blogue:


O NOSSO BLOGUE

Caros camaradas, amigos e outros…

O nosso Blogue vai fazer 6 anos de vida! É obra!


Nesta época de vertigem, em que as coisas são moda e rapidamente descartáveis, criar, manter, alimentar e desenvolver um Blogue, principalmente com as características deste nosso, é de facto um caso notável.

Mas, afinal, de que estamos a falar? O que é, realmente, o nosso Blogue?

Aquando do aniversário do ‘criador’, o Luís Graça, tive a oportunidade de, para o felicitar, apresentar algumas frases sobre o Blogue, salientando principalmente como ideia-chave que a ‘criação ultrapassou o criador’, ou seja, o Blogue já não seria do Luís Graça (pelo menos em exclusivo e na prática) mas sim de nós todos, que na realidade o adoptámos, o acarinhámos e o desenvolvemos constantemente, de tal modo que podemos escrever sem errar “O Nosso Blogue”, quando a ele nos referimos.

Outras coisas também lhe chamei: lugar de afectos, espaço de memórias, local de controvérsias, catalizador de sentimentos, revelação de poetas e prosadores, propiciador de ‘blogueterapia’, motivador de encontros e reencontros, forja de amizades que se criam e se renovam, etc.

Entretanto, também ocorrem convulsões!

Um ‘post’ recente, do Alberto Branquinho, vem lançar um grito de alerta, provocar um abanão, colocando uma série de interrogações para a aparente abstinência de colaboração de alguns camaradas que já não ‘produzem’ artigos faz bastante tempo. E a propósito desse ‘post’ o Carlos Vinhal avança com algumas considerações, confessando, na prática, que a situação é conhecida e causa preocupação, apelando à participação de todos, conforme as suas possibilidades. Sucedem-se vários comentários de camaradas que fazem sentir a oportunidade e a justeza das interrogações do Branquinho, salientando aqui, sem desprimor para qualquer outro, a intervenção do António Matos, na linha de algumas outras (passadas) intervenções que ele já teve, com a caracterização, na sua opinião, de algumas ‘doenças infantis’ que afectam o nosso Blogue e no sentido de ‘recentrar’ os seus objectivos.

Pois então que se faça essa reflexão, se ‘recentrem’ os objectivos. Como se fará isso? E como? De que modo? E onde? E quando?


O QUE DISTINGUE O NOSSO BLOGUE

Voltando ao “nosso Blogue”, o que mais se poderá dizer? O que o torna distinto e portanto ‘apetecível’? O que o faz ter e manter um conjunto de ‘acompanhantes’ bem mais numeroso do que aqueles que se encorajaram a incorporá-lo?

Há uma questão que às vezes me colocam. “Porquê isso da Guiné? Foi pior para vocês do que para os outros? Há aí alguma competição no sentido de que ‘a minha guerra foi pior que a tua’, foram mais sofredores, ou ganhadores, ou sacrificados que os outros?”.

Não, não há nenhuma competição, não faz sentido algum. Os traços são comuns aos diversos T.O., pois em todos houve os que ‘embarcaram’ convencidos que estavam a ‘defender a civilização ocidental e cristã contra os interesses inconfessáveis dos estrangeiros’ e houve os outros, que foram por sentido do dever, por não terem alternativa, por acharem que sim, por outro motivo qualquer, mas para todos houve na prática o afastamento da família, dos amigos, do meio de vida, da escola, do trabalho, vidas interrompidas (e algumas delas acabadas…), enviados para ambientes estranhos onde houve que fazer adaptações (e rápidas), quer em termos pessoais quer em termos operacionais.

Para o rememorar desses tempos acontecem os encontros, os almoços, as confraternizações: dos diversos grupos funcionais, dos elementos dos cursos, do pessoal das Companhias, dos Batalhões, de outras Unidades e/ou actividades; aparecem vários Blogues, alguns mais simples, outros com qualidade acrescida, dessas Unidades.

E então o que é que diferencia e torna interessante o “Luís Graça & Camaradas da Guiné”?

Um dos méritos é que pretende abranger todo o tempo em que durou o, chamemos-lhe assim, ‘conflito’; transversalmente a todo o espaço territorial; aposta numa atitude de reconciliação com o passado (preservando a memória); estende a mão aos antigos adversários apelando à sua participação; promove uma postura de respeito mas ao mesmo tempo de ‘igualdade’ entre os seus membros. Deste modo será quase possível, com a continuação dos depoimentos e das participações, fazer a história dos diversos locais ao longo desses tempos e também, ao cruzar as informações, fazer o ‘filme’ em cada ano e apreciar os desenvolvimentos ocorridos.

Isto não faz qualquer concorrência com as histórias e convívios das diversas Unidades, mas antes as completa e pode fazer o traço de união para que cada uma delas compreenda o ‘antes’ e também, conforme os casos e a época, o ‘depois’ (onde e quando houve depois) dos locais por onde andaram.

Para além destes aspectos acresce que a relativa pequenez do T.O. (comparado com Angola e Moçambique) faz com que todos os que de nós por lá passaram, de uma maneira geral, ‘conheçam’ o território da Guiné. Em qualquer ponto onde se estivesse chegavam as notícias (muitas vezes deturpadas ou exageradas, é certo) de acontecimentos, perto ou longe, mas que nos irmanavam nos sucessos ou nos lamentos dos sacrifícios e vidas perdidas, que ocorriam em locais cujos nomes eram muitas vezes pronunciados com respeito, temor, reverência. Isso unia-nos e ainda hoje nos une.

Mesmo em Bissau, tantas vezes referenciada como ‘a guerra do ar condicionado’, não eram raras as vezes em que se ouviam distintamente os rebentamentos do outro lado do Geba, provocando reacções de solidariedade e de desejo de que aqueles que estavam a ‘embrulhar’ tivessem sorte. Já relatei que tenho um amigo e colega de curso que estando colocado em Luanda levou uma ‘porrada’ por aquelas coisas menores que aconteciam na tropa e em locais onde era mais exigente o aprumo e, em consequência disso, foi destacado para o Luso. Pois daí enviou-me um aerograma lamentando a sua pouca sorte, pela ‘porrada’ e por ter sido enviado para ‘zona de guerra’, já que “por vezes, ouvia os canhões a apenas 25 km”. Para todos os que estiveram na Guiné é então fácil entender a solidariedade tácita imediata que se estabelece entre nós.

São, portanto, estes dois aspectos essenciais, a ‘transversalidade no tempo e no espaço’, e o da ‘identificação comum de todos com tudo’, aliados ao facto de quase todos termos dito “Guiné, nunca mais!” mas isso ser quase impossível pois “voltamos lá” muitas vezes, seja pela ‘procura da juventude perdida’, seja pela marca indelével que aquela terra, aquela gentes e aquelas paisagens nos deixaram, são esses aspectos, dizia, que nos ligam fortemente ao Blogue a ponto de, mesmo quando é varrido por questões ou assuntos que não nos agradam, mantermos a nossa atenção e o interesse.

Acontece que o nosso Blogue é acompanhado, seguido, ‘vigiado’, por muita gente que, por uma razão ou outra, não se atreve a ‘bater à porta’ da Tabanca, mas isso não é preocupação pois esse período de namoro é absolutamente natural. Algumas coisas originam reservas para que se entusiasmem e passem a colaborar activamente mas, se houver engenho e arte para ‘resolver’ essas questões, é certo que mais vontades se acrescentarão para tornar o ‘puzzle da memória’ mais completo.

Pessoalmente, assim de repente, lembro-me de duas mãos-cheias de gente que conhece e segue o nosso Blogue mas não o integram (ainda?): da Marinha, de Moçambique, da Guiné… acham que não têm relevância ou que as suas histórias não são interessantes, ou então que lhes falta ‘o jeito’, a qualidade… seremos pacientes e aguardaremos que tomem coragem!


E INIMIGOS? TERÁ O NOSSO BLOGUE INIMIGOS?

Certamente que sim!

Não é o Blogue uma espécie de ‘organismo vivo’, em boa medida já bem representativo da sociedade em que se insere? Então, o que é que se espera? Não é a sociedade constituída por antagonismos? Pois também certamente que sim, e isso reflecte-se necessariamente na atitude para com o Blogue.

E como se manifesta essa inimizade?

Bem, há pelo menos dois grandes grupos que podem ser caracterizados, cada qual com as suas ‘nuances’… e existem fora e dentro do Blogue.

Na maior parte dos casos não se trata bem de inimizade, mas sim de mágoa, de interpretações erradas ou também consequência de queixas justas, se bem que pontuais.

Fora, podemos encontrar aqueles que dizem que o Blogue ‘é só para os amigos dos editores’, coisa pouco sustentável porque são tão diversos os camaradas que têm textos e artigos publicados que não se vê maneira de sustentar tal afirmação;

Também há quem reclame da excessiva ‘intelectualização’ (aparente), que levaria ao afastamento ou não-aparição de camaradas com menos capacidade literária, mas isso não é uma verdadeira razão pois temos tido possibilidade de apreciar contributos de camaradas com essas alegadas menores capacidades e a quem os editores ajudam, compondo os textos. As queixas aqui são mais do género 'é só para os antigos oficiais, que agora são todos escritores’, o que é injusto e também pouco sustentável, face à quantidade e variedade das intervenções publicadas.

Mas há aqueles para quem o Blogue, como manifestação de grupo, de solidariedade, de partilha, com capacidade de mobilização de vontades e fonte de esclarecimento, aparece como uma ameaça, pois tudo o que ‘cheirar’ a defesa do colectivo é ‘perigoso’. E isso é verdade tanto para os que se sentem ameaçados quando se veicula a reivindicação pelo respeito e memória dos que tombaram ao serviço da Pátria (fosse lá pelos motivos que fosse) como para aqueles que querem ‘cavalgar’ descontentamentos legítimos e ‘reescrever’ a História à luz das suas próprias concepções.

Dentro, também se podem encontrar sinais que, certamente de modo involuntário, fomentam inimizades. Dum modo geral configuram infracções às regras do Blogue, pelo que, se escrupulosamente respeitadas, evitariam a maior parte das situações menos boas que por vezes surgem e que fazem ‘azedar’ o ambiente. Já alguém alvitrou ao Luís para ‘deixar sair as G3 de vez em quando’ como forma de ‘aliviar tensões’ mas isso, em si mesmo, pode descambar e criar fracções totalmente indesejáveis. É um jogo perigoso.


QUE FAZER?

Para já, impõe-se reflectir como sugerido ou motivado pelo artigo do A. Branquinho.

A forma de o fazer poderá ser constituída por artigos ou textos de opinião ou sugestões enviadas para o Blogue e que cheguem ao conhecimento colectivo, onde se apontem caminhos e acções a tomar e a desenvolver.

Pode também passar pela apreciação e discussão em ‘grupos de trabalho’ que tracem ou sugiram os novos (se for o caso) caminhos a seguir, ou o reforço organizativo existente.

Pensem (pensemos) nisso!

Entretanto, e para terminar, resta dar os parabéns ao “Nosso Blogue”, que é como quem diz, dar os parabéns ao seu criador, aos editores que o materializam e a nós todos que o alimentamos, acarinhamos e defendemos.

Que tenha longa vida e que nos vejamos representados nele!


Um abraço para toda a Tabanca!
Hélder Sousa
Fur Mil TRMS TSF
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 3 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6099: A Guiné aos olhos das actuais gerações (2): Marta Ceitil, sente que está a aprender e a crescer na Guiné-Bissau (Hélder Sousa)

Vd. último poste da série de 23 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6218: O 6º aniversário do nosso blogue (14): Homenagem ao Blogue e aos Mendes que nos acompanharam (Paulo Salgado)

Guiné 63/74 - P6218: O 6º aniversário do nosso blogue (14): Homenagem ao Blogue e aos Mendes que nos acompanharam (Paulo Salgado)

1. Mensagem do nosso camarada Paulo Salgado (ex-Alf Mil Op Esp da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72), com data de 21 de Abril de 2010:

Meu Caro Luís Graça,
Vai a minha participação – mais do que isso a homenagem ao Mendes, aos “Mendes” que nos acompanharam, lado a lado, numa guerra de que ainda não se escreveu de forma verdadeiramente científica…

Posta lá isso, o que vai em itálico.

Um abraço tertuliano.
Paulo Salgado



As notícias

Que me desculpem os companheiros bloguistas e os que, não participando nesta tertúlia – aqueles milhares que palmilharam bolanhas, matas e matagais, tarrafos, rios, riachos – eu não pretendo “armar-me” em intelectual, que não sou. Gosto de ler, de reflectir. É verdade. Lá no Olossato, em tempo de algum breve lazer, e para além das cervejas geladinhas ou gins ou cocas no bar, tive oportunidade de ler o Alves Redol quase todo, algum Rodrigues Miguéis, as pequenas (grandes) obras do Soeiro, o Russell – com troca com outros. Ou ouvíamos a Mahalia Jackson ou o Ray Charles ou la burrita – não sei quem é o autor (o Moreira ainda guarda esse disco ali em Gaia), verdade que às vezes púnhamos a rodar a 3.ª sinfonia ou a 5.ª sinfonia do Beethoven…enquanto ao longe se ouvia o batuque!

Vem isto a propósito do saboroso texto do Miguel Esteves Cardoso que escrevinha todos os dias um artigo interessante no Público. Diz ele, a propósito das nuvens do vulcão: «Já fui atingido pela nuvem de cinza e finalmente compreendi a tragédia. As coisas são mais tocantes quando nos tocam a nós. É que a nuvem atrasou o correio expresso.»

De imediato me lembrei que as nossas “nuvens” (desta natureza) por toda a Guiné eram os atrasos do aviãozinho (Dornier) que trazia o saco verde do correio. Pois é. Toda a maralha ficava fodiscada. Mas quem recordo, meus caros, é o Mendes, o homem da G3 e das imensas fitas que transportava, logo a seguir ao guia (bom, não me recordo se era a seguir imediatamente…) que, em dia de ausência de correio, bebia que se fartava e era um corrupio no que se chamava de caserna. Punha todos em polvorosa: fosse quem fosse, até o filho da puta do alferes… Não admira a razão: era casado, tinha uma filha…

Ao Mendes e a tantos “Mendes” eu quero endereçar neste dia de aniversário do nosso blogue, este humilde contributo.

Na verdade, as notícias que nos interessavam vinham em aerogramas carregados de emoção…

Obrigado, Mendes, pelo teu humano sofrimento de que me recordo vivamente, e que me ajudou a crescer e pensar muito.

Paulo Salgado
23 de Abril de 2010
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(*) Vd. poste de 19 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5500: Votos de Feliz Natal 2009 e Bom Novo Ano 2010 (11): Natal com calor (Paulo Salgado)

Vd. último poste da série de 22 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6213: O 6º aniversário do nosso blogue (13): A nossa blogoterapia, objecto de artigo da revista Visão, edição de hoje

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Guiné 63/74 – P6217: Estórias de Guileje (8): O papel da fragata Orion na batalha de Gadamael (Manuel Reis, ex-Alf Mil At Inf da CCAV 8350)


O nosso Camarada Manuel Reis (*), ex-Alf Mil At Inf da CCAV 8350, (Guileje, 1972/74), enviou-nos a seguinte mensagem, com data de 19 de Abril de 2010:

Camaradas,
Este tema poderá já ter sido abordado no Blogue, anterior à minha participação no Blogue, que data dos finais de 2008.
Não é minha intenção provocar uma tempestade, num momento em que o Blogue navega num mar de calmaria e caminha para o seu 6º Aniversário.
Mensagem de Manuel Reis ( Ex-Alf. Mil. da C. CAV. 8350) sobre:

A LFG Orion no Cacheu. Foto do Lema Santos, com a vénia devida.
O PAPEL DA FRAGATA ORION NA BATALHA DE GADAMAEL
Estava em Gadamael quando estes factos ocorreram, mas só tive conhecimento do apoio dos “fuzos” ao pessoal em fuga para Cacine. Sobre a actuação da Fragata Orion o meu desconhecimento era total.

Nos meus recortes de jornal sobre a Guerra Colonial, encontrei um texto sobre o desempenho da tripulação da fragata Orion na batalha de Gadamael. É um trabalho de investigação do jornalista Eduardo Dâmaso, publicado no Jornal Público no dia 26 de Junho de 2005, descrito nas páginas 12-13-14, com título de 1ª página “ A nave dos feridos, mortos, desaparecidos e enlouquecidos”.

Recordo, de forma resumida e com a devida vénia e respeito, o que nessa data foi escrito pelo jornalista Eduardo Dâmaso.

O trabalho do jornalista é baseado em depoimentos do Comandante, então imediato, Pedro Lauret e do soldado grumete electricista Ulisses Pereira.

A fragata Orion encontrava-se no rio Cumbijã, em missão de apoio aos aquartelamentos construídos recentemente no Cantanhez, quando no dia 1 de Junho de 1973, à hora de jantar, o seu Comandante recebe uma mensagem do Comandante em Chefe, António de Spínola, para subir o rio e proceder ao embarque de uma Companhia de Pára-quedistas, em reforço no Cantanhez.

Participaram nesta operação, para além da fragata Orion, duas lanchas de desembarque médio (LDM), oito botes zebro e uma companhia de “fuzos”.São dadas ordens aos “patrões” das LDM para seguirem para Cacine pelo canal do Melo, enquanto o Orion segue rio acima para recolher a Companhia de Pára-quedistas.

Só às 8 horas da manhã do dia 2 de Junho a Orion chega ao largo de Cacine. Aí, a tripulação é informada pelo Major Pessoa, Comandante do Batalhão de Pára-quedistas, da situação de caos que se vive em Gadamael: Do efectivo de 3 companhias que aí se encontravam não existiam mais de 30 homens a defender o aquartelamento. Os restantes e a população encontravam-se em fuga para Cacine ou na orla da mata.

São transmitidas as ordens de Spínola: “ É proibido o auxílio a cobardes”.

Contrariando as ordens de Spínola, Major Pessoa informa da urgência no socorro a essas pessoas e promete ir buscá-las, nem que fosse de canoa, caso o Comando da Orion não discordasse das ordens de Spínola.

As tropas Pára-quedistas desembarcam e seguem nos botes para Gadamael.

A Orion avançou em apoio das tropas fugitivas até ao ponto onde lhe era possível, sem qualquer comunicação ao Comando da Defesa Marítima. As LDM começaram a percorrer as margens e com a colaboração dos zebros recolheram os soldados que andavam perdidos.

“Havia mortos e feridos. Desaparecidos e enlouquecidos”. Improvisou-se um hospital no convés para assistir os feridos ligeiros, enquanto os feridos graves eram colocados na coberta dos “praças”. Foram recuperadas entre 300 a 400 pessoas que posteriormente foram transportadas para Cacine de modo a terem uma assistência mais eficaz.

Pedro Laurent, Comandante do Orion, recorda uma imagem que nunca mais o abandonou: “À noite, a coberta das praças estava completamente repleta de feridos, não havendo lugar para as praças se deitarem”

Sobre este acontecimento fez-se um manto de silêncio. A hierarquia nunca questionou a desobediência da Orion e o seu Comando e tripulação não foram alvo de qualquer processo disciplinar.

Outras histórias são relatadas pelo Comandante Pedro Lauret e pelo Grumete Ulisses Pereira, que me vou dispensar de as transmitir.

Para todos os camaradas, ex-combatentes, um abraço amigo,
Manuel Reis
Alf Mil At Inf da CCAV 8350
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Nota de MR:
Vd. último poste da série em:

Guiné 63/74 - P6216: Ser solidário (64): Teixeira Pinto (actual Canchungo). Manjaco Francês (Fabien Gomis)


1. O nosso Amigo e leitor guineense, a viver actualmente em França, Fabien Gomis, em 21 de Abril de 2010, enviou-nos um e-mail a solicitar-nos ajuda no seguinte:

Teixeira Pinto

(actual Canchungo)

Manjaco Francês

Bom dia.

Gostaria de agradecer ao blogue pelos “uploads” de imagens do meu país. Mas, mais importante para mim, é que o site permite-me compreender melhor as condições de vida dos soldados na guerra, bem como as dos povos indígenas nessa fase.

Mas primeiro quero me apresentar.

Eu sou francês de origem da Guiné-Bissau (Manjaco de Canchungo), nascido em 1973, em Paris, e secretário de uma Associação de Assistência às Aldeias Manjacas da Guiné.

Também organizamos muitos eventos guineenses na diáspora, em particular em França, onde estamos presentes em eventos culturais, em especial nos “Dias da Cultura”.

Para ser breve, eu solicitava 2 serviços:

Se me poderiam enviar fotos e tudo o que têm, sobre a região de Teixeira Pinto (actual Canchungo), e a devida autorização, a fim de expô-las durante o nosso “Dia Cultural”.

Queria também pedir ao Jorge Picado se me enviava o máximo possível de fotos, sobre os estágios de vida das pessoas, paisagens, casas...

Os meus pais contaram-me que, antes de eu nascer, o meu tio (irmão do meu pai), morreu durante um ataque entre Bachile e Cacheu...

A única informação certa que temos é que ele pisou/accionou uma mina.

O seu nome era Fara Gomes e foi aposentado um dia, mas decidiu regressar à tropa para junto dos seus antigos camaradas, quando foram convidados.

A morte ocorreu durante o 1º trimestre de 1968. Mas eles não sabem mais nada, porque estavam na França, naquele tempo, e as únicas pessoas que podiam adiantar mais alguns dados já faleceram.

Além das fotos, se tiverem notícias ou qualquer documento daquele tempo… tudo seria bem-vindo.

O meu e-mail pessoal é:
mandjako@free.fr

Atenciosamente,
Muito Obrigado.
Fabien Gomis

2. Tradução em francês do e-mail:

Manjaco Français

Bonjour.

Je tiens d'abord a vous remercier de mettre en ligne des images de mon pays. Mais surtout, le site me permet de mieux comprendre la les conditions de vie aussi bien des soldats que celles des autochtones durant la guerre.

Mais tout d'abord je tiens a me presenter.

Je suis un francais d'origine Bissau guinéenne (manjaco de Canchungo ) né en 1973 a Paris et secretaire d'une association d'aide aux villages manjacos de Guinée.

Aussi nous organisons beaucoup d'evenements ou la diaspora guinéenne de france est tres presente notament lors des journées culturelles.

Pour etre bref, j'ai 2 services a vous demander:

Serait-il possible de vous emprunter des clichés sur tout ce que vous avez concernant la region de teixeira pinto afin de les exposer durant notre jornée?????
A defaut, est-il possible de demander à Jorge Picardo s'il est possible de lui emprunter un maximum de clichés sur les scènes de vie de la population, les paysages, les édifices....

Mes parents m'ont dit qu'avant ma naissance le frere de mon pere est decede durant une attaque entre bachile et cacheu... C'etait durant le 1er trimestre 1968. Mais ils n'en savent pas plus car ils étaient en France a cette epoque et les seules personnes à meme de fournir des details sont aujourd'hui décédées.

Aussi, si vous aviez des infos, une photo, un quelconque document qui pourrait m'aider serait le bienvenu.

La seule info que l'on a est qu'il aurait marché sur une mine.

Pour info, mon oncle s'appelait Fara Gomes, il était à la retraite au moment des faits, mais il a décidé d'aller se battre avec ses anciens camarades lorsqu'ils furent appelés.

Merci beaucoup,
Fabien Gomis
_________
Nota de MR:

Vd. último poste da série em:

1 de Abril de 2010 >
Guiné 63/74 - P6086: Ser solidário (63): Gente feliz... com lágrimas: a Cadi e a sua filha, a Maria Alice do Cantanhez (Pepito / Luís Graça)

Guiné 63/74 - P6215: In memoriam (41): O Sem Sentido das Guerras - Relembrando António Ferreira (Mário Migueis)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Migueis(1) (ex-Fur Mil de Rec Inf, Bissau, Bambadinca e Saltinho, 1970/72) com data de 15 de Abril de 2010:

Caro Vinhal,
De longe em longe, dá-me para te escrever. Uma vezes - as mais das vezes -, para me rir um bocado da tropa contigo e com os nossos camaradas e/ou amigos. Outras vezes – que, francamente, quereria não fossem tantas -, para recordar coisas menos agradáveis e, no limite, como é hoje o caso, de acontecimentos, que, na derradeira fase dessa nossa experiência castrense, nos abalaram profundamente, deixando-nos uma marca bem cavada de tristeza e, por vezes, revolta, cuja evidência todos os dias demonstramos neste blogue, que tão bem nos compreende.

Passaram-se doze meses – como o tempo voa! -, desde que escrevi algumas linhas sobre a “Tragédia do Quirafo”. Fi-lo, na altura, com um objectivo muito concreto – esclarecer o rol de dúvidas que se colocavam e que eu estava em posição de esclarecer -, e uma preocupação primeira - que considerei mesmo um imperativo ético -, que era sossegar o espírito da viúva do nosso camarada António Ferreira, uma das vítimas mortais naquele dia de verdadeiro terror. Senti - aqui sim! -, a satisfação do dever cumprido, tanto mais que toda a acção desenvolvida pelo blogue culminou com uma singela, mas cheia de significado, homenagem ao nosso saudoso camarada no cemitério de Águas Santas, concelho da Maia, onde está sepultado.

Sobre a acção militar em si, contudo, ficaram alguns pormenores por relatar, não por esquecimento, mas apenas porque, tratando-se, do meu ponto de vista, de elementos acessórios, não tinham o carácter urgente dos restantes. Não deixando, porém, de os reputar de interessantes para publicação no blogue, uma vez que, se por outra razão não for, quanto mais informação, melhor, propus-me dá-los a conhecer na melhor oportunidade. Todavia, como era preciso rebuscar uns papéis esquecidos e coisa e tal, passaram-se os tais doze meses - e, agora, repito: “como o tempo voa!” – sem que eu nada tivesse acrescentado ao essencial, isto é, aos factos já narrados.

Pois, caro amigo, tenho a comunicar-te – grande surpresa! - que ainda não é desta que te faculto o tal material acessório, porque – lá estou eu a forjar desculpas para novo adiamento - , depois de matutar um pouco, cheguei à conclusão de que isto de andar a contar as coisas a conta-gotas não será exercício de que a gente se possa orgulhar, nem, se calhar, trabalho com que deva incomodar-te (confesso-te, porém, que o meu esforço reflexivo não chegou tão longe). Por isso, fica para daqui a algum tempo, quando eu tiver tudo arrumadinho.

E, agora, atenção, Vinhal! É aqui que tu, fingindo que concordas com estas justificações esfarrapadas e me perdoas o desleixo, lanças a superior pergunta:

- Mas, assim sendo, o que é que tu pretendes afinal, meu caro Migueis?!...

E eu, esfregando as mãos de contentamento pela oportunidade que me dás, respondo:

- Ainda bem que me fazes essa pergunta, meu caro amigo. Era precisamente por aqui que eu queria, deveria e não soubera começar.

E pronto, meu bom Carlos Vinhal, deixa o resto comigo. A partir de agora, podes sentar-te e descansar um bocadinho que eu, se me permites, passo a dirigir-me directamente a todos os tertulianos e amigos do “luísgraça&camaradasdaguiné”, ficando para ti, entre textos, o meu abraço muito amigo.

Mário Migueis


"António Ferreira"
Acrílico: © Mário Migueis da Silva (2010). Direitos reservados


2. O Sem Sentido das Guerras

Em 02/04/2009, a propósito da emboscada do Quirafo, verificada 37 anos atrás, publicava este blogue (P4117(2)), pela primeira vez, uma foto tipo passe do saudoso António Ferreira, que, como vários outros camaradas, ali perdeu a vida durante o terrível recontro.

A 18 do mesmo mês, na introdução do P4205(3), referia o Carlos Vinhal a certa altura, a propósito da mesma foto, de novo publicada: “…aparece um militar com a mesma pose altiva…”

Pois, caros camaradas e amigos, na altura, o conjunto dessas palavras e da imagem que lhes dera sentido transportou-me imediatamente para um dos poemas - chamem-lhes o que quiserem! - que eu tinha rabiscado nos dias de enorme tensão que se seguiram aos acontecimentos. Mentiria, se dissesse que o poema em causa foi dedicado especificamente ao António Ferreira, já que, na verdade, quando deixei a caneta escrever, à sua livre vontade, o que lhe ia na alma, pensava em todos aqueles rapazes - alegres meninos -, que, na inocência dos seus vinte anos, acabavam de ser vítimas – também eles - de uma “morte cruel e impiedosa”(*). Acontece é que, perante aquela imagem do António Ferreira, vi na altivez do seu porte, na expressividade do seu rosto, aquilo que parecia ter sido talhado para ilustrar aqueles meus momentos de revolta perante um mundo asqueroso que insistia em alimentar situações como a presente, em que jovens inocentes eram subtraídos do aconchego dos seus lares e lançados autenticamente às feras.

Na verdade, naqueles momentos de verdadeiro pesadelo, a minha indignação, que não poupava os que, como cães raivosos, se nos atiravam ao caminho, retalhando ou reduzindo a cinzas os meus próprios semelhantes, dirigia-se, porém, muito especialmente aos senhores dos nossos destinos, que, do alto dos seus pedestais e protegidos pela segurança das distâncias, “determinavam e mandavam publicar” - como é fácil mandar os outros lutar até à morte! - , independentemente da sorte reservada àqueles inocentes, que, como cordeirinhos, haveriam de ser sacrificados ao deus da guerra, esse vampiro infame que, desde as mais remotas eras, alimenta com sangue humano as suas negociatas e interesses pessoais.

Este último ponto parágrafo livrou-me da tentação de fazer – e quem sou eu?... - aprofundadas análises ao “sem sentido “ das guerras - aquelas que enlouquecem, desgraçam, estropiam, matam -, as quais hão-de continuar a massacrar a Humanidade, sem que, incompreensivelmente, as levemos muito a sério. Deixo esse trabalho para os estudiosos e especialistas da matéria, mas, pelo menos, agora que, a pretexto do centenário do nascimento de António de Spínola, se tem falado por todo o país um pouco mais sobre homenagens e honrarias, cuja validade não discuto, quero exortar-vos a não esquecerdes os Antónios Ferreiras - os nossos queridos e verdadeiros heróis, tão ingénuos quanto valentes -, os quais, correndo mil perigos e sofrendo privações de toda a espécie, se aventuravam, dia após dia, nas picadas fartas de minas e armadilhas e nos rios e matas traiçoeiras, uns acabando por sucumbir perante tanta adversidade, outros continuando a suportar estoicamente até ao fim aqueles anos de tortura e pesadelo a que foram condenados. E é bom não ignorarmos que muitos deles, se não a sua esmagadora maioria, tudo fez e suportou na convicção de estar a lutar por uma causa justa e defensora dos princípios sagrados de uma pátria multirracial, una e indivisível, tal fora a doutrina das nossas escolas e igrejas desde a sua mais tenra idade.

A trinta e oito anos de distância temporal dos acontecimentos que lhe deram sentido e forma, deixo-vos, em anexo, com um grande abraço, o pequeno poema que me trouxe até vós, o qual tomo a liberdade de ilustrar com um acrílico da minha autoria, feito a partir da fotografia do António Ferreira, publicada um ano atrás no blogue.

Esposende, 17 de Abril de 2010
Mário Migueis Ferreira da Silva


3. Rosto de Menino

Rosto de menino
Criança traquina
E mataram-te

Vampiros
Filhos da puta
Bando de abutres
Sacanas
Corja de carrascos assassinos!

Corpo chisnado
Em putrefacção
Réstia de pó
Montículo de cinza
E eras vida



Saltinho, 19 de Abril de 1972
Mário Migueis
__________

Notas de CV:

(1) Vd. último poste de Mário Migueis de poste de27 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6057: Parabéns a você (93): Os novos Notáveis do Reino, Sir Charles Vinhal & Sir Edward Mc Ribeiro, armados Cavaleiros da Tabanca Redonda (Mário Miguéis)

(2) Vd. poste de 31 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4117: A tragédia do Quirafo: 37 anos para fazer o luto pelo António Ferreira (Paulo Santiago / Cátia Félix)

(3) Vd. poste de 18 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4205: In Memoriam (19): António Ferreira, 1.º Cabo TRMS da CCAÇ 3490, morto em combate no dia 17 de Abril de 1972 (Cátia Félix)

Vd. último poste da série de 22 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6211: In memoriam (40): Pequena Homenagem ao Piu, da CCaç 3520/Cacine (Daniel Matos)

Guiné 63/74 - P6214: Notícias dos nossos amigos da AD - Bissau (13): Força, Luís e Camaradas, porque o Blogue é um momento único e inigualável no mundo (Pepito)


Guiné-Bissau > AD - Acção para o Desenvolvimento > Foto da semana > 4 de Abril de 2010 > "Doação para as escolas rurais da Guiné-Bissau". Foto tirada em 6 de Março de 2010.  (Foto reproduzida com a devida vénia...) (*)


I. Legenda: "A 'Memórias e Gentes', associação humanitária portuguesa de Coimbra veio no início de Março de 2010 em expedição terrestre à Guiné-Bissau, trazendo uma importante doação de produtos essenciais destinados aos seus diferentes parceiros locais, os quais terão a responsabilidade de os fazer chegar aos destinatários finais, escolas, hospitais, centros de acolhimento, creches, etc.

"A AD foi contemplada com numerosos cartões contendo livros escolares da 1ª à 9ª classe, brinquedos infantis para as creches e roupa diversificada para raparigas e rapazes, assim como material escolar.

"Na pessoa de José Moreira, presidente da associação, as Escolas de Verificação Ambiental do sector de S.Domingos e o Centro de Animação Infantil de Quelélé em Bissau, passaram a dispor de melhores condições de ensino e material lúdico que encantam as crianças".

 
II. Mandei há dias correio para o Pepito:

1. Aí tens o menino Chico [de Fajonquito]... de que te falei e que faz parte do nosso blogue... Deves lembrar-te dele, espero que por boas razões.

2. Outra coisa: falei ontem, longamente, com a tua mãe.... Falámos do seu tempo de professora no Liceu Honório Barreto...

3. Vê o novo videoclip dos Melech Mechaya... Feito com um orçamento de mil euros.. Putos com talento... Eu adorei, mas sou suspeito:

http://www.youtube.com/watch?v=7q2PdAuu-ls

 4. A Alice quer mandar mais umas roupinhas e sapatinhos para a afilhada de Farim do Cantanhez... Quando é que alguém de vocês passa por Iemberém ? Pode usar de novo a tua caixa postal ?

5. Estive anteontem, 15, no lançamento do livro do Amadu Bailo Djaló, um notável livro de memórias, honesto, surpreendente... Esteve muita gente, incluindo o Alpoim Calvão... Entre os guineenses, o Bamba, que diz ser teu conhecido, e que foi ministro da saúde pública, num governo vosso, pelo Movimento de Bafatá...Estudou na Ucrânia (Kiev ?) e na Itália. Julgo que é engenheiro da área alimentar, foi um contacto breve, tenho o seu telemóvel.

6. Temos começar a preparar a viagem à tua terra em 2011... Qual seria, no teu entender, o nº ideal de pessoas ? Podia ser uma iniciativa Blogue e AD...

7. No dia 23 de Abril de 2010, vamos fazer 6 ANOS!!! A revista Visão vai publicar, na próxima 5ª feira, um artigo sobre nós...

8. Apanhámos mais um susto com os rapazes (fogosos) do batalhão de Mansoa... Gostei da resposta do povo, que veio para a rua... Sei que vocês tão bem.

Um grande chicoração. Luís

III. Resposta do Pepito:

Luís, Amigo


1. Sinceramente não me recordo do Chico lá no Ministério. Ele diz que não me ouviu no dia 20 de Janeiro (Museu). Esquece-se que eu pratico o mesmo que ele diz:"Eu ainda tenho a sorte de pertencer ao grupo dos anonimos que, no contexto da Guiné, é um grande privilegio"

2. Videoclip dos Melech Mechaya: o nosso sistema de internet está péssimo e lento. Não consegui ouvir, mas logo que melhore fá-lo-ei.

3. Diz à Alice que mande roupa sempre que quizer. Deve é avisar-me para eu estar a par e não se perder nos CTT

4. Viagem 2011: vamos a isto com a parceria Blogue-AD. Por razões de alojamento no sul estava a pensar em 14 pessoas. Se houver mais, melhor. Sempre se arranja solução satisfatória. É como no Blogue, há sempre lugar para mais um, ou como dizia o Zeca, venham mais cinco!

5. Dia 23 de Abril: para a menina Tabanca Grande, uma salva de palmas! Força,  Luís e Camaradas,  porque o Blogue é um momento único e inigualável no mundo.

6. Batalhão de Mansoa: bem quis o Amilcar Cabral que em vez de militares, tivessemos militantes armados. Uma vez acabada a luta pela independência, largavam as armas e continuavam a militar com outras "armas". Foi aí que perdemos a grande oportunidade. Hoje não é só o poder que está na ponta da espingarda. É também a Coca.

abraço amigo

pepito

________________

Nota de L.G.:

(*) Vd. último poste da série > 31 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6080: Notícias dos nossos amigos da AD - Bissau (12): Guileje, Faro Sadjuma, S. Domingos... Ecoturismo e empreendedorismo no feminino

Guiné 63/74 - P6213: O 6º aniversário do nosso blogue (13): A nossa blogoterapia, objecto de artigo da revista Visão, edição de hoje


Na edição de hoje, 23 de Abril de 2010, da revista Visão, o jornalista João Dias Miguel assina um artigo que ocupa 3/4 partes da página 78, sob a rúbrica Visão > Sociedade. O artigo é ilustrado por uma foto de Nuno Fox (acima reproduzida, com a devida vénia).

O texto começa com uma citação minha, resultado de uma longa entrevista com o jornalista: "Somos uma espécie de grupo de auto-ajuda. Costumamos falar em 'blogoterapia da guerra em África' "... E é depois referida sucintamente a  história do nosso blogue, apontado como "presta(ndo), seguramente, um serviço público, ao dar espaço a um assunto tabu - a Guerra Colonial - que estava 'enterrado debaixo de uma pedra' e que continua a fazer sofrer, em silêncio, muitos portugueses".

Destacado a amarelo, lê-se: "O blogue, onde todos se tratam por tu e não existem hierarquias militares, tem como lema a frase 'Não deixes que sejam os outros a contar a tua história por ti' e ali se faz todos os dias a petite histoire - o relato, na primeira pessoa, das experiências que cada um viveu na Guiné-Bissau".

E continua o jornalista:

"Há um efeito terapêutico", diz o fundador. "Muita gente que vivia isolada, sozinha com os seus fantasmas e memórias, sem ligações, sem suporte social, passou a conviver e a verbalizar as suas recordações, passou a registar isso no papel. E nós publicamos".

São citadas algumas histórias que tiveram impacto no público leitor. É ainda referido que o blogue tem mais de 400 membros inscritos, duas mil visitas por dia, que é lido dos EUA à Austrália, que apoia diversas iniciativas humanitárias na Guiné-Bissau e que tem sido fonte de alimentação de livros e autores. "E dali já saíram ideias para livros como, por exemplo, Estórias Cabralianas, pequenos contos sobre o absurdo do dia-a-dia da guerra" (numa referência ao livro do Jorge Cabral, que deve ser publicado este ano).

A foto, algo insólita, em que eu apareço com o título do livro do Amadu Djaló (Guineense, Comando, Português), projectado no rosto, foi tirada numa sala de aulas, com recurso ao projector e à ligação à Internet.

O nosso blogue faz amanhã 6 anos (*).
______________

Nota de L.G.:

(*) Vd. último poste da série < 22 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6212: O 6º aniversário do nosso blogue (12): Cem pesos ? Manga de patacão, pessoal! ( Luís Graça / Humberto Reis / A. Marques Lopes / Afonso Sousa / Jorge Santos / Luís Carvalhido / Sousa de Castro)



Guiné 63/74 - P6212: O 6º aniversário do nosso blogue (12): Cem pesos ? Manga de patacão, pessoal! ( Luís Graça / Humberto Reis / A. Marques Lopes / Afonso Sousa / Jorge Santos / Luís Carvalhido / Sousa de Castro)


Cópia de uma nota de cem escudos da Guiné (ou pesos), emitida pelo BNU (Banco Nacional Ultramarino), em circulação no nosso tempo.

Esta, por acaso, foi emitida em Lisboa em 17 de Dezembro de 1971, já a rapaziada da CCAÇ 12 (eu, o Humberto Reis, o Tony Levezinho, o Fernandes, o Marques, o José Luís de Sousa, o Gabriel Gonçalves, o Dalot e todos os demais pais-fundadores...) tinha regressado a casa. A nota ostenta a efígie do Nuno Tristão, o primeiros dos nossos camaradas a morrer na Guiné, "país de azenegues e de negros", no já longínquo ano de 1446, "varado por azagaias envenenadas" (sic), como se pode ler algures no Portugal dos Pequenitos, em Coimbra (se nunca lá foram, aproveitem para ir com os netos um fim-de-semana destes).

Foto: © Santos (2005). Direitos reservados


1. A propósito do patacão que ganhavam uns e não ganhavam outros - por exemplo, um capitão, miliciano, 32 anos, engenheiro agrónomo, 4 filhos, responsável por uma companhia de 150 homens, ganhava, no CTIG, em Agosto de 1970, qualquer coisa como 11 contos, limpos (cerca de 55 €, hoje...) (*) - , e a pretexto do 6º aniversário do nosso blogue (**), fomos revisitar as nossas águas furtadas, onde está o nosso baú de memórias, e de lá sacámos uma engraçada conversa entre mim e o Humberto Reis (um dos nossos primeiros bloguistas) e outros camaradas... justamente a propósito do patacão. (***) Muitos camaradas, sobretudo os mais novos, os periquitos (chegados há menos tempos à nossa Tabanca Grande), não estão familiarizados com a I Série do Blogue, onde foram publicados os nossos primeiros 825 postes, de 23 de Abril de 2004 a 31 de Maio de 2006.


2. Cem pesos, manga de patacão, pessoal!
por Luís Graça (***)


Amigos e camaradas:

Há dias o Jorge Santos mandou-nos uma nota de cem escudos da Guiné (cem pesos). Ou melhor: uma nota digitalizada, uma imagem em formato jpg. Puxem pela memória e digam lá, para a gente poder explicar isso aos filhos e netos, bem como à cara metadade, o que se podia comprar/pagar com uma notinha destas, no vosso/nosso tempo…

Eu tenho ideia que era manga de patacão, pessoal ! Eu já não me recordo quanto pagava à lavadeira, em 1969/71, mas se fosse serviço extra, era capaz de lhe dar uma nota destas. A minha não fazia favores sexuais, mesmo em dias de festa: não era cristã nem animista, era uma fula [ou melhor, mandinga], recatada e virtuosa… Mas em Bissau ou em Bafatá, uma queca (como os nossos filhos e as nossas tias dizem agora, 'tás-a-ver...) podia custar uma nota (preta) destas... Já não me lembro das cotações no lupanário em tempo de ocupação e de guerra... As verdianas do Pilão, essas, podiam ser até mais caras…

Com uma nota destas, ó tuga, tu compravas duas garrafas de uísque novo (disso lembro-me bem…). O Old Parr (uísque velho, muito apreciado lá e cá) já custava mais: 130 ou até 150 pesos, se não me engano… Além do pré (600 pesos/mês), os meus soldados africanos (que eram praças de 2ª classe!) recebiam mais, creio eu, cerca de 25 pesos por dia pelo facto de serem desarranchados. Nunca joguei à lerpa, mas o Humberto pode dizer quanto ganhava ou quanto perdia numa noite de insónias e de rodadas de uísque…

Ainda em matéria de comes & bebes, um quilo de camarões tigres, do Rio Geba, comidos na tasca do tuga [Zé Maria] que era turra (ou, pelo menos, suspeito de vender e comprar vacas aos turras), em Bambadinca, com uma linda vista para o rio, custava cinquenta pesos… Um bife com batatas fritas e ovo a cavalo (supremo luxo de um operacional como eu ou o Humberto) na Transmontana,  em Bafatá,  já não me lembro quanto custava (talvez vinte a vinte e cinco? ).

Ainda me lembro, isso sim, de o vagomestre comprar uma vaca raquítica por 950 pesos, depois de bater não sei quantas tabancas da região de Bambadinca… Nas tabancas, fulas, por onde passei e onde fiquei, uma semana ou mais [de cada vez], era costume comprar, mesmo a custo, galinhas e frangos, mas já não me lembro quanto pediam pelos bichos de capoeira (sete pesos e meio?)… As ostras em Bissau custavam 20 pesos (uma travessa)… E por aí fora.

Amigos e camaradas: actualizem ou rectifiquem a lista. Não sei se depois de 1973, a inflação também chegou à Guiné… O Sousa de Castro [, 1972/74, ] é que nos pode dizer… De qualquer modo, o que comíamos e bebíamos era praticamente tudo importado...

O grande ventre de Bissau era alimentado por uma economia de guerra que deu dinheiro a ganhar a muita gente... Manga de patacão, pessoal! ... Desde as rachas de cibe [, a sete e quinhentos cada uma, no reordenamento de Nhabijões, se a memópria me não atraiçoa] ao cimento (a construção de aldeias estratégicas, como a de Nhabijões, com cerca de 350 casas, deve ter ajudado a dourar a reforma de muita gentinha mais patriótica do que eu) até aos transportes (civis) em comboios militares, sem esquecer os efeitos (mais nefastos do que benéficos) que a guerra teve na pobre economia natural dos guinéus.

Um deles foi a sua própria militarização. Nos últimos anos da guerra, tudo girava à volta (e vivia) da guerra. A guerra tornou-se, ao mesmo tempo, o ópio e a grande sanguessuga dos guinéus (e dos próprios tugas). E a prova disso, quase quatro décadas depois, é a bidonvilização, a lumpenproletarização da população que engrossou Bissau.

Luís Graça

PS - Perguntas ao Humberto:

Como tens uma boa memória, pode ser que te lembres disso... Eu já nem me lembro sequer de quanto ganhávamos... Cerca de cinco notas de conto, não ? Os alferes, sete; os capitães, não faço ideia... E os nossos soldados africanos, que eram praças de 2ª ? Tenho ideia que ganhavam seiscentos pesos, mais outro tanto (25 pesos / dia) por serem desarranchados... Como eram islamizados, não podiam comer a comida do tuga, pelo que foram mais tarde autorizados a receber o subsídio de alimentação... Mandaram-me isso à cara, no Xime, quando morreu o Cunha e o restante pessoal da CART 2715... Os sacanas tiveram um momento de hesitação, antes de aceitarem ir comigo resgatar os corpos dos nossos camaradas mortos, à cabeça da coluna (vd post de 25 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - VII: Memórias do inferno do Xime (Novembro de 1970):- Pessoal africano só ganha seiscentos pesos! - Que é como quem diz: vai lá tu, que os mortos são do vosso sangue, são do vosso chão, são da vossa terra, são tugas... Foi o único momento, em toda a minha comissão, em que vi os nossos soldados terem medo...

E uma passagem de avião, para virmos a casa, de férias ? E o famigerado Hotel da Cona Rachada [sic, em linguagem de caserna], onde a gente ficava, de passagem, em Bissau ? Eu pelo menos fiquei uma vez ou duas, se não me engano... (Ou era outra pensão ainda mais reles ? Recordo-me que um dia rebentaram-me a mala e fanaram-me o uísque, no Chez Toi)... Tu tinhas os teus conhecimentos em Bissau [, em Bissalanca, na BA 12]...

De qualquer modo, o que eram 600 escudos guineenses (pesos) naquela época ? Apenas o suficiente para comprar, na loja do libanês ou do tuga, um saco de arroz importado, e para alimentar (mal) uma família extensa, reunida na sua morança (muitos deles, tinham pelo menos duas mulheres que trouxeram das suas terras para Bambadinca).




Guiné > Moeda de 5 e 10 escudos (pesos). Frente e verso
Foto: © Afonso Sousa (2005). Direitos reservados.


3. Resposta rápida, artilhada, telegráfica, à ranger, do Humberto Reis (***):

Das chamadas Meninas & Vinho Verde [já] não me lembro, mas dos produtos que eu mais consumia, entre 69 e 71, não me esqueci:

- Um maço de SG Filtro: 2,5 pesos (sempre que saía para o mato levava 3 a 4 maços para 2 dias);
- Uma garrafa de whisky novo (J. Walker Juanito Camiñante de 5 anos, rótulo vermelho, JB): 48,50 pesos;
- Idem, de 12 anos, J. Walker rótulo preto, Dimple, Antiquary: 98,50
- Idem, de 15 anos, Monkhs, Old Parr: 103,50;
- Um whisky, no bar da messe, eram 2,50 pesos sem água de sifão e com água eram 3,00 pesos;
- Quanto à lerpa, ou ramim, uma noite boa, ou má, poderia dar (valor médio) 200 a 300 pesos para a lerpa e 50 a 100 para o ramim.

Já não me lembro da maioria dos preços mas tenho uma ideia de que uma viagem na TAP em Março de 1970, Bissau-Lisboa-Bissau, me custou à volta de 6 contos [ 30 euros, em moeda actual] e nós ganhávamos cerca de 5.

O pré dos soldados era de 600 pesos, os de 2ª [classe, os africanos], 900 pesos os de cá e os cabos 1200 pesos. Eu sei dessa diferença, pois tinha no meu Gr Comb o Arménio (o Vermelhinha) que foi como soldado, visto que levou cá uma porrada (foi apanhado numa rusga pela PM no Porto quando já estávamos no IAO em Santa Margarida) que lhe lixou a promoção.

Em Bissau, como normalmente ficava instalado na BA 12 [Base Aérea nº 12] nos alojamentos dos pilotos, pois tinha lá malta minha conhecida de cá, não sei qual o preço das pensões, e do bifinho na Transmontana de Bafatá também já não me lembro.

Sei bem, isso não me esqueceu, que o visque era mais barato que a cervejola : 2,50 [pesos] simples contra 3,00 ou 3,50, além de que dava direito, o whisky, a gelo. As cervejas nunca estavam suficientemente geladas pois os frigoríficos da messe, a petróleo, não tinham poder de resposta para a quantidade de pedidos.

Não se riam, meus amigos, com a expressão dos frigoríficos a petróleo, pois era assim mesmo que funcionavam, visto que o gerador eléctrico [de Bambadinca] só trabalhava à hora de almoço e depois durante a noite. Disto, da produção de frio/ar condicionado falo de cátedra pois é a minha vida profissional (eu costumo dizer que vivo do ar condicionado).

Aquele sistema de produção do frio a partir de uma fonte quente ainda hoje é utilizado, chama-se de absorção, e utiliza como refrigerante a água, ao contrário dos sistemas mais vulgarizados que utilizam alguns gases, mais ou menos poluentes da camada de ozono. Posso dar-vos como exemplo alguns dos sistemas de produção do frio para o ar condicionado, que conheço pois acompanhei de perto: Estalagem da Srª das Neves, no nordeste transmontano, do Hospital de Matosinhos, dos edifícios do BCP-Millennium no Tagus Park em Oeiras, do Hospital de Mirandela, etc., utilizam sistemas destes.

Um abraço, Humberto Reis

4. Comentário "do sábio e sensato, do nosso mui experiente operacional e grande conhecedor da Guiné, do antes e do depois, A. Marques Lopes" (**):

Interessante também esta reflexão (fez parte da nossa vida). No entanto, eu, pessoalmente, muito pouco posso dizer. Lembro-me que pagava 5 pesos quer à minha lavadeira de Geba quer à de Barro; além da lavagem também trabalhavam com as mãos (eram fulas, pois).

Quanto a tainadas e saber o preço delas, é um bocado difícil pois nunca tive tempo para muitas... Só sei que, quando em Bissau à espera de embarque, paguei 5 pesos aos miúdos que andavam perto do Bento (a 5ª Rep...) a vender sacos de camarão.

Quando em Geba fui uma vez a Bafatá e, talvez, à Transmontana, não sei bem (só sei que o dono, já entradote, tinha uma mulher loura mais nova e também comestível). Um dia, eu e o capitão [da CART 1691] (o tal que morreu na estrada para Banjara) decidimos ir os dois até Nova Lamego de jeep (maluqueiras!) onde comemos qualquer coisa não sei aonde e não me lembro o que paguei.

Quando em Bissau, no Pilão, frequentei várias vezes a Fátima, que não era caboverdiana mas sim fula, e dava-lhe 50 pesos de cada vez. Uma rapariga esperta: uma noite, a Fátima propôs-me que eu trouxesse uma grade de cervejas do QG para ela vender aos visitantes (era giro ouvi-la gritar da cama: está ocupado!, quando os páras ou os fuzos batiam à porta dela), dava-me metade da venda (não entrei nisso, claro). Também frequentei a casa que um branco tinha perto do campo do UDIB, e onde tinha as filhas à disposição, mas aí só paguei as cervejas.

Quanto às bebidas da tropa, não me lembro rigorosamente nada dos preços. Mas bebi de tudo, garanto-vos, e em grande quantidade (latas de rum com coca-cola, de cerveja com coca-cola, whisky, gin, cerveja, 1920...). Só procurei beber muito pouca água, e nunca apanhei nenhuma doença, por isso, com certeza. Quando chegava das operações, eu e os furriéis esticavamo-nos ao comprido e o soldado faxina já sabia que tinha de trazer uma grade de cervejas para nos saciar...

Como vêem, quanto a este custo de vida sei muito pouco.

Marques Lopes

PS - Não me lembrei dessa dos maços de tabaco porque nunca fumei no mato. Nem ninguém dos que saíam comigo podia fumar. Regra de segurança para as muitas noites passadas fora. E creio que foi muito útil.


5. Achegas do Luís Carvalhido (***):

Bom dia, companheiros!

Que lembranças! Aquilo que se comprava com meia dúzia de pesos!... Onde eu investia muito era iske e na coca-cola. Nas outras coisas, não precisava muito, porque sempre fui um rapaz com muita sorte. Não fiquem com inveja; já pelo contrário, nunca me saiu nada ao jogo.

Luís, dei esta morada a um companheiro de armas que está nos States e que tem histórias e fotos do Saltinho. Dentro em breve teremos aqui outros olhares.

Quanto a mim dentro de dias vou para o nordeste brasileiro. Depois conto como é que foi, porque aqueles que lá vão ficam amarrados. Eu só vou olhar porque comigo vai a comandante da guarnição e ela não é de brincadeiras.

Um abraço, Luís Carvalhido




Guiné > Nota de 50 escudos (pesos), frente e verso
Foto: © Sousa de Castro (2005). Direitos reservados.


6. Apontamento do Sousa de Castro (***):

Olá,  amigos!

Quero dizer-vos que no meu tempo (1972/74) não era muito diferente: os preços que se praticavam eram mais ou menos os mesmos....

Puxando um pouco pela memória, eu como 1º cabo radiotelegrafista ganhava 1.500$00, sendo 1.200$00 por ser 1º cabo e mais 300$00, de prémio de especialidade.

A dita queca, se a memória não me trai, creio que era assim: para os soldados cinquenta pesos; para os cabos sessenta pesos; a partir daqui não me lembro quanto pagavam os mais graduados... Quanto às cabo-verdianas, a coisa era de facto mais cara, em final de comissão paguei cento e cinquenta ou duzentos pesos, isto em Fevereiro de 1974.

Recordo que, com um peso, comprava quatro ou cinco bananas. Os uísques novos como o Johnnie Walker (cavalo branco) e outros custavam, em 1972/74, cinquenta pesos; o Dimple 100 pesos; o Old Parr 150 pesos; e havia o Monks, a 250 pesos.

Julgo serem estes os preços daquela altura, alguém que me corrija. Por lavar a roupa, como cabo pagava 60 pesos.

Anexei uma nota de cinquenta pesos, frente e verso para recordação.

Sousa de Castro

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Notas de L.G.:

(**) vd. poste de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6198: O 6º aniversário do nosso blogue (11): Selecção dos melhores dos primeiros cem postes publicados na I Série do nosso blogue (Os editores)

(***) Vd. postes da I Série:


1 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXII: Cem pesos, manga de patacão, pessoal! (2)

Guiné 63/74 - P6211: In memoriam (40): Pequena Homenagem ao Piu, da CCaç 3520/Cacine (Daniel Matos)

1. Mensagem do nosso camarada Daniel Matos* (ex-Fur Mil da CCaç 3518, Gadamael, 1972/74), enviada ao nosso Blogue:

Camarada Carlos Vinhal
Envio um texto de homenagem a um camarada já falecido, (furriel miliciano Vicente) membro da CCAÇ 3520 (Cacine), cujo pessoal se reune no próximo fim de semana para o respectivo convívio anual.
Escrevi o texto na sequência de um outro oportunamente publicado na Tabanca Grande pelo Juvenal Candeias, a quem dou conhecimento do mesmo, por cópia.
Deixo à V/consideração a sua eventual publicação no blogue, nesta altura.

Um abraço do
Daniel de Matos


Pequena Homenagem ao Piu, da CCaç 3520/Cacine

por Daniel de Matos

No ano passado, aquando da trasladação dos corpos do “cemitério” de Guidaje para Portugal dos meus camaradas de companhia José Carlos Machado e Gabriel Telo (d’Os Marados de Gadamael) e do soldado Manuel Geraldes (da 2.ª CCaç do BCaç 4512), e da homenagem que lhes foi devidamente prestada no Monumento Nacional aos Combatentes, junto ao Forte do Bom Sucesso, em Lisboa, tive o gosto de me encontrar com o ex-alferes miliciano Juvenal Candeias, da CCaç 3520 – Cacine/Cameconde 1971/74, que já não via desde os tempos da Guiné.

Foi muito fácil reconhecê-lo (ele não dirá o mesmo): está igualzinho ao que era quando nos encontrámos no BII19, na Madeira, há mais de 38 anos, só o bigode e alguns cabelos se esbranquiçaram. Trocámos breves impressões e fiquei a saber que estava a enviar histórias desses velhos tempos para a Tabanca Grande. Histórias que vim ler na primeira oportunidade.

Deparei-me logo com a intitulada Vicente, o Piu (Post 5113**, de 16 de Outubro de 2009). “Piu”, não me dizia nada e não associei imediatamente a alcunha ao camarada Vicente que tão bem conhecera. Embora o José Vermelho (tal como o Vicente, ex-furriel miliciano da CCaç 3520), nos tenha lembrado no seu comentário um dos tiques que lhe conhecia – o de apontar a diversos alvos com os braços a fazer de espingarda e…”pum”, – nunca relacionei o Vicente com um efectivo e, soube-o agora, tão eficaz caçador. (O outro tique era o de percutir dedos e palmas da mão, transformando em bombos, tarolas e pratos os joelhos, tampos de mesa, ferros da cama, etc.). Quanto a “Piu”, de pássaro: só ao ver as fotografias que ilustram o interessante e bem escrito relato do Juvenal Candeias compreendi haver analogia com o “meu” camarada Vicente. Fiquei naturalmente chocado ao tomar então conhecimento, de súbito e por esta via, da perda de mais um grande Amigo, vergado por um estúpido cancro e do qual guardo gratas e muitíssimo bem-dispostas recordações.

Tive o prazer de ser convidado para comparecer no convívio da 3520, que este ano se realiza em Lisboa (dia 24 de Abril) e se prolonga no dia seguinte, aniversário da Liberdade, na Ericeira. Como costumo estar perto dali nos fins-de-semana, prometi aparecer no dia 25, mas creio que, lamentavelmente, a calendarização de uns tratamentos que ando a fazer me vai impedir de poder abraçar tantos Amigos que não encontro há longos anos… Logo veremos. Para já, encontrei esta forma de enviar um abraço a todos, escrevendo estas notas de singela homenagem ao Piu, homenagem que é extensiva a todas as “Estrelas de Cacine”.

Cameconde > Alcino Sá, Piu, Costa Pereira, um djubi, Carlos Alves, Juvenal Candeias.


O Max Roach do Entroncamento!

Convivi bastante com o Vicente – e de que maneira! – em Tavira, durante a “especialidade” de atiradores; mais tarde estivemos na Escola Prática de Engenharia, em Tancos, onde tirámos o Curso de Minas e Armadilhas, que ambos concluímos a 11 de Setembro de 1971; durante o último trimestre desse ano, estivemos igualmente juntos no Funchal, na formação das nossas companhias madeirenses, – eu na 3518, ele na 3520, que rumariam à Guiné no final do ano para fazerem o IAO nas proximidades do Cumeré e partirem, respectivamente, para Gadamael (futuros Marados) e Cacine (futura Estrelas).

Não sei exactamente se não nos conhecemos anteriormente, isto é, a minha memória já não me garante se ambos frequentámos ou não a recruta em Santarém, na Escola Prática de Cavalaria. Creio que sim, mas a relativa proximidade da capital ribatejana com o Entroncamento – terra natal do Vicente – pode estar a induzir-me em erro. Brincalhão como era, retenho a sua imagem a fazer camas à espanhola para apanhar os mais incautos, e quase juraria que isso começou no velho quartel (hoje já desactivado) de Santarém.

Como toda a gente sabe, havia o hábito de apadrinhar o pessoal com os nomes das terras de proveniência, salvo se a origem fosse das grandes cidades, pois seria confuso tratar por “Lisboa” ou “Porto” um punhado de homens ao mesmo tempo. Na circunstância, não deveria existir, pelo menos na caserna, mais nenhum “Entroncamento”, e foi assim que ele passou a ser conhecido, orgulhosamente, aliás, pois não escondia o amor pela sua terra. Eu próprio o tratei muitas vezes dessa forma, até para lhe afirmar que ele era um “fenómeno”, – e passo a explicar porquê.

A pequena história que quero contar começa em Tavira e alastra-se a grande parte do Algarve. Nos primeiros dias da Especialidade os instruendos são mandados sentar-se no refeitório para ouvirem uma palestra do Tenente Capelão. Tudo decorreu num tom coloquial, terminando a aula com boa interacção de perguntas e respostas sobre coisas do espírito. Porém, antes de nos mandar sair, o nosso Capelão informou o pessoal que em cada curso era hábito formar-se um conjunto musical para abrilhantar certos eventos e cantar numa ou noutra missa. E começou por perguntar se entre os presentes alguém sabia tocar instrumentos musicais e se era voluntário para a tarefa.

Ergueram-se alguns braços: havia um organista, três ou quatro guitarristas, o Vicente era bom na bateria, o suficiente para formar a banda de acordo com os instrumentos que havia disponíveis no quartel. Eu tinha a mania das músicas – mais ao nível da audição, recolha de informação discográfica e divulgação via rádio – mas, para grande desgosto meu, não tocava rigorosamente instrumento nenhum. Ainda imaginei que o nosso Tenente Capelão perguntasse por percussionistas, talvez aí o meu sentido rítmico me desenrascasse… Mas o que ele quis saber em seguida foi quem sabia cantar! Houve dois prontos voluntários: o Joaquim Catana (que julgo já estar reformado da banca onde, por coincidência, viria a ser colega da Fernanda Simões, uma grande amiga que conservo desde os tempos da juventude), e, ficando eu próprio surpreendido ao ver-me de braço no ar, esta vossa praça! Um fio de suor deve ter-me percorrido a testa quando me lembrei que o capelão iria pedir o curriculum de cada um, em que conjuntos cantaste, etc.. A verdade é que a minha experiência se limitava a microfones de autocarros de excursão e algumas serenatas ao luar em encontros de amigos. Nesse tempo, acho que nem cantava mal. Bem, e tinha pertencido ao orfeão do Liceu Nacional de Gil Vicente (Graça, Lisboa) enquanto por lá andei. Quanto a missas, sim, se ele me perguntasse invocava a minha experiência a cantar na igreja de Vila Maior (São Pedro do Sul) quando fiz as comunhões, infantil e solene, mais a profissão de fé, mas com os meus 8 a 10 anos! Foi uma experiência improdutiva, esta, pois já chegaria agnóstico ao serviço militar…

O Vicente, eu e os demais “artistas” fomos convidados para no dia seguinte tomar contacto com os instrumentos e visitar o local de ensaios que, se não estou em erro, era na própria sacristia. Os instrumentos lá estavam: teclado de órgão, bateria ainda em razoável estado (as baguetes pareciam por estrear), violas eléctricas (baixo, ritmo e solo). Afinal, havia também uma pandeireta e um chocalho, óptimos auxiliares para os vocalistas que, regra geral, nunca sabem onde colocar as mãos enquanto cantam (muita sorte têm o fadistas ao metê-las nos bolsos!). Para o Catana e para mim estava reservado um único “instrumento”: o microfone, ligado a um pequeno amplificador, que no entanto veio a revelar-se potente para as necessidades.

O Capelão explicou-nos que a “banda” deveria ensaiar um conjunto de músicas destinadas a “ajudar à missa” e que, como ninguém saberia ler pautas – creio que todos tocavam de ouvido – ele próprio nos viria ensiná-las, para fixarmos os acordes. Aos vocalistas forneceu uns pequenos folhetos com as letras, para que começássemos a decorá-las. Lendo nas nossas caras algum desconforto com o reportório, o Tenente disse-nos que poderíamos seleccionar também músicas “de baile”, música pop “sem grande chinfrineira”, pois também actuaríamos em festas, era mesmo costume sermos convidados para tocar em igrejas por esse Algarve fora, actuando de manhã nas missas e à tarde nos bailaricos dos salões de festas.

Fomos dando palpites sobre as canções que deveríamos adoptar, de acordo com o gosto e a experiência musical de cada um. Alguns desacordos iniciais: “isso é foleiro”, “nunca toquei essa nem sei como fazê-lo”, “e a letra, alguém sabe a letra toda?”, “escreve lá isso em inglês!”… Enquanto discutíamos o habilidoso teclista exercitava os dedos, os guitarristas mostravam o que sabiam fazer, cada um tocando para seu lado coisas muito diferentes (espero que eles me perdoem não citar os seus nomes mas a idade coloca muitas incertezas na nossa memória), e o Vicente tirava o lustro às baguetes, puxando estridentes solos que davam a ideia de que, doravante, o rock iria ganhar o seu espaço na programação musical do quartel, à revelia das orientações do capelão, ou seja, não evitando uma certa “chinfrineira”.

Os ensaios ficaram desde logo agendados, de início eram quase diários e foram extremamente divertidos. Até porque, é claro, como não tínhamos o dom da ubiquidade, estávamos dispensados da instrução enquanto durassem. Tanto, que fazíamos coincidir os horários com os exercícios que os nossos pelotões iam fazer para as salinas da cidade! O pessoal que vinha da recruta das Caldas da Rainha detestava esses exercícios, mas para quem vinha de Santarém (de cavalaria) e conhecia o que eram fogos reais no respectivo Vale, quem submergira o corpinho no Tejo, em pleno Inverno, ou fez a travessia dos esgotos da cidade com toda a espécie de merdelim pelo peito, mergulhar no lodo das salinas de Tavira era pura brincadeira.

Eu tive um outro quinhão para me baldar a mais algumas horas de instrução militar: por ter tido algumas experiências radiofónicas anteriores fui convidado a participar nalgumas emissões de “rádio” que emitiam para a enorme parada logo após o toque de despertar, o que me obrigava a levantar às 6 horas, com todos os inconvenientes de quem estava desarranchado e alugara um quarto fora do quartel. Lembro-me que um grande “radialista” foi responsável por essas emissões matinais num curso (turno) anterior ao nosso: José Manuel Nunes, realizador e apresentador – com Luís Paixão Martins – do programa saudoso Página Um (Rádio Renascença, onda média), cuja primeira emissão datava de 2 de Janeiro de 1968 e que constituiu uma grande pedrada no charco da rádio que se fazia em Portugal na transição dos anos 60/70. Fez uma outra abordagem das questões sociais e políticas e chegou a encerrar “para obras” durante um mês e tal, por ordem do Governo, dito da “primavera” marcelista. O programa tinha um indicativo (Page One) que começava com uns rufos de bateria difíceis de executar, mas que serviam para o “Entroncamento” aquecer as mãos no início dos ensaios. E aquilo soava tão bem que foi daí que comecei a rotulá-lo de autêntico “fenómeno” do… Entroncamento!

No que concerne ao pop-rock as nossas preferências coincidiram muitas vezes: ambos ouvíamos muita música (da que chegava pelas ondas hertezianas, mas sobretudo da que possuíamos em cassettes gravadas); e acompanhávamos a imprensa especializada desses anos, como o Musicalíssimo ou o Mundo da Canção, de que fui assinante do primeiro ao último número; e ambos conhecíamos pormenores das novidades divulgadas pela Rock & Folk, que à data nem sempre chegavam às discotecas portuguesas.


As nossas digressões

As digressões fizeram-nos lerpar alguns “sagrados” fins-de-semana, mas valeram a pena: pelo convívio e diversão, por enriquecermos a nossa formação como homens em múltiplos aspectos e por termos poupado umas quantas horas da sempre aborrecida travessia da Serra do Caldeirão… A actuação de um grupo instrumental de tipo “roqueiro”, com violas eléctricas e bateria e canções ligeiras em missas católicas era uma situação muito avançada para a época, pelo menos em Portugal. Embora, ao que parece, nenhum de nós fosse católico praticante, certamente que não haveria muitas igrejas que consentissem experiências similares.

Já havíamos actuado em Lagoa, chegara a vez de prolongarmos a digressão algarvia e “ajudarmos à missa” em Lagos. Está uma boa casa, comentámos entre-dentes: a igreja estava quase repleta, mulheres sentadas mais à frente e homens mais nos bancos de trás. Nós, perfilávamo-nos junto a instrumentos e microfones (que o capelão conseguira arranjar mais um), de farda número dois, boina dobrada e enfiada na presilha esquerda do blusão; e íamos aguardando pelos sinais do prior, para arrancarmos com cada uma das canções do alinhamento. Só o Vicente, devido à sua função, tinha banco para se sentar. Nos intervalos das músicas chamava-nos parolos, aprendêssemos a tocar bateria e teríamos outro conforto! Entrámos timidamente, mas com o decorrer da missa sempre se foram trocando uns sorrisos com as “garinas”, em plenas canções e fora delas…

Sem se perder totalmente o respeito pelo local e pela cerimónia em que nos encontrávamos, a verdade é que o ambiente se foi descontraindo. Das mãos do Vicente, as baguetes, já cheias de mossas, saltavam e giravam no ar em acrobáticas piruetas, contagiando todo o grupo que, em plena canção “Avé Mariápolis”, meneava as ancas como uma orquestra de salsa latina e provocava idênticas reacções nas miúdas que atulhavam as primeiras filas da igreja. Alguns dos temas que aprendemos a interpretar prestavam-se a arranjos rítmicos mais fortes e eram pintados com todo o fervor das cadências do Vicente – um autêntico Max Roach – e do não menos virtuoso e ágil viola-baixo. Um dos temas que me calhou interpretar foi “O Sol Já Raiou”, que ainda recentemente, quase quatro décadas depois, foi êxito comercial de top, gravado em CD pelo Padre Borga…

Terminada a missa, até houve distribuição de autógrafos e, como é óbvio, aproveitámos para fazer a nossa publicidade à actuação que teríamos durante a tarde, no salão da colectividade (de cujo nome não me recordo, seria paroquial?). A organização ofereceu-nos almoço, fomos montar os equipamentos no novo palco e, por fim, a juventude da terra lá começou a comparecer, elas quase sempre de mãe à ilharga, como era de uso. Começámos o espectáculo. Nós, os vocalistas, fomo-nos alternando, umas vezes cantando a solo, outras fazendo coro, por vezes descansando ou fingindo fazer percussões com a pandeireta e o chocalho da bateria. Disfarçávamos as nossas insuficiências no domínio das letras, quase todas em inglês, regurgitando uns sons onomatopaicos em que praticamente só acertávamos com as últimas sílabas de cada verso… Mas se havia quem o fizesse na televisão (e ainda hoje), quem é que ligava a esses pormenores?

A pouco e pouco a assistência foi afastando cadeiras e houve uns quantos pares que se aventuraram à dança. Até que o Catana, de olhos semi-cerrados, começou a cantar uma lânguida Unchained Melody, que faria roer de inveja The Righteous Brothers e demais românticos à face da Terra! O Vicente disse que era um slow tão lento que dispensava bem o baterista e, como eu estava livre no palco, pediu que me sentasse no seu lugar e fosse dando umas roçadelas nos pratos com uma vassoura de aço, que ele iria ao meio da sala para avaliar o som, parecia-lhe roufenho. E lá abalou, não para qualquer gesto técnico mas para se atracar ao melhor “naco”, sentado ao canto da sala, e desatar a dançar bem agarradinho…

Como escreveu o Juvenal Candeias, o Piu era de uma “boa disposição permanente e contagiante”. Que bom é recordá-lo e sentir a sua presença entre nós, para sempre.
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Notas de CV:

(*) Vd. último poste da Danuel Matos de 21 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6201: Os Marados de Gadamael (Daniel Matos) (10): Os dias da batalha de Guidaje, 29 e 30 de Maio de 1973

(**) Vd. poste de 16 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5113: Histórias de Juvenal Candeias (5): Vicente, o Piu

Vd. último poste da série de 17 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6174: In Memoriam (39): Baixa na CCS/BCAÇ 2845 - morreu no dia 21 de Março de 2010 o ex-1.º Cabo Cardoso (Albino Silva)