domingo, 11 de setembro de 2011

Guiné 63/74 - P8765: Blogoterapia (189): ... i-guerra... (José Marcelino Martins)

1. Em mensagem do dia 8 de Setembro de 2011, o nosso camarada José Marcelino Martins* (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), enviou-nos este divertido texto de alta ficção tecnológica, que é como quem diz, como seria se assim fosse, o que não é o caso, antes pelo contrário.


… i-guerra…

Recostei-me no sofá, e pensei: Vou recordar! Boa. O quê?
Este tipo tem cada ideia! Recordar o quê? Olha, meu velho, batatinhas!
Bem. O melhor é não fazer esforços com a massa cinzenta, porque ainda pode resultar, do esforço, uma “hérnia no cérebro” e não é nada aconselhável que isso aconteça, até que o inchaço é bastante desconfortável.

Pus um “olhar em branco”, virado para o mais longe possível, na esperança de não ver nada, e assim nada me surgiria para pensar. Mas não. Deixar de dar ocupação, à massa que temos dentro da caixa craniana, é um bocado difícil.


Mesmo à minha frente, numa mesa especialmente comprada para o efeito, estava o meu portátil, daqueles pequeninos que, se não tivermos muito cuidado, estamos a teclar em duas letras ao mesmo tempo. E veio-me à memória os meus tempos de bancário, nos remotos anos setenta do século passado [século passado, é sempre uma expressão que fica bem em qualquer texto].

Pois é. “In illo tempore”, também é de bom-tom meter expressões em latim, naquele tempo, dizia, os computadores ocupavam uma sala, de dimensões razoáveis e climatizada, e os técnicos que nela trabalhavam usavam bata branca. Ainda não havia sido descoberto o “H1N1”, porque senão trabalhariam, também, com luvas anticépticas e descartáveis.

Pois bem. Eram máquinas enormes, em que a informação era “metida” através de cartões perfurados. Os mais idosos ainda se devem lembrar duns cartões que eram distribuídos pela empresa que fornecia a electricidade, que de nada serviam, já que, lembro-me, “andou pendurado no contador da luz” até que o senhor que lá foi fazer a contagem, disse:
- Ainda tem isto? Pode rasgar e deitar fora. Não serve para nada!

Pois eram esses cartões, perfurados, que se utilizavam no banco onde trabalhei, para enviar informações para o computador central, e processar as transferências de emigrantes, secção onde prestava serviço.

Por causa disso, dos cartões, recordei-me do Sébola. Exactamente, cebola com “s”, bom colega, amigo do seu amigo, óptimo desenhador, mas, como sempre há um mas, um bom bocado conservador, especialmente no que respeita “às novas tecnologias da época”. Mexer em papéis, arquivá-los, ordená-los, tudo bem. Trabalhar com os cartões, é que não.


Um dia de menos trabalho, a meio do mês abrandavam as transferências do estrangeiro, aproveitei e contei-lhe uma história.

Disse-lhe que, no dia anterior, tinha ido jantar com os meus pais e, depois do jantar, fiquei à conversa com o “velhote” e, como não havia grande gama de assuntos, falámos de computadores, e de como se processava o serviço, desde a “chegada dos cartões à secção” até à “devolução dos mesmos” para serem processadas as operações correspondentes.

Fiquei maravilhado. O Sébola, já um bom bocado mais velho que eu, ouviu com todo o interesse a minha descrição, onde, não podia deixar de o fazer, enfatizava o interesse que o meu pai na minha discrição “computadicional”. No final do relato da “suposta conversa” havida no fim do jantar do dia anterior, diz-me com um sorriso:
- Oh, Martins. O seu pai nem bocejou nem nada?

Imaginem, também, que não tinha havido um determinado dia, de um determinado mês, de um determinado ano. Que a guerra tinha continuado. Que os nossos filhos, e d’alguns, os netos, não tinham ido à tropa, como aconteceu.

Comecei a imaginar o que seria a Guerra do Ultramar, chamo-lhe assim porque era o nome que tinha na altura, e que nós conhecemos por termos sido actores e não espectadores, mas com as tecnologias actuais.

Temos que lembrar que, há cinquenta anos, quando começou a última fase das campanhas de África de 1961 a 1974, [já que houve muitas mais, desde 22 de Agosto de 1415 com a conquista de Ceuta até 25 de Junho de 1975 com a independência de Moçambique], os nossos camaradas iam armados da velha Mauser, com arreios modelo “não sei quantos” e as fardas eram de cotim, tecido muito em voga à época e dos mais baratos e resistentes do mercado. Os oficiais iam armados de pistola Walther e os sargentos com a FBP, daquelas que ainda não tinham recebido a patilha de segurança. No terreno, as tropas “guiavam-se” pelas Cartas Topográficas, que foram produzidas antes do início dos conflitos finais.

Na minha “área de conhecimento”, nas Transmissões era usado o material “herdado da Guerra da Coreia” (25 de Junho de 1950 a 27 de Julho de 1953), ou seja os AN-GRC 9, os AN-PRC 10 e os AVF/THC 736, mais conhecidos por “Banana”. Bem, depois deu-se a evolução e começaram a aparecer os CHP 1 e DHS 1, e mais tarde os RACAL, que já não foram contemporâneos meus.

Na área do “cripto”, o local devia ser isolado e resguardado e, onde só podia entrar quem “estivesse autorizado” pelas NEP (Normas de Execução Permanente), havia aquela “quantidade” de maior ou menor dimensão de “Códigos”, para se poder cifrar e/ou decifrar as mensagens que corriam no espaço, entre dois postos, quer transmitidos em fonia e/ou grafia.

Dentro da área das Transmissões, mas noutro registo completamente autónomo, existiam as “Transmissões Pessoais” que não faziam mossa ou concorrência, às “Transmissões Oficiais”. Estas, as Oficiais, quando necessário, apoiavam as Particulares, com o envio ou recepção de correspondência particular “Zulo”, mais conhecidos por “Telegramas”. E é verdade. Este tema de telegramas dá, sem dúvida, para um texto autónomo que, entrosado com a área civil, facilitou e embarateceu a circulação de notícias, previamente padronizadas e “codificadas através de um número”.


Os milicianos que continuariam a existir e, não me admirava nada que, os actuais países da CPLP, que neste escrito continuariam a lutar pela sua independência, seriam Governados por um General Miliciano ou um Almirante da Reserva Naval.

Vejamos, para o caso da Guiné, que conhecemos melhor:

Os “velhos Petromax” já eram ligados por um sistema automático e, cada poste de iluminação de alta potência, dispunha de uma placa solar para alimentação.

Dispostos estrategicamente por todo o aquartelamento, ligados em paralelo entre si, existiam vários painéis solares que, mesmo que algum fosse atingido e/ou avariasse, não impedia que os outros continuassem a iluminar o posto de recolha e distribuição de energia.

A cozinha, já dispunha de excelentes equipamentos de confecção das refeições. O refeitório foi modificado e, sinais dos tempos, passou a ser “self-service”. Os pratos de alumínio desapareceram, para dar lugar a uns tabuleiros em aço inox que dispunham já do formato dos pratos para sopa e o “prato do dia”. Local para o copo, pão e fruta. Com água quente em abundância, pelo menos em comparação com o nosso tempo. O trabalho dos faxinas era um “louvar a Deus”, além da dispensa de operações.

A ideia do Zé Teixeira, o “nosso fermero”, foi adoptada e “isso” resolveu uma série de problemas. O velho poço ou o recurso à água da bolanha, foi ultrapassado. Furos “tecnológicos” foram efectuados pelos aquartelamentos e todos dotados de motor, accionados pela electricidade gerada por uma placa solar.


A existência de poços, permite que haja uma “agricultura de subsistência” em cada unidade, tendo-se algumas, tornadas auto-suficientes quer em produtos frescos quer mesmo em agropecuária.


No que respeita ao armamento ligeiro, a “velha Mauser” deixou de existir, tendo sido substituída pela G3, já de fabrico nacional, com autorização patenteada e passível de adaptações.



A G3, quase a completar 50 anos de idade, continua a existir, mas agora com cuidados ecológicos. A coronha e guarda mão, inicialmente em madeira e mais tarde de plástico, são agora fabricadas com materiais reciclados e recicláveis e, portanto, amigos do ambiente. A parte metálica, de uma nova liga mais resistente e muito mais leve, permitiu adaptar outros “adereços” que lhe dão outras possibilidades. Além de um “raio laser” para permitir um “tiro de precisão”, dispõe de uma lanterna led, alimentada por um acumulador, que é carregado quando a arma é colocada no armeiro. Se necessário, pode ser accionado o botão de um dispositivo que produz energia, com o movimento da arma. Estes dispositivos são um complemento aos “óculos de visão nocturna”, permitindo que as forças façam mais operações durante a noite, evitando o calor abrasador do dia.

Os velhos mapas, que agora ainda podem ser encontrados no blogue da Tabanca Grande, são uma preciosidade, por raros, e alvo de leilões na net. Esses mapas, dizia, são agora substituídos por ipad, que são carregados com os mapas e o plano de operações no dia anterior à operação e são dotados de uma pilha especial, fabricado para este modelo, com uma autonomia de 120 horas, o que é excelente.

Em cada operação é incorporada uma Equipa de Foto-cine, com a missão de filmar a operação, para posterior envio ao escalão superior, evitando “baldas” ou o inconveniente de estar a manuscrever o relatório para ser elaborado à máquina em “n” cópias. Agora vai, por mail, para as diversas entidades.
No entanto, antes de seguir para “distribuição”, o “Estado-Maior” da Unidade, mesmo ao nível de Companhia, reúne com os oficias e sargentos que tomaram parte na operação, num “briefing”, visionam a mesma, tecem os comentários aconselhados, e anexam ao vídeo, da operação, a filmagem da reunião. Serviço limpo e rápido.


As transmissões entre a força em operação e o aquartelamento e feito por telemóvel 3G, o que permite, inclusivamente, “conversação em privado” com o Comandante da Unidade e/ou do escalão superior. Permite o envio e recepção de SMS e, também muito importante, o envio de imagens, como trilhos descobertos, minas implantadas e descobertas, etc.

Aos elementos que constituem a força em operação, é que é vedado o uso de telemóveis, já que a opinião pública foi fortemente afectada pelo caso do soldado que, durante uma patrulha quando estava a falar com a namorada, foi atingido. Antes da força “sair para o mato” passa através de um “pórtico detector” que denuncia os “aparelho transportados indevidamente”.

Há também outras razões. Foram descobertos “infiltrados” nas unidades que, mais não eram, que jornalistas disfarçados e que, durante os patrulhamentos enviavam relatos em directo para rádios e televisões, incluindo, muitas vezes, imagens via MMS.

Continuando com as transmissões, deixaram de existir, nas unidades combatentes, não só os Radiotelegrafistas, que já eram uma minoria no nosso tempo, mas também os Radiotelefonistas. Os Operadores de Mensagens, também deixaram de existir. Agora, todas estas especialidades, foram substituídos por “Operadores de Informática”, credenciados pela Chefia das Transmissões, para poderem lidar com “material e informação crítica”.

Numa Parceria Publico Privada (PPP), foi assinado um protocolo entre o Ministérios das Forças Armadas e dos Combatentes e a Universidade Norte-Leste (sediada em Braga, ou, talvez um pouco mais abaixo) que, em cooperação estreita com a empresa “Verão Academy”, desenvolverem um programa para “criptar e descriptar” mensagens.

Esta parceria revelou-se de extrema utilidade, já que ao receber a mensagem, via e-mail, o Operador faz “Copy/Paste” para a aplicação “Cripto Translation” e, instantaneamente, aparece no monitor a “mensagem em claro”, tendo bastado para tal colar o texto a “trabalhar” na aplicação, indicar se é “tradução ou retroversão”, indicar o código utilizado e clicar sobre a janela "Executar". É mais ou menos, mas mais aperfeiçoado, do que o que fazemos quando queremos usar uma aplicação de “tradutor”. Seguidamente, e por circuito interno (seguro), a mensagem é encaminhada para o Comando que, depois de ler, não necessita de imprimir, bastando gravar na pasta destinada “aos assuntos” relacionado com o texto.

Quando se torna necessário, o Comandante escreve o texto que quer, directamente no seu PC (personnal computer, não Posto de Comando), e envia para o Operador de Informática que cifra o texto e o envia, por e-mail, para os destinatários.

Deixou de haver “Toque de Ordem” e, a “Ordem de Serviço” deixou de ser dactilografada. Esta é digitada na secretaria e enviada para a equipa de Foto-cine que a faz circular pelo circuito interno de televisão, não havendo, portanto, razão para que o pessoal desconheça o conteúdo da mesma. Quem dispuser de equipamento compatível e, desde que tenha subscrito essa funcionalidade, pode receber essas informações no telemóvel, ipad, mail, ou “descarregar", mediante pedido, directamente no seu ipod.

O Corneteiro já esqueceu o “Toque a Pré”, dado que esta cerimónia deixou de existir. Os pagamentos são efectuados por transferência bancária para todos os elementos da Unidade. A Cantina das Praças, o Bar dos Oficiais e Sargentos, assim como o Depósito de Géneros, dispõem de terminal Multibanco, onde pode ser efectuado o pagamento pelo cartão de “Identificação Militar” que dispõe de um chip, para poder ser utilizado como cartão de débito ou crédito, bastando para tal a introdução de um PIN. Os montantes, das operações, são movimentados, imediata e automaticamente, nas contas a que a cartão está associado.

Para uso no comércio local, agora bastante desenvolvido, existe junto da Secretaria um “terminal Multibanco” para levantamento de dinheiro. Esta caixa é abastecida pelos serviços do “Banco Tesouro/Militar”, pelo que os militares, com a Especialidade de “Bancorários”, visitam as Unidades para efectuarem o carregamento das máquinas, com dinheiro fresco. É nessa altura que são distribuídos os “extractos de conta”, mas são raros, porque além de caros, são incentivadas as adesões ao extracto “on-line”.

Como é um serviço que, além de caro, pode desenvolver uma “espécie de pirataria” por parte dos “movimentos de libertação”, como a detecção por aeronaves ou assaltos às “carrinhas de transporte de valores (anfíbias)”, encontra-se em estudo um convénio, entre o Banco Tesouro/Militar com o Banco Provincial, para a criação de um Instituto que faça a gestão das operações entre os bancos (militar e civil) digamos que uma espécie de SIBS, que assim criará mais alguns postos de trabalho para a população.


Também o Laboratório das Forças Armadas, em colaboração com as Universidades, nacionais e estrangeiras, estão a desenvolver um novo fármaco, com efeitos “rejuvenescedores e recuperativos de memória” (tipo “viagra”), que será distribuído em “unidose” [afinal sempre é exequível a unidose] para, em colaboração com as Associações de Combatentes, se encontre uma forma de fazer voltar ao activo aqueles que há muito se encontram desmobilizados, uma vez que, com a experiência destes e os novos equipamentos, se consiga, de vez, terminar com este conflito.

Afinal acabei por não recordar nada. Adormeci e tive um sonho incrível. Este sonho já foi há algum tempo, e ainda me pergunto se é realidade ou ficção.
Parece-me mais ficção, porque a verdade, verdadinha, é que parece que vamos ter de novo a forma de comunicar com fumo. Não será com aquelas “máquinas de fumo” que se usam em espectáculos tipo “Hollywood”, porque os produtos de consumo nestas máquinas, fundamentalmente a electricidade, vai aumentar de preço por causa do aumento do IVA, mas vamos usar os FUMOS DA HISTÓRIA, antes que estes se dissipem no ar.

José Marcelino Martins
08 de Setembro de 2011
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 24 de Agosto de 2011 Guiné 63/74 - P8703: Blogoterapia (187): Devaneios literários? (José Marcelino Martins)

Vd. último poste da série de 5 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8735: Blogoterapia (188): Encontros, ou como abrir o tal Capítulo da Vida (Torcato Mendonça)

Guiné 63/74 - P8764: O que se comprava em Bissau, com o patacão da guerra ? Os produtos e as marcas que não havia em Lisboa... ou eram "proibitivos" (1) (Helder Sousa / Augusto Silva Santos)

1.  Comentários ao poste P8762 (*), podemdo dar início a uma nova série para a qual se esperam muitos contributos...

(i) Luís Graça:

Isqueiros Ronson, óculos de sol Ray Ban, uísque Old Parr... Que outros produtos e outras marcas estavam então na moda, em Bissau, nas lojas onde a gente ia gastar o patacão... o Taufik Saad, a Gouveia. etc. ?

(ii) Hélder Sousa (ex-Fur Mil de TRMS TSF, Piche e Bissau, 1970/72),


Quanto a coisas que se compravam, que estavam na moda... bem, relativamente a uísque, para além do Old Parr, estavam na moda, no 'meu tempo', a Monks, White & MacKay, President, Martin's, e outras de uísque velho e/ou de malte e também havia os novos Passaport, J. Walker de 'labels' de várias cores, etc.

Haviam os rádios e gravadores: Sony, Aiwa, Grundig. As máquinas fotográficas 'reflex': Pentax como o expoente máximo, mas também as Canon, Casio e outras marcas japonesas.


De roupas não me lembro. Sei que comprei tecido e levei a fazer calças a profissionais no Cupilão.

 (iii)  Augusto Silva Santos ( E
x-Fur Mil da CCAÇ 3306/BCAÇ 3833, Pelundo, Có e Jolmete, 1971/73)


 A propósito de marcas... Para além do que já foi citado pelos anteriores camaradas, no meu tempo de Guiné estava também muito em moda adquirir-se o seguinte:

Máquinas fotográficas Olympus
Relógios Cauny
Whisky Antiquary
Polos da Lacoste e Fred Perry
 
Quando o pessoal vinha de férias ou acabava a comissão . . . É que aqui naquele tempo, muitas das coisas ainda não existiam.
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 Nota do editor:
  

sábado, 10 de setembro de 2011

Guiné 63/74 - P8763: Notícias dos nossos amigos da AD - Bissau (21): Cerca de 200 ecoturistas visitaram o Parque Nacional do Cantanhez, este ano, de Janeiro a Junho



Guiné-Bissau > Bissau > AD - Acção para o Desenvolvimento > Foto da semana > Título da foto: Ecoguias preparam-se para a nova época turística; Data de Publicação: 28 de Agosto de 2011; Data da foto: 3 de Dezembro de 2008; Palavras-chave: Ecoturismo

"A partir de Outubro [ deste ano] recomeça a nova temporada de ecoturismo em Cantanhez, onde as ofertas de itinerários é mais diversificada, onde existirão miradouros de animais selvagens (bebedouros), maiores aproximações ao animal mais emblemático deste Parque (o chimpanzé) e onde os passeios ao Ilhéu de Melo serão mais frequentes.

"O conjunto de ecoguias,  constituído por jovens das várias tabancas de Cantanhez, estão agora melhor preparados para receber os turistas que, à semelhança do ano passado, virão de Espanha, Holanda, Portugal, Itália, Alemanha, Estados Unidos da América, França, Bélgica, Senegal, China, Polónia, Inglaterra, Brasil, Filipinas e Guiné-Bissau.

"Aguarda-se que esta campanha turística ultrapasse os 193 turistas que visitaram Cantanhez de Janeiro a Junho deste ano, alargando-se a sua origem, uma vez que começam a ser feitos acordos de parceria com outras organizações turísticas, como a de Orango, nos Bijagós".

 Foto (e legenda): Cortesia de © AD - Acção para o Desenvolvimento (2011). Todos os direitos reservados.


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Nota do editor:

28 de Julho de 2011 >  Guiné 63/74 - P8614: Notícias dos nossos amigos da AD - Bissau (20): Rezando pela chuva, lá, no tempo dela; imprecando contra o vento, estival, cá... (Luís Graça)

Guiné 63/74 - P8762: Estórias avulsas (57): O 400 da CART 1746 (Manuel Moreira)

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Vieira Moreira (*), ex-1.º Cabo Mec Auto da CART 1746, Bissorã, Ponta do Inglês e Xime, 1967/69, com data de 21 de Agosto de 2011:


Amigo e Camarada Luís,
Envio uma história das minhas "Memórias" no XIME. Se valer a pena, publica.


Um Abraço Camarigo para toda a Tabanca.
Manuel Moreira, ex. 1.º Cabo Mec Auto
CART 1746




O 400


O 400 era o Soldado que tinha o primeiro número de ordem da Companhia. De apelido Quinteiro, tinha muito vício de cravar cigarros a todos que fumassem.


Era como que o guarda costas do Alferes  Gilberto Madaíl, pelo que eram muito amigos. Tinha, além disso,  um farfalhudo bigode que fazia inveja.


Eu fumava SG Gigante, sendo os cigarros eram acesos com um isqueiro a gasolina que deitava muito fumo e ia passando despercebido.


Em finais de 1968, vim a Bissau fazer um estágio de mecânica diesel na Engenharia e comprei um isqueiro Ronson a gás muito bonito, que ainda hoje guardo de recordação porque tem gravadas as datas da minha "Guerra ".


Quando o 400 soube desta aquisição, com muito jeito me cravava todos os dia um cigarro, desta forma :
- Oh nosso Cabo, dê-me um cigarro dos seus que são grandes e acenda-mo com o seu Ronson.


Aquilo demorou muito tempo e, claro, comecei a pensar em tirar-lhe o vício da cravança.


Quando achei que já chegava, resolvi abrir a saída do gás no máximo ao isqueiro e queimei-lhe o bigode e parte da boca e nariz. Claro que me desfiz em desculpas pelo sucedido, argumentando que não fora por mal.


O certo é que poupei muitos cigarros a partir daí...


Já não fumo desde 1984, mas de vez em quando vou ver o isqueiro e lembra-me esta história.


Desde a nossa chegada, em 13 de Junho [ou Julho ?] de 1969, nunca mais soube nada do meu amigo Quinteiro que, salvo erro, é de Santiago do Cacém, e a quem mando um grande Abraço.  Caso ele leia esta História, que me dê notícias.


Saudações Camarigas, Manuel Moreira
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Notas de CV:


(*) Vd. poste de 5 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8226: Convívios (323): 13º Convívio da CCAÇ 2313 vai decorrer em 4 de Junho de 2011, Águeda (Manuel Moreira)


Vd. último poste da série de 6 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8643: Estórias avulsas (115): Quando o Dulombi foi flagelado pelo PAIGC com “Armas Pesadas” (Luís Dias)

Guine 63/74 - P8761: Fotos a procura de... uma legenda (15): Bambadinca e o seu famoso bagabaga catedral... Álbum do Benjamim Durães





Guiné > Zona Leste > Sector L1  > Bambadinca >  Um dos ícones de Bambadinca (que quer dizer "a cova do lagarto", segundo o poeta Artur Augusto Silva)...  Este era  o famoso bagabaga de Bambadinca, ou um deles... Era muito fotografado... Quem, de resto,  não tirou uma foto em cima de um bagabaga para mandar para a metrópole, com  recuerdo da sua passagem por aquela "terra verde e vermelha"(Será que este, um verdadeiro monumento vivo da natureza, ainda está de pé, 40 anos depois ?)...

Na 1ª foto, a contar de cima, pode avaliar-se a altura do monumental bagabaga, por comparação com o Umaru Baldé, o puto, com o seu inseparável cachimbo (O Umaru deveria ter um metro e setenta de altura, este bagabaga é um dos mais altos que tenho visto, medindo cerca de 6 metros, da base ao topo).

O nosso "belo efebo" era filho de régulo, dizia-se. Teria 16 anos, na melhor das hipóteses quando se juntou a nós, CCAÇ 2590, e depois CCAÇ 12. A seguir à independência, terá andado fugido - com a cabeça a prémio, dizia-se -  tendo conseguido refugiar-se em Portugal. Morreu cá, há uns anos atrás, de doença  - Sida e tuberculose -, no hospital do Barro, em Torres Vedras ... Vários antigos camaradas, metropolitanos, da companhia ajudaram-no a sobreviver... Foi um bravo combatente, foi ferido em combate, como a maior parte dos soldados da CCAÇ 12... Não chegou a acabar a sua comissão na CCAÇ 12, segundo o seu amigo e protetor, o António Marques, terá sido transferido depois para Bissau.

Já em tempos, em 2006, tínhamos começado uma série com o título Concurso o Melhor Bababaga, de que se publicaram pelo menos 3 postes (*)... Recordo-me que trazia uma foto  com o Humberto Reis, garbosamente empoleirado num outro bababaga de Bambadinca. também do tipo catedral... 

Como eu então escrevi,  os bagabagas são aglomerados de terra e outros resíduos - material lenhoso, no essencial - , edificados pelas térmites e que constituem o seu ninho. São muito resistentes, mas infelizmente tal como a floresta tropical não resistem aos bulldozers e ao avanço do cimento (que confundimos com civilização, progresso, desenvolvimento)...

"Temos a obrigação de ajudar os guineenses a preservar estes monumentos vivos da natureza... Este pequeno concurso (fotográfico) é uma forma de sensibilizar os nossos tertulianos e demais visitantes para o património (natural e edificado) da Guiné-Bissau... Nós, ex-combatentes, quer portugueses, quer do PAIGC, temos um enorme respeito pelo bagabaga: ele fazia parte do nosso cenário de guerra... Hoje deve ser um símbolo da paz e da biodiversidade"... 

 Um das expressões que aqui usamos, é: "Não te escondas por detrás do bagabaga, dá a cara"... É o que temos feito desde Abril de 2004, alimentando e acarinhando este blogue... (LG)

Fotos: © Benjamim Durães (2010) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados


1. Continuação do nosso passatempo Fotos à procura de... uma legenda (**), que já não é de verão, é de outono... Os nossos leitores continuam a ser convidados (para não dizer desafiados...) a mostrar, aqui em público, o seu especial talento em matéria de legendagem (livre) de fotos... 

Aproveita-se para reproduzir, mais uma vez, um dos poemas do Artur Augusto Silva (1912-1983), pai nosso amigo Pepito, e que é um hino à sua amada Guiné, "terra negra" mas também "verde e vermelha"... (LG)


TERRA NEGRA

Ao Fernando Pessoa,
Poeta de Portugal

Terra negra que tremes em convulsões de parto,
Terra negra que a guerra devasta,
Terra negra que os ódios revolvem,
Terra negra que o Luar acaricia.

Oh terra negra da minha infância,
onde uma negra ama me aleitou,
com cuidados maternais
e um amor que vinha do íntimo dos séculos.

Oh terra negra da minha infância,
onde brinquei com meus irmãos negros,
onde nadei no rio com meus irmãos negros,
onde cresci de mãos dadas com meus irmãos negros.

Oh terra negra dos mais saborosos frutos do mundo:
do ananás, do caju, da papaia, do mango;
Oh terra negra dos maravilhosos contos infantis
que a minha ama negra me contava para adormecer.

Ali, naquela enorme árvore, estava o irã,
terrível espírito da floresta que metia medo aos meninos
e nos fazia fugir para longe.
Mais para lá, era o poilão de Santa Luzia
que vomitava fogo quando a santa queria orações;
e o terreiro onde o cumpô dançava
e os meninos se extasiavam,
era a cova do lagarto onde ninguém ia,
era a mata do fanado
com os seus mistérios terríveis.

Era a minha vida,
a vida dos homens simples
que amavam os seus semelhantes
e veneravam os velhos.
Agora, oh terra verde e vermelha da Guiné,
só te peço que todas as noites
deixes baixar sobre meu coração
o silêncio que cura os males da alma
e que quando os dias nascerem húmidos e tenros
como o barro das tuas bolanhas,
deixes o meu corpo
receber esse afago matinal
que foi o meu primeiro baptismo
e te peço seja a minha absolvição.

Bissau: Instituto Camões, Centro Cultural Português de Bissau. 1997. pp. 23-25.


2. Para os devidos, reproduz-se aqui, com a devida vénia, um pequeno texto sobre o bagabaga (substantativo, do género masculino e não feminino, sinónimo de térmite e de termiteiro, palavra que vem do crioulo lusófono, oral e escrito, segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa): J. P. Cancela da Fonseca: As térmites na paisagem da Guiné: documentário fotográfico. Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, Volume XIV, nº 56, Outubro de 1959 (Reproduzido, por sua vez, pelo A.Marques Lopes, no seu blogue Coisas da Guiné, em poste de 1 de Junho de 2011)... Fiquei a saber que há dois tipos de bagabaga, o vermelho que constroi termiteiras tipo catedral, e o bagabaga preto, cujas termiteiras são em cogumelo...
 
(...) Quem pela primeira vez pisa a escaldante terra africana; quem pelas suas digressões pelo «mato» se apercebe da cambiante duma paisagem como a da Guiné portuguesa, que os menos avisados classificam de monótona; quem pelos seus inte­resses humanos se fixa na evolução que a paisagem sofre pela acção cul­tural do Homem. - Vê aqui e além, espaçados ou agrupados, erguerem-se acima do solo montículos de forma estranha , que não são obra de gente, de planta ou de pedra; - são obra de animal. 
 
Esse animal, é o «senhor da terra»… africana. A ele paga o Homem pesado tributo em géneros e em habitação: as térmites aparecem destruindo a cultura no campo, o produto no armazém, a madeira na casa. Os tecidos lenhosos, vivos ou mortos, são o seu alimento predilecto. Para os alcançar cava túneis, constrói galerias, arquitecta ninhos. Adapta as suas necessidades à paisagem. Subordina a paisagem às suas necess­idades.

As termiteiras em catedral (baga-baga vermelha) do tipo Macrotermes spp., erguem-se majestosas nas suas perspectivas de gigante, nas florestas, na savana, no campo de cultura. Sobrepassam as culturas anuais, espreitam através dos arvoredos cerrados, e, à compita, elevam ao céu a mesma prece que o cibe ou a palmeira do chabéu: - Sou vida...

Rastejam em colónias graciosas, emprestando uma beleza subtil às paisagens cinzeladas do Boé e Nhampassaré e aos solos quase enxutos de seiva criadora, as termiteiras em cogumelo da baga-baga preta, do tipo Cubitermes spp.. Às dezenas, às centenas, aconchegadas na amplidão das crostas ferruginosas donde emergem, banhando-se dum pleno sol sob a protecção dos seus chapéus dum cinzento suave, parecem reclamar a protecção do céu, gritando na sua humildade: - Nós!... Somos tam­bém vida.

Quem se detiver e contemplar atento tão vastas áreas degradadas terá ocasião de meditar: - Sois vida! Mas também sois morte?! (...)
[Recomenda-se a ida ao blogue do A. Marques Lopes para ver as fotos que ilustram o texto aqui reproduzido].

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Guiné 63/74 - P8760: Parabéns a você (315): Rui Batista, ex-Fur Mil da CCAÇ 3489/BCAÇ 3872 e Tony Grilo, ex-Soldado Apontador de obus 8,8

Com um abraço da tertúlia e editores
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Notas de CV:

- Rui Batista foi Fur Mil na CCAÇ 3489/BCAÇ 3872 que esteve em Cancolim nos anos de 1971 a 1974

- Tony Grilo foi Apontador de obús 8,8, esteve em Cabedu, Cacine e Cameconde nos anos de 1966 a 1968 e, ao que sabemos, vive presentemente no Canadá.

Vd. último poste da série de 9 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8755: Parabéns a você (314): Carlos Silva, ex-Fur Mil da CCAÇ 2548/BCAÇ 2879 e Filomena Sampaio, viúva do nosso camarada Manuel Castro Sampaio, ex-1.º Cabo TRMS da CCS/BCAÇ 3832

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Guiné 63/74 - P8759: Memórias da CCAÇ 1546 (Domingos Gonçalves) (2) - Reportagens da Época (1966): A Viagem, O Desembarque e o Passeio pelo Geba



1. Segundo poste da série "Memórias da CCAÇ 1546 (1966) - Reportagens da Época", de autoria do nosso camarada Domingos Gonçalves*, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68), enviadas em mensagem do dia 22 de Agosto de 2011.






MEMÓRIAS DA CCAÇ 1546 (1966) - Reportagens da Época - II

A VIAGEM

Agora que a terra deixou de ser visível os rapazes viajam deslumbrados pela beleza do mar a desfazer-se em ondas de cristal.
Estamos no alto mar.

Enquanto a luz do sol vai prateando o azul profundo, cardumes de peixes, assomam, de quando em quando, à superfície das águas, espreitando, curiosos, o barco que passa.
Quando entardeceu todos admiraram o Sol a esconder-se num horizonte avermelhado, belo e impreciso, espalhando na distância cores cintilantes e garridas.
Na minha aldeia o Sol esconde-se para além das montanhas ondulantes de arvoredos e penedias.
No mar desaparece num horizonte menos distante, num céu mais puro e mais encantador.
Mas é muito mais belo!

Pôr-do-sol no mar
Foto: © Dina Vinhal (2011). Direitos reservados


Esta primeira noite passada sobre o mar foi maravilhosa.
Miriades de estrelas povoaram a amplidão e brilharam alegres na distância.
O mar, esse, tomou a cor da noite e apenas deixava que a gente se apercebesse do deslizar sereno do barco sobre as águas e do marulhar sereno das ondas.
É um mundo de mistérios aquele que a escuridão espalha para além do barco...


8 de Maio

A manhã rompeu radiante de cor.
O mar mais parece um espelho grandioso, cheio de brilho, do que um mundo feito de abismos negros.

É domingo.

Às oito horas o capelão celebrou missa.
Enquanto tocado pelas ondas o barco segue baloiçando, aquele Cristo que tantas vezes andou no mar da Galileia, onde até acalmou as tempestades, veio ao nosso encontro no meio deste Atlântico cheio de tanta história.

Entre os soldados reina boa disposição

Viajar de barco, e com algum conforto, não deixa de ser agradável.
Se não fosse a tirania do capitão da 1546, que ontem até impediu um homem de jantar, isto seria quase um cruzeiro turístico...
Nunca vi ninguém que exercesse o poder com tanta crueldade e que fosse obedecido com tão pouco prazer.
Este capitão é uma pessoa muito chata!
Temo imenso pelo fracasso a que vamos sujeitos debaixo do seu comando.
Um homem como ele nunca deveria ser chefe de coisa nenhuma...


Dia 9

O dia alvoreceu cheio de brilho, prateado por uma luz admirável, que nem consente que a fixe com os meus frágeis olhos.

De tarde, o céu encheu-se de nuvens e o mar entristeceu-se tanto que até perdeu todo aquele argênteo fulgor que pela manhã ostentava.

O médico da Companhia fez uma palestra aos soldados sobre doenças tropicais e a melhor forma de as evitar.
Como em tudo, o melhor remédio é sempre a prevenção.
Como diz o velho ditado, é melhor prevenir do que remediar.
Sabe-se, no entanto, que a prevenção é uma coisa muito bonita para se falar dela, mas
que, na realidade, poucas vezes funciona.
Mas, os entendidos na medicina falam nela com tanta convicção que a gente até lhes faz o jeito de acreditar. O médico é mesmo um tipo formidável que merece mesmo que o pessoal acredite nele.


Dia 10

Quando me levantei já ia bem alto o Sol.
No mar, pelo menos ao nascer, os dias são sempre magníficos.

Numa alocução às tropas, o capitão disse que os soldados têm que estar convencidos de que são tropa e não andam a fazer turismo pelo oceano.
Os altos comandos do barco, não se sabe por qual razão, chamaram-no malcriado. Ele, a nós, disse que apenas lhe chamaram irreverente.
Não sabemos ao certo o que se passou, ou qual foi a razão da troca de mimos. Mas lá que o tipo é chato, isso é verdade.

Tem havido cinema.
Os filmes são de bastante má qualidade.
No barco, e para a tropa, também não seria de esperar que exibissem as últimas novidades da indústria cinematográfica.
Seria exigir de mais!


Dia 11

As noites já são bastantes quentes. O calor é já uma realidade bem presente. O ar que se respira é abafado.
Apenas se está bem no interior do barco em ambiente de ar condicionado.
As milhas que nos separam da Guiné são cada vez menos. Porém, o espectáculo do mar é cada vez mais belo.
Agora são os cardumes de peixes voadores e os golfinhos que lhe emprestam um novo encanto.

De tarde, o major fez uma alocução às tropas e desejou-lhes a melhor das sortes no desempenho das missões que o Batalhão de Caçadores n.º 1887 tiver que desempenhar nos próximos dois anos.


Dia 12

Pelas dez horas e trinta minutos avistou-se terra.
Pouco depois das onze horas o barco parou à espera do piloto local, para entrar na barra do Geba.
Pouco antes das três da tarde o Uíge ancorou em frente a Bissau.

Avisaram-nos de que o desembarque terá lugar amanhã, a partir das nove horas.
O nosso destino, dizem, será Nova Lamego.

Da parte da tarde os oficiais reuniram-se na sala de música do barco para assistir a uma palestra sobre a situação militar na Guiné.
A alocução foi proferida por um tenente-coronel e, da descrição que fez, deduzo que, pelo menos em algumas zonas, a situação, embora controlada, será bastante difícil.

Respira-se aqui um ar de guerra.

No rio Geba os barcos da Marinha aparecem um pouco por todo o lado, o mesmo acontecendo com as pequenas lanchas dos fuzileiros navais.

A velha “Mauser” aparece dentro dos pequenos barcos de passageiros e de carga. As armas estão um pouco por todo o lado.
O sossego que se respira na metrópole aqui já não existe.
É a guerra.
Temos de nos habituar a este ambiente estranho.

Guiné > Bissau > Outubro de 1973 >  Cais de Pidjiguiti
Foto: © António Graça de Abreu (2011). Direitos reservados


O Desembarque e o Passeio Pelo Geba

13 de Maio

Da parte da manhã a Companhia deixou o Uíge.
Homens e bagagens, tudo passou para a Bhor, uma barcaça de pequeno porte que nos levou pelo Geba fora, rumo a Bambadinca.

*

Respira-se mal.
O sol queima.
Nas águas amareladas do Geba nem um sinal de maresia.
Da chaminé do barco levanta-se uma leve nuvem de fumo e, ao longe, por entre uma plúmbea neblina, a selva parece arder.

Os guindastes do Uíge fazem o transbordo da bagagem pertencente aos homens da Companhia de Caçadores n.º 1546 para uma barcaça de fundo chato, tão larga quanto comprida, da cor das águas sujas do rio.

Sob um sol ardente, os rapazes abandonam o conforto do Uíge e vão descendo para a barcaça, que já se encontra repleta de bagagens.

É quase meio dia.

A Bhor começou a navegar pelo Geba acima, em direcção a uma localidade que, dizem, se chama Bambadinca.

Bambadinca > Vista aérea
Foto: © Humberto Reis (2007) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guine. Todos os direitos reservados.


A floresta, no meio da qual nos deslocamos, já que o rio não é mais do que uma imensa estrada que a natureza rasgou, num esforço milenar, para facilitar a nossa passagem, é muito verde. Pode mesmo dizer-se que é bonita, feita de uma beleza que cheira a monotonia.

O sol tropical cai, inclemente, sobre as cabeças e os corpos de cada um de nós, martirizante e implacável, queimando sempre cada vez mais.

Nas margens, quase ao mesmo nível das águas, casando-se com o rio, está a floresta virgem, misteriosa, um mundo de ninguém, estranha riqueza à espera de ser explorada.

De quando em quando, alternando com a selva, surgem bolanhas enormes, nuas, morrendo ao longe coroadas pela rama verdejante das palmeiras.

A sede atormenta-nos.

Os nossos corpos, agredidos pela inclemência do clima, desfazem-se em suor.
Para aumentar o martírio de todos a barcaça não traz água.
Para matar a sede lançam-se ao rio garrafas vazias, seguras por cordéis, que, depois se puxam para bordo, cheias de água.
E que deliciosa é esta água amarelada e quente!

Às duas horas da tarde deram-nos o almoço.
Encostados uns aos outros, sem o mínimo de condições, comemos ovos cozidos, laranjas, pão seco e sardinhas de conserva.
Tudo, é claro, acompanhado com a água suja do rio.

A meio da tarde a barcaça ultrapassou a confluência do rio Geba com o Corubal.
A partir desse ponto, devido ao rio ser mais estreito e menos profundo, a navegação torna-se bastante mais difícil.

À passagem pelo Xime, as tropas destacadas na localidade celebram a nossa passagem com algumas salvas de tiros de G.3.
Alguns soldados andam no rio, a bordo de uma canoa, talvez pescando.
Os que estão em terra têm a pele bastante bronzeada.

Anoiteceu antes que a viagem fluvial terminasse.

Agora, a barcaça navega mais vagarosa, e de luzes apagadas.
Estamos, por certo, a atravessar alguma zona perigosa.
Quem adivinha se o inimigo nos está a preparar alguma partida.

Nas margens do rio, qual sombra de fantasma gigantesco, apenas temos o fantasma da selva infinita.
Aquilo que durante o dia se reveste de beleza considerável, enche-se, de noite, de frieza e mistério.
Com a escuridão tudo se torna enigmático e terrível.

Ao longe já se vislumbram luzes.
É a vila de Bambadinca, termo da nossa viagem fluvial.
Já vai alta a noite.

Vestígios do porto de Bambadinca. Suportavam o tabuleiro do cais, por aqui passaram toneladas de comida, munições e aparato bélico, material de construção civil, etc. Para que conste para a História, aqui houve cais, exactamente neste ponto acostava o aprovisionamento dessa imensa guerra.
Foto e legenda: © Mário Beja Santos (2010). Direitos reservados.

A barcaça encostou-se à margem do rio, no pequeno cais construído em madeira.
Dentro e fora reina a escuridão.
Os soldados procuram, auxiliados por uma luz muito branda, as respectivas bagagens, e fazem, a poucos metros da margem do rio, um monte de malas e sacos.

Depois, exaustos, deitam-se no chão, expostos aos mosquitos e à humidade que a atmosfera, junto ao rio, não pode deixar de imanar, na tentativa de garantir algum descanso ao corpo fatigado, até que cheguem as viaturas que nos transportem para Nova Lamego, a terra onde iremos, segundo nos disseram, permanecer, não se sabe durante quanto tempo.
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Nota de CV:

Vd. primeiro poste da série de 6 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8742: Memórias da CCAÇ 1546 (1966) - Reportagens da Época (Domingos Gonçalves) (1): A caminho de embarque e Embarque

Guiné 63/74 - P8758: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (46): Luís Monteiro, a viver no Porto, ex-1º Cabo Condutor Auto da CCAÇ 2590/CCAÇ 12, feliz por reencontrar, 40 anos depois, camaradas do seu tempo de Contuboel e Bambadinca (Maio/Setembro de 1969)...

1. Comentário, de 30 de Junho último, de Luís Monteiro, ao poste P6369:

Eu, Luis Monteiro (Porto), também pertenci à Companhia de Caçadores 2590 - 1969/1971- Guiné.  Era 1º Cabo Condutor Auto.


Fiquei emocionado ao deparar com o trabalho feito pelo camarada Luís Graça, tive a oportunidade de rever e reconhecer alguns camaradas, como o [Humberto] Reis, o [António] Levezinho, o Jaló, o  [o 2º sargento Alberto Martins] Videira, entre outros.


Talvez não se lembrem de mim, pois a minha estadia com vocês foi curta, no dia 19 Setembro de 69 fui destacado para Bissau e aí fiquei até ao fim da comissão. No entanto, ficava feliz por rever alguém desse tempo.


O meu contacto é luis_jmonteiro@sapo.pt.


Saudações amigas.


2. Comentário de L.G.:


É verdade, Luís Monteiro, o teu nome consta da composição orgânica da CCAÇ 2590, uma companhia independente constituída apenas por quadros e especialistas, de origem metropolitana, num total de meia centena, que estará na origem da futura CCAÇ 12 (a partir de 17 de Junho de 1970)...

1º Cabo Cond Auto Luís Jorge M.S. Monteiro [, com a indicação de que vivias...em Vila do Conde];

Eras o único 1º Cabo Cond Auto, não sei por que é que o Cap Inf Carlos Brito te deixou "fugir" para Bissau, uma história que poderás depois contar melhor, aqui no nosso blogue... Não sei se te lembras de alguns dos camaradas condutores auto que vieram contigo (e comigo) no Niassa, de 24 a 30 de Maio de 1969... Aqui vai a lista (alguns vou-os encontrando anualmente; tens fotos deles aqui no nosso blogue):

Sold Condutor Auto António S. Fernandes [, morada actual desconhecida];

Sold Cond Auto Manuel J. P. Bastos [, morada actual desconhecida];
Sold Cond Auto Manuel da Costa Soares [, morto em, mina A/C, em Nhabijões, em 13/1/1971];
Sold Cond Auto Alcino Carvalho Braga [, vive em Lisboa];
Sold Cond Auto Adélio Gonçalves Monteiro [, comerciante, em Castro Daire;  (organizador do nosso 15º enconcontro, o 15º, em Castro Daire, em 2009];
Sold Cond Auto João Dias Vieira [ vive em Vil de Souto, Viseu];
Sold Cond Auto Tibério Gomes da Rocha [, vivia em Viseu, faleceu em 6/12/2007];
Sold Cond Auto António S. Fernandes [, morada actual desconhecida];
Sold Cond Auto Francisco A. M. Patronilho [, vive em Brejos de Azeitão];
Sold Cond Auto Manuel S. Almeida [, morada actual desconhecida];
Sold Cond Auto António C. Gomes [, morada actual desconhecida];
Sold Cond Auto Fernando S. Curto [, vive em Vagos];
Sold Cond Auto Aniceto R. da Silva [, morada actual desconhecida];
Sold Cond Auto Diniz Giblot Dalot [, empresário, vive em Aljubarrota, Prazeres];
Sold Cond Auto Manuel G. Reis [, morada actual desconhecida]...

É possível que ainda te lembres dalguns destes 1ºs cabos, que vieram contigo (e comigo) deste o Campo Militar de Santa Margarida onde formámos companhia (alguns também poderás encontrá-los no nosso blogue):

1º Cabo Aux Enf José Maria S. Faleiro [, morada actual desconhecida]; 
1º Cabo Aux Enf Fernando Andrade de Sousa [, vive na Trofa]; 
1º Cabo Aux Enf Carlos Alberto Rentes dos Santos [, vive em Amarante]; 
1º Cabo Trms Inf António Domingos Rodrigues [, vive em Torres Novas]; 
1º Cabo Cripto António José Damas Murta [, vive em Coimbra]; 
1º Cabo Cripto Gabriel da Silva Gonçalves [, vive em Lisboa]; 
1º Cabo Manut Material João Rito Marques [, vive no Souto, Sabugal; ]; 
1º Cabo Mec Auto Renato B. Semedos (ou Semedeiros ?) [, vivia na Reboleira, Amadora]; 
1º Cabo Mec Auto António Alves Mexia [, morada actual desconhecida]; 
1º Cabo Escriturário Eduardo Veríssimo de Sousa Tavares[, morada actual desconhecida]; 
1º Cabo Radiotelegrafista Manuel da Graça S. Zacarias [, morada actual desconhecida]; 
1º Cabo Corneteiro Manuel Joaquim Martins Ferreira [, morada actual desconhecida]; 
1º Cabo Cozinheiro José Campos Rodrigues [, morada actual desconhecida]; 
1º Cabo Apont de Armas Pesadas José Manuel P. Quadrado [, vive na Moita]; 

A estes tens que acrescentar os operacionais, que enquadravam os 4 grupos de combate da companhia (ver aqui).

Viemos juntos no Niassa, estivemos juntos em Contuboel (nos meses de Junho e Julho) e ainda estivemos juntos em Bambadinca, nos dois meses seguintes, ao tempo do BCAÇ 2852 (1968/70). Não me levas a mal não de lembrar de ti. Já lá vão mais de 40 anos!... Mas fico feliz por te ver feliz ao reencontrar, através do nosso blogue, caras conhecidas e amigas desse teu/nosso tempo de menino(s) e moço(s)...

A malta que esteve em Bambadinca, no nosso tempo (1969/71), tem-se vindo a encontrar todos os anos, desde 1994. O próximo encontro, em 2012, se não me engano, será no Porto justamente a cidade onde agora tu vives. Vê então se apareces. A melhor maneira de ires tendo notícias da malta é inscreveres-te no nosso blogue. Manda as duas fotos da praxe, uma antiga e outra actual, e conta-nos um pouco mais das tuas memórias do tempo em que estivemos juntos na Guiné (desde Maio a Setembro de 1969). Tens fotos desse tempo ? De Contuboel, de Bambadinca, de Bissau ? Podes digitalizar aquelas que achares com mais interesse documental e mandá-las, por mail, para a nossa caixa de correio: luisgracaecamaradasdaguine@gmail.com

Boa saúde! Bons reencontros!... Um grande Alfa Bravo para ti. Luís Graça
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Nota do editor:

Último poste da série > 22 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8694: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (45): O António Teixeira (ex-Alf Mil, CCAÇ 6, Bedanda, 1972/73) por terras da Lourinhã...

Guiné 63/74 - P8757: Agenda Cultural (151): Sessão de divulgação da colecção literária Fim do Império, dia 15 de Setembro de 2011, às 18h00, na Sala Polivalente da Biblioteca Municipal de Lagoa

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 8 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8752: Agenda Cultural (150): Exposição de fotos e lançamento do Livro Na Kontra Ka Kontra de autoria do nosso camarada Fernando Gouveia, dia 13 de Setembro de 2011, na Casa da Cultura Mestre José Rodrigues, em Alfândega da Fé

Guiné 63/74 - P8756: Notas de leitura (272): Comunicação da escritora Joana Ruas na 8.ª Bienal Internacional do Livro do Ceará (Joana Ruas / Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Agosto de 2011:

Queridos amigos,
Pedi à escritora Joana Ruas que me emprestou o seu romance “A Pele dos Séculos” que tivesse a amabilidade de nos ceder outros textos seus versando a temática da Guiné-Bissau. Acaba a escritora de me enviar esta comunicação que apresentou numa universidade brasileira, autorizando a sua publicação no blogue.
É um texto belíssimo que, creio, trará um maior entendimento ou compreensão ao movimento de escritores do nacionalismo guineense, antes, durante e após a libertação.


Um abraço do
Mário


8ª Bienal Internacional do Livro do Ceará

A aventura cultural da mestiçagem

Aproximar o distante — Do Estranho ao familiar
Duas Experiências :Timor-Leste e Guiné -Bissau
(parte referente à Guiné-Bissau)

A Luta é a minha primavera

A luta
É a minha
Primavera

Sinfonia de vida
O grito estridente dos rios
A gargalhada das fontes

O cantar das pedras
E das rochas
O suor das estrelas

A linha harmoniosa dum cisne!

Vasco Cabral (1926 – 2005)


Vasco Cabral nasceu em 1926 em Farim na então Guiné Portuguesa e cedo se interessou pela política participando na campanha de Norton de Matos, candidato da Oposição anti-salazarista à Presidência da República Portuguesa. Formado em Ciências Económicas e Financeiras, é preso em 1953 em Lisboa quando regressava de Bucareste onde participara no IV Festival Mundial da Juventude.

1962 foi um ano pleno de acontecimentos relevantes no quadro da resistência ao regime salazarista pois pela primeira vez nas ruas do Porto e no 1º de Maio em Lisboa são gritadas palavras de ordem contra a guerra colonial e, num tribunal de Luanda, são condenados os escritores António Jacinto, António Cardoso e Luandino Vieira a 14 anos de prisão; nesse mesmo ano, ameaçados de novo pela polícia política, o angolano Agostinho Neto acompanhado pela família e Vasco Cabral, numa fuga de barco organizada pelo Partido Comunista Português, alcançam Rabat, em Marrocos. 

 Tendo aderido ao PAIGC, Vco Cabral  participa na luta armada de libertação nacional tendo sido ministro da Economia e das Finanças do 1º Governo saído da Independência da Guiné-Bissau, proclamada unilateralmente a 24 de Setembro de 1973 na sequência do assassinato de Amílcar Cabral. Fundador da União Nacional de Escritores da Guiné –Bissau, morre a 24 de Agosto de 2005, em Bissau.

A sua poesia acha-se publicada na Antologia poética da Guiné-Bissau / União Nacional dos Artistas e Escritores da Guiné-Bissau. – Lisboa, : Editorial Inquérito, 1990; in África : Literatura. Arte. Cultura sob a direcção de Manuel Ferreira. - Lisboa : África Editora, L.da. - Vol. I, n.º 5; ano II (Jul-Set), 1979; in Antologia : Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe : poesia e conto, selecção e organização de Lúcia Cechin. - UFRGS : Porto Alegre, 1986; as suas alocuções , discursos e colóquios nomeadamente sobre Amílcar Cabral e sobre a colonização da Guiné acham-se publicadas em Soronda - Revista de Estudos Guineenses.

Vasco Cabral começa a escrever poemas na prisão, em 1953, poemas que já depois da independência da sua pátria reunirá num volume que intitulou precisamente A Luta é a minha primavera.

Ao lermos este poema não podemos deixar de sentir com quanto despojamento se manifesta o despertar de uma energia feita de desprendimento de si e de total entrega. Na sua solidão essencial, há neste homem, preso mas pronto para o combate, a abundância primaveril das grandes forças da natureza: a da água que estridente se solta pelos rios abaixo e a que jorra das fontes. Mais do que fecundar a terra, água é a linguagem da fluidez invadindo o espaço, grito e gargalhada sonorizando as paisagens mudas. O homem que no combate vai suar o suor das estrelas longínquas, está mais perto do céu do que da terra e, inamovível no seu ideal, o seu canto é igual ao das pedras e das rochas. Frescura, clareza e pureza eis o que caracteriza a linguagem do espírito novo para que nasça uma nova vida. A vida para o prisioneiro passa, infinita e informe fora e dentro das grades da prisão. Contudo, algo se move, algo busca uma forma, e não é apenas um homem, um poeta cujo canto se ergue sobre searas de desolação a proclamá-lo , é também um povo que em breve se erguerá numa luta de libertação nacional. Em Discours Antillais, Édouard Glissant, numa clara alusão aos espoliados e oprimidos, conclui, neste seu ensaio, que "O homem, não é uma mera cana que pensa, mas, segundo Shakespeare, é uma floresta que marcha".

Geração sacrificada a um ideal, o cisne deste poema é a metáfora de uma forma harmoniosa. Seja qual for a cor da sua pele, o cisne, símbolo de luz, representa o ideal de brancura e de graça do guerrilheiro no seu combate por uma causa nobre, a causa da libertação de um povo por um futuro de paz e no achamento de uma felicidade terrestre para cada homem, mulher e criança.

É sob o lema deste muito justamente célebre poema do querido e saudoso amigo , combatente e poeta, Vasco Cabral,que vos vou falar da minha experiência na Guiné-Bissau onde estive nas zonas libertadas e, posteriormente, trabalhei como jornalista cultural no jornal Nô Pintcha desde o seu primeiro número.

Não posso aqui recordar a totalidade dos acontecimentos que constituem parte integrante da minha experiência na Guiné- Bissau e em Timor-Leste. Talvez a parte mais substancial dessas experiências repousem ainda no coração da minha memória. E, embora essas experiências tenham frutificado em duas obras literárias, A PELE DOS SÉCULOS no caso da Guiné-Bissau e a obra em três volumes com o título genérico de A PEDRA E A FOLHA cujo primeiro volume A BATALHA DAS LÁGRIMAS acaba de ser editado em Portugal, tudo o que permanece ainda no palimpsesto da memória, deixa-me, como escritora, num estado de espírito entre o terror do enorme trabalho que me espera e o encantamento perante um mundo que, afundado nos labirintos do esquecimento, sai para a luz do dia , esse espaço da criação literária onde cabem tantos e tão diversos mundos, todos regorgitando da vida de quantos homens, mulheres, crianças, árvores, animais e rios se haviam atravessado na minha vida. O primeiro prosador do quotidiano guineense da época colonial foi o cabo-verdiano Fausto Duarte com o seu livro Auá. Uma das razões pela qual decidi escrever A PELE DOS SÈCULOS e A PEDRA E A FOLHA foi a leitura da obra de Marcel Mauss, um dos fundadores, em 1904, do L’Humanité e autor do celebrado Essai sur le don Mauss achou que era altura do romance dar a povos considerados até então inferiores e primitivos o rosto humano que lhes fora roubado.

Dizem que a palavra Guiné é de origem tuaregue e designa o país dos negros. Data de 1444 a entrada dos primeiros escravos da Guiné em Portugal. Em 1460 António di Noli implanta a cana do açúcar nas ilhas de Cabo Verde. Faltando a mão de obra, ele obtém do rei de Portugal permissão para mandar ir negros da Guiné. Enquanto os barcos corriam as costas da Guiné em busca de escravos, a rainha Isabel, a católica, enchia os mercados da Sicília e de Nápoles com escravos mouros e judeus que dali eram encaminhados para os mercados de escravos do norte de África. O mundo árabe absorveu parte deste contingente que lhe chegou dos reinos da Espanha e da Sicília pois esta ilha era então pertença de Aragão. Os judeus iam nas caravanas pelas rotas sarianas do ouro que saíam de Anafé (a actual Casablanca) e Safim e, descendo África abaixo, alguns deles íam como pastores de cabras nas tribos tuaregues enquanto outros eram acolhidos nas tribos mandingas onde os foram assimilando até à sua chegada à Guiné (então conhecida como Etiópia austral ou Líbia inferior). Em 1492, o rei de Portugal obriga os judeus que tinham sido expulsos de Castela a abraçar a religião cristã (cerca de 60.000 passam a fronteira).Inicia-se a distinção entre cristãos velhos e cristãos novos. Muitos destes são enviados para o norte de África, enquanto outros preferiram ficar muitas vezes na condição de escravos. Centenas dos seus filhos menores ser-lhes-ão arrancados à força e enviados para povoar S. Tomé. De Portugal chegaram a Cabo Verde, a São Tomé e Príncipe, à Guiné, Angola, Moçambique e Timor. Na Espanha do século XVI e do começo do século XVII a urgência está em caçar judeus e mouriscos e de vigiar os conversos. Os reis católicos, receando a mestiçagem, não queriam consentir na escravatura em terras de Espanha. Deste modo, de 1609 a 1613, os mouros, chamados os marranos do Islão, têm a mesma sorte dos judeus.

Álvaro de Caminha , nomeado donatário da ilha de S. Tomé, é o terceiro para ali enviado por D. João II. Partiu acompanhado por jovens cristãos novos, escravos negros e degredados para iniciar a colonização da ilha. A cada um dos degredados, para fins de povoamento, foi dada uma escrava. É uma das provas reais da chamada miscigenação. No século XVI havia na Gâmbia uma aldeia dos Herejes povoada de africanos lusitanizados. De 1835 a 1839 há um intenso tráfico negreiro espanhol para Cuba efectuado por armadores e comerciantes cabo-verdianos metidos de permeio, servindo-se a fundo das suas redes de parentes e aliados continentais a partir das suas instalações no Arquipélago dos Bijagós, onde certas ilhas (Galinhas, Bolama) eram verdadeiros pontos de concentração do tráfico de escravos, com o conhecimento das autoridades portuguesas , cúmplices ou impotentes.

O decreto de 10 de Dezembro de 1836, abolindo as exportações de escravos em todos os territórios portugueses tanto ao norte como ao sul do equador, não afectam os dois maiores traficantes desta época, o antigo governador da Guiné e coronel de milícias, o metropolitano Joaquim António de Matos e o governador de Bissau, o comerciante Caetano José Nozolini, mestiço cabo-verdiano descendente de um marinheiro italiano, amante e depois marido e sócio de Mãe Nhána ou Nhara Aurélia Correia, oriunda da aristocracia das Ilhas Bijagós. Nhara é o termo equivalente a um estatuto elevado na burguesia mestiça das feitorias da Grande Guiné. Uma das suas feitorias ou plantações onde trabalham centenas de escravos enquanto esperam pelo embarque é na ilha de Bolama. Nos Bijagós está ainda a poderosa matriarca , a Nhara Júlia da Silva

Em 1841, Bissau exporta para Cuba mais de 2000 escravos vendidos por Caetano José Nozolini. Ziguinchor estava povoada por mestiços luso-africanos, grumetes e escravos. O chefe da feitoria vem de uma família mestiça, os Carvalho Alvarenga, ramo donde virá Honório Pereira Barreto. Honório é filho de um cabo-verdiano e de Rosa de Carvalho Alvarenga, a poderosa Rosa de Cacheu, uma Nhára comerciante originária de Ziguinchor. Honório Pereira Barreto sendo governador de 1835-39, o número de escravos libertados nos 55 navios provenientes da Guiné e apresados pelos cruzadores, fixou-se em cerca de 3.929. Os grumetes, na sua maioria de etnia papel, e habitantes de Cacheu, eram africanos lusitanizados e cristianizados e constituiam, para o colonizador português, um perigo que não era étnico mas social. Viviam nas feitorias portuguesas ou gravitavam na sua periferia em funções de marinheiros, de operários e de pequenos bufarinheiros. Os grumetes tinham um comportamento imprevisível, colocando-se quer do lado dos seus irmãos de etnia quer do lado dos portugueses contra estes.Com o advento da República juntam-se às elites luso-guineenses e cabo-verdianas mestiças implantadas na praça e que querem desempenhar um papel polírico, tornando-se assim em proto-nacionalistas guineenses.

Do legado imaterial dos escravos da Guiné ficaram-nos poemas dos séculos XVII e XVIII na então chamada língua de preto. Língua de preto era o linguajar característico dos negros que foi explorado para fins literários burlescos do século XVI a XVIII. Em 1990 Ana Hatherly publica em Lisboa, na Editora Quimera, na obra intitulada Língua de Preto, alguns desses poemas. Da sua música e das suas canções resta-nos apenas uma Canção de Natal, há pouco descoberta e que havia sido recolhida no século XVII por um missionário anónimo de Coimbra.

Sã qui turu zente pleta
Sã qui turu zente pleta (hé,hé)
Sã qui turu zente pleta de Guiné (hé,hé)
Tambor flauta y cassaeta e carcavena sua pé(hé,hé)
Vamos fazer uns fessa
Vamos fazer uns fessa
Ao menino Manué (hé,hé)

Com o advento da ditadura do Estado Novo foi proibida toda a actividade político-partidária. Logo em 1927 foi encerrada a sede da Confederação Geral do Trabalho. A repressão abate-se ferozmente sobre os sindicatos e movimentos operários e grevistas. Em 1933, decalcado da Carta del Lavoro do fascismo italiano, foi promulgado o Estatuto do Trabalho Nacional que constituiu o golpe de misericórdia para os sindicatos livres . No que se referia aos trabalhadores das colónias, logo em 1928 foi promulgado o Código do Trabalho dos Indígenas das Colónias Portuguesas de África. Mantém-se e reforçam-se neste Código a utilização compulsiva da mão de obra em condições de trabalho forçado e de contrato em regime de semi-escravatura. Devido à natureza deste código, Portugal não ratifica, em 1930, a Convenção n.º 29 da Organização Internacional do Trabalho relativa a trabalho forçado.

No que se refere à África Ocidental, em França, o Governo da Frente Popular permitiu a criação de sindicatos em Março de 1937. No período compreendido entre 1944 e 1957, a legislação sobre o direito sindical foi levada, pelo Código do Trabalho Ultramarino de 15 de Dezembro de 1952, a lei quadro. Mas só em 1957 é que as restrições até então havidas, tais como saber falar francês, nível escolar etc., caíram e a liberdade sindical foi reconhecida. Nesse período de nascimento dos sindicatos africanos, a acção dos sindicatos metropolitanos foi importante. Os sindicatos metropolitanos foram buscar no Ultramar efectivos complementares para reforçar ainda mais as suas posições respectivas. Alguns como a CGT francesa, não encararam com bons olhos a independência africana o que explica a criação, por parte de Sékou Touré, da UGTAN, União Geral dos Trabalhadores da África Negra.

O movimento sindical africano, no entanto, só foi admitido pelas administrações coloniais no fim da 2ª Guerra Mundial com o despertar da consciência dos africanos, com a experiência dos antigos combatentes, com a actividade dos estudantes negros na Europa e com a conferência de Bandung.

No plano internacional, os sindicatos, em todo o mundo colonizado, só se afirmaram como actores sociais eficazes a partir da descolonização. No entanto, a sua contribuição para a luta pela independência foi capital. No que à Guiné- Bissau diz respeito, em 1954 foi criado o Movimento para a Independência da Guiné e de Cabo Verde. E, em 1957, no 5º Congresso do PCP, que teve lugar na clandestinidade, no Estoril, o Partido Comunista reconhece o direito à independência dos povos colonizados. Daí a repressão violenta, em Bissau, de uma greve de estivadores que desde logo supunha uma organização que embora se socorresse da clandestinidade existia já como força social.

Em toda a África colonizada, as reivindicações dos trabalhadores exprimiam de forma rigorosa o anticolonialismo e o nacionalismo e era igualmente uma forma de rejeitar a dominação económica e portanto a dominação colonial.

Em Les bouts de bois de dieu, o romancista e cineasta Sembène Ousmane, relata a greve dos ferroviários da linha Dakar-Niger que durou de Outubro de 1947 a 19 de Maio de 1948, uma das mais longas greves da história do movimento sindical e que constituiu uma contestação radical do sistema colonial.

Em todo o mundo colonizado os sindicatos contribuíram eficazmente para a causa da independência. A guerra colonial, na Guiné-Bissau, teve como causa próxima a greve dos estivadores do cais do Pidjiguiti que em 1959 protestavam contra as condições de trabalho. Nesta greve, ferozmente reprimida, foram mortos 50 grevistas e feridos mais de cem. Estes estivadores estavam organizados clandestinamente, uma vez que o regime fascista tornara ilegal a actividade sindical e política. Contudo, já em 1954 fora criado o Movimento para a Independência da Guiné e de Cabo Verde.

Cumpre referir que uma vez adquirida a independência, face às novas realidades políticas e socio-económicas, os sindicatos são confrontados com os problemas do subdesenvolvimento e com a prioridade da construção do Estado-nação. Estas realidades vão modificar sensivelmente as relações de força entre governos e sindicatos.

Conheci a Guiné-Bissau quando a dinâmica da luta de libertação nacional animava ainda as populações das zonas libertadas. Os africanos lutaram para terem acesso ao tempo, ao tempo das nações independentes, ao tempo de um tempo e de uma história própria. A luta deles era uma luta de libertação nacional e não a travavam com o sentimento de uma perda de tempo. Eles lutavam para que o tempo lhes desse o ganho de um espaço próprio, um espaço reconquistado a uma espoliação de séculos. Uma luta de libertação não é possível sem consciência nacional que se pode definir como a consciência de pertença a um mesmo povo e consciência dos seus interesses nacionais, enfim, uma vontade comum de se definir enquanto nação. A consciência nacional caracteriza-se pelo seu carácter dinâmico e essencial e para isso necessita de um suporte objectivo para essa vontade - o meio natural comum, uma comunidade de civilização e de cultura, uma comunidade política e uma comunidade económica. Quanto às diversas etnias, quase todas participaram no esforço de guerra e esse facto foi um factor de coesão que teve o seu epílogo com o desenvolvimento da democracia.

A geração de poetas que se exprimiu depois da conquista da independência, era muito menina quando em 1959 começou a luta de libertação desencadeada pelo massacre dos estivadores no cais do Pindjiguiti. A sua poesia escreveu-se em crioulo e em português. Um deles, Agnelo Augusto Regalla, num seu poema intitulado Poema de um assimilado, reconhece em si a herança cultural do colonizador e lamenta o que ficou na penumbra, esse imenso continente chamado Mãe África e dos seus filhos: Samory, Abdelkader, Cabral, Mondlane, Lumumba e Henda, Lutuli e Bem Barka e ainda de Canhe Na N´Tuguê e Domingos Ramos, heróis guineenses, todos de cultura crioula mas da crioulidade militante dos que se não esqueceram e fugiram à doce melodia dos corás. Morés Djassy no seu Poema da Natureza Africana apela às tradições para que vençam os séculos roubados unindo-se às mensagens da revolução. António Soares Lopes Jr. cujo poema Mantenhas dá o título a esta antologia, recorda episódios da luta de libertação e envia mantenhas para quem lutou e luta. Integram a antologia Carlos de Almada celebrado autor de Canto Alegre pra N´Dangú, Helder Proença, Jorge Ampa Cumelerbo, Tony Davyes, José Carlos que verseja em crioulo, José Pedro Sequeira, Justen, Nagib Said, Kôte, Tomás Paquete. Muitos deles como José Carlos Shwartz integraram a luta armada tendo este poeta sido preso e deportado para a ilha das Galinhas.

Em Classe e Nação, Samir Amin chama a nossa atenção para o desenvolvimento capitalista periférico que favorece as elites urbanas em detrimento do mundo rural e das etnias mercantis e que permitindo que a formação nacional assuma consistência , desagrega a sociedade opondo-se à sua eventual constituição em nação. A nação supõe a etnia mas ultrapassa-a. As lutas étnicas são a manifestação das lutas de classes e são frequentemente manipuladas do interior e do exterior por forças capitalistas. A verdade é que na Guiné-Bissau, à excepção dos quadros do PAIGC e das forças armadas que entraram em Bissau, a população de Bissau acolheu mal a independência. A pequena burguesia de Bissau passou a controlar o aparelho central do estado, sem assegurar a unidade da vida económica da comunidade, isto é, sem desenvolvimento nem circulação de bens que tornassem coesas as populações integrantes da nação. Ora a nação estruturava-se assim de forma contraditória, com forças armadas e policiais de um lado e classe dominante do outro. Naquela época, as antigas potencias coloniais tudo faziam para que não vencessem as forças que elas não tinham conseguido derrotar.

Com o golpe contra Luís Cabral, Nino Vieira desfez a aliança da Guiné e de Cabo Verde instituída por Amílcar Cabral. A coluna vertebral dessa aliança era o PAIGC. O golpe de Nino Vieira representou o abandono da vertente marítima pela vertente continental. Os quadros superiores e intelectuais guineenses que não se reviam em Nino Vieira e não se revendo também em Ansumane Mané porque estava desde sempre ligada a Cabo Verde, fugiram de uma guerra que não lhes pertencia. Com a queda de Luís Cabral , a Guiné, à medida que começa então a ser absorvida pela massa continental que a rodeia, é objecto de novas tensões interétnicas que vão sendo absorvidas através de golpes de estado sucessivos. É de recordar que para uma das etnias maioritárias, os mandingas, um mundo africano ocidental totalmente francês constitui um desiquilíbrio pois as campanhas francesas foram, ao longo dos séculos, de liquidação das etnias mais fortes daquele contexto, o que era o caso da etnia mandinga. Os mandingas devem pois aos franceses o seu declínio histórico. No meio do século XV, Cadamosto e Fernandes diziam que os Mandingas da Gâmbia se consideravam súbditos do Mali.A campanha do governador Songhai, Oumar Kanfari, a partir de 1490 conquistou o Fouta e dirigindo-se para o Niger anexou Dyara. O imperador do Mali, aflito, apelou para a aliança do rei D. João II de Portugal. Mas nenhuma das missões portuguesas enviadas na época chegou ao destino. A mitologia mandinga está impregnada pela figura do herói trágico como se constata na Balada de diu diu.

A guerra civil levou ao colapso da nação guinenese. O Estado ficou desestruturado e os quadros superiores refugiaram-se em Portugal. Nos golpes de estado, o poder legal, tornado ilegítimo, abandona as populações enquanto o poder ilegal mas legítimo pela adesão das populações, combatendo por elas e em seu nome, tem dificuldade em protegê-las. As populações pulverizadas , incapazes de vencerem os interesses instalados nas formações partidárias e infiltradas no aparelho de estado, terão tendência para se refugiarem no lar étnico. A filosofia de resistência à expansão mandinga presente na recolha que efectuei em Eticoga não se deve apenas ao acto belicoso da conquista. Houve e há um entrechocar de duas culturas que nas suas linhas fundamentais se opõem. A sociedade animista é horizontal e matrilinear enquanto a sociedade mandinga, islamizada, é vertical e patrilenear. Essa tensão ou conflictualidade surgiu quando da invasão mandinga que começou em 1303, empreeendida pelo sobrinho do imperador do Mali, Sundiata Abubacar II que se celebrizou pela tentativa de exploração do oceano Atlântico. Muitos vocábulos mandingas integram o crioulo como, por exemplo, Farim, quer dizer governador dentro da hierarquia imperial mandinga.

Sendo a língua crioula a da luta pela independência, de um modo geral os governantes e líderes políticos falam às populações em crioulo o que significa a sua opção pela mestiçagem cultural e pela coesão das etnias como fundamento da nação. Na nação mestiça e no crioulo é que repousa a paz e segurança.

Durante a luta de libertação havia aquele momento em que nos era possível vislumbrar nalguns homens a pureza dos ideais como se a alma até então oprimida se achasse aliviada e a respirar. Nos países pobres, em que a luta pela afirmação da dignidade humana é tão vital ,todos vivem perigosamente. Esta é a raíz da tragédia. Para nós não tem sentido estas lutas em que morrem milhares de homens porque há grupos que se agigantam na sua reivindicação de humanidade e de justiça e nessa afirmação, nessa luta pela história arrastam consigo milhares de vidas humanas. Mas quantas mais não morreriam e não morrem em lutas calmas e silenciosas que anunciam que todo o sentido se perdeu. Fazer arrastar lutas como esta faz parte do crime, do monstruoso crime da desorientação do objectivo, da perda do sentido inicial da luta. Até se chegar à morte lenta, até se chegar ao fim. Hoje há uma propensão para a desistência, pior, para a renúncia em participar em actos cívicos na medida em que se sente que se está a participar em algo que está sistematicamente distorcido e desviado do seu sentido inicial o que torna qualquer melhoria inatingível.

Em Julho de 1975 quase toda a redacção do Jornal Nô Pintcha foi mobilizada para as festas e cerimónia da proclamação a 5 de Julho da independência de Cabo Verde. O então ministro da Informação Manuel dos Santos, com base na teoria de Amilcar Cabral, de que “a cultura deve ser utilizada como instrumento de libertação nacional”, enviou-me a Bubaque para acompanhar o comissário e simultaneamente abordar as lendas e mitos bijagós. Para o comissário político, a expedição tinha como objectivo restabelecer contacto com oos povos dos Bijagós levando-me como prova de que a guerra chegara ao fim. O PAIGC pretendia iniciar o processo civilizatório aglutinando lentamente culturas e línguas muito antigas cujo processo de fusão fora durante cerca de 500 anos interrompido.Dentro desse âmbito eu poderia efectuar uma recolha .

Deslumbrada, eu chegar à praia as gentes das ilhas. Vinham em pirogas muito frágeis carregando bois, frutos, cachos de bananas e de dendém. Altivos , altos e fortes, semi-nus, penteados de tranças, pareciam transportados de um mundo mítico de auroras para uma praia do tempo, para a praia do último quarto do século XX.A sua entrada no meu campo de percepção abalava as dimensões do meu mundo. A obtenção da licença para visitarmos a aldeia de Eticoga demorou-nos em Bubaque 2 semanas. Na primeira semana aventurámo-nos a chegar lá mas a meio do percurso o barco parou devido a uma avaria pelo que passámos a noite no mar , olhando as estrelas e ouvindo as canções que o soldado que era a minha segurança pessoal , entoava à medida que a noite nos encerrava no seu manto de treva e o brilho das estrelas vacilava sobre as nossas cabeças. O espaço era estreito e partilhado com o jornalista estagiário do No Pintcha, o comissário Armando que ia falar no comício, e eu. Segurando-se na arma como a uma estaca, o soldado, manjaco, moço esbelto e desinibido cantava o seu canto de chamamento o Tchilá tchitchilá e canções ao Jaco, o pássaro totem do seu povo. O estagiário era um moço que saía pela primeira vez de Bissau, a sua terra natal. O comissário Armando oriundo do interior da Guiné, fora enviado pelo PAIGC, ainda adolescente, para Moscovo para estudar ciências políticas.Ao outro dia, avisado pelos pescadores, a lancha do dono da Pousada, sabendo que eu ia a bordo, mandou a sua lancha buscar-nos. Uma segunda tentativa teve o mesmo resultado mas como partimos de manhã muito cedo regressámos antes do anoitecer a Bubaque.O comissário Armando acreditou então que , como fora avisado pelo emissário por ele enviado a Eticoga, que sem permissão da comunidade de Eticoga não iriamos chegar lá devido aos poderes dos antepassados da aldeia, seus guardiães.

O PAIGC tentava nas Ilhas a reconstrução de um diálogo entre o partido no governo e o povo bijagó.O percurso até à aldeia foi percorrido com lentidão para me não cansarem nessa caminhada sob o calor do sol abrasador.O caminho pelo bosque é regular,batido a peso dos passos dos que saiem da aldeia para o litoral onde têm as canoas de pesca Naquela longa marcha da praia até à aldeia eu atrasava-me e a cada passo os meus companheiros esperavam-me mais adiante, sentados à sombra de uma árvore e limpando o suor do rosto. Só o soldado que tinha por missão guardar as minhas costas, parava cansado da minha lentidão na marcha. Recordei que nas zonas libertadas onde eu tinha estado no ano anterior , eu embora indo num grupo liderado por uma guerrilheira andava à solta excepto quando saídos de Candjambari nos internamos na mata seguindo um trilho que bordejava uma vasta zona minada à volta da grande aldeia libertada de Morés.

Naquele momento da sua história ,os guineenses tinham avançado no tempo devido à guerra. As tradições pareciam desvanecer-se ou alterar-se e eu perguntava-me que povo iria sair daquela guerra, com que qualidades novas e com que defeitos antigos.

Chegámos à tardinha a Eticoga. Deram-nos limonada e ao jantar, frango guisado com arroz e leite dormido com mel , uma espécie de iogurte. As casas da aldeia tinha cada uma grandes terrenos à volta muito limpos e bem varridos.Para mim tinham construído uma cabana e dentro dela um estrado de cerca de dois palmos de altura coberto de folhas de milho tapadas com um pano. O comissário tinha trazido um mosquiteiro que foi pendurado ao tecto. A um dos cantos havia uma estaca em forquilha espetado no chão que servia de cabide e um estradinho pequeno para banco.

Logo pela manhã foi o comício debaixo de uma mangueira, a árvore das palavras da tradição africana, situada no centro da aldeia.Nenhum de nós conhecia a língua mas estava connosco, como intérprete, um cabo-verdiano , um antigo funcionário da administração que vivia ali há muitos anos e que falava bem o português.O comissário dirigiu-se ao povo que ali estava em peso , dizendo que a guerra acabara, que o PAIGC iria cuidar deles como pai estremoso pois por eles lutara e por eles muitos haviam dado o seu sangue e a sua vida. Quando acabou perguntou se queriam algo do pai PAIGC. Eles gritaram em uníssono:Armas, armas. Fez dó o espanto na cara do comissário que ripostou perguntando para que queriam eles as armas, eles que não tinham lutado contra os portugueses, queriam agora armas para lutarem contra os seus irmãos do PAIGC? Que Portugal não estava zangado e a prova estava na presença amiga de uma portuguesa que queria conhecer as histórias que as mães velhas guardavam para as gerações futuras e que eles iam guardar nos gravadores assim que as mães se dispusessem.Seguiu-se um longo silencio depois do que eles se puseram falando uns com os outros a ponto do comissário se sentar pacientemente até a conversa entre eles acabar. Os Bijagós não possuem uma autoridade central pelo que é o grupo parental que detém o poder judiciário e este grupo confronta os outros. A solidariedade do grupo é a lei que tem acima de tudo em conta não uma justiça abstracta mas a preservação da segurança do grupo daí o seu interesse pelas vítimas não vingadas com o intuito de travar a vingança através de uma reconciliação.A ideia de justiça está no princípio da reciprocidade e compete ao ofendido ousar e querer a vingança.Finalmente, o comissário fez sinal para que se calassem e voltou a perguntar a que conclusão haviam chegado e que resposta tinham para a sua pergunta. Então eles responderam que as armas eram para afastarem os hipopótamos que lhes devastavam os arrozais.Na verdade o que sucedia era uma espécie de jogo feito para descobrirem o que lhes reservavam as novas autoridades. Eles estudavam a forma como a nova autoridade se comportaria em relação a eles tentando assim a definição de posições de poder pois a vida, também ali deseja deixar expandir a sua força. Os povos do arquipélago , inseridos na roda do mundo, ensaiavam uma definição da sua situação face ao poder.E a reciprocidade, quanto a eles, só se verificaria se os armassem porque os antigos administradores impunham-se pela autoridade das armas.Só sentiriam como sendo seu o novo poder se, enquanto grupo, pudessem ter a autoridade que a arma confere. Isto era ambíguo, era como se dissessem que só haveria paz quando houvesse armas iguais. No arquipélado dos Bijagós há muitas doenças do foro oftalmológico e, nas aldeias mais interiores quase ninguém possui dois olhos sãos quando não é inteiramente cego.

Eu aguardava com ansiedade o momento em que essas matriarcas me abrissem o grande livro da memória. Gravei a narrativa de três velhas na tabanca de Eticoga na ilha de Orangozinho. O tema foi escolhido pela mais velha que me recebeu depois de um longo cerimonial na casa dos antepassados da aldeia. Vestia um saiote e cobria-se com uma manta de tara. Era a pessoa mais respeitada da aldeia. A segunda mulher nascera em Orango Grande mas fixara-se há longos anos nesta aldeia. A terceira estava de visita e viera da tabanca de Acanhô. A aldeia de Eticoga fica a 7 km da praia. Orangozinho não tem escola, nem posto sanitário nem encarregado de posto desde a administração colonial. A narrativa é complexa porque se reporta a factos históricos de diferentes épocas que foram passando de geração em geração através da tradição oral. O sofrimento do povo é o que a memória do povo regista e passa através dos séculos. Elas, as contadoras são a palavra, o passado contido no presente e o presente que é futuro do passado.

Os Bijagós falam o Kamona, o Kagbaasga, o Kajoko, línguas da Família Niger-Congo,Grupo atlântico, Sub-grupo Bijagó. A recolha foi traduzida por três tradutores da língua bijagó para o crioulo e do crioulo para o português. A recolha tal como foi feita foi entregue no Nô Pintcha e de uma cópia é que foi trabalhada literáriamente até lhe ser dada a forma poética.

Partimos de Orangozinho contentes pois os seus habitantes tinham-se revelado gente paciente e desejosa de nos contentar. Ao despedir-me deixei lá o pijama, os sapatos e tudo o que levava na minha bagagem incluindo a mala e os livros.Uma semana depois retribuiram mandando-me frangos, ovos , peixe e bananas.

Eu havia elegido a Humanidade como sujeito universal e percebendo que aquela gente sabia de si própria mais do que eu havia julgado apesar da interferência secular do homem branco, eu perguntava-me que parte me reservavam eles na sua mente e no seu coração. Mas compreendi que a resposta não poderia ser individual, a resposta teria de ser colectiva e a partir do momento em que eles tomassem posse da parte que lhes caberia na economia mundo.

Na Guiné tive o raro privilégio para um mortal de assistir ao meu próprio velório entre danças e cantos, numa noite de um claro luar que eu não gozei porque dormia aquilo que se pensava ser o sono da morte. Quando as populações de Bubaque e de Orangozinho souberam que eu tinha sido picada na praia por um animal que os baboleros chamados ao posto médico não tinham sido capazes de identificar, acorreram à pousada e instalaram-se no largo defronte do meu bangalô. Devido à chuva não era possível trazer até ali um avião e o posto não possuía soro anti-ofídico. Convencidos do meu envenenamento, para não sofrer enganaram-me dando-me em vez da vacina , uma injecção que me fizesse dormir profundamente.E foi o que aconteceu. Ao outro dia de manhã muito cedo, quando acordei, embora com a perna inchada, abri a porta do bangalô. Ouvi então um imenso Ah e algumas vozes gritando: está viva! Enxerguei a multidão que se pusera de pé, as máscaras do boi poisadas no chão e um bezerro amarrado ao tronco de uma árvore. Soube que se tinham cotizado para a compra do bezerro que iriam comer nos ritos do meu funeral . Pouco depois já se discutia o que fazer do bezerro. A carência permanente de carne devido a uma dieta essencialmente vegetariana e tendo como base o arroz, leva a que as cerimónias e em especial os velórios sejam uma ocasião preciosa para o restabelecimento das energias.Então, incomodada por os ter decepcionado, pela indelicadeza de não estar morta, resolvi que o bezerro pagá-lo-ia eu para celebrar o facto de estar viva, junto deles e que a festa podia começar. A partir desta experiência, deixei de pensar no meu velório póstumo, deixei de pensar onde seria bom morrer para pensar onde seria bom viver.

Joana Ruas
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Notas de CV:

Na foto: Joana Ruas lê a sua palestra na 8ª Bienal.
Com a devida vénia ao site Triplo V

Vd. último poste da série de 6 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8741: Notas de leitura (271): Contra-Inssureição em África, 1961-1974, O modo português de fazer a guerra, de John P. Cann (Mário Beja Santos)