terça-feira, 24 de maio de 2011

Guiné 63/74 - P8317: Tabanca Grande (287): Carlos Alberto Duarte Prata, Coronel Reformado, ex-Capitão, CMDT das CCAÇ 4544/73 (Cafal Balanta) e CCAÇ 13 (Bissorã), 1973/74

1. Mensagem de Carlos Alberto Duarte Prata, ex-Capitão CMDT das CCAÇ 4544/73 (Cafal Balanta) e CCAÇ 13 (Bissorã), 1973/74, actualmente Coronel na situação de Reforma, com data de 20 de Maio de 2011:

A convite do amigo Manuel Reis, sabedor que eu fora combatente na Guiné, acompanhei-o já a 2 almoços de confraternização na Tabanca do Centro, onde me foi dado o privilégio de, além de contactar com antigos combatentes naquela antiga província e recordar locais e acontecimentos aí decorridos, ficar com uma pequena ideia desta louvável agremiação (chamemos-lhe assim) dos antigos combatentes na Guiné.

O objectivo deste mail é apresentar-me e solicitar os vossos ofícios para que me seja dada a honra de também fazer parte da família da Tabanca Grande, o que, antecipadamente, agradeço!

Chamo-me Carlos Alberto Duarte Prata, natural do Porto, casado, com dois filhos já homens, e sou Coronel de Infantaria, na situação de Reforma.

Frequentei a Academia Militar, curso de 1961/65.

Promovido a Capitão fui mobilizado para Angola onde cumpri uma comissão de serviço entre Maio de 1969 a Julho de 1971.

Em Maio de 1973 fui mobilizado pelo RI15 (Tomar) onde formei a CCaç 4544 que seguiu para a Guiné em Setembro de 1973, tendo como destino Cafal Balanta, na região do Cantanhês.
Por determinação do General Comandante do CTIG, em Março de 1974 fui comandar a CCaç 13, em Bissorã, onde me encontrava em 25 de Abril de 1974.

Regressei a Portugal em 30 de Setembro de 1974, após a entrega da Guiné às tropas do PAIGC.

Apenas para informação devo acrescentar que em 1995 regressei à Guiné, durante 6 meses, em missão de Cooperação Militar.

Aqui está pois o motivo da minha ligação aquela antiga província, as saudades dos bons e menos bons momentos lá vividos e a vontade firme de conviver com quem viveu experiências análogas.


Nasci em 03/10/42 e junto envio duas fotos, uma de 1973 e outra actual, penso que não será difícil destrinçá-las...

Um abraço de muita estima e fico a aguardar notícias.
Carlos Alberto Duarte Prata
cadprata@gmail.com


2. Comentário de CV:

Caro Coronel Carlos Prata, bem-vindo à Tabanca Grande, caserna virtual que acolhe todos aqueles que de algum modo se sentem ligados à Guiné dos nossos tempos, Guiné-Bissau actual, mas principalmente aqueles que pisaram aquele chão, deixando muito suor e, infelizmente, sangue. As lágrimas, algumas ou muitas dependendo de cada um e de cada situação, faziam também parte do dia-a-dia daqueles terríveis anos de guerra.

É preciso que se diga que, cada militar do quadro que se apresenta na Tabanca, é para nós um sinal de que o nosso blogue e o nosso trabalho são considerados sérios, onde os tertulianos não debitam anormalidades e fanfarronices para impressionar os leitores.
Tentamos de algum modo deixar para memória futura as nossas histórias, contadas sempre na primeira pessoa, com as imprecisões próprias do tempo já passado, mas quantas vezes acompanhadas de fotos exclusivas, que cada um guardou religiosamente. Para o efeito vamos buscá-las ao álbum há muito fechado, como as recordações, boas e más, escondidas no mais fundo do subconsciente. Recordar é viver, mas será também sofrer.

Como saberá, a apresentação neste blogue acarreta a "obrigação" de contribuir para este espólio já importante no que concerne à guerra na Guiné.
Os seus tempos de fim de guerra terão particularidades próprias de uma transição de poder apressada, desordenada e sem apoio por parte da governação de Lisboa. É pelo menos esta a ideia que temos, nós os ex-combatentes já como espectadores, conhecedores da realidade de antes da revolução do 25 de Abril. Poderá dar-nos a sua visão pessoal ou pelo menos contar-nos as peripécias que viu e viveu.

Para terminar a sua apresentação, deixo-lhe um abraço de boas-vindas em nome da tertúlia e dos editores, e os desejos de que se sinta bem entre nós e entre os seus camaradas do QP que compõem a nossa tertúlia.

Carlos Vinhal
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 23 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8314: Tabanca Grande (286): Maria Arminda Lopes Pereira dos Santos, ex-Ten Grad Enf.ª Pára-quedista, 1961-1970

Guiné 63/74 - P8316: Contraponto (Alberto Branquinho) (34): Teatro do Regresso - 9.º Acto - Filho da ausência

1. Mensagem do nosso camarada Alberto Branquinho (ex-Alf Mil de Op Esp da CART 1689, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de 22 de Maio de 2011:

Caro Carlos
Este 9º. Acto - Contraponto (34) - aborda um outro aspecto da realidade verificada em alguns dos regressos, consequência da ausência e da carência por ela provocada... (paciência!...).

Um abraço
Alberto Branquinho


CONTRAPONTO (34)

TEATRO DO REGRESSO
(Peça em vários actos)

9º. Acto – Filho da ausência

Cenário

Refeitório dos soldados.
O Elias, analfabeto, observa as frases escritas na carta que acabou de abrir, vira e revira a folha, com ternura nas pontas dos dedos. Entretanto, olha em volta. Regressa à contemplação da carta. Espera o Cabo Costa, que faz de seu “secretário” na leitura e resposta ao correio que recebe. Esta carta chegara há pouco no Dornier.


Acção

Entra o Cabo Costa e senta-se em frente do Elias.

- Atão, bê lá o que é que a minha mulher diz.

O Costa pega na folha e lê:

- “Meu querido homem…”

Pára e olha o Elias, que já saboreia as palavras, com a cabeça apoiada entre as mãos.
Continua:

- “Espero que esta te bá encontrar de boa saúde que nós por cá todos bem graças a Deus. Olha, agora já te posso dar a nuticia porque já tenho a certeza. No hospital já confirmaram que eu estou grábida. Como bês deixas-te-me uma prenda antes de abalares prá Guiné. Dizem que o menino porque eu acho que é menino debe nascer lá pró Natal. Bai ser o nosso Menino Jesus…”

O Costa pára a leitura e fica a olhar o Elias, com ar interrogativo. Este, com ar embevecido, olha o papel da carta, como se, através dela, visse a mulher, a aldeia, o futuro filho…
Aí o Costa poisa a carta em cima da mesa e começa a contar pelos dedos. E repetia, repetia a contagem. Foi interrompido pelo Elias:

- Atão? Acabou?

- Não, pá. Não pode ser… O filho não é teu.

- O quê??!!

- Pois. Olha lá: a gente embarcou no princípio de Janeiro, estamos no fim de Março e se vai nascer em Dezembro, passam quase onze meses depois de embarcarmos… de tu embarcares.

- Não estou a entender.

- Ó Elias, o filho… não é teu filho.

- Hã??

Ficam os dois a olhar-se e, num repente, o Elias arranca a carta de cima da mesa e sai.
O Costa, aparvalhado, fica a vê-lo afastar-se. O Elias nunca mais lhe falou. Soube que pedira ao alferes para desempenhar as funções de “secretário”.

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Cerca de vinte meses depois, regressam da Guiné.
Quando desembarcam do comboio que os transportara de Lisboa para o Porto, o Costa pára para observar o “pai” Elias com o bebé, de quase um ano, ao colo, rodeado da mulher e mais familiares.
Retoma a marcha e, levantando os ombros, diz baixinho:

- Ora… que se lixe… Já estamos em casa.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 17 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8288: Contraponto (Alberto Branquinho) (33): Teatro do Regresso - 8.º Acto - Foi outra guerra qualquer

Guiné 63/74 - P8315: As mulheres que, afinal, também foram à guerra (9): Maria Arminda Santos, a decana das enfermeiras pára-quedistas, participante do filme Quem Vai à Guerra (a estrear no cinema comercial, a 16 de Junho, em Lisboa, Porto e Aveiro)


Fotograma do filme Quem Vai à Guerra, de Marta Pessoa (Portugal, Real Ficção, 2011)> Quatro enfermeiras pára-quedistas, da esquerda para a direita, a Cristina Silva e a Rosa Serra (1º plano); a Natércia Neves e a Maria Arminda Santos (em 2º plano) (*).. 


Segundo a apresentação feita pelo nosso camarada Miguel Pessoa, "a Maria Arminda é a decana das enfermeiras pára-quedistas, tendo sido a n.º 1 do 1º curso. Tem uma óptima memória que lhe permite relembrar muitas das experiências que viveu na Força Aérea e, das conversas que temos tido, auguro que poderão vir aí muitas histórias interessantes. Por isso, aqui vai a sua ficha de inscrição, de que consta o seu currículo, uma foto da época (tipo passe), uma foto recente e algumas fotos de época que podem ser espalhadas pelo Poste de apresentação… Finalmente, o necessário texto, um dos requisitos para a inscrição" (...)

Em 21 participantes do filme Quem Vai à Guerra, todas mulheres, oito são ex-enfermeiras pára-quedistas, se bem as contei: além das já citadas, temos ainda a Giselda Pessoa, a Ercília Pedro, a Aura Teles e a Júlia Lemos...

O filme vai ter estreia comercial, em Lisboa, Porto e Aveiro, no dia 16 de Junho (**). Dois trailers do filme podem aqui ser vistos:


http://www.youtube.com/watch?v=a_mdRc4owwM&feature=related  (depoimento de enfermeiras pára-quedistas)


Acima: Foto da rodagem do filme Quem Vai à Guerra, disponível  no mural da respectiva página no Facebook (Aqui reproduzidas com a devida vénia...)

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 18 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8289: As mulheres que, afinal, foram à guerra (6): Mais fotos da rodagem do filme "Quem vai à guerra"...

(**) Último poste da série > 18 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8295: As mulheres que, afinal, foram à guerra (8): As nossas correspondentes e o nosso volume de correio semanal... (Luís Graça)

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Guiné 63/74 - P8314: Tabanca Grande (286): Maria Arminda Lopes Pereira dos Santos, ex-Ten Grad Enf.ª Pára-quedista, 1961-1970

1. Mensagem do nosso camarada Miguel Pessoa, Coronel Pilav Reformado (BA 12, 1972/74), enviada ao Blogue:

Caros editores

Mais uma enfermeira pára-quedista que vai integrar-se no blogue. Porque ainda não está completamente à vontade nas lides informáticas, a Maria Arminda Santos* procurou o meu apoio para a apresentar aos restantes tabanqueiros, o que faço com muito gosto.

A Maria Arminda é a decana das enfermeiras pára-quedistas, tendo sido a n.º 1 do 1º curso. Tem uma óptima memória que lhe permite relembrar muitas das experiências que viveu na Força Aérea e, das conversas que temos tido, auguro que poderão vir aí muitas histórias interessantes. Por isso, aqui vai a sua ficha de inscrição, de que consta o seu currículo, uma foto da época (tipo passe), uma foto recente e algumas fotos de época que podem ser espalhadas pelo Poste de apresentação… Finalmente, o necessário texto, um dos requisitos para a inscrição.

Vamos ver se ainda consigo convencer mais alguma a juntar-se a nós…

Abraço
Miguel

TERTULIANA N.º 500


Ten Grad Enf.ª Pára-quedista Maria Arminda Lopes Pereira dos Santos


13 de Janeiro de 2011 > Maria Arminda Santos ao centro da foto. À sua direita a Enf Rosa Serra, nossa tertuliana


2. Apresentação:

Maria Arminda Lopes Pereira dos Santos

Estado civil: casada
Naturalidade: Setúbal
Profissão: Enfermeira (Aposentada).
Ingresso na Força Aérea Portuguesa no Curso de Enfermeiras Pára-quedistas a 5 de Junho de 1961.
Final do Curso a 8 de Agosto de 1961 como Alf/Grad/Enfermeira pára-quedista
Promoções: em 20 de Novembro de 1962, sendo graduada em Ten/Grad/Enf pára.

1961- A doze de Outubro, colocada em Angola, até Fevereiro 62. Nesse período, nomeada para a missão a Carachi, para acompanhar mulheres e crianças retiradas do ex-Estado Português na Índia, anteriormente à sua invasão.

1962 – Março destacada para Lisboa e Tancos (R.C. P.), na preparação do 2º Curso de Pára-quedismo, para enfermeiras até Maio, findo o qual acompanhou as novas enfermeiras, num estágio efectuado no Hospital da B. A. 4 (Terra Chã), Ilha Terceira,  Açores.

1962 – Colocada na Zona Aérea da Guiné e Cabo Verde, mas cedida ao Exército, Hospital Militar de Bissau, para trabalho nas enfermarias e Bloco Operatório. Após o primeiro ataque a Tite, colocada posteriormente na BA12, quando se começaram a fazer “Evacuações Aéreas”, com recurso ao emprego de enfermeiras.

1963 – Janeiro, colocada no Hospital Militar Principal (Lisboa), na prestação de cuidados de Enfermagem, a militares da F.A., queimados em acidentes de dois aviões.
- Colocada temporariamente em dois períodos no Hospital da BA 4, (6 de Maio a 18 de Julho e de 3 de Outubro a 7de Novembro).
- Ainda nesse ano, (19 de Agosto a 24 de Setembro), acompanhamento do 3º Curso de Pára-quedismo para enfermeiras e ida para Hospital da B.A.4.

1964 - De Novembro a Janeiro de 1965 – Colocada na 2ª Região Aérea, no BCP nº 21 e Direcção dos Serviços de Saúde.

1965/67 – Maio até 1969, foi colocada por vários períodos na Guiné, interrompidos, por outras missões: (i) acompanhamento de doentes paraplégicos da FAP, a um Centro de Recuperação, (Stoke Mandeville Hospital), em Aylesbury, nos Arredores de Londres; (ii)  missão da NATO, a Gibraltar, Madeira e Açores, (1967); (iii) Hospital da BA nº.4; (iv)em Novembro,  a 2ª. Fase do 7º. Curso de pára-quedismo de enfermeiras.

1969 – De 4 de Maio até Dezembro do mesmo ano, desempenhou funções no Hospital da B.A. nº 4 e foi  instrutora do Curso de Formação a 1ºs Cabos Enfermeiros (Especialistas e Pára-Quedistas)

1970 – Colocada na 3ª Região Aérea (Moçambique), sendo por dois períodos, de dois meses destacada para Nampula.

A 14 de Dezembro de 1970, passa à disponibilidade a seu pedido, após a rescisão dos contratos anuais automaticamente renovados, fórmula de vínculo que ligava as enfermeiras à Força Aérea Portuguesa, antes do 25 de Abril de 1974). Desempenhou depois as suas funções na vida civil.

Louvores - Seis

Agraciada – Com o Grau de Cavaleiro da Ordem de Benemerência.

Condecorações – Uma medalha de Mérito Militar de 3ª classe.

Mª. Arminda Santos
Ex: Tenente Enf pára
Setúbal, 2011-02-16


Na foto, Maria Arminda Santos rodeada por camaradas


3. O MEU SAUDOSO AMIGO AMÍLCAR BARBOSA

O início, na Guiné

Encontrava-me na Guiné desde Julho de 1962 e,  passados quinze dias,  juntou-se-me a Eugénia, tendo sido nós as primeiras enfermeiras pára-quedistas a lá chegar. Sem percebermos porquê fomos cedidas ao Exército e colocadas no Hospital Militar onde tratávamos dos doentes (não feridos), apenas doentes militares e civis ao serviço das Forças Armadas. O nosso dia-a-dia era trabalho de enfermaria e na sala de operações.

Havendo uma Base, achávamos que deveríamos aí trabalhar, onde também estavam colocados dois médicos, mas reconheço a esta distância que naquela data desenvolvemos um trabalho muito útil no referido hospital; e, não havendo guerra, fazia mais sentido ser essa a nossa actividade que, no entanto, com reduzidas condições de trabalho, me levava a sentir saudades do meu Hospital de Santa Maria, donde saíra no ano anterior.

Habitávamos uma vivenda térrea que partilhávamos com um oficial miliciano da FA cuja mulher era francesa, convivendo como se fôssemos uma família. O nosso contacto com o restante pessoal da FAP era mais restrito, só nos encontrando por vezes ao jantar, quando não estávamos escaladas para serviço nocturno no hospital.

A convivência e a amizade foram-se estabelecendo aos poucos consoante nos íamos reciprocamente conhecendo e o Barbosa foi um dos primeiros, que pelo seu espírito aberto, brincalhão e pelo facto de ser cabo-verdiano, tal como a Eugénia, o que facilitou essa convivência.

Comandava a Zona Aérea de Cabo-Verde e Guiné e a Base, o Ten-coronel Pilav Durval, o qual começou a solicitar a nossa presença na Base, mas sem resultado; e como tal a vida foi continuando do mesmo modo, continuando nós as duas cedidas temporariamente ao Exército.

No período da tarde íamos à Missão do Sono, conjuntamente com o Dr. Norberto Canha, um cirurgião que nas suas horas vagas ia operar doentes com elefantíase e lepra, ajudando na sala de operações, a instrumentar e circular, chegando por vezes a executar a tarefa de ajudantes no acto operatório. Da equipa faziam ainda parte o Dr. Silva e o anestesista, o Dr. Inês, que era de Loulé. Eram todos médicos militares e com eles estabelecemos relações de amizade que perduraram por mais alguns anos.

O Dr. Canha, que tinha na Guiné a mulher, Dr.ª Célia, professora,  e a quem nós ajudámos ao parto de uma filha, vim anos depois a encontrá-lo, como Prof. Doutor e Director do Centro Hospitalar de Coimbra. O Dr. Inês, encontrei-o algumas vezes no Algarve, (quando ia para a casa da minha saudosa colega, amiga e comadre, a Maria Zulmira). Do Dr. Silva perdi-lhe o contacto.

Certa manhã na época, das chuvas, ouvimos o ruído de dois F86 voando muito baixo sobre a cidade e com fraca visibilidade. Depois só ficou um no ar; passadas umas horas soubemos ser o Barbosa, que aterrou no extremo da pista preso a um gancho e a uma espécie de rede, em último recurso, pois estava quase sem combustível. Nessa noite ao jantar houve comemoração, como habitualmente regada com uma garrafa de vinho branco “Casal Garcia”.

Com Zulmira Andrade e Barbosa

O Barbosa andava muitas vezes connosco, sempre alegre e a cantar as “Mornas e as Coladeras”, ao desafio com a Eugénia.

Certa noite fomos a um jantar de despedida do Tenente-Coronel Moura Pinto e de recepção ao Tenente-Coronel Barbeitos, tendo o nosso amigo Barbosa feito um discurso, tão eloquente que quase nos levou às lágrimas. Dessa data lembro-me de outros pilotos: o Mendonça, o Pessoa e o Andrade (de alcunha o Ventoinhas, que era dos helicópteros) e por acaso, irmão de uma enfermeira civil, minha amiga, o Simão e o Lobato (que em 1963 foi feito prisioneiro pelo PAIGC, sendo depois libertado, como todos sabemos, na Operação Mar Verde, em 1970).

A nossa vida continuava sem sobressaltos, até que em fins de Janeiro ou princípio de Fevereiro de 1963, dá-se o primeiro ataque ao aquartelamento de Tite, do outro lado do Geba. Ainda prestávamos serviço no Hospital Militar e foi quase ao fim tarde que começaram a chegar os feridos, cujo número não me recordo; lembro-me apenas que se operou pela noite fora, com mais uma mesa operatória improvisada, com um auto-clave e estufa para esterilização de materiais, insuficientes para as necessidades repentinas e com as quais ninguém contava.

Tivemos vários mortos nesse dia, mas não me recordo do número, apenas sei que mais tarde, no Hospital da Base Aérea nº 4, na Ilha Terceira (também conhecido pelo da Terra-Chã), vim a trabalhar com o Sargº Enf.º Amaral, cujo filho, um Furriel miliciano, morrera nesse ataque.

A partir daí a guerra na Guiné estava instalada e assim que foi possível fomos colocadas na Base de Bissalanca, para o início das evacuações aéreas com enfermeiras. Havia os aviões Auster e os helicópteros Alouette II; nestes não nos era possível acompanhar de perto os feridos, os quais eram transportados fora do helicóptero, numa espécie de caixas colocadas por cima dos patins do heli, uma de cada lado. Nos Auster  a maca quase entrava pela cadeira ao lado do piloto e na cauda do avião. Felizmente mais tarde chegaram os DO-27  e os Alouette III, onde passámos a fazer inúmeras evacuações, adaptando e modificando os meios sanitários e a nossa actuação, com a finalidade de uma mais eficaz prestação de cuidados aos feridos, os quais iam sendo cada vez em maior número. Infelizmente tivemos que chegar a fazer evacuações no Dakota, quando havia ao mesmo tempo muitos feridos e a pista era adequada para a sua aterragem.

As nossas comissões eram por curtos períodos, mas continuamente a saltitar de Província para Província, intercalando com o acompanhamento de novos cursos de pára-quedismo para enfermeiras, permanências no hospital da Terra-Chã, na Ilha Terceira, na Direcção do Serviço de Saúde da FAP e no Hospital Militar Principal de Lisboa. Foi assim que eu, entre outros locais, fui parar à Guiné por seis vezes...

Penso que num dos períodos, entre 1965/66, voltei a encontrar ali o Barbosa, estando também a Nazaré, mais tarde a Zulmira e outras colegas. Ele era um companheiro presente, tinha a sua namorada Estela, com quem viria mais tarde a casar, e nós éramos as suas “irmãs mais velhas”, portadoras de mensagens e encomendas, de cá para lá e vice-versa, (o que aconteceu também com outros camaradas, ao longo da nossa vida militar). Por vezes cantava para nós, e bem, as canções do Charles Aznavour, do Gilbert Bécaud, ou os fados da Amália Rodrigues, fazendo nós o coro, o que nos ajudava a esquecer as tristezas daquela terra que se apelidou do “Vietname Português”. Fazia também umas piruetas (era um bom ginasta) e até parecia ser feito de borracha.

Fiz várias evacuações em DO-27 com o Barbosa e recordo especialmente duas; uma pela positiva, a ida a Bolama, para evacuar uma criança; a outra pela negativa, à Aldeia Formosa, a de um Furriel que infelizmente faleceu. O Barbosa e eu tínhamos sempre peripécias que nos aconteciam nos percursos, mas acabavam sempre bem.


A ida a Bolama

Saímos para Bolama a meio da tarde para recuperar uma criança que o médico suspeitava ter uma poliomielite. Chegados à pista não estava ninguém, apenas um militar que guardava o hangar. Indicou-nos a zona donde tinha vindo o pedido de evacuação e vendo da minha parte a vontade de ir ao local, pediu a outro colega que me transportasse num carro de caixa aberta, que estava próximo, tendo o Barbosa dito que eu não iria sozinha; e lá seguimos por uma picada, (talvez um a dois quilómetros).

Era chamada à zona, de “Ato Fula”. Tinha no terreiro uma entrada e as palhotas da tabanca situavam-se em círculo, tendo nas suas traseiras as terras de cultivo. De repente fomos cercados por todos os habitantes; as crianças, todas contentes por nos verem, faziam uma “chilreada”, sem eu entender uma palavra e tocavam-me. Nunca deviam ter visto uma mulher de camuflado e vim depois a saber que diziam que eu tinha “mezinha”.

Com aquele aparato todo, o Barbosa saltou para o carro e pediu ao motorista que pusesse rapidamente o mesmo a trabalhar e disse-me que subisse também, porque não queria que nos apanhassem à mão, o que eu não consegui fazer, por estar presa no meio das mulheres e filhos, aproximando-se entretanto também alguns homens. Não havia nada a fazer; embora soubéssemos que naquela área não havia ataques, a situação não era cómoda para nós - e começava a escurecer.

Ao longe vinham dois homens, que pareciam ser os “Homens Grandes” da tabanca, os quais traziam algo nas mãos que receámos serem granadas. O Barbosa dizia para o motorista "esta minha tenente mete-me em cada uma…” Os Homens aproximaram-se e, num gesto de gratidão por lá termos ido, ofereceram-nos a cada um uma massaroca de milho, possivelmente as melhores da sua lavra; e com gestos de alguma humildade apertaram-nos as mãos.

Fiquei impressionada com os acontecimentos e nunca mais esqueci aquela população. Chegámos já de noite à Base, com todos preocupados pela nossa demora. Ao jantar o nosso amigo contou no gozo a todos, como os “turras iam apanhando à mão, sem nenhum trabalho e de uma assentada, um piloto e uma enfermeira”. Foi uma risada e um momento de boa disposição, com o aparato descrito pelo nosso amigo.


A ida a Aldeia Formosa

Numa manhã, muito cedo, na época das chuvas, recebemos um pedido de evacuação tipo “Y” e lá fui com o Barbosa buscar o ferido. Quando chegámos este não estava junto à pista mas no aquartelamento; desloquei-me então eu até ao local onde o ferido se encontrava, num gravíssimo estado. Tinha um esfacelamento de grande parte do pescoço e face, de onde o sangue saía em abundância, levando-me a pensar que uma das carótidas podia ter sido também atingida e que, assim sendo, pouco ou nada havia a fazer. De imediato consegui canalizar-lhe uma veia, mas o ferido acabou por falecer-me nos braços, em frente do oficial que comandava o destacamento. Colocou-se-nos o problema: deixá-lo ali, ou eu assumir que tinha falecido após a descolagem, com o que o Barbosa concordou. O morto era um furriel miliciano, estimado por todos com quem convivia. Os camaradas estavam desolados com o desfecho daquele acidente (cuja causa soubemos então) e o seu apelido e aquela imagem ainda hoje estão presentes no meu pensamento, que reservo, por respeito à sua memória.

Ao colocarmos a maca no avião, o oficial veio pedir ao Barbosa se aterrava em Buba, porque já tinha contactado com o Comando do Batalhão, que lhe queria prestar homenagem - e assim se fez. Ao aterrarmos estavam os militares todos formados e o Comandante veio entregar uma Bandeira Nacional e pediu-nos que cobríssemos o seu corpo e o levássemos desse modo para a Base. Concordámos e assim procedemos, mas também sabíamos que tínhamos que a guardar antes da aterragem. É certo que não procedemos de acordo com as regras instituídas, mas não podíamos deixá-lo no meio daquela tropa fragilizada pela triste ocorrência, a aguardar pelo caixão para ser dali retirado pelos meios habituais.

Só entende este nosso procedimento quem lá esteve e conheceu as condições por que passaram os militares na Guiné, principalmente os que estiveram colocados no interior, muitas vezes vivendo praticamente nos abrigos.

O Barbosa guardou a bandeira, que devolveu posteriormente; e eu anotei no meu relatório da “evacuação aérea” que o ferido tinha falecido cinco minutos após a descolagem. MISSÃO CUMPRIDA.

Anos depois, já casada e com filhos, fora da FA, onde entrei e saí voluntariamente, após quase dez anos vividos intensamente - mas dos quais nunca me arrependi - soube pela comunicação social da morte na Carreira de Tiro de Alcochete de um piloto, para minha tristeza o meu AMIGO AMÍLCAR BARBOSA.

Senti uma grande mágoa pela perda de mais uma pessoa boa com quem na vida me cruzei; durante esse período foram infelizmente bastantes cuja perda nos deixou marcas que por vezes nem o passar do tempo faz esquecer.

Quando falamos entre nós o Barbosa, entre outros, vem-nos à lembrança, enquanto A VIDA E A NOSSA MEMÓRIA O DEIXAR RECORDAR.

Mª Arminda Santos
Enf.ª Pára-quedista


4. Comentário de CV:

Cara Enfermeira Maria Arminda, muito obrigado por se juntar a nós nesta Caserna Virtual, onde lhe vamos arranjar um lugar confortável, porque a antiguidade é um posto e a senhora é só a Enfermeira Pára-quedista mais antiga de Portugal, diz o Miguel, e nós acreditamos, que a senhora foi a primeira classificada do primeiro curso de Enfermeiras Pára-quedistas.

A Maria Arminda que esteve em acção logo no início da guerra colonial, está numa posição privilegiada para nos contar as suas memórias coincidentes com esse tempo. Tudo o que nos possa descrever, não só sobre a Guiné, mas também nos outros TO, será uma mais valia para este Blogue que a partir de hoje é também seu.

Vamos dar-lhe a honra simbólica de ser a 500.ª tertuliana do nosso Blogue. Este número era para nós uma meta mágica. A partir de hoje podemos dizer que somos mais de meio milhar de tertulianos.

Permita que em nome dos tertulianos que viveram em aquartelamentos no interior da Guiné, cercados de arame farpado, lhe agradeça o bem que fez aos nossos camaradas que desafortunadamente precisaram de evacuações por doença ou ferimentos em combate, quantas vezes em condições bem perigosas para as máquinas, tripulação e pessoal de saúde. Este agradecimento feito à n.º 1 das Enf Pára-quedistas é extensivo a todos os nossos anjos da guarda.

Receba,  senhora Enfermeira,  um beijinho colectivo da tertúlia que a estima e fica honrada com a sua presença no Blogue.

O Editor de serviço
Carlos Vinhal
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Notas do Editor:

(*) Vd. poste de 29 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6487: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-quedistas (14): As primeiras mulheres portuguesas equiparadas a militares (2): Maria Arminda (Rosa Serra)

Vd. último poste da série de 21 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8308: Tabanca Grande (285): Ernestino Caniço, ex-Alf Mil, CMDT do Pel Rec Daimler 2208 (Mansabá, Mansoa e Bissau, 1970/71)

Guiné 63/74 - P8313: Os nossos médicos (26): J. Pardete Ferreira, ex-Alf Mil Med (Teixeira Pinto e Bissau, 1969/71), criador literário do Paparratos

A. Comentário, com data de 22 do corrente,  de José Pardete Ferreira ao poste P8062:




Meu caro camarada de armas [, Albino Silva:]

Obrigado por se ter lembrado de algumas coisas, mas não de todas:

1 - Ainda bem que confirma a real existência do Paparratos.

2 - Fica-lhe bem não querer nomear o graduado em questão. O que eu conto é a "morte do Paparratos" e não outro episódio passado antes da minha chegada ao aquartelamento que, como bem descreve, ficava ao pé do arame farpado.

3 - Está enganado: estive em Teixeira Pinto ao mesmo tempo que o meu colega e amigo Prof. Maymone Martins e fui enviado à pressa para o CAOP porque o Dr. Bessa deu baixa ao Hospital.

4 - Nunca fui Capitão, limitei-me a ser Alferes enquanto estive na Guiné e em T. Pinto não estive só 15 dias... esqueceu-se dos outros até aos seis meses!!!

5 - Obrigado pelas boas referências que fez de mim.

6 - Li o seu livro.

Desejo-lhe boa saúde e trabalho... nestes tempos de crise são coisas importantes a desejar aos amigos.

J. Pardete Ferreira




B. Comentário, também de 22 do corrente, e do mesmo leitor, ao Poste P8153:

José Pardete Ferreira. Sim,  sou o autor de "O Paparratos" de que tanto gostou. Agradeço-lhe a publicidade e o seu padrinho de casamento, o Emílio Rosa, está no Colonial e em Bissau. Estivemos pois muito próximos. O David Payne foi meu colega na Faculdade e creio que igualmente, durante um tempo no HM241 [, vd. foto acima, do nosso arquivo].

Afinal o mundo é pequeno. Um Abraço do Companheiro jpardete@hotmail.com + 1 blog no Sapo.


C. Comentário de L.G.:



José Pardete Ferreira foi, pois, nosso camaradana na Guiné, Alferes Miliciano Médico (Teixeira Pinto e Bissau, 1969/71)... Nasceu em 1941, estudou na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (Turma de 1966), trabalhou no Hospital São Bernardo, em Setúbal (onde foi Director Clínico). Interessou-se também pela prática do desporto e pela  medicina desportiva. Vive em Setúbal. Tem uma conta no Facebook. E um blogue no Sapo.

Sobre ele, como escritor, e sobre o seu Paparratos diz o nosso camarada Beja Santos (no poste P:

(...) "É assim que José Pardete Ferreira apresenta as suas divertidas memórias, que incluem, talvez com uma intensidade única o meio universitário do princípio dos anos 60, sobre a sua passagem por terras da Guiné onde serviu como alferes miliciano médico e, autobiograficamente falando, aparecerá como João Pekoff, um médico que forjou Gabriel, o Paparratos (“O Paparratos, Novas Crónicas da Guiné, 1969 – 1971”, por José Pardete Ferreira, Prefácio, 2004) " (...).


Também sobre o Paparratos, escrevue René Pélissier, na  Análise Social, vol. XL (176), 2005, 717-730 ("Combater, viajar, rezar"):




(...) "Apresentado o bom soldado português Gabriel ou o Paparratos], o autor divaga pelos espaços míticos dos estudantes que frequentavam a Cidade Universitária no início dos anos 60: o Café Roma, onde hoje é um Mc Donald’s, junto ao Cinema Londres, a praxe do luto académico, o Café Colonial, o CDUL, o Monte Carlo, o Monumental, o D. Rodrigo, a Pastelaria Biarritz bem como as respectivas faunas, sonhos, devaneios. Tudo entremeado pela vida mais ou menos bélica no chão manjaco onde vai aparecer o alferes miliciano médico Pekoff. Fica-se com a ilusão que Pekoff se cruza com o Paparratos, mas seguramente, já que são figuras mais ou menos falsas e mais ou menos reais, seguem caminhos paralelos. E temos um flash dessa tão celebrada e jamais esquecida 105ª Companhia de Comandos, comandada com cada vez maior frequência pelo alferes Jorge Esteves, em virtude das visitas, quase permanentes a Bissau, do capitão Dias Anjos e que se prolongavam no tempo. A sua mulher encontrava-se de férias na capital providencial, os dois pombinhos podiam ser encontrados no Quartel General.


"O Posto de Comando do Aquartelamento do Chão Manjaco era conhecido como A Casa da Mariquinhas com as suas janelas com tabuinhas. Por dever de causa, o autor apresenta-se pondo-se ao espelho através de João Pekoff, vamos aos seus locais de estudo, alguns dos cafés atrás referidos, subimos até à Cantina Universitária, às Pró-Associações de Medicina e de Letras, às Associações de Direito e de Ciências, entramos no Estádio Universitário. Ficamos a saber que além dos estudos de medicina, pratica desporto e andou no associativismo religioso. Pelo que se dirá adiante, a sua guerra não foi só feita de tiros e morteiradas mas também de hospital e em Bissau, remendando feridos graves e ligeiros, criando a ideia, junto dos autóctones, de que era feiticeiro. Um bom pretexto para, sempre a propósito e a despropósito, voltar aos cafés de Lisboa e saudar os seus amigos inesquecíveis. (...) 


"Como quem não quer a coisa, dado o retrato do CDUL e o seu desempenho na Academia Lisboeta, vamos numa missão helitransportada à Caboiana, que meteu bombardeamentos, reconhecimentos e até mosquitos. No Cacheu, para que conste, as Companhias de açorianos e madeirenses não só não se misturavam como tinham hortas separadas. E depois o alferes Pekoff vai até à Ilha de Jeta, fazer a psico, tratar das populações, e o alferes deliciou-se com esta floresta quase tropical, pensou mesmo que estava num Haiti a 4 horas de voo da Europa. Spínola é conhecido pelo Brigadeiro Sebastião Ribeiro, alguém que vai todos os dias ao Hospital, lugar onde o pessoal de saúde é de uma dedicação exemplar. Nova saltada à mocidade de João Pekoff, desta feita às suas práticas no andebol e até às suas lembranças da campanha presidencial de 1958 e às manifestações ao candidato Humberto Delgado. Paparratos e Pekoff encontram-se de facto num passeio à Ponta de Caió, andaram por lá até desoras, o que trouxe uma grande inquietação lá no aquartelamento do chão manjaco. Fala-se da Pax Romana, dos movimentos católicos universitários, da retirada de Madina do Boé, da Operação Mar Verde (tratada no livro como a Operação Verde Tinto), depois viaja-se até Paris, segue-se o tratamento de um ferido VIP, o capitão cubano Peralta, a guerra prossegue, o Paparratos continua a fazer das suas na tabanca, ao aproximar-se do sentinela que grita 'Alto!', ele continua a avançar e é fulminado por uma rajada. A família soube da notícia e ficou incrédula pois disseram-lhes que tinha falecido de um acidente em serviço, morte impensável para quem fazia parte das tropas especiais". (...)




O francês, historiógrafo da nossa guerra colonial, e que tem acompanhado a produção literária dos ex-combatentes portugueses, René Pélissier, escreveu o seguinte sobre autor e o livro, num artigo ("Combater, viajar, rezar") publicado na revista Análise Social, vol. XL (176), 2005, 717-730:




(...) "Não é preciso mais do que o verbo 'amar' para fazer um ser humano completo. Quase completo! Mas o amor encontrá-lo-emos em alguns dos títulos referidos mais abaixo. Mesmo nos livros de guerra, o amor — ou o seu contrário — surge; sobretudo quando os seus autores não a fizeram pessoalmente. O amor em O Paparratos ? Verdadeiramente não, mas uma certa nostalgia positiva dos anos de juventude de José Pardete Ferreira, isto é, neste caso, os dois anos (1969-1971) que passou como médico militar na Guiné. Inicialmente mobilizado numa companhia de comandos no território dos manjacos, depois afecto ao Hospital Militar de Bissau, ele evoca neste romance «histórico» factos reais, como (i) a evacuação de Madina do Boé (...), (ii) o ataque português contra Conakry, (iii) a captura de um capitão cubano próximo de Guileje e o seu tratamento pelos médicos portugueses em Bissau (...).

"Pelo mesmo editor [, Prefácio], muito dinâmico a nível da literatura de guerra, recomendamos as recordações apaixonantes de José Alberto Mesquita, também ele, actualmente, médico. Decididamente, os médicos constituem uma percentagem muito grande dos autores que escrevem sobre a guerra colonial". (...)



Pardete Ferreira (de quem não temos qualquer foto) diz, sobre si próprio, o seguinte, em termos autobiográficos:



"(...) Nasci durante a 2ª Guerra e ainda me lembro das senhas de racionamento, aqueles selinhos, castanho claro ou roxo esbatido, tavez com um pouco de verde, igualmente! Penso no 'black out', porque a aviação alemã vinha bombardear Lisboa, com o meu pai a orientar as operações, com as tiras de papel a cruzarem os vidros, as grandes portas interiores de madeira fechadas, luzes apagadas e a permissão de uma ou outra vela em pontos estratégicos que não podessem ser vistos do exterior. Fiz igualmente a minha Guerra, na Guiné, hoje Guiné-Bissau, com um quarto de mato e três quartos em Bissau, nos hospitais, civil e militar" (...).

Dados Pessoais constantes do seu blogue:


Telefone> 265522530; telemóvel> 914019160
Data Nascimento> 15-02-1941



Ao nosso camarada J. Pardete Ferreira queremos dirigir formalmente o convite para se sentar, aqui, connosco no bentem da nossa Tabanca Grande, sob o mágico, frondoso, secular e fraterno poilão, onde cabe toda fauna do mundo, desde os morcegos aos irãs, desde os tugas aos fulas, desde os manjacos aos balantas, desde os inimigos de ontem aos amigos de hoje...  Ele próprio já constatou que o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande.


Com um Alfa Bravo do Luís Graça


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Nota do editor:



Vd. último poste da série >  2 de Abril de 2011 >  Guiné 63/74 - P8032: Os nossos médicos (25): Dois louvores militares atribuídos ao ex-Alf Mil Med Amaral Bernardo (CCS / BCAÇ 2930, e CCAÇ 6, 1970/72)

Guiné 63/74 - P8312: Convívios (342): Encontro do pessoal da CCAÇ 2679 e Pel Caç Nat 65, dia 29 de Maio de 2011 no Fundão (José Manuel M. Dinis)

1. Mensagem de José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de hoje, 23 de Maio de 2011:

Olá Carlos, bom dia.
Solicito a divulgação de um Encontro, já no próximo domingo, ali para as faldas da Estrêla, no Fundão, onde os heróicos sobreviventes da CCaç 2679 e do Pel Caç Nat 65, que andaram a malhar no leste da Guiné, nas terras fulas que vão do infinito Corubal em Buruntuma (onde mais parecia um regato), e subiam os marcos que fazem o ângulo recto da passagem da fronteira da Guiné-Conakry para a do Senegal, de onde se passava a calcorrear para oeste até um marco número sessenta e tal, algures entre Bajocunda e Pirada, donde se flectia para sul, novamente em direccção ao Corubal, fazendo uma barriguinha para a Z.A. de Nova Lamego. Foi nas terras atrás identificadas, quiçá a mais larga área de intervenção do TO da Guiné, que os ainda jovens veteranos ficaram a conhecer-se e vão providenciar um encontro para matança de fomes estomacais e sentimentais.

Um grande abraço
JD


No dia 13 de Maio de 2011 17:16, João Patricio <joao.patricio@finantia.com> escreveu:

É com imenso prazer que faço parte do grupo de trabalho deste grande evento conjuntamente com o Aquino e o Dinis. Agradeço o empenho de todos na abrangência do maior numero de presenças, pois  já confirmaram alguns dos companheiros, que até á presente data, desconheciam estes nossos encontros.

As metas que nos propusemos e que tomamos como objectivos estão a ser alcançadas e até ultrapassadas.
Em ficheiro encontram-se o nome todas as confirmações até à presente data.



Programa do encontro dia 29 de Maio de 2011 dos Bravos Soldados do Leste - 40 Anos de Peluda - CCac 2679 e Pel Caç Nat 65 (Leões Negros)

10.30H – Concentração no átrio do Hotel Alambique no Fundão

11.15H – Missa na Igreja Matriz de Aldeia de Joanes em Homenagem aos antigos companheiros já falecidos

13.00H – Almoço e entrega de diplomas de presença no Hotel Alambique

15.00H – Passagem de um filme “A Guiné de Hoje” apresentado pelo meu amigo Pereira Nina (que esteve na Guiné nos anos 1972/1974 e que no passado mês de Março voltou à Guiné por um período de 30 dias)

17.00H – Passeio pelos pomares de Cerejeiras da encosta da Gardunha   

18.00H – Regresso ao Hotel Alambique e encerramento do encontro

Diligenciei esforços para que todos aqueles que pretendam pernoitar de 28/29  ou 29/30 de Maio fiquem bem acomodados e com um preço acessível.

         
Hotel Alambique (275 774 145) ou www.hotealambique.com


-quartos individual normal – 29.50€
-quarto casal normal – 47.50€

quarto individual superior – 31.50€
-quarto casal superior – 62.50€  


Confirmações



Aguardo noticias Vossas
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 18 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8296: Convívios (335): Almoço/Convívio do BCAÇ 3883, dia 28 de Maio de 2011, em Viseu (António Rodrigues)

domingo, 22 de maio de 2011

Guiné 63/74 - P8311: Os nossos camaradas guineenses (32): José Carlos Suleimane Baldé... Pensando na CCAÇ 12, em Coimbra, em Amedalai, em Bambadinca... Andando pelo Planaltod as Cesaredas, à procura de amonites e orquídeas-abelhas... Celebrando a biodiversidade, a etnodiversidade, a camarigagem, os nossos encontros e desencontros... (Luís Graça)



Lourinhã > Planalto das Cesaredas > 22 de Maio de 2011 > Dia Mundial da Biodiversidade


1. Passeio pedestre pelo Planalto das Cesaredas (uma região calcária,  com cerca de 160 milhões de anos, do Jurássico0 Superior, pertencente aos concelhos da Lourinhã, Peniche, Óbidos e Bombarral). Belíssimo local para se abordar o tema da biodiversidade do nosso planeta, com o Oceânico Atlântico ao fundo. E para se celebrar  o Dia Mundial da Biodiversidade (sem a qual não haverá futuro para todos nós, portugueses, europeus, guineenses, africanos)...

Hoje aprendi coisas que não sabia sobre a fauna marítima fossilizada (amonites, por ex.)... E sobre as as orquídeas-abelha, uma espantosa espécie que tem, em relação, ao Homo Sapiens Sapiens, algumas semelhanças, a sua incrível capacidade de adaptação às mudanças do ambiente. Como nós, está espalhada por todos os continentes, excepto a Antártida...



Lourinhã > Planalto das Cesaredas > 22 de Maio de 2011 > Dia Mundial da Biodiversidade > A orquídea-abelha. Nome científicO: Ophrys insetifera. Além de ser parecida com um insecto, emite o mesmo odor das abelhas quando estão prontas para acasalar. A sua estratégia evolutiva levou-a a usar este estratagema para atrair os zangões que visitam as flores e assim espalhar o seu pólen, contribuindo portanto para a reprodução da planta:

 " A polinização ocorre por pseudo-cópula, sendo que o zangão (Hymenoptera) confunde-a com uma fêmea e pousa roçando seu dorso nas polínias onde o pólen se adere ao inseto e este passa à outras flores fecundando o estigma contido em uma invaginação da coluna. A atração dos zangões se dá por meio visual como também por meio bioquímico, sendo que este gênero secreta a mesma substância das fêmeas de Hymenoperos. A fecundação é facilitada devido a emergência das ninfas dos machos ocorrerem antes das fêmeas, os machos após um tempo aprendem a diferença e passam a não mais polinizar as flores, portanto são favorecidas aquelas que florescem cedo. O tamanho do labelo é um modo de seleção do polinizador" (Fonte: Irmandade Natureza Divina).



2. Obrigado aos meus amigos do Museu da Lourinhã, que organizaram o passeio e nos guiaram (uma jovem equipa multidisciplinar, com 1 paleontógo, 1 bióloga, 1 arquitecta paisagista e militante ambientalista, 1 fotógrafa da natureza...).  

Espantoso: ao longo do passeio, falámos também de Angola (onde o meu amigo, paleontólogo, Octávio Mateus descobriu recentemente o primeiro dinossauro...) bem como da Guiné e do diversidade cultural e dos fulas e do meu antigo camarada de armas José Carlos Suleimane Baldé, 61 anos, que fui abraçar a Coimbra, ontem, dia 21...


3. O Zé Carlos vive em Amedalai, região de Bafatá, Guiné-Bissau, perto do Xime e do Rio Geba, sem luz, sem internet, sem cuidados de saúde, sem água potável, sem saneamento básico, sem televisão, sem livros, sem os confortos da nossa sociedade, com duas mulheres (uma delas herdada do irmão que morreu, de acordo com os usos e costumes do seu grupo étnico, o "levirato") e uma dúzia de filhos... E em vésperas de casar uma das filhas com o filho do seu compadre e ex-camarada de armas Sori Baldé...

Pela surpresa (agradável) que eu tive, é que os tempos são outros, memso no interior da Guiné-Bissau: 

(i) já se casa por amor ("sentimento", diz o Zé Carlos),   entre as elites e os mais jovens, sobretudo escolarizados; 

e (ii) já não se submete as bajudinhas ao cruel fanado tradicional (com Mutilação Genital) (pelo menos o Zé Carlos diz que não fará isso com a sua Odetezinha, de 6 anos)...

4. A escassos quilómetros de distância, camaradas meus, de armas, que passaram por Bambadinca, Guiné, nos anos 68, 69, 70, 71 e 72,  reuniram-se, ontem,   em Coimbra, em locais diferentes,  para comemorar o facto de estarem vivos e de terem partilhado, na sua juventude, a sua mesma situação-limite... Uns, na Casa do casal Sobral, em Santo António dos Olivais, Coimbra; outros na Quinta da Malhadinha, Cabouco, freguesia de Ceira...

O Zé Carlos, um fula da Guiné-Bissau, um bom muçulmano com alma de português, foi a estrela da festa (num lado e noutro).... Está felicíssimo com a oportunidade que o Jaime Pereira e a a esposa, Odete Cardoso,  lhe proporcionaram, de conhecer Portugal e de reencontrar, quarenta anos depois, alguns dos seus camaradas que conviveram com ele em Bambadinca, gente da CCAÇ 12, da CCS/BCAÇ 2852, CCS/BART 2917, Pel Caç Nat 52, Pel Caç Nat 63, Pel Rec Daimler do Jaime Machado, Pel Rec Daimler do J.L. Vacas de Carvalho, e outras subunidades adidas...




Coimbra > Convívio da CCAÇ 12 (2ª geração, 1971/72) > 21 de Maio de 2011 > Casa do casal Sobral (José e Ermelinda, ambos médicos, ele, estomatologista, ela obstetra, figuras conhecidas e estimadas no meio coimbrão)... > Na foto, a anfitriã, a Dra. Ermelinda com o Zé Carlos, fotografado junto à mesa das sobremesas, uma amostra da nossa grande, riquíssima, diversidade gastronómica... Destaque, nas frutas, para as cerejas de Resende (cada conviva trouxe a sua sobremesa).



Coimbra > Convívio da CCAÇ 12 (2ª geração, 1971/72) > 21 de Maio de 2011 > Casa do casal Sobral, ambos médicos, ele, estomatologista, ela obstetra e ginecologista... > Da esquerda para a direita, a Ermelinda, o Rui (enfermeiro, amigo e colega da Ermelinda no Hospitalar Universitário de Coimbra, se não me engano), o Sobral e o Ferreira  (eles dois, alferes milicianos da CCAÇ 12, Bambadinca, 1971/72, vivendo o Ferrreira hoje em Felgueiras, sendo professor do ensino básico aposentado)...

A chanfana, em Coimbra, não podia faltar e não faltou: estava uma delícia... Pelo mkenos na casa do casal Sobral. Obrigado, cara amiga Ermelinda, obrigado, caro camarigo Sobral, grandes anfitriões!


Coimbra > 17º Convívio do Pessoal de Bambadinca (1968/71) > Um momento de grande emoção, proporcionado pelo Jaime Pereira, ex-Alf Mil da CCAÇ 12 (Bambadinca, 1971/72): o reencontro do Zé Carlos com o seu primeiro comandante de secção, a 2ª do 4º Gr Comb, CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71)... 

Na foto, em primeiro plano, o nosso camarigo António Marques e o Zé Carlos... Em segundo plano, o Jaime e um camarada da CCS/BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70) cujo nome me escapa...

O Zé Carlos manifestou o desejo de poder ir a Fátima, e esse sonho vai-se realizar graças à generosidade e disponibilidade do António Marques. Também está cá para tratar da sua "situação militar"... Como nos escvreveu a Dra. Odete Cardoso:

 "Ele traz os documentos da sua vida militar na Guiné e pretende saber a que serviço público português se há-de dirigir para indagar se esse tempo lhe dá direito a alguma pensão. Tem alguma informação que lhe possa dar a esse respeito?"...

Conforme tive ocasião de dizer pessoalmente à nossa amiga Odete, madrinha da filha mais nova do Zé Carlos, talvez o nosso António José Pereira da Costa, coronel na reserva em efectividade de funções, nos possa dar alguma pista ou até uma ajudinha...Mas temos mais gente que está por dentro deste assunto como o Carlos Silva (que é advogado, profundo conhecedor da situação dos nossos camaradas guineenses, além de dirigente da ONGD Ajuda Amiga), o José Martins (que tem bons contactos com a Liga dos Combatentes), o Inácio Silva (que lidera uma petição pública à Assembeia da República), etc.

O José Carlos Suleimane Baldé pertenceu á CCAÇ 2590 (mais tarde CCAÇ 12) e à CCAÇ 12, desde Junho de 1969 até Agosto de 1974. Já no final da guerra, foi dispensado da actividade operacional para dar aulas como monitor escolar em Dembataco. Foi, no meu tempo (1969/71), o primeiro soldado arvorado, do recrutamento local, a ser promovido (em 15 de Setembro de 1969) ao posto de 1º Cabo At Inf, por ter completado com sucesso o exame da 4ª classe.

Tive ocasião de ouvir da boca derle alguns momentos extremamente dramáticos por que passou, no início de 1975, quando os "balantas e mandingas" do PAIGC transformaram Bambadinca numa permanente Tribunal Popular e numa "matadouro humano"... Esteve sentado no banco dos réus, valendo-lhe a influência do seu  pai e o peso dos "homens grandes" do chão fula, bem como a opinião generalizada de que o Zé Carlos eram um homem bom, e um antigo militar de conduta correcta... 

Mesmo assim, foi ob5rigado a assitir à execução pública de um cipaio (polícia administrativa) em Bambadinca, à execução de "sete irmãos" em Bissorã... Descreveu as torturas horrorosas a que foi submetido o nosso "gigante", o  Abibo Jau (1º Gr Comb da CCAÇ 12, e que depois transitou para a CCAÇ 21, do Jamanca e do A,madu Djaló) antes de ser executado... 

Andou também fugido pelo Senegal e tentou ir de avião para Angola, acabando por ser recambiado para a sua terra... O seu sonho é que dois dos seus filhos consigam vir viver e trabalhar em Portugal... Hoje é agricultor em Amedalai, trabalhando no duro com as suas mulheres e filhos para sobreviver...



Coimbra > 17º Convívio do Pessoal de Bambadinca (1968/71) > Jorge Cabral (ex-Cmdt do Pel Caç Nat 63, Fá e Missirá, 1969/71) com dois camaradas da CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71), o Zé Carlos e o Humberto (que veio ao convívio, pela primeira vez sozinho, sem a sua saudosa Teresa, 1947-2011).


Coimbra > 17º Convívio do Pessoal de Bambadinca (1968/71) > Dois alferes da CCAÇ 12 reencontram-se 40 anos depois: Abel Rodrigues (3º Gr Comb, 1969/71) e Jaime Pereira (4º Gr Comb,  1971/72), aqui de costas.


Fotos: © Luís Graça (2011). Todos os direitos reservados

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Nota do editor: 

sábado, 21 de maio de 2011

Guiné 63/74 - P8310: As Nossas Madrinhas de Guerra (5): Avé-Maria do Soldado (Manuel Sousa)

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Sousa* (ex-Soldado da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, Jumbembem, 1972/74, actualmente Sargento-Ajudante da GNR na situação de Reforma), com data de 18 de Maio de 2011:

Camarada Carlos Vinhal:
Na sequência das minhas memórias de guerra, cujos textos te tenho enviado, e já publicados no blogue, não me podia esquecer das nossas dedicadas madrinhas de guerra.

Em anexo envio-te um simples texto que escrevi em sua homenagem, com o título em epígrafe, ilustrado com algumas fotografias.

Ali está bem patente a adversidade a que estávamos votados em terras da Guiné:
-O isolamento no interior do mato, lá no fim do mundo;
-O rigor do clima, ora o calor, ora as chuvas, a poeira vermelha, a chaga dos mosquitos;
-O suplício da guerra, que nos fez regressar sem a companhia de alguns dos nossos camaradas menos afortunados;

Também ali é notória a magia de uma carta ou de um aerograma, o célebre "bate estradas", o único meio de comunicação com os familiares, amigos, namoradas e as nossas madrinhas de guerra.
Na altura não havia telemóveis nem internete.

Um abraço
Manuel Sousa




AVÉ-MARIA DO SOLDADO

Jumbembém, 12 de Março de 1973

Dedicada madrinha:
Acabou de chegar um helicóptero a este fim de mundo.
O “pombo-correio” que trouxe no bico as sempre esperadas mensagens para todos nós militares, aqui neste cativeiro de guerra, no meio do nada. Melhor dizendo, no meio do mato, onde o calor intenso, a poeira vermelha, as tempestades tropicais e as ferradas de enxames de mosquitos já pouco incomodam, comparando com o silvo das balas, o troar dos canhões e morteiros, o metralhar da “costureirinha” e o cheiro a pólvora queimada, em dias de “festa” cá em Jumbembém e arredores.

Uma dessas mensagens era a sua para mim desejada carta, a que estou a responder através deste meu “bate-estradas”, cujas linhas os meus olhos percorreram avidamente, como sedento no deserto à procura de uma gota de água, bebendo as suas palavras uma a uma, que me transmitiram, bem haja por isso, esperança e coragem para melhor suportar estes momentos tão difíceis, neste meio hostil, longe de familiares e amigos.

Fixei-me demoradamente a contemplar o bonito sorriso do seu rosto, patente na fotografia que teve a amabilidade de me enviar, como que deslumbrado e encantado pela sua beleza e, particularmente, pela brancura da sua tez, já que há tanto tempo não via uma mulher branca e tão bonita.

Aqui as bajudas (raparigas), sendo algumas também bonitas, a cor da sua pele, como sabe, é diferente…, fazem parte de outra cultura.

Vejo em si a minha confidente, imagino-a até como a minha “Nossa Senhora”que me ampara, e, como tal, veja nesta minha missiva uma prece, uma oração, uma avé-maria deste soldado, para que continue a conceder-me a graça da sua simpatia e do seu conforto.

Termino, agradecendo-lhe esse seu gesto altruísta, de dispensar parte do seu tempo a confortar este simples soldado que sou, ao serviço da Pátria. Com as suas palavras, creia, neste quotidiano de guerra, - o perigo que espreita por entre o capim, por de trás de cada árvore, sob o chão das picadas - sentir-me-ei mais confiante, mais seguro, mais afoito, do que com a própria espingarda que tenho por companheira.

Adeus, até à volta do correio.
Manuel Luís Rodrigues Sousa


Na sequência das minhas memórias de guerra que tenho vindo a escrever, era inevitável não fazer referência às nossas simpáticas, dedicadas e altruístas madrinhas de guerra.

Como forma de as homenagear, escrevi esta carta, com data fictícia, a data do meu aniversário, tentando reconstituir, o mais fiel possível, aquilo que um dia escrevi para uma das minhas madrinhas, no decorrer dos anos de 1973 e 1974.

No fundo, condensei nesta carta as centenas de missivas que lhes dirigi, de tal forma “eloquentes” e de caligrafia aprimorada, modéstia à parte, mas elas é que o diziam, que não acreditavam que eu tivesse como habilitações literárias apenas a 4.ª classe.

Aliás, esses dotes eram-me também reconhecidos pelos meus camaradas de Pelotão, a ponto de, ainda hoje, aquando dos convívios anuais, eles me lembrarem dessa perfeição com que escrevia.

Um desses colegas, sabendo desses meus atributos, sugeriu-me para escrever a uma rapariga sua vizinha, em Castro D’Aire, uma beldade lá da terra, segundo ele dizia, mas prevenindo-me de que ela era “estudanta” e que, por isso, não ligava a qualquer um.

Sobranceria, talvez, que existia naquela época por parte dos estudantes, em relação aos menos letrados, ou, ao invés, o complexo de inferioridade por parte destes, em relação àqueles.
Aceitei a sugestão.

Escrevi-lhe, e, para admiração do Salvador Rodrigues da Costa, desse meu colega, a “estudanta” respondeu.
Foi mais uma simpática e dedicada madrinha de guerra, com quem tive o prazer de me corresponder.
Além das madrinhas de guerra com quem me correspondia, tinha uma forma peculiar de arranjar sempre mais uma.
Nunca eram de mais.

Escrevia um aerograma, o célebre “bate estradas”, com uma simples apresentação de quem eu era e fazendo o convite para o efeito.

Endereçava-o para determinada localidade da Metrópole, com a seguinte mensagem no exterior:
Para a menina que se dignar corresponder-se, como madrinha de guerra, com um soldado em serviço no ultramar

Utilizando a terminologia da pesca, o “isco” estava lançado.
Muitas vezes o “anzol” veio sem nada, ou seja, os “bate-estradas” tiveram como destino certo o caixote do lixo.
Outras vezes tinha mais sorte.

A mensagem era acolhida e iniciava-se então a troca de correspondência com mais uma das minhas confidentes, culminando algumas vezes com a troca de tórridas cartas de amor.

No final da comissão, aquando do regresso, desfiz-me do volumoso maço da correspondência trocada com as madrinhas de guerra, e não só, por falta de espaço na mala (hoje seriam uma relíquia).

Recentemente, ao fazer arrumações no sótão cá de casa, encontrei numa bolsa dessa mesma e já carcomida mala, uma pequena carteira em plástico, ressequida pelo tempo, com o desenho do crachá do Batalhão 4512, “Os Setas”, a que eu pertencia.

Já não me lembrava daquele objecto, recordando-me então que aquela mesma carteira tinha sido oferecida pelo Batalhão a todos os militares em Tomar, aquando da partida para a Guiné.
No seu interior, numa pequena bolsa, encontrei a fotografia de uma jovem que reconheci como uma das minhas madrinhas de guerra, há 38 anos atrás, de cuja naturalidade não me recordo.
 No verso tem a dedicatória: “Com muita dedicação da madrinha sempre amiga Isabel”, e tem a indicação de que foi revelada na FOTO CRISTO.

A velha carteira onde se encontrava esta fotografia, de uma das minhas bonitas madrinhas de guerra!

Verso da fotografia com a dedicatória.

Foi este achado que me levou a mais rapidamente prestar esta homenagem a todas as madrinhas de guerra, personificadas por esta jovem, hoje aproximadamente da minha idade, cuja fotografia, para o efeito, faço questão de inserir neste texto.

Como dizia no final da carta, as suas palavras produziam em nós mais confiança e mais segurança do que as próprias armas com que calcorreávamos os trilhos da mata e as picadas.
Eram a nossa arma secreta.

Assim, para todas elas, as madrinhas de guerra de Portugal, e em particular para aquelas com quem directamente me correspondi, inclusive a Isabel, como reconhecimento da estima e dedicação que nos dispensaram, tão importantes para o levantamento da moral e auto-estima de todos nós, escrevi esta carta como forma de, em meu nome pessoal e de todos os ex-combatentes, lhes prestar a mais sincera homenagem.

Maio de 2011
Manuel Sousa
Até breve

(Reeditado em Outubro de 2011-10-14)
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 6 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8233: Blogpoesia (147): Senhora Aparecida, freguesia de Torno, concelho de Lousada (Manuel Sousa)

Vd. postes relacionados com a nossas Madrinhas de guerra de:

22 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2572: As Nossas Madrinhas de Guerra (4): Madrinhas de Guerra (II) (José Teixeira)

23 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3348: Tabanca Grande (93): José Pinho da Costa, ex-1.º Cabo Op Mensagens da CCS/BART 1914, Guiné, 1967/69

16 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6746: Tabanca Grande (230): Felismina Costa, madrinha de guerra de Hélder Martins de Matos, ex-1.º Cabo Escriturário, Bafatá, 1963/64