domingo, 29 de julho de 2012

Guiné 63/74 - P10206: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (7): Um casal estranho



1. Em mensagem do dia 27 de Julho de 2012, o nosso camarada António José Pereira da Costa (Coronel de Art.ª Reformado, ex-Alferes de Art.ª na CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69 e ex-Capitão de Art.ª e CMDT da CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, 1972/74), enviou-nos esta história, no mínimo hilariante, para a sua série "A Minha Guerra a Petróleo":




A Minha Guerra a Petróleo (7)

Um Casal Estranho

Naquele tempo, mesmo no pior dos “buracos” surgiam sempre motivos para rir. É sempre assim. Nas situações mais difíceis, basta estarem dois homens juntos a tentar atingir um mesmo fim, para que as situações de humor surjam, ainda que por momentos fugazes. E ainda mais se os homens forem jovens. A história que vou contar é insólita, pode parecer fantasia, mas é verdadeira e só falharei num ou noutro pormenor de que já não me recordo.

Entrada do Quartel do Xime.
A devida vénia a CART 3494 & Camaradas da Guiné

O Xime era um quartel com fracas instalações que tinha, “acoplada” a nascente, uma pequena tabanca muito pobre, onde a população vivia nem eu sei bem de quê. Para lá dos espaldões dos três obuses 10,5 cm, dispostos em linha e apontados a Sul, e do último abrigo, surgia a terra-de-ninguém, atravessada longitudinalmente pelo que restava da estrada para a Ponta Varela e Ponta do Inglês.

Uma manhã, o furriel P., comandante de uma das secções de artilharia, procurou-me com ar muito grave, dizendo que “peguecisava falague-me”. Era um rapazito do Porto, educado, provavelmente de boas famílias e que falava acentuando os “egues”. Quando lhe perguntei ao que vinha respondeu-me que pretendia “mandague vigue a minha esposa”. Perguntei-lhe para onde é que quereria trazê-la e, como me respondesse que era para o próprio Xime, fiquei sem ar. Tentei recordar-lhe que ali não tínhamos qualquer espécie de comodidade para lhe proporcionar. Não podendo habitar no aquartelamento, até por falta de espaço e de todas as outras comodidades mínimas, só restava a tabanca. Aí, não sei como seria. Não havendo casas ou partes de casa para alugar, só lhe restava construir uma morança igual às que já existiam, mas não creio que esta fosse uma saída possível.

O rapaz estava mesmo numa situação difícil com a “esposa a fazegue peguessão pâga vigue” e sem ter local para a instalar. Não se vislumbrava uma solução. Poderia vir e ficar em Bafatá e aí eu não tinha nada contra, considerando que na cidade havia três pensões, com a qualidade mínima para a receber. Porém, a distância entre o Xime e Bafatá atingia as dezenas de quilómetros, o que o impossibilitava de manter um contacto frequente com a “esposa”. Expliquei-lhe também que, em caso de ataque ou flagelação do IN, ambos ficariam em sobressalto até cada um confirmar que o outro estava bem.

Fiz-lhe um apelo à condição masculina para que lhe explicasse que as senhoras não podem “fazegue peguessão pâga” e nós cedermos, tanto mais que não se tratava de satisfazer um capricho, mas de uma situação concrecta que poderia tornar-se muito delicada. Terminámos a conversa, ficando o furriel P. de resolver a situação através de uma carta explicativa.

Eu suspeitava de que o furriel tinha feito como um outro camarada meu fizera, em 1968. Embora estivéssemos no último quartel do Sul da Guiné, o João descrevia à sua Cármen tudo como se nada tivéssemos para fazer. Além disso, o local era agradável – e era-o, de facto – e a unidade de milícia “é que desempenhava toda a actividade operacional” sob controlo do João. Este era o único ponto verdadeiro da descrição. Enfim, vivíamos no melhor dos mundos, comíamos ostras (muitas e boas), bebíamos sumo de laranja natural, os mangos e cajus eram de excelente qualidade e, às vezes, tínhamos boas refeições caça. Também conseguíamos peixe, através do pescador senegalês – o Turé, que falava francês e até comia pelicano assado – que abastecia Cacine, a meias com um português. O peixe podia ser “poisson de segunda”, se fosse tainha, ou “poisson de primeira”, se fosse qualquer outro peixe. Tudo isto era verdade, mas não era suficiente para que o quadro fosse bucólico e de tranquilo tinha pouco. E a Cármen acreditou, como eu vi, alguns anos depois, quando o João ma apresentou.

Agora não era assim e, uns dias mais tarde, o Furriel P. procurou-me para me dizer que a sua esposa continuava a pressioná-lo para que a deixasse vir para a Guiné. Que sim, que já lhe escrevera a tal carta, mas ela até ameaçava que um dia aparecia-lhe no quartel, sem avisar. Esforcei-me por dissuadi-lo de colaborar em semelhante loucura, mas não contei com uma intervenção do Alferes Gomes, meu ex-colega de liceu, embora mais novo, e agora sempre decido a resolver tudo bem e depressa. Tendo presenciado a nossa conversa, gritou-lhe:
- Olha, pá! Se ela aqui aparecer, sem avisar, tu enfias-lhe um murro na tromba que ela fica enterrada no tarrafo até aos ovários. E agora, vai lá escrever a carta e conta-lhe a verdade, para ela ficar a saber porque é que não pode vir para aqui.

A resposta do furriel foi espantosamente inverosímil:
- Só se o meu “alfegues esqueguevegue”

Achei que a conversa estava a passar das marcas e despedi o furriel. Afinal, estávamos na hora de almoço e as batatas cozidas que acompanhavam o atum de lata estavam a esfriar.

Alguns dias depois fui, mais uma vez, contactado pelo furriel P.. A “esposa” estava para chegar e ele pretendia trazê-la para uma das pensões de Bafatá. Combinei com o comandante do pelotão de Artilharia uma ida a Bissau “para tratar de assuntos do pelotão” e ele seguiu, com a indicação de que, na segunda-feira seguinte, deveria estar no Xime. Ia haver mais um passeio à Ponta Varela e imediações e eu queria ter a artilharia bem guarnecida e pronta para colaborar nas festividades, se necessário. Porém, no domingo, o furriel P. não apareceu. Lá fomos ao passeio e, dessa vez, as festividades ficaram-se por mais uma estafa, algumas horas de sede e muito tempo de atenção difusa.

À chegada, o furriel esperava-me com uma carta do capitão comandante do E.Rec de Bafatá em que este assumia a responsabilidade da falta, por o ter aconselhado a ficar mais um dia e assim poder aproveitar um reconhecimento que o esquadrão ia fazer para os meus lados para se apresentar. Portanto, desculpei e tudo ficou bem por ter acabado bem.

A partir daqui, tudo se passou num galope de acontecimentos. Dois dias depois conheci a esposa do furriel. Foi transportada ao Xime por um comerciante e madeireiro, estabelecido em Bafatá, que vinha ao cais despachar algumas toneladas de madeira, conduzindo o seu Mini 1275 GT. Além dela, trazia mais duas senhoras mais velhas: a sua própria esposa e uma amiga desta.

 Xime > Messe de Oficiais

Recebi-os naquilo a que se tinha convencionado chamar Messe de Oficiais, conversámos um pouco e eu admirei-me da coragem da jovem Celeste, que atravessava o quartel com uma mini-saia bastante diminuta. Feito o embarque, o “bólide” regressou, velocíssimo, a Bafatá com os seus ocupantes. E chegámos ao domingo decisivo. Nos dois domingos anteriores eu tinha sido acordado por helicópteros que demandavam o Xime. No primeiro, os fuzileiros tinham desencadeado uma acção na Ponta Varela, sem colaboração das forças terrestres e queriam apoio de héli, negligenciando o de artilharia. No segundo domingo – o imediatamente anterior – o brigadeiro adjunto-operacional tinha vindo entregar-me um alferes que me faltava no efectivo da companhia. O helicóptero não solicitado ou previsto era habitualmente uma visita do General, com a correspondente inspecção e perguntas “de algibeira”. Eu tinha, portanto, sofrido dois falsos alarmes. Por isso, naquele domingo, revoltei-me e resolvi dar-me uma meia-manhã de descanso. Subitamente, batem-me à janela da rulote. Era o Dias do bar desorientadíssimo a gritar:
- Meu capitão! O gajo deu um tiro! O gajo deu um tiro!

Xime > Messe de Oficiais > Em primeiro plano o Cap Art.ª Pereira da Costa. À sua direita o Alf  Mil Pereira 

Imaginei o pior. Um suicídio, um acidente de tiro ou um ataque de loucura. Pensei que iria encontrar alguém gravemente ferido, agonizante, talvez morto. Visualizei, em poucos minutos, algumas situações aflitivas, mas, ao sair da “messe”, dei de caras com a “esposa” e, um pouco mais à frente, duas Chaimites estacionadas com as tripulações, descansando calmamente à sombra dos mangueiros. Tudo tinha sucedido no abrigo da artilharia. Ao entrar, vi o furriel P. de pé, arfando, mas não parecia ferido. O Mendes Pinto – furriel mecânico – sentado numa mala procurava acalmar o “artilheiro”. Quando procurei saber o que sucedera este respondeu:
- Capitão fui cobáguede!

Vi então o que sucedera. Com uma G3, tinha procurado dar um tiro em si próprio, mas, por falta de jeito ou de convicção, acabara dando um tiro para o ar. Nessa altura, uma voz feminina atrás de mim indagou:
- Morreu?

Era demais. Saí, dirigi-me ao alferes que comandava a coluna do E.Rec e disse-lhe secamente, mas em voz baixa:
- Desaparece e leva isto daqui para fora!

Isto, como se calcula, era a inquiridora acerca do estado de morte do furriel P.. Enquanto as Chaimites arrancavam, regressei à messe. Aquilo, de comédia tinha pouco, mas poderia ter resultado numa tragédia e, se assim tivesse sido, nada haveria que a revertesse. Alguém, que não tinha que fazer, vinha perturbar o meu pouco sossego conseguido a custo, depois de ter sido aconselhada a deixar-se ficar na “Ímbiqueta” quieta e calada, fazendo a vida que mais lhe aprouvesse. Graças a Deus, o promitente suicida tivera falta de coragem. Senão…

Que fazer agora? Tínhamos marcado para esse dia uma “Ranchada”, em Bafatá e eu resolvi que não seria este incidente que nos iria tirar a possibilidade de melhorar a nossa alimentação. Creio que o restaurante era a “A Transmontana” e, pela sua situação privilegiada, podíamos deixar as armas em cima das viaturas, enquanto comíamos. Organizei um patrulhamento auto, e seguimos até Bafatá. Quando íamos a sair, o furriel P. quis falar comigo. “Queguia igue também a Bafatá pâga tegatágue da sua vida”.

A contragosto deixei-o ir. À chegada, separou-se de nós e só mais tarde eu soube para onde foi. Almoçámos com calma, tomámos o digestivo, descansámos e, na hora de regressar, comecei a constituir a coluna. Nessa altura, o P. surgiu e disse, mais uma vez, que “peguecisava falague-me”. Como é de calcular, eu não estava com disposição para grandes conversas com ele e respondi:
- O que é que foi agora?
- Tenho pegublema. A minha esposa não tem onde duguemigue.

Não entendi logo o que se passava. Lembrei-lhe o que tínhamos combinado e que ele seguia connosco e ela ficaria na pensão onde estava hospedada.
- O pegublema é que a minha esposa teve um fegaquesa!

Imaginei um problema súbito de saúde. Uma quebra de tensão ou algo similar e indiquei-lhe o caminho para o comando do batalhão onde, provavelmente, o médico poderia ver o que passava. Mas não fora nada disso. Tinha tido uma fraqueza, sim, mas com um alferes da Cavalaria. Ao saber da desgraça, o marido manifestou a sua ira. Tinham discutido e ele até lhe tinha dado “dois tabefes”. Claro que, em face deste panorama de traição e violência doméstica, o dono da pensão tinha entendido que o melhor era pagarem a conta e, por consequência…

Lembrei-me, então, do dono do 1275 GT que também tinha uma pensão e a uma escola de condução, onde a malta da companhia obtinha as suas cartas com alguma facilidade, e fui-lhe pedir que recebesse a “jovem saneada”, ao menos por alguns dias. Parecia-me que a situação estava insustentável e que a retirada para a Metrópole era dado adquirido. A resposta foi esclarecedora:
- Depois duma “barraca" destas, se eu fizesse isso, a “Patroa” matava-me…

O tempo impunha que regressássemos ao Xime e não valeria a pena consultar a terceira pensão, considerando as proporções do escândalo. Como dizia o meu professor de História da AM “o que preciso é dar um tiro para qualquer lado, só assim teremos algo para corrigir”. Resolvi “dar o tiro” e sentei a senhora no lugar do chefe de viatura dum Unimog 404. Rumámos ao Xime, sem passarmos por Bambadinca, não fosse o comandante do batalhão ser “informado” de que algo de estranho se passava…

No Xime havia festa. Tinha nascido a filhota de um dos furriéis e estava a organizar-se a correspondente refeição oferecida pelo feliz progenitor, seguida de fados e outras cantorias que a inspiração ditasse. A minha dúvida era agora saber onde o jovem casal desavindo iria pernoitar. Por prudência, resolvi afastá-lo da celebração que se desenhava. Não podia correr o risco de que algum conviva mais animado tecesse algum comentário despropositado ou criasse qualquer outra situação desagradável. Por isso cedi-lhes o terreiro central da nossa messe. Era uma área rectangular, cimentada, em cujos cantos haviam sido colocadas quatro rulotes, os nossos quartos. No centro, um alto tronco de palmeira cravado a pino, suportava o telhado de capim. Entre duas rulotes “funcionava” um bar. No open-space (como hoje diríamos) assim constituído, tínhamos o nosso living-room e a área de refeição. No living, umas cadeiras de palha e uma baixa mesa de madeira. Uma outra mesa, cujo tampo nunca vi, pois tinha uma grande toalha de plástico permanentemente colocada, e umas cadeiras era onde tomávamos as nossas refeições. Do tecto pendia um candelabro, suspenso por uma corrente de ferro, com três garrafas de brandy, sem fundo, disfarçadas de abat-jours. Além disso tínhamos um tabuleiro de xadrez/damas apoiado em quatro pés, a utilizar nas correspondentes práticas desportivas. Foi justamente sobre esta infraestrutura desportiva que mandei pôr a mesa onde o casal iria jantar em tête-à-tête. Mas o pior seria arranjar um sítio onde pudessem dormir. Estava, obviamente, fora de questão que ficassem no abrigo da artilharia, onde o furriel dormia. O Mendes Pinto poderia ser a solução. Tive de usar toda a minha habilidade para o convencer a ceder o seu pequeno quarto no meio dos bidons, restos de viaturas e produtos indênticos. Era exíguo, mas garantia uma certa privacidade.

E foi assim que o casal teve um jantar a dois e uma noite de descanso. Julgo eu…

No dia seguinte, havia mais um passeio à Ponta Varela, o que invalidava a possibilidade de se fazer outra coluna a Bafatá para colocar a Celeste num avião a caminho de Bissau. No regresso do passeio eu tinha a solução. Era necessário tirar a jovem do Xime. A sua presença poderia dar aso a comentários, piropos ou algo pior do que isso tudo. Por isso, chamei o P. e intimei-o a tirá-la dali. Para tal, iria de novo a Bissau, agora por sua conta e risco, fazendo a viagem de avião, a expensas suas e devidamente acompanhado. Depois, a jovem seguiria para Lisboa, nem que fosse a nado, e ele regressaria às suas funções habituais. Tudo teria de ser resolvido num curtíssimo intervalo de tempo. Essa era a minha imposição.

Em dois dias o casal partiu para Bissau e eu fiquei com o coração nas mãos acerca do que o furriel faria em Bissau, numa situação de total ilegalidade. Os dois ficaríamos mal se se descobrisse que andava por ali um jovem casal, cujo marido deveria estar no interior a cumprir as suas tarefas operacionais.

Enfim, ao fim de uma semana, tive o grato prazer de ter o efectivo da artilharia completo. Procurei esquecer o sucedido e rezei para que o assunto não fosse muito divulgado.

Alguns dias depois, fui abordado pelo alferes Viegas da artilharia, queixando-se de que o P. não queria lavar o obus. Quando me preparava para o mandar dar uma volta ao pelotão, em bicicleta, surge o cabo enfermeiro a gritar:
- O gajo matou-se! O gajo matou-se!

Não vi logo quem era o gajo, mas a pior das hipóteses confirmou-se. O furriel P. apanhara um frasco de Valium 10, embalagem hospitalar, e tomara “n” comprimidos. O cabo enfermeiro esclareceu-me de que o frasco tinha cem comprimidos, dos quais ele já tinha dispensado talvez uns vinte. No fundo do frasco rolavam pouco mais de vinte comprimidos. Conclusão: cerca de sessenta comprimidos iam começar a circular no sistema nervoso do furriel.

Colocámo-lo numa maca e num Unimog que eu próprio conduzi, levei-o a Bambadinca. Dois maqueiros amparavam a maca e eu dei a velocidade de que o carro era capaz. Em Bambadinca, o médico, já avisado da nossa chegada perguntou qual era o problema. Quando lhe descrevi a situação, ele colocou o sinistrado numa posição cientificamente adequada e, metendo-lhe dois dedos na boca, provocou o vómito. Um jackpot de líquido e comprimidos azulados saiu a rolar da boca.

O médico ficou fiel depositário do sinistrado e eu regressei ao Xime. Tive informação de que dormiu praticamente durante três dias. Depois, entrou num período de recuperação e acabou por regressar à sua secção de 10,5 cm.

Entretanto, fui chamado ao meu comandante de batalhão que queria saber o que se passara. Contei muito resumidamente e confirmei que a Sr.ª D. Celeste P. já estava fora do “TO daquela PU”. Tranquilizado o meu superior hierárquico, tudo poderia ter voltado à normalidade se a respectiva esposa não se tivesse lembrado de intervir no desenrolar da acção. Era uma senhora muito participativa, que assumia o seu papel de “comandanta”, procurando influenciar os acontecimentos, exibindo, de quando em vez, os resultados positivos da comissão que ambos tinham feito em Angola. Não me lembro de ter existido um batalhão comandado “a duo” pelo comandante e esposa, mas eu também nunca estive em Angola… Alguns dias depois, encontrando em Bambadinca dois alferes do E.Rec., a boa senhora resolveu fazer uso de toda a sua persuasão, perguntando-lhes frontalmente qual dos dois dormira com a “mulher do furriel”. Colheu como resposta uma boa dose de silêncio e um sorriso amarelo.

O meu alferes Correia, que viera no mesmo helicóptero que brigadeiro adjunto-operacional, era ex-aluno do Colégio Militar, tal como um dos alferes do E.Rec.. Ao abrigo de uma camaradagem colegial e de um código de deontológico que não conheço, resolveu ir “pregar uma rabecada” no atrevido que dera uma tão larga colaboração para a “fraqueza” que vitimara a Celeste. A resposta foi desconcertante. Tudo tinha começado logo após a partida do furriel P. para o Xime. Ao jantar, na pensão, os dois alferes da cavalaria estavam presentes por terem também um quarto alugado. Era realmente uma situação insólita, mas tinha explicação. Ao que parece, a messe do esquadrão era pequena e o capitão estava também empenhado em tarefas bélico-sexuais. Para ter uma certa liberdade de acção “convidara” os dois alferes a passar um fim-de-semana fora.

Ao vê-los, a Celeste deu-se à conversa e, em breve, um bom contacto estava estabelecido. A conversa progrediu, aumentando de interesse por ter resvalado para terrenos movediços. A disponibilidade da jovem atingiu níveis inauditos, quando informou que estava grávida e, por isso “não haveria problema”. O Correia ia-se inteirando dos pormenores, mas apesar de tudo, continuou a censurar os alferes por se terem aproveitado da mulher de um camarada que estava longe e, mais ainda, num ambiente tão restrito e onde se incluíam tantos militares.

Mas, o pior (ou o melhor) estava para vir, quando a Celeste optou ou correspondeu ao assédio de apenas um dos alferes. Nessa conformidade, o outro teve de ir ver Bafatá by night, enquanto o casal que acabava de se constituir “se recolhia”. Cerca da meia-noite e cansado do intenso movimento da Night de Bafatá, dirigiu-se ao quarto que também era seu, já que o alugara a meias com beneficiado. Bateu à porta e foi recebido por este que o mandou entrar. De fonte segura, sabe-se que o quarto tinha duas camas. Só as paredes terão presenciado e poderiam descrever o que sucedeu, mas as paredes não falam. Por consequência, mais do que isso, o Correia não soube. Verdadeiramente abismado com estas revelações, não se sentiu à vontade para continuar a censurar os “prevaricadores”. No fundo, tudo se tinha passado como a natureza manda e o calor local propicia.

Imediatamente após aquela noite, foi organizada a coluna ao Xime que permitiu que o P. ouvisse a confissão terrível, que deu lugar ao tiro para o ar e ao susto que eu apanhei.

A cena do Valium 10 não teve, a curto prazo, mais consequências para além de uma certa letargia que determinou o comportamento do furriel P. durante uns dias. Julgo que se ofereceu para um Pel. Art. que iria para o Cantanhez, cuja ofensiva estava a decorrer, mas segundo me disseram, o oferecimento não foi aceite.

Nunca mais tive notícias do casal desavindo, devido à acção da Natureza e à “força do calor”. O alferes Correia saiu, pouco tempo depois, para uma Africana (companhia de caçadores africanos), como se dizia então, e eu perdi-lhe o rasto. O E.Rec. nunca mais patrulhou o itinerário até ao Xime, talvez porque o In tivesse deixado de andar por ali…

Esta foi uma aventura que, por variadas causas, poderia ter terminado muito mal. Como assim não foi, alimentou as nossas conversas durante algum tempo, entre censuras à Sr.ª D. Celeste P. e a hilaridade inerente à revisão da sequência de todas aquelas situações dignas de uma ópera-bufa.
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Nota de CV:

Vd. poste anterior da série de 5 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8507: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (6): Ai que me doi tanto!... ou o drama dos especialistas de minas e armadilhas - II Parte

Guiné 63/74 – P10205: Convívios (460): Almoço comemorativo dos 38 anos do regresso das 2ª e 3ª CART do BART 6523, no próximo dia 8 de Setembro, Braga (António Barbosa)


1.   O nosso Camarada António Barbosa (ex-Alf Mil Op Esp/RANGER do 1º Pelotão da 2.ª CART do BART 6523, Cabuca, 1973/74, solicita-nos a divulgação do próximo convívio da sua companhia.

 Almoço comemorativo dos 38 anos do regresso das 2ª e 3ª CCART do BART 6523 
8 de Setembro de 2012
Braga

Camaradas,

Solicito a publicação do programa do próximo Almoço Comemorativo do regresso a casa das 2ª e 3ª CART do BART 6523/73.


O meu obrigado
Cumprimentos
António Barbosa
Alf Mil Op Esp/RANGER do 1º Pel da 2ª CART/BART 6523,
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em: 


Guiné 63/74 - P10204: Blogpoesia (194): Lá longe a Pátria e Quando o Estado morrer (José Manuel M. Dinis)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis* (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 27 de Julho de 2012:

Carlos, meu bom amigo,
Provavelmente já sentias saudades das minhas missivas, mas vais ter que me desculpar a inoperância, que fica a dever-se a um misto de falta de inspiração e preguiça, acentuado pelos calores austrais que nos invadem por esta ocasião. Só apetece, é ir p'rá bolanha.
No entanto, em resultado de uma sombria arrumação, descobri uns pretensos poemas escritos, ou associados à Guiné, coisas do século passado, e com duvidoso valor artístico. Seja como for, aqui vai a reprodução de duas dessas obras, com o pedido antecipado de desculpas, tendo em conta os excelentes momentos de poesia que o Blogue nos tem oferecido, e a brevidade deste sacrifício.

Para ti e para o restante tabancal, vai um grande abraço.
JD


Lá longe a Pátria

A Pátria é bela, 
Sonhada. 

Cá longe, 
Onde os dias são anos, 
E a vida ganha-se taco-a-taco, 
tiro-a-tiro, 
que há fome e guerra, 
Sol sem pão, 
Oficiais, 
Sargentos... 
e praças, 
BUM 
BUM, BUM, 
Tensão! 
sai uma obusada, 
lágrimas e rezas, 
morteiros, 
Filhos da mãe! 
Depois passa: 
se calhar, há feridos, ou mais.

O momento é solene, 
o coraçao ainda bate com força, 
ou quase parou, 
é uma luta íntima. 
Raios me partam! 
Lá longe, a Pátria. 

Bajocunda, 1971

Nota do autor:
Poema dedicado ao Foxtrot, um Pelotão de rapazes bons, que só agora tem expressão pública, e a dois valorosos combatentes que foram feridos com gravidade, o Marcolino António Pestana e o Orlando Ferdinando Andrade.

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Quando o Estado morrer

Quando o Estado morrer, 
Vou ver o enterro, 
Numa cova muito funda, 
Os homens de pás e picaretas, 
Vestidos de tunica, 
Deitar terra castanha e preta. 

Depois de se rezar, 
O povo todo vai embora, 
Fica a viúva, coitada, 
Que ali deixa um tacho com flores, 
À espera de um novo Estado, 
Para ser violada.

Este Estado, 
só tem um estado, 
Que é um estado de Estado...
Desastrado.

Bajocunda, 1971
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 20 de Junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10053: História da CCAÇ 2679 (51): Uma dívida por pagar (José Manuel M. Dinis)

Vd.- último poste da série de 19 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10168: Blogpoesia (193): Deste-me asas para voar... (Joaquim Mexia Alves)

sábado, 28 de julho de 2012

Guiné 63/74 - P10203: (In)citações (42): Bombeiro ou Militar, há que optar (José Martins)

 
1. Mensagem do nosso camarada José Marcelino Martins* (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), com data de 24 de Julho de 2012:

Boa noite
Hoje resolvi antecipar um texto, cujo tema estava agendado para o inicio de Setembro mas, dada a sua "actualidade" iniciei-o logo a seguir ao jantar, e aqui vai para a vossa apreciação.
Não encarem o texto como critica ou provocação. Provocação é não haver hoje, como havia há 50 anos, aceiros e corta-fogos nas nossa matas.
José Martins


BOMBEIRO ou MILITAR? 
Há que optar!

Pelos ecrãs das televisões, altifalantes de rádios e pelos títulos dos jornais nos escaparates, apercebemo-nos da fase de incêndios que, desde há muitos anos por esta altura do ano, grassam por todo o país, portanto se

VEMOS, OUVIMOS e LEMOS, não podemos ignorar!

No meu ADN, não sei se já falei da mistura que nele existe, há uma parte de “militar”, esse já revelado, mas também existe uma parte de “bombeiro”.

Os meus primeiros anos de vida, passei-os entre carros de bombeiros e toques de sirenes.

O meu pai alistou-se após ter sido isento do serviço militar, na Corporação de Bombeiros Voluntários de Leiria, atingindo o posto de Chefe (de notar que as categorias de bombeiros à época, não correspondem às actuais). Depois a corporação passou a designar-se Bombeiros Municipais de Leiria, e o meu pai atingiu a categoria de Ajudante de Comando, categoria em que deixou de pertencer aos “Soldados da Paz”; o meu irmão João, o mais velho, também se alistou nos bombeiros de Leiria, após ter cumprido o seu serviço militar obrigatório; assim como um dos meus sobrinhos, o Fernando Miguel, alistou-se nos bombeiros de Avintes - Vila Nova de Gaia, ficando no serviço activo, até que um acidente de trabalho lhe ceifou a vida, aos 23 anos..

De notar que na época em que o meu pai e o meu irmão pertenceram aos bombeiros, muitos dos Comandantes das Corporações eram militares de carreira, normalmente Capitães ou Tenentes, que tentavam trazer a disciplina, organização e técnica para esta “profissão ou actividade”. Obviamente que nos Regimentos de Sapadores Bombeiros, que na altura só existiam em Lisboa e Porto, era obrigatório que o Comandante fosse um Oficial Superior do Exército – Coronel ou Tenente-Coronel – e da Arma de Engenharia.

Nos últimos dias, devido aos incêndios havidos na zona do Algarve e Madeira, ouvi dizer que se devia recorrer aos militares para reforçarem os elementos que se encontravam a combater os incêndios, não só nos locais já indicados, mas também noutros locais. Outras “vozes” sugerem que, sejam os militares a proceder à vigilância das matas, combinando patrulhamentos “tipo militar” com “actividade cívica”.

Em minha opinião e, conforme coloquei em título, há que optar se os soldados devem ser formados e treinados para missões de “guerra” ou de “paz”, mas paz no sentido de não guerra, e não as que são patrocinadas pela ONU e pagas pelos nossos impostos.

É que há erros que se pagam caros.

Em 1966, mais precisamente entre os dias 6 e 12 de Setembro, no decurso de um incêndio na Serra de Sintra, “alguém” se lembrou de mobilizar ao Regimento de Artilharia Antiaérea, aquartelado em Queluz, determinado número de militares para “colaborarem” no combate às chamas.

Em meu entender, nada de mais errado: Mobilizaram militares que, já mobilizados e treinados para operações de guerra, no então Ultramar, foram enviados para “uma frente de combate” para a qual não tinham qualquer preparação mas, como o rei manda marchar, o exército avança.

Até é provável que tenham sido deslocados para um local que conhecessem, por ter sido utilizado nos exercícios que, a todos os que estivemos em teatro de operações fomos adversos, mas que ao tomar contacto com a “realidade da guerra”, lamentámos não terem sido “alunos mais aplicados” perante as dificuldades encontradas.

Militares em acção na serra 

Resultado deste recurso: um grupo composto por 25 “miúdos” como nós, que dão início à missão que lhe foi cometida e, não se apercebem que num golpe de azar são envolvidos pelas chamas, vêm a encontrar a morte, carbonizados, na noite de 7 desse mês, no Monte do Monge.

São combatentes que morreram em combate, na Metrópole;
São combatentes que morrem, sem ter armas nas mãos;
São combatentes que partem, sem terem embarcado;
São combatentes que caem, em combate com a natureza.

Lápide em memória das 25 vítimas, no Alto do Monge 

No momento em que escrevo este texto, não sei a que unidade pertenceriam os militares tombados, nem qual o destino que seguiriam, caso tivessem acompanhado os seus camaradas de unidade na missão que lhes estava destinada, e para o qual tinham deixado a família, os amigos e a terra, para responderem ao chamamento da Pátria.

Este texto não era para ser escrito nestas circunstâncias, nem nesta data, pelo que será divulgado sem as informações que pretendia, mas as “sugestões e/ou comentários” que tenho ouvido levam-me a ser pressuroso, para alertar os comandos da Protecção Civil, quer nacional quer local, que colocar homens ou mulheres a cumprir missões que, por formação, não lhes estavam destinadas, podem não ser uma “boa solução”.

Porque o monumento referido se encontra em local de difícil acesso e, porque a sua memória não pode ser esquecida, aqui ficam o nome dos militares que tombaram em combate a um incêndio:

Aspirante a Oficial - Roalino Tavares;
Cabos - António Silva, Armando Lopes, Augusto Guimarães;
Soldados – João B. Ferreira, Manuel Silva, Rogério Ribeiro, António Rocha, Joaquim Rufino, Joaquim Horta, António Aleutério, Álvaro Silva, Amílcar Prata, Rogério Pinto, João Marques, Manuel Januário, António Cruz, Manuel Santos, Manuel Faria, Antero Teixeira, Ramiro Dias, José Negrão, João O. Ferreira, Damião Ramos, Pedro Rodrigues

José Marcelino Martins
24 de Julho de 2012

Outros sites a visitar:
Fogo e História
Serra de Sintra
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 19 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10173: Patronos e Padroeiros (José Martins) (35): São Lourenço de Brindisi, Frade, combatente e Santo

Vd. último poste da série de 22 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10178: (In)citações (41): Serpentes, feitiços e casamentos inter-étnicos... (Cherno Baldé)

Guiné 63/74 - P10202: Cartas do meu avô (15): Décima primeira (Parte III): a reforma, :a escrita, um ano em Perpigna, o regresso a Almada e à Caparica, e por fim... à justiça disse nada... (J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil, CCAÇ 728, Bissau, Cachil e Catió, 1964/66)

A. Continuação da publicação da série Cartas do meu avô, da autoria de J.L. Mendes Gomes, membro do nosso blogue, jurista, reformado da Caixa Geral de Depósitos, ex-Alf Mil da CART 728, que esteve na região de Tombali (Cachil e Catió) e em Bissau, nos anos de 1964/66. [, Foto à esquerda, com os netos]. As cartas, num total de 13, foram escritas em Berlim, onde vivem os netos, entre 5 de março e 5 de abril de 2012. (*)

B. Décima primeira carta - Parte III – Aposentação

Por fim, minha mulher tinha sido autorizada a vir para Lisboa. Estávamos a viver em Almada. Todos os dias tinha de vir trazê-la a Algés e levar o Luís ao colégio no Lumiar. E , ao final do dia, ir buscá-los. O calvário das bichas na ponte…

Os meus dias de aposentado passava-os em Almada. Quando regressava de Lisboa ia direito até ao paredão da Caparica.

Aí ficava grande parte da manhã a escrever e a ler, frente ao mar. Nas esplanadas daqueles bares muito bem erguidos em madeira. O “fofinho” e o vizinho, de um casal de retornados de Macau. Não me lembra o nome. Tudo desapareceu, naquele majestoso paredão, na voragem da novi-pseudo-urbanização urbana. Pérolas a porcos…

Enquanto não chegou a reforma de minha mulher. Foram os tempos mais radiosos da minha vida. Sem saber como, dei comigo a escrever…escrever…como nunca o sonhara.

A minha autobiografia desde a infância até ao fim da guerra; ensaiei romances; abalancei-me pela poesia; pelos contos e artigos para três jornais semanários. Foi uma doce e consoladora catarse às nuvens pardacentas do meu passado. Esconjurei os fantasmas todos, tenebrosos, do meu tempo de seminário…os da guerra e os da Caixa.

Lavei minha cabeça de toda a poeirada que nela entrara. Vivi livre…Se me apetecia, pegava no carro e aí ia eu, até Alcácer, até Évora, Setúbal , Sesimbra…Fui feliz. Cheguei a desejar que minha mulher se reformasse também…para continuarmos tudo aquilo a dois.

Inesperadamente, por força e efeito das mudanças de cadeiras na direcção do Instituto, surgiu a inefável hipótese de ir com minha mulher em sabática, durante um ano para Perpignan. Com um bom e suficiente subsídio…

Que experiência magnífica!...

Aí houve um total reencontro nosso. Ela, sozinha, nas suas investigações moleculares, com os recursos devidos, sem ninguém a chatear, produziu um trabalho excelente, inovador, eu, a giboiar pelas bordas azuis do mediterrâneo, desde Argelès até Colliure, ou a contemplar extasiado as níveas vertentes altíssimas dos Pirinéus…ditando poesia e as minhas narrativas sem parar, para o meu portátil, frente ao lago remançoso da Vile Neuve de la Raho…

Foi então que se assistiu no mundo ao maior atentado que se podia imaginar. As duas gémeas de Nova York foram derrubadas por um avião. Soubemos pelo rádio de França, quando regressava-mos ao hotel de Rivesaltes. Ali, ainda ninguém sabia. Pedi à recepcionista para abrir a TV.b Ficamos aterrorizados com o que estava a acontecer.


Daí em diante o mundo inteiro ficaria outro com toda a certeza. Sangramos de dor e horror. Quando fui para o quarto escrevi assim:

AS DUAS GÉMEAS …

É preciso, de imediato,
Lavrar a terra
E fazer renascer,
As duas gémeas,
No sítio exacto,
Onde tombaram.

É preciso reerguê-las,
A toda a pressa,
E repor, ao alto,
O valor americano,
A quem o mundo,
Apesar de tudo,
Muito deve,
No presente
E no passado.

É preciso que,
Doravante,
Todo o mundo
Se entenda,
Como gente,
Senão igual,
Como companheiros
De viagem,
Pelo universo…

Se enterre,
Para sempre,
Sem retorno
E bem à vista
Essa loucura,
Estúpida,
Armamentista…

Se queime e se estiole,
De verdade,
Toda a cultura
De semente
Que não dê pão
Ou força
À humanidade…

Que o país rico
Dê a mão,
Sem pedir preço,
Ao que nasceu pobre,
Ficou doente,
Ou não vai à escola…


E se não responda
À carnificina,
Com outra,
Igual,
Ou pior ainda…
...

Quem previu,
Algum dia,
Que o bastião americano
Fosse, tão vilmente,
Apunhalado?!…


Perpignan,
( restaurante-bar No Names)
14 de Setembro de 2001- 11h e 12m

Joaquim Luís Monteiro Mendes Gomes

[Imagem, editada, da Wikipedia, com a devida vénia]

Acabada a sabática, com muita pena, regressámos a casa. Para a nossa vida habitual. A minha mulher retomou as suas investigações no instituto. Eu passei a levá-la e buscá-la, como antes. Durante o dia, passava parte da manhã junto ao mar na Caparica, a ler e escrever e depois vinha para o meu escritório de advocacia em Almada- Ficava pertinho do tribunal. A maior parte dos casos que tratei foram atribuídos pelo tribunal, como advogado oficioso, pago pelo Estado, segundo a tabela própria.

Advogado de quem provava não ter recursos para pleitear em tribunal. Foram sobretudo casos de instauração de divórcios, regulação do poder paternal ou acidentes de trabalho. Como estava frente à porta do tribunal, fui muitas vezes chamado para julgamentos de detenções em flagrante delito.

Os intervenientes eram sobretudo ciganos. Por roubos ou zaragatas. De tal modo que me tornei no advogado mais procurado por eles. O pior era receber os honorários. Muitas vezes fiquei apenas com a primeira parte. A segunda, como ficava para depois do julgamento, ficou por lá. Tive de assentar na exigência do pagamento antecipado.

O último que tratei foi de uma raparigona cigana vendedora de roupa ao ar livre. Havia um contencioso instalado entre a GNR e os vendedores ambulantes, sem licença.
Esta moça fora desapossada de tudo o que tinha exposto no chão por uma brigada vestida à paisana. Houve grande desacato entre ela, os familiares e os agentes. Por não serem reconhecidos como tal.

A apreensão e o julgamento foram imediatos. Fui chamado para a defender. Pedi para falar com ela a sós e recomendei que ela se comportasse ordeira e com respeito. Que confessasse a reacção que tomara, por irreflexão e desorientada com a perda da mercadoria. E que se mostrasse arrependida.

Qual quê!? Quando o agente começava a contar ao tribunal como tudo se passara, ela exclama em alta voz, como se estivesse na rua:
- Olha-me este grande aldrabão. Roubou-me tudo e ainda me prendeu.

Olhei para ela e dei-lhe a entender que não devia falar assim. Ela acedeu. O juiz enfureceu e quase lhe deu ordem de prisão. Desrespeito ao tribunal. Como se ela fosse uma cidadã de alto porte.

Não era caso para tanto…

O último caso que defendi em Almada foi o de uma brasileira, trabalhava de mulher a dias. Tinha sido posta na rua pelo companheiro. Se não fosse embora, ele dava-lhe cabo da vida… Provou-se que foram verdadeiras as ameaças. Ele mesmo confessou que ameaçou e que admitia que ela pensasse que ele era capaz de o fazer. No final, quem esteve para ser condenada foi a mulher…

Foi mesmo o derradeiro caso. Bastou-me de compartilhar naquele sistema em descalabro. Desiludido.

Fechei a porta ao Direito para sempre.

(Continua)
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Nota do editor:

Último poste da série > 24 de julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10188: Cartas do meu avô (14): Décima primeira (Parte II): De regresso a Lisboa, para o contencioso, nos serviços centrais da CGD... (J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil, CCAÇ 728, Bissau, Cachil e Catió, 1964/66)

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Guiné 63/74 - P10201: Um pouco da História da CCAÇ 3326, Mampatá e Quinhamel, 1971/73 (José Santos)

1. Mensagem do nosso camarada José Santos* (ex-1.º Cabo Aux. Enf.º da CCAÇ 3326, Mampatá e Quinhamel, 1971/73), com data de 22 de Julho de 2012:

Caro Luís
Aqui te envio um pouco da História da CCAÇ 3326

Um abraço
José Santos




COMPANHIA DE CAÇADORES N.º 3326

"OS SEMPRE OPERACIONAIS"

Ilha Terceira > Angra do Heroísmo > Monte Brasil > BII 17

Foto: © Carlos Vinhal (2006). Todos os direitos reservados

A Companhia de Caçadores N.º 3326 teve como Unidade mobilizadora o Batalhão de Infantaria Independente 17 (BII17), Angra do Heroísmo, Açores.

A sua concentração teve início a 7 de Setembro de 1970, sendo esta unidade oriunda das ilhas dos Açores.

Neste dia 7 de Setembro de 1970, começou a instrução operacional terminando a 24 do mesmo mês, e os seus homens foram considerados prontos a 20 de Outubro 1970.

A 13 de Novembro de 1970 estas tropas embarcaram no navio Funchal com destino ao Continente, concretamente ao Centro de Instrução Militar de Santa Margarida, dando-se o início do IAO (Instrução de Aperfeiçoamento Operacional).

A 21 de Janeiro de 1971, pelas 12 horas embarcando no navio Angra do Heroísmo este fez-se ao mar, com o destino da Guiné-Bissau.

Navio Angra do Heroísmo > Coa a devida vénia a Dicionário de Navios Portugueses

A 26 do mesmo mês chegou a Bissau pelas 6 horas da manhã, a seguir a Companhia iria para o Depósito de Adidos, e pelas 15 horas teve lugar a cerimónia de boas-vindas pelo Governador e Comandante-Chefe General Spínola.

A 11 de Fevereiro 1971 a Companhia chegaria a Buba de LDG, e de seguida partiria em coluna militar rumo a Mampatá aonde chegaria pelas 15 horas. A partir dessa altura iria substituir a Companhia de Artilharia N.º 2519, que tinha terminado a sua comissão de serviço.

Região de Tombali > Mampatá > Uma foto aérea de povoação e aquartelamento.

Foto: © José Manuel Lopes (2008). Todo os direitos reservados .

A CCAÇ 3326 era comandada pelo Capitão Artª. Paula de Carvalho, oriundo da GNR.

Foi muito difícil a nossa missão, mas partimos para ela com o sentido de se fazer o melhor possível e tentar sair desta situação no longo período que se adivinha difícil, sem baixas de vulto.

Passaram-se períodos conturbados e a nossa acção daria frutos pelo desgaste que provocávamos ao IN.

Honrando a nossa divisa, "OS SEMPRE OPERACIONAIS", nunca nos deixámos levar por vencidos.

Tivemos unicamente um morto, não pela mão do inimigo mas por uma mina montada por nós, foi uma infelicidade este facto.

De registar a harmonia sempre reinante entre os elementos da Companhia e a população nativa, sendo a acção psicológica exercida uma constante para que desse o seu fruto, com a vontade evidenciada pelos naturais de quererem continuar a ser Portugueses.

Em junho de 1971, altura em que começavam a cair as primeiras chuvas, e a intensidade destas se fizeram sentir, principalmente as várias bolanhas nos itinerários, constituiu uma das muitas dificuldades sofridas por todos nós. A determinação e a vontade de vencer, mesmo com a roupa colada ao corpo pela chuva ou pela transpiração dos dias quentes de África era uma condicionante para cumprir o nosso dever porque uma das características do soldado Português era fazer o melhor em qualquer teatro de operações.

Depois de 18 meses neste inferno, Spínola retirou-nos deste local e fomos colocados em Quinhamel até ao final da comissão a 7 janeiro de 1973.
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 5 de Abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9705: Blogpoesia (185): Pelas estradas de Mampatá (José Santos)

Guiné 63/74 - P10200: Notas de leitura (385): "Guiné - 24 anos de independência - 1974-1998", de Zamora Induta (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 1 de Junho de 2012:

Queridos amigos,
José Zamora Induta foi uma figura proeminente na área da Defesa da Guiné-Bissau e teve cargos elevados como porta-voz da junta militar e mais tarde como porta-voz do Estado Maior General das Forças Armadas durante o conflito político-militar de Novembro de 2000. O que o autor nos oferece é um apanhado de documentos, alguns deles preciosos, para entender as contestações às governações de Luís Cabral e Nino Vieira. A comissão de inquérito sobre o tráfico das armas é uma pela eloquente sobre a corrupção envolvendo figuras gradas da instituição militar, apercebemo-nos do enriquecimento ilícito desses mesmos militares e descobre-se como Nino Vieira partilhava com eles a pilhagem no Estado.

Um abraço do
Mário


A Guiné-Bissau vista por Zamora Induta

Beja Santos

“Guiné, 24 Anos de Independência, 1974-1998” é o título da obra de José Zamora Induta, ao tempo capitão-de-fragata da Marinha da Guiné e porta-voz do Comando Supremo da Junta Militar durante o conflito político-militar de 1998-1999 (Hugin Editores, 2001).

Lê-se o livro de fio a pavio e fica-se sem conhecer a opinião de Zamora Induta sobre estes 24 anos de independência, móbil do livro que se afoitou a escrever. Afinal, trata-se de uma recolha de documentos fundamentais com olhares alheios, lemos um livro que tem a opinião de outros. Não obstante, trata-se de uma recolha de inegável interesse tanto para o curioso do processo histórico da Guiné-Bissau como para o investigador que encontra aqui providencialmente textos de inegável interesse. A obra começa com uma apreciação de Luís Cabral sobre os seis anos da sua governação, justifica certo tipo de empreendimentos como o Complexo Agroindustrial do Cumeré, os projetos das pequenas indústrias de Bolama, a rede de eletrificação, a rede hospitalar, a prospeção de petróleo, a exploração da bauxite, elenca os apoios recebidos e deplora o desprezo a que Nino Vieira votou todas essas iniciativas. E diz sem qualquer rebuço: “Não acredito que a nossa Guiné seja um país pobre, inviável. A situação de quase calamidade a que chegou o país é da inteira responsabilidade do regime deposto. O nosso país era altamente respeitado no mundo, fazendo parte de um número restrito de países africanos considerados sem risco nos meios financeiros internacionais. Depois da Guiné se ter libertado do regime ditatorial e incompetente que a dirigiu durante quase 20 anos, deixando o país com dívidas inimagináveis, e ultrapassado um período de transição que nos dignifica e que deu, de novo, credibilidade ao Estado guineense, começamos agora a viver uma nova página da nossa História, com a realização de eleições gerais verdadeiramente livres”.

A seguir a uma menção sobre o golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980, o autor reproduz um artigo publicado no jornal “Nô Pintcha” acerca das execuções perpetradas pelo regime de Luís Cabral nas matas de Cumeré, Porto Gole e Mansabá, factos que ocorreram predominantemente em 1978. Nova lista, desta feita relativa aos acontecimentos do chamado golpe encabeçado por Paulo Correia, em Outubro de 1985 (caso 17 de Outubro) e que levou ao desaparecimento de combatentes e de intelectuais torturados até à morte nas prisões e outros que foram executados.

Chega-se finalmente ao fulcro do livro, as questões que antecederam o levantamento militar e o seu historial. A lista de implicados no tráfico de armas pasma pela natureza da corrupção ao nível da instituição militar. Antigos combatentes da luta de libertação fez publicar uma longa carta no Diário de Bissau em 28 de Fevereiro de 1998. Eles protestam: “Nós estamos fartos de uma Defesa sem leis, de uma Defesa com comandantes políticos que nada tem feito por este país e só defendem a pessoa do camarada Nino, por terem sido nomeados por este como contrapartida dos serviços sujos por eles prestados. Nós libertámos o país com as mãos limpas e não para aterrorizar com ameaças, com armas que pertencem ao próprio povo". E escrevem sobre oficiais que colaboram nesse trabalho sujo, traficando influências, enchendo os bolsos, vendendo armas aos rebeldes do Casamansa. É um relato tenebroso, as bandalheiras desta clique à volta de Nino demonstram a podridão a que chegara a presidência da república e a instituição militar.

Segue-se a transcrição integral do relatório da Comissão Parlamentar de inquérito sobre o tráfico ilegal de armas, publicado em 8 de Junho de 1998, seguramente o detonador do conflito armado. Preto no branco, os deputados passam em revista os diferentes casos escandalosos, analisam as denúncias, procedem a audições e a acareações, estudam o caso dos turistas franceses mortos em Casamansa, investigam o desaparecimento de inúmero material de guerra, deixam claro que o Presidente da República tinha conhecimento deste tráfico e que muitos dos envolvidos moviam-se no seu círculo privado de relações. O brigadeiro Ansumane Mané aparecia ilibado neste relatório, isto quando Nino Vieira premeditava a sua execução que tinha sido precedida da sua exoneração.

Todas as etapas do conflito, a partir de Junho de 1998, aparecem especificadas, os nomes e as atividades da Junta Militar, a ofensiva diplomática, os recontros que levaram ao desbaratamento das forças invasoras e ao progressivo isolamento de Nino Vieira dentro da península de Bissau. Vem inclusivamente descrito o governo de Unidade Nacional, presidido por Francisco Fadul, o aparecimento de uma força internacional de interposição até à rendição de Nino, são apresentados os documentos em que Nino Vieira pede asilo a Portugal.

No prefácio, Jaime Nogueira Pinto destaca o forte sentido da unidade nacional demonstrado pelo povo guineense, a moderação verificada e os baixos custos humanos e o baixo número de atos de vingança e retaliações. Como é sabido, a convulsão político-militar não abrandou com a eleição do presidente Kumba Ialá, deu-se o assassinato do brigadeiro Ansumane Mané e o país continuou adiado. O prefaciador julgava que apesar da fragmentação ética e da diversidade religiosa do seu povo que a Guiné iria resistir aos monstros do conflito tribalista. Está à vista de todos que um dos cenários possíveis para a tragédia que se vive na Guiné é de uma luta tribal entre balantas e outras etnias que poderão aparecer como catalisadores do elevado descontentamento da deriva, da fome e do desaparecimento da esperança na pseudo evolução na continuidade e tentativa de acalmia que parece ser a preocupação do atual governo, emanado dos golpistas e praticamente sem nenhum apoio da força maioritária, o PAIGC. Vamos estar atentos.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 25 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10194: Notas de leitura (384): "A Viagem do Tangomau, Memórias da Guerra Colonial que não se apagam" (José Brás)

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Guiné 63/74 - P10199: Memória dos lugares (190): Quinhamel e a sua piscina (Manuel Carvalho)

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Carvalho (ex-Fur Mil Armas Pesadas Inf, CCAÇ 2366/BCAÇ 2845, Jolmete, 1968/70), com data de 22 de Julho de 2012:

[...] Vou enviar também algumas fotos da famosa piscina de Quinhamel, da qual o meu irmão falou em comentário e na qual só estive uma vez quando tirei estas fotos.

O Alf. artilheiro João Martins num post que publicou também fala numa Piscina em Quinhamel por alturas de 69/70 que julgo que só pode ser esta. Coisa que não faltava na Guiné eram piscinas como a de Quinhamel, era um fartar pelo menos para os operacionais. A grande diferença (e era mesmo muito grande) era que em Quinhamel entravamos sem arma e nas outras era com tudo.[...]



Quinhamel



"Piscina" de Quinhamel
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 24 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10191: Memória dos lugares (189): Jolmete, quotidiano da tabanca e aquartelamento (Manuel Carvalho)

Guiné 63/74 - P10198: Os nossos últimos seis meses (de 25abr74 a 15out74) (15): A morte de Cabá Santiago, desertor do PAIGC e aliado das NT, em Bissorã, em outubro de 1974 (Henrique Cerqueira / Carlos Fortunato)




Guiné > Região do Oio > Bissorã > 13 de junho 1974 > "Cabá Santiago, ao meio, à sua esquerda o comandante do PAIGC da zona de Maqué, Joaquim Tó, que veio até Bissorã com um grande grupo de guerrilheiros. Vai existir uma reconciliação pacifica, sem retaliações, é o que é proclamado". Foto de Manuel Machado, ex-alf mil da CCAÇ 13. Legenda de Carlos Fortunato... Esta foto ter-lhe-á sido fatal... (Reproduzida aqui com a devida vénia...). (LG)


1. Comentário de Henrique Cerqueira ao poste P10189 (*)


Camarada Luís Gonçalves Vaz:

Eu estive em Bissorã desde finais de Novembro de 1972 até inícios de julho de 1974 [, como furriel mil da 3ª CCAÇ / BCAÇ 4610/72]. Em Bissorã estava na CCaç 13 e foi o meu grupo de combate que teve o primeiro contacto com o PAIGC nos inícios de Maio de 1974 no ponto de encontro entre Bissorã e Olossato,durante uma picagem de protecção a uma coluna de reabastecimento.

Logo nessa altura houve grande euforia entre as nossas tropas e o PAIGC e só posteriormente vieram ao nosso encontro na referida estrada uma "caturba" de civis (comerciantes) e traziam como companhia alguns dos altos comandantes do nosso batalhão.

Honestamente chegou a ser caricato o teor das conversas entre esses Comandos e os guerrilheiros (mas isso são contas de outro rosário).

Esta conversa toda que tenho aqui é para dizer que a partir desse dia os guerrilheiros do PAIGC. tanto em grupos como individualmente, passaram a entrar e sair completamente à vontade em Bissorã.

Ás vezes era caricato que os nossos grupos de combate continuassem a sair em patrulhamento e quase sempre nos encontrarmo-nos com guerrilheiros que iam visitar os seus familiares a Bissorã.

Bom. o que é certo é que em junho de 1974 não houve nenhuma invasão do PAIGC para capturarem o Cabá [Santiago] e se o fizeram teve de ser com auxílio dos nossos comandos e em segredo, caso contrário e pelo que ouvi mais tarde e já em Bissau vários desses "tropas" (ponho aspas porque o Cabá Santiago era totalmente autónomo e só saía em operações próprias e quase sempre na certeza de apanhar homens ou armamento,pois que ele, Cábá, era um antigo combatente do PAIGC e desertou para as nossas tropas,mas não obedecia a ninguém das tropas portuguesas).

Essa situação já era esperada pois que sempre que eramos atacados ficava sempre recados para o Cabá.

Nota: Os nossos soldados da CCAÇ 13 não foram maltratados e actualmente um dos meus antigos soldados, de nome Branquinho, até é chefe de tabanca, penso eu que em Inhamate. Por tudo isso acho estranho que seja verdade essa captura em Junho.

Desculpem lá este enorme texto mas o meu jeitinho para narrar é mesmo do piorzinho e daí esse texto enorme para expor pouca coisa.

Um grande abraço Henrique Cerqueira



2.  Comentário de L.G. e extratos de um texto de Carlos Fortunato:


Talvez o Carlos Fortunato, que foi fur mil da CCAÇ 13 (1969/71), meu contemporãneo (fomos no mesmo navio, o Niassa, a 24 de maio de 1974, eu pertencente à CCAÇ 2590 e ele à CCAÇ 2591) e que é hoje presidente da direção da ONGD Ajuda Amiga, mantendo frequentes e amistosos contactos com os seus antigos soldados e com as gentes de Bissorã (vai lá todos os anos...), talvez o Carlos Fortunato, dizia eu, nos possar dar mais pormenores sobre a morte do Cabá Santiago, que sabemos não ter sido em junho de 1974 (como sugere o Paulo Reis) mas sim outubro de 1974. O Carlos  não viveu esses trágicos acontecimentos, mas teve informação privilegiado sobre as represálias do PAIGC em Bissorã, em 1974 e anos seguintes, de que também foram vítimas alguns dos seus antigos camaradas da CCAÇ 13 (com quem continua a manter, ainda hoje, uma relação de amizade e de ajuda).

Aqui fica um excerto da sua página Guiné - História, em que "os massacres" (no plural) de Bissorã, baseando em testemunhos de antigos soldados seus (, constantes de 2 duas cartas, uma de 1982 e outra de 1988:

(...) Na primeira carta de 1982, é referido o nome de Cabá Santiago, conheci o Cabá Santiago, e posso contar um pouco da sua história, tendo por base aquilo que ele me contou, e o que eu conhecia a seu respeito.

Cabá Santiago era um individuo inteligente e com alguma cultura, tinha sido professor até aderir ao PAIGC, ai passou a ser professor e guerrilheiro, após muitos anos de luta, sem ver um fim à vista para esta, e percebendo que o PAIGC mentia nas suas mensagens de propaganda, acreditou que o melhor caminho a seguir era o apontado por Portugal, e aproveitou as campanhas de aliciação para os guerrilheiros abandonarem a luta, para se entregar.

Quando se entregou, Cabá Santiago passou a colaborar com as nossas tropas, integrando as milícias de Bissorã, como chefe de um grupo de milícias, e regressou à sua zona para combater o PAIGC.

Conhecendo alguns guerrilheiros, que viviam com a população, utilizava o seu estatuto de guerrilheiro, e mandava-os ir buscar as suas armas (cada um tinha escondido a sua no mato), e quando estes chegavam armados eliminava-os.

A guerrilha tinha o seu sistema de informação, nomeadamente através dos elementos da população de Bissorã, e Cabá arriscou muito naqueles dias, pois bastava ir a um local onde já se soubesse o que se passava, para ele ser um homem morto, e em breve a sua "cabeça ficou a prémio".

Cabá mesmo depois da sua "cabeça estar a prémio" pelo PAIGC, continuava a ser uma das armas mais destruidora existente em Bissorã, e não deixava de sair por vezes sozinho, e atacar os acampamentos inimigos, eliminando guerrilheiros, e capturando várias armas.

Escusado será dizer que para o PAIGC Cabá Santiago era um homem a abater a todo o custo, e por isso ele era sempre o último da coluna de milícias que comandava, pois tinha medo de ser morto pelas costas pelos seus próprios homens.

Pergunto aos leitores: o que acham que iria acontecer ao Cabá Santiago, quando fosse entregue o poder em Bissorã ao PAIGC, se mesmo durante o período de cessar fogo, o PAIGC continuavam a capturar soldados africanos, que nunca mais apareciam?

Cabá foi um dos que manifestou desconfiança, sobre o que iria acontecer.

Na verdade existia alguma desconfiança entre as forças africanas, e muitos aguardavam a decisão dos comandos africanos de entregarem as armas, para entregarem as suas, pois os comandos eram quem arriscava mais, dado o clima de animosidade que existia contra eles da parte do PAIGC.

O PAIGC também sentia desconfiança quanto ao rumo das negociações, e temia que o seu estatuto de estado independente, não fosse reconhecido por Portugal.

Aristites Pereira o secretário geral do PAIGC, refere no seu livro " Uma luta, um partido, 2 países", essa situação de desconfiança: "Na realidade, o PAIGC tinha razões de sobra para desconfiar das intenções do Governo português, na medida em que acrescia ao ambiente de suspeição reinante o facto de os comandos africanos se recusarem a desarmar-se, apresentando uma postura reivindicativa em relação ao Governo português pelos serviços prestados ao seu Exército e uma clara hostilidade em relação ao PAIGC. Em abono da verdade, o PAIGC chegou a estar preocupado com a situação, razão pela qual teve iniciativas unilaterais, que resultaram em contactos com os comandos africanos, chegando esse contacto a efectuar-se a 22 de Julho de 1974, em Cacine, com a presença dos capitães Saiegh e Sisseco, o alferes Barri e um sargento."

Como era previsível, Cabá Santiago foi o primeiro a ser morto. De acordo com o que me foi relatado por vários familiares de Cabá Santiago, a sua morte ocorreu em Outubro de 1974 a mando do comandante militar do PAIGC da zona. (...)

Cabá foi levado para o mato e morto juntamente com mais duas pessoas, passado algum tempo levaram e mataram mais dois chefes da milícia, Quebá Camará e Sitafá Camará, mais outra pessoa, depois foi um grupo de 25 pessoas que levaram e mataram.

Os africanos, graduados pelo exército português,  foram um dos principais alvos a abater, não sei se algum comandante da milícia conseguiu escapar com vida.

Os ex-comandos africanos do exército português eram outro dos alvos a abater, e muitos foram fuzilados pelo PAIGC.

As companhias de comandos africanos,  desde a sua criação em 1970, tornaram-se uma das forças de intervenção mais importantes, mas o seu número de baixas era elevado, recorrendo o exército às companhias de soldados africanos, para repor rapidamente a sua capacidade operacional.

Tenha Taca e Intonga Tchudá foram dois dos soldados da CCaç 13 que ingressaram nos comandos, mas muitos outros soldados da CCaç 13 seguiram esse caminho, e como é sabido o destino de muitos deles foi a morte após a independência, Tenha Taca e Intonga Tchudá foram dois dos que morreram. (...).









Em poste de 25 de maio de 2006, já tínhamos abordado, na I Série do nosso blogue, o caso do Cabá Santiago, bem como de militares da CCAÇ 13 que foram mortos pelas autoridades da Guiné-Bissau, a seguir à independência... A fonte era a mesma: Leões Negros (Página pessoal do Carlos Fortunato, CCAÇ 13, 1969/71). Tudo indica que o Paulo Reis tenha ido beber à mesma fonte... Ele, de resto, nunca chegou a ir à Guiné-Bissau, para recolher em primeira mão depoimentos de testemunhas oculares... E mostrou pouco rigor (, o que é indispensável em jornalista, e para mais em jornalismo de investigação) na transcrição dos dois chefes de milícia, Quebá Camará e Sitafá Camará, que terão sido mortos a seguir ao Cabá Santiago... O texto do Carlos Fortunato foi "publicado no site em 24/02/2003, e revisto em 09/04/2008" (!)...


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Nota do editor.

(*) Vd. poste de 24 de julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10189: Os nossos últimos seis meses (de 25abr74 a 15out74) (11): Dos planos de evacuação do território aos graves acontecimentos de Bissorã, em junho de 1974 (Paulo Reis, jornalista, freelancer / Luís Gonçalves Vaz)

Excerto do texto de Paulo Reis:

(...) "Encontrei documentação da 2ª Rep interessante, onde se fala dos problemas de disciplina das unidades do exército português e das dificuldades em fazer a simples rotação de efectivos, já prevista há muito tempo. A partir de certo momento, a própria cadeia de comando estaria em risco, uma vez que os soldados portugueses só queriam ir para Bissau e embarcar para a Metrópole.

"A ponto de em Junho de 1974, tropas do PAIGC terem entrado em Bissorã, a propósito de confraternizar. Depois de algumas cervejas, com os soldados portugueses, espalharam-se pela vila e capturaram o Cabá Santiago, um chefe de milícia muito conhecido, desertor do PAIGC, o Bajeba e o Sitafa Camará (ou Quebá), ambos chefes de milícia. Levaram-nos e fuzilaram-nos sem que as forças portuguesas reagissem, de acordo com o testemunho de habitantes locais e soldados portugueses." (...)

Guiné 63/74 - P10197: Estórias dos Fidalgos de Jol (Augusto S. Santos) (6): Cabo Bigodes, o homem-macaco

1. Terceira e última estória dos Fidalgos de Jol enviada pelo nosso camarada Augusto Silva Santos (ex-Fur Mil da CCAÇ 3306/BCAÇ 3833, Pelundo, Có e Jolmete, 1971/73), na sua mensagem de 15 de Julho de 2012:



ESTÓRIAS DOS FIDALGOS DE JOL (6)

Cabo “Bigodes” O Homem-Macaco

Esta passou-se numa daquelas noites em que, pela movimentação (ou não) da população, era esperada uma quase certa flagelação ao quartel. De tão cedo que era, quase não se via viva alma a circular pela tabanca, muito menos crianças, o que no mínimo era muito estranho. Assim, o indício era de uma quase certeza de que mais tarde ou mais cedo íamos mesmo “embrulhar”.

Recordo-me de que nessa noite de Abril de 1972 o Benfica jogava as meias-finais com o Ajax no antigo Estádio da Luz, para a então Taça dos Campeões Europeus, sendo o resultado final de zero a zero.

Calhou em sorte ser o meu grupo de combate a sair para fazer a segurança e denunciar possíveis movimentações do inimigo e, quando já estávamos todos convencidos de que nada se iria passar, lá rebentou o inevitável “fogachal”, precisamente do lado oposto onde nos encontrávamos para, de certa forma, a fuga do elementos do PAIGC se processar com menos hipóteses de confrontação. Era a táctica deles do bate e foge. Só que contámos com a rápida resposta do pessoal que ficou no interior do quartel juntamente com o apoio da artilharia de Bula para bater a zona, pelo que o ataque se reduziu (felizmente para nós) a poucos minutos e sem consequências de maior.

Mas esta introdução tem como objectivo contar o que de rocambolesco e caricato se passou nos primeiros momentos do ataque ao quartel, que se processou precisamente do lado da chamada porta de armas, onde estava de serviço/sentinela no posto mais elevado e com alguns bons metros acima do solo, o meu amigo Cabo Borges, mais conhecido por todos pelo Cabo “Bigodes”, que levou de muito perto com uma valente roquetada, a qual de imediato pôs o posto em chamas. Sem hipótese de ripostar fogo com a Breda que encravou, só teve como solução atirar-se do posto abaixo.

Chegado cá abaixo, como o ataque continuasse e sem arma de defesa, logo se lembrou que a sua G3 havia ficado lá em cima no posto, ao qual voltou a subir tão rápido quanto possível e, já de novo na posse da sua “amiga”, qual símio, voltou novamente a atirar-se para o solo daquela considerável altura.

Quem a tudo isto conseguiu assistir, dizia que o Borges parecia o autêntico homem-macaco.

Reposta a calma, o nosso amigo “Bigodes” nem queria acreditar no que tinha conseguido fazer, ainda por cima sem ter sofrido qualquer ferimento.


Jolmete, Junho de 1972 > O meu amigo Borges é o primeiro à direita, de pé

Jolmete, Julho de 1072 > Bolanha de Gel

Jolmete, Agosto de 1972 > O descanso do guerreiro na Bolanha de Gel

Jolmete, Agosto de 19072 > Estrada velha de Bula

Cumeré, Dezembro de 1972 > Com uma mascote
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 22 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10181: Estórias dos Fidalgos de Jol (Augusto S. Santos) (5): A emboscada das abelhas

Guiné 63/74 - P10196: Passatempos de verão: Hoje quem faz de editor é o nosso leitor (2): O pangolim de cauda longa, do Cantanhez (António J. Pereira da Costa)





Guiné > Região de Tombali > Cacine > CART 1692/BART 1914, 1968/69 > Um pangolim...

Foto: © António J. Pereita da Costa (2012). Todos os direitos reservados


1. Comentário de António J. Pereira da Costa ao poste P 10182 (*)

Camaradas:

O dari [, o chimpanzé,] não é a minha praia, como agora se diz.

O pangonlim, que é uma variedade de papa-formigas, é uma animal curioso:

(i) Parece um grande sáurio daqueles com o dorso arqueado, a cabeça e cauda compridas:

(ii) Tem boca e focinho compridos e que teria tido dentes poderosos;

(iii) A cauda é larga, junto ao corpo, e vai afiando para o fim até terminar em bico muito afiado;

(iv) É rija e suporta bem o peso de um homem;

(v) Tem o corpo coberto de escamas losangonais e castanhas, rijíssimas;são autênticas telhas losangonais.

Na foto - que enviei por e-mail - é visível a parte inferior do corpo que é mole e não está protegida. As patas são curtas e têm unhas poderosas. Eu [, na altura, alferes QP,] seguro uma e o Lemos fotógrafo e bazookeiro segura a outra. O Duarte segura a boca.


Este era um exemplar adulto e muito belo e eu nunca mais vi nenhum. Foi caçado pelo caçador de Cacine, a sul da estrada Cacine-Cameconde.


Um Ab.


António J. P. Costa


2. Comentário de L.G.


Muito bem, camarada, 18 valores a zoologia!... Descrição zoológica perfeita, o Fernando Frade não faria melhor... Falta só o nome científico do bicho... Embora eu não seja um especialista, arrisco a dizer que se trata de um Uromanis tetradactyla (ou manis tetradactyla, conforme os autores), classificado em 1766 pelo sueco Carlos Lineu, o "pai da taxonomia moderna"...

Não é ainda, felizmente, uma espécie ameaçada,  a nível mundial...  Na Guiné-Bissau, também existe (mas é mais raro, ao que parece), o Pangolim gigante, terrestre, Smutsia gigantea (em inglês, o nome comum é giant ground pangolin) que pode pesar mais de 30 kg, o macho, e atingir um metro e tal de comprimento...

A ameaça que existe sobre o pangolim (bem como sobre as outras dezenas de espécies de mamíferos no Cantanhez) é a desflorestação e a caça, além do uso de partes do corpo do pangolim para efeitos gastronómicos, medicinais, afrodisíacos ou mágicos.

António, tens aqui, em português, mais informação sobre esse magnífico mamífero de escamas, arborícola, de hábitos noturnos, de difícil observação e recenseamento, da família Manidae de que existem 7 espécies, distribuídas pelas zonas tropicais de África e Ásia.

Etimologicamente falando, a palavra Pangolim vem do malaio, pangulang, animal que se enrola... Quando ameaçado, tal como o nosso ouriço cacheiro, o pangolim enrola-se sobre si próprio, para se proteger.

Talvez o nosso amigo Pepito nos passo dar mais informação sobre o Turcutacar (, termo da língua nalu). Há uma trabalho interessante, feito por biólogas e antropólogas portuguesas sobre percepções da vida selvagem entre os povos que habitam o Cantanhez (nalus e balantas, sendo os primeiros muçulmanos e os segundos animistas ou católicos).

Entre as questões inquiridas (a que responderam 271 habitantes, homens e muilheres, de várias idades, entre 2007 e 2010) estão a caça e as preferências alimentares (que incluem o pobre do pangolim, mas também a tartaruga, a gazela, o macaco..).Vou sugerir que alguém dos nossos leitores (o Antónioo Costa, por exemplo) o leia nas férias, e faça depois um resumo para o pessoal da Tabanca Grande e seus convidados. Todos temos a obrigação de contribuir para a defesa e conservação deste pedaço de céu na terra (que já foi pedaço de inferno, para muitos de nós, ex-combatentes, de um lado e do outro...). Aqui fica a referência. O texto é em inglês. Está aqui disponível, em formato pdf:

Título do artigo: Are animals and forests for forever ? Perceptions of wildlife at Cantanhez Forest National Park, Guiné-Bissau Republic [ Tradução portuguesa: Os animais e as florestas... são para sempre ? Perceções da vida selvagem no Parque Nacional do Cantanhez, Guiné-Bissau];

Autores: Catarina Casanova, Cláudia Sousa, e Susana Costa;

Research paper accepted: MEMÓRIAS, Environmental Anthropology number (Casanova, C and S. Frias eds.), Lisboa: Sociedade de Geografia de Lisboa ].[Nº temático da revista Memórias, editado pela Sociedade de Geografia de Lisboa].





Guiné-Bissau > Região de Tombali > Parque Nacional do Cantanhez > Iemberém > 2 de março de 2008 > Animais desenhados nas paredes exteriores das instalações da AD -Acção para o Desenvolvimento: O pangolim de cauda longa... Fotografia de Luís Graça, por ocasião de visita ao sul, no ãmbito do Simpósio Internacional de Guiledje (Bissau, 1-7 de março de 2008).

Fotos: © Luís Graça (2008) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.

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Nota do editor: