domingo, 14 de outubro de 2012

Guiné 63/74 – P10531: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (21): Operação Outra Vez, objectivo: Iracunda

1. Mensagem do nosso camarada Rui Silva (ex-Fur Mil da CCAÇ 816, Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67), com data de 11 de Outubro de 2012:

Caríssimos Luís, Vinhal e M. Ribeiro.O que sai logo à ideia é enviar-vos um grande abraço, e este mail encontrar-vos em plena boa saúde.
Aqui vai mais uma página “ arrancada” do meu caderno de memórias “ Páginas negras com Salpicos cor-de-rosa”.

Passem bem
Rui Silva


Como sempre as minhas primeiras palavras são de saudação para todos os camaradas ex-Combatentes da Guiné, mais ainda para aqueles que de algum modo ainda sofrem de sequelas daquela maldita guerra.

Do meu livro de memórias “Páginas Negras com Salpicos cor-de-rosa”

- 22 de Junho de 1965 (quase 1 mês de Guiné) -

IRACUNDA 
(ainda hoje, ao falar, há ainda uma residual sensação)

Foi o batismo de fogo da 816: mais de 20 minutos de fogachada em Iracunda. Julgo que toda a espécie de arma que o inimigo usava na altura em toda a Guiné, estava toda ali.
Não foi a minha primeira vez no mato mas lá que foi a primeira vez que chamei a Nossa Senhora lá isso foi!
Iracunda ao tempo era o verdadeiro braço armado da base de Morés, no OIO.

Localização de Iracunda, estrada Bissorã-Mansabá, a sul do Olossato e a NW do Morés, bastião do PAIGC no Oio. 
Vd. carta da Província da Guiné.
Legenda de CV

Certo dia então chegou a ordem para os 2.º e 3.º Grupos de combate prepararem-se para saírem para o Olossato. Não sabíamos, mesmo nós os Sargentos, qual seria o objetivo. Se bem que não estranhássemos (?) a falta de dados, uma vez que sabíamos que na guerra o sigilo tem toda a importância, ficamos na desusada expectativa quanto ao que nos estava reservado com a Operação Olossato. A ordem veio lacónica embora concisa, à boa maneira militar. Sem fazermos qualquer objeção (pudera!) ou simples pergunta (pr’a quê?), embora a nossa curiosidade nos incitasse a tal, vestimos uma vez mais o camuflado, armamo-nos como de costume e abalamos rumo às viaturas que se encontravam já alinhadas, à saída do aquartelamento de Bissorã, na direção da estrada para o Olossato, ali bem perto do edifício civil da Administração de Bissorã e da rotunda com um pequeno monumento no meio. O centro de Bissorã, afinal.

Encarávamos o trajeto com certo pessimismo, (periquitices) pois a estrada que liga Bissorã a Olossato tinha fama de aparecerem muitas emboscadas, principalmente na zona da “carreira-de-tiro”, nome que a tropa deu e que ficava sensivelmente a meio caminho até Maqué e que atravessava um local de capim muito denso, mesmo propício a uma cilada. Também nesta estrada era frequente aparecerem minas e fornilhos, dizia-se. Sabíamos também que era uma zona batida pelos terroristas da fortíssima base de Morés e que a estrada passava por Maqué, a meio caminho, onde algures também existia uma casa-de-mato.

No entanto, uma vez que esta nossa saída foi rodeada do maior segredo (o que até em Bissorã parecia não funcionar muito bem), havia toda a possibilidade de os não termos à perna, o que não queria dizer que, pelo menos, não tivéssemos de depararmo-nos com minas e outras quaisquer armadilhas. Assim, e como era de contar com isto, a estrada foi picada por uma secção e à vez. Porque a coluna levava à frente homens apeados - os picadores -, obrigava a uma progressão lenta, embora segura, quanto a minas.

Os cerca de 15 quilómetros que separavam Bissorã do Olossato, ou melhor até Maqué (~8-9 Kms.) , percorridos de tal forma, pareciam não ter fim. As secções alternavam-se à frente na picagem da estrada, e quando essa mudança acontecia, havia uma longa paragem da coluna, o que fazia ainda mais enervar.

O trajeto, o primeiro que fazíamos naquela estrada, que tão badalada era - já em Bissau, quando passamos por Brá, ouvíamos falar dela, pelos seus perigos -, foi feita no clima da maior “suspense” e expetativa. Os “longos” quilómetros foram-se então calcorreando até que chegamos a Maqué sem qualquer novidade.

Logo divisei do lado oposto e do outro lado do pontão (ponto de encontro) uma auto-metralhadora e alguns soldados de camuflado já muito coçado, muito queimados (era a velhice). Rostos queimados do impiedoso sol, grandes barbas e/ou bigodes, tudo aquilo denunciador de velhos amigos daquelas paragens. Eram elementos da Companhia de Artilharia n.º 566, a Companhia que estava sediada no Olossato. Tinham picado a estrada do lado deles e portanto dali para a frente já ninguém foi apeado, pelo que a marcha foi imposta pela velocidade das viaturas.

Alguns quilómetros volvidos, deparam-se então as primeiras moranças, outras mais, mais ainda e eis que nos aparece o aquartelamento de Olossato. Troncos de palmeiras já muito gastos a fazerem de paliçada em toda a volta do aquartelamento; abrigos de sentinela cilíndricos e em cone no teto nos 4 cantos do quadrado da fortificação. Tudo no entanto bem arrumadinho e cuidado. Troncos de palmeiras, chapa dos bidões da gasolina e barro da Guiné para encher, eram os materiais utilizados. Na ponta de um mastro, já bem dentro do quartel, bem alto, ondulava a bandeira portuguesa, orgulho nosso e a chama do nosso valor e coragem. Numa alisada chapa de bidão logo sobre a “Porta d’armas”, podia-se ler em letras e números bem grandes, pintados à mão e com relativa habilidade: “C. ART. 566”. Esta chapa estava bem ao alto e logo à entrada do quartel. Eram ali que moravam os “velhinhos” da 566, Companhia que tinha muita fama pelo valor evidenciado através de êxitos e mais êxitos por aquela temerosa zona do Oio.

Tive mais tarde ocasião de o assim constatar, ao trabalhar com eles no mato.

Poucos meses atrás, pouco antes de virmos para a Guiné, tinham eles tido um formidável êxito na base de Morés. Aprisionaram entre 2 a 3 toneladas de material de guerra entre ele diversas e valiosas metralhadoras pesadas.

Aquele cenário no Olossato fez-me lembrar logo os filmes de cow-boys do western americano: muros construídos com trocos de palmeiras, cavalo-de-frisa e arame farpado a embrulhar tudo, e homens armados de carabina (diga-se G3) e em tronco nu e bem queimados; barbas, barbichas e exóticos bigodes e muita descontração; chão vermelho e poeirento também.

Olhei em redor a ver se encontrava por ali algum conhecido, mas não encontrei ninguém. Ouvi então risos e palmadas nas costas, mesmo atrás de mim. Virei-me e era o Zé Baião que tinha encontrado um seu conterrâneo eborense e amigo. Este era o Furriel Martins. Conversaram, riram, mas não era preciso haver conhecimentos, pois ficávamos logo em família sempre que se davam estes encontros. O Martins usava um chapéu à cow-boy, mais um dado característico dentro daquela encenação.

Receberam-nos muito bem e logo se aprontaram a arranjarem-nos comer na messe deles. Embora fosse da praxe, os visitantes serem bem recebidos pelos seus anfitriões, o certo é que os camaradas da 566 foram inexcedíveis em gentilezas, pelo que, viríamos a manifestar o nosso reconhecimento com grande ênfase. Ficamos desde o primeiro minuto a gostar daquela maralha e, diga-se de passagem, que também conquistamos a simpatia deles. Almoçamos então em clima de grande confraternização e depois de contarmos, e principalmente ouvirmos as aventuras da malta ali na Guiné, fizemos uma partida de futebol na parte da tarde.

O pequeno campo de futebol dentro do aquartelamento do Olossato que ficava junto às messes quer dos Oficiais quer dos Sargentos onde, antes umas horas de irmos à base de Iracunda, jogamos à bola com a malta da 566. A casa atrás da baliza seria mais tarde a secretaria da 816 onde estava o saudoso 1.º Rodrigues (falecido cá e já com alguma idade - paz à sua alma) e o desenfiado do “Boavista”, sempre com o Primeiro a perguntar-nos onde andava este, …na bola quase sempre. A casa do lado direito, já civil, e fora do aquartelamento, julgo ser a casa do Sr. Fodé, nativo,vendedor de panos e outras miudezas e apetências nativas.

Ao fim desta, fomos então, nós os da 816, chamados ao nosso Capitão (não foi preciso lembrar-nos que não fomos ali para jogar futebol) e por ele fomos postos ao corrente da nossa missão, agora com a informação em detalhe. O objetivo era para nós desconhecido, mas que lá ia ficar bem no nosso conhecimento lá isso ficou. Os velhinhos da 566 já o conheciam, e bem o notei logo no olhar apreensivo dos que iam alinhar com a gente, que tal refúgio não era nenhuma pera doce. Diante de um mapa estendido sobre uma mesa, fomos então elucidados pelo Alferes Victor da 566 coadjuvado pelo nosso Capitão, quanto ao efetivo do inimigo, seu armamento, quantidade e posição dos sentinelas, dispositivo que nós íamos adotar, etc., etc. A hora de saída do aquartelamento foi fixada para a 1 hora da madrugada. Objetivo: IRACUNDA!

Nada nos dizia (a nós os da 816), mas, só até lá chegar…

Depois da operação ficamos com a certeza que na verdade Iracunda era uma grande base terrorista, talvez até mais bem operacional do que a de Morés, isto dito também pelos da 566 e pelo chinfrim que houve também.

As lavadeiras do Olossato evidenciavam bem como a Guiné era muito fértil em boa fruta

Por gentileza de um colega Furriel da 566, dormitei um pouco na cama dele, acumulando energias, até à hora da partida. O jogo da bola tinha sido um grande desgaste, mas como havia o maior segredo, esse desgaste não foi poupado. Nesta altura, calmamente e com tempo, foi-me preparando. Peguei na minha G3, verifiquei o funcionamento da culatra, apalpei os carregadores nas cartucheiras, fixei bem a fivela do cinto do camuflado e fui beber um pouco de café. Um pouco de bagaço também para aquecer e a malta foi aparecendo. A noite estava com um intenso luar. A coluna foi-se formando no maior dos silêncios e, como autómatos, depois de tudo verificado, guarnições de “bazooka” e de morteiro, pessoal indígena carregador de granadas, nativos voluntários (de Mauser”!!) etc., fomos deixando Olossato no sentido oposto aquele pelo qual tínhamos vindo de manhã de Bissorã. A operação Iracunda tinha-se iniciado.

Olossato ia ficando para trás e a sua iluminação ia-se assim reduzindo para dar lugar às trevas. Como sempre, calculávamos o tempo de maneira que chegássemos às imediações do objetivo (refúgio) algumas dezenas de minutos antes da hora previamente combinada para o assalto. Servia tal interregno para nos refazermos um pouco da caminhada e ultimarmos também pormenores (se necessário), sobre o assalto. O facto de na maior parte das vezes chegarmos muito cedo às proximidades do objetivo devia-se também à progressão ter sido feita sem sobressaltos, nomeadamente do guia não nos ter feito andar às voltas, como não raras vezes acontecia, e que o tempo previsto também contemplava estes tipos de atraso mais ou menos previsíveis. Com o dito descanso, recuperávamos da caminhada e as nossas condições quer físicas quer psicológicas (sem nos vermos livres do nervoso miudinho, contudo), eram bem melhores. Até que chegamos junto de uma zona mais ou menos descoberta mas com folhagem suficiente para nos encobrir e camuflar uma vez sentados ou deitados. Estávamos ao longo de uma sebe e a escuridão da noite fazia o resto. Teríamos os cantares dos variadíssimos pássaros em breve a denunciar o nascer do dia.

(A descrição seguinte, em itálico, que faz parte integrante da narração desta operação “tirei-a” para introito do livro das minhas memórias - “Páginas Negras com Salpicos cor-de-rosa”- e nessa qualidade já saiu no Blogue (post 1809). Para aqueles que não gostam de ver coisas repetidas, as minhas desculpas)

"Eram 4 horas e meia da madrugada quando paramos. Fazia noite, noite escura. Já tínhamos andado um bom par de quilómetros.

Olhares que se interrogam e… era a espera.

Era aquele terrível espaço de tempo que se repetia sempre em todas as operações de “Golpes de mão”. Era aquela inquietante altura do tempo que nos punha na maior tensão e ansiedade. Era o aguardar da hora H, a hora do assalto ao refúgio inimigo e era ao mesmo tempo o retempero das energias gastas ao longo da caminhada.

Algumas dezenas de metros mais adiante estava o inimigo, oculto, algures acoitado naquela densa e emaranhada mata. A obscuridade dava às árvores e à sua folhagem feições de figuras fantasmagóricas e assustadoras. Estávamos todos reunidos, uns sentados, outros deitados, outros ainda nas posições que mais lhes apeteciam. Havia o maior silêncio, apenas cortado por um ou outro pigarrear inevitável ou pelo estalar de folhas secas provocadas pela mudança de posição deste ou daquele.

De olhos extasiados, circunspectos e de músculos contraídos, entreolhávamo-nos e parecia interrogarmo-nos: Como vai ser?..., Haverá surpresa?..., Conseguiremos o objetivo?, ou estarão eles já alertados e à nossa espera com uma emboscada montada?

Eram estas as pertinentes interrogações que nos martelavam o cérebro numa expectativa profundamente emocional. Que pesadelo!!... Não, naquela altura não éramos seres humanos, sentíamos e pensávamos como irracionais, quais animais selvagens prontos a atacar a presa.

Estávamos ali para matar, sim, matar, matar o semelhante, só que este tratava-se do inimigo, que, também… nos queria matar.

…E chegou a hora!!

O dia começou a nascer. Era na semi-obscuridade a altura ideal para atacar. Em pé e como autómatos tomamos as posições iniciais de fila indiana e a coluna retomou a marcha. Os cuidados agora redobravam-se. Era a etapa final, a curta etapa que precedia o ataque. As armas foram tomando nas mãos a posição adequada e os cuidados de progressão cingiram-se ao máximo.

De repente, inesperadamente, soa um tiro!... e foi o começo! Foi como que uma gigantesca trovoada então entoasse no silêncio da madrugada. As rajadas ouviam-se incessantemente; o matraquear da metralhadora pesada inimiga fazia-se destacar com as suas fortes detonações; os rebentamentos de granadas de “bazooka” e lança-“rockets” faziam-se aqui e acolá; o fogo era pleno… de parte a parte. A nossa reação, como que impelida por uma mola, foi imediata. Vi os soldados de dentes cerrados e feições crispadas apertarem com raiva os gatilhos, e trocarem os carregadores em movimentos nervosos mas calculados.

Foram 25 minutos de fogo cerrado e ininterrupto, e… embora lentamente, o inimigo foi cedendo… cedendo….

A peito descoberto e ainda debaixo de fogo, avançamos em “leque” em passos firmes e decididos na direção do refúgio inimigo que, entretanto, se põe em debandada, mas sem, no entanto deixar de atirar na nossa direção, com rajadas cada vez mais esporádicas e cada vez também mais distantes.

E o refúgio de Iracunda deu então lugar a gigantescas chamas que reduziram a cinzas aquela importante e estratégica base inimiga algures no Oio, zona de grande poderio e concentração inimiga.

O inimigo reagiu, e, de que maneira! Reagiu forte e decididamente!

Aliás foi o primeiro a atacar, pois tinha-se gorado o fator surpresa que contávamos, o que aliás acontecia em grande parte das vezes, e então emboscou-se aguardando a nossa aproximação.

O tal tiro era o sinal para abrir fogo.

Deram bem a noção da sua força, quer humana quer bélica. Tinham-nos também escapado, mas o seu tributo não tinha deixado de ali ser pago e de forma implacável: no chão, jaziam os corpos de três inimigos; três corpos despedaçados, por, presumivelmente, granadas das nossas “bazookas” ou dos nossos morteiros".

Foi uma terrível emboscada junto àquela base, e a atestar essa força, viu-se no que alguém da 566 nos disse já no regresso: “Eu já sabia que isto era assim, mas não convinha vos dizer”. Compreensivelmente aquiesci.

Depois do inimigo desbaratado e destruído completamente o seu refúgio, começamos a reagrupar as respetivas Secções. O intenso e demorado tiroteio tinha-nos tirado parte da lucidez e por momentos a malta viu-se desorganizada. O Capitão Riquito e o Alferes Castro tiveram mesmo que gritar para que a malta começasse a andar e ao mesmo tempo a reorganizar-se. As casas-de-mato mais importantes na Guiné (julgo) tinham também uma escola. A de Iracunda tinha a sua. Deu bem para ver. Os djubinhos das tabancas adjacentes não andavam ao Deus dará, não. Escola limpa, bem arrumada e asseada que indiciava muita disciplina e ordenação e que me ficou na retina.

Uma escola do PAIGC algures nas matas da Guiné. A que presenciei em Iracunda não fazia muita diferença no ordenamento, mas era mais simples e artesanal. Ao legítimo proprietário da foto a minha vénia pela reprodução aqui feita por mim.

Folhas de papel impressas, soltas (algumas podem ser vistas em reprodução de seguida) que recolhi para recordação (!!) que serviam para ensinar as crianças a escrever e a ler. As folhas que ensinavam o A E I O U e nas “entrelinhas” o incentivo ao combate aos colonialistas e à independência do povo nativo. Muito pedagógicas em todo o sentido.


Entretanto aqueles minutos de hesitação e desorganização permitiram ao inimigo o seu reagrupamento e o ensejo de fazerem ainda algum fogo bem dirigido àquilo que fora o seu refúgio e onde nos encontrávamos agora nós. Imediatamente ripostamos, embora que com poucas armas, pois estávamos desorganizados e até de algum modo desprevenidos. Ficamos a saber que era assim, quando o inimigo era desalojado reagrupava-se adiante umas dezenas de metros e agora disparava sobre os novos locatários do refúgio. Isto deveu-se mais à falta de experiência do que a outra coisa, pois se para o meu Grupo de combate era ainda o segundo contacto com o inimigo, para o 2.º Grupo era mesmo o primeiro. O inimigo “calou-se” então, se bem que tornasse a fazer-se ouvir através de tiros isolados e de muito longe, mais a querer dizer “até logo”. Começamos então a andar rumo à origem: Olossato.

Dada a resistência inimiga e às possibilidades de reagrupamento do mesmo, e uma vez que o nosso abandono do refúgio foi demorado, contávamos com emboscadas por o caminho. No entanto, e ao contrário do que era de supor, o inimigo não se emboscou, razão a que não foi alheia, concerteza, a impressão que lhe causamos com o destemido assalto ao refúgio ainda debaixo de fogo. E por vezes também haviam erros de cálculo. Talvez isto. Terá acontecido isso.

No regresso fomos queimando, sistematicamente, as tabancas e moranças que nos iam aparecendo, aliás como era habitual em análogas circunstâncias. Ao chegarmos a elas e como também invariavelmente acontecia, encontrávamo-las com um aspeto de recentemente abandonadas, portanto numa ação denunciadora de que ali habitavam terroristas ou pró-terroristas.

Completamente extenuados física e psicologicamente, chegamos junto do cruzamento, local, que como tinha ficado combinado, nos encontrávamos com as viaturas. Pousei o capacete no chão e deixei-me cair, deitando-me um pouco. Naquelas alturas que se lixe a guerra. O desgaste físico e psicológico fazia-nos olhar para o céu de forma absorta e descontraidamente. A segurança, se bem que em caso algum era de descuidar, não seria muito pertinente, pois estávamos muito perto do Olossato. E às vezes que se lixe a segurança também; queríamos era o chão para as costas e a lembrança: “Oh(!) Rui olha a nossa cervejinha à espera”, como me dizia muitas vezes no mato o meu amigo, Furriel também, o açoriano Vieira, falecido recentemente - paz à sua alma.

Iracunda tinha então ficado bem conhecida da 816. Chegados ao Olossato logo tratamos de regressar a Bissorã. Uma vez chegados aqui fomos logo “assaltados” por os colegas que ali tinham ficado, que nos “metralharam” com perguntas e mais perguntas, satisfazendo assim a sua curiosidade e o conhecimento de causa. Afinal a 816 tinha andado aos tiros pela primeira vez.

Compreensivelmente, fomos respondendo com maior ou menor humor, se bem que o que mais me apetecia era sentir o mais depressa possível a água a jorrar pelo corpo abaixo e de seguida abocanhar o gargalo de uma garrafa de cerveja bem fresquinha. Estas duas coisas (banho logo seguido de uma cerveja fresca ou, ao contrário, a maior parte das vezes - haja paciência!- era o nosso prazer e a nossa alegria quando chegávamos do mato. A operação “Outra vez”, que curiosamente até era a primeira para a 816, a Iracunda, marcou-me indelevelmente para sempre e porquê: Saraivada de fogo durante longos e longos minutos a abrir a nossa operacionalidade. Só em ficção e em filme tinha visto daquilo. Armamento atualizado e estratégia poderosa do lado do inimigo.

E carago(!), aquilo não era para brincar, vi que andava por ali muito quem me queria tirar o sarampo e sem me conhecer de lado nenhum e sem eu ter feito mal a alguém.

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 7 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 – P10348: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (20): Um sapo com asas no Olossato

Guiné 63/74 - P10530: História da CCAÇ 2679 (54): Quatro tiros para o Pedro (José Manuel M. Dinis)

1. Mais uma história do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), desta vez contracenando com o seu amigo e camarada Pedro Nunes.


HISTÓRIA DA CCAÇ 2679 (54)

QUATRO TIROS PARA O PEDRO

O final da comissão aproximava-se. Naturalmente, a nossa motivação estava toda direccionada para o regresso. Alguns já tinham passado maus bocados, não só do ponto de vista da ruideira e ansiedades da guerra, estrito senso, como também da guerra psicológica que era discricionariamente servida a uns e outros. O Pedro pertencera a este último grupo, desde que a companhia entrou em quadricula, e ele não se mostrou disponível para o negócio da gasolina. Foi tão perseguido e penalizado, que ninguém percebeu o louvor final que a "trika" lhe atribuiu. Alguma espécie de arrependimento? Teriam tido conhecimento das boas relações familiares do Pedro? Ou pura hipocrisia para compensar o elevado número de porradas que comprometiam a carreira do capitão?

Naquelas circunstâncias o Pedro, por vezes, mostrava-se alterado, exprimia a sua legítima revolta. Comigo mantinha bom relacionamento, pleno de camaradagem e solidariedade. Lembro-me de quando recebia queijos da metrópole, feito menino queque cortava as partes bolorentas, que o Pedro imediatamente agarrava e levava à boca, dando vivas à penicilina.

Um dia fui acordado muito cedo com uns traques na cara, e quando me dei conta, enquanto ele fugia pela porta, atirei-lhe uma bota que não atinou com a trajectória, e embateu suavemente na cara de outro camarada que também dormia. O Pedro escapou em frente à minha janela e ria-se com estrondo. Ele fazia a festa e lançava os foguetes.

O Pedro dormia no abrigo dos auto-rodas, mesmo ao fundo, onde havia segurança máxima. Mas era dos primeiros a acordar, pois todos os dias havia movimentação de viaturas para diferentes deslocações. Ao contrário, eu dormia quando não estava comprometido com saídas matinais. Por isso, um dia ou dois a seguir, o Pedro voltou a entrar no meu quarto a horas incertas da madrugada, aproximou-se da cama, e voltou a peidar-se na minha cara. Acordei com a detonação, muito a tempo de o ver a sumir-se no outro quarto ao lado, até atingir o alpendre da casa, e correr à frente da janela, enquanto ria alarvemente. Contava aos que por ali cirandavam a acção valente que empreendera. E já era pela segunda vez.

O sono não me permitia pensar em vinganças, mas, no íntimo, eu achava que a aleivosia ia sair-lhe cara. Ora, como diz o ditado, tantas vezes a bilha vai à fonte, até que parte. A cena ainda se repetiu para gáudio do Pedro, um sacana gabarolas, que depois se ragalava a contar e a fazer filmes que desmoronavam a minha reputação. Uma noite alguém me alertou ao deitar, para dormir em corrida, a ver se não era acordado com ataques já esperados, mas sempre surpreendentes. Fez-se luz. Peguei na minha namorada, pu-la em posição de tiro-a-tiro, e encostei-a à beira da janela que dava para o alpendre por onde ele se safava em busca de protecção, e na direcção dos espectadores que já granjeara, onde era aclamado, e se fazia a festa. Grande coiro! Ia pagá-las.

Fatal como o destino. Agora não me ocorre se já esperava por ele, se ele ainda me acordou. Lembro-me de que cumpriu o talentoso plano de me aterrorizar com flagelações, e fugiu pelo caminho do costume que já conhecia tão bem, e lhe conferia o êxito de que carecia para elevar o moral. Levantei-me. Peguei nela. Apontei-a para o exterior. E quando ele passou em correria esfuziante, puxei o gatilho uma vez. PUM! Puxei o gatilho outra vez. PUM! E ainda puxei o gatilho mais duas vezes. PUM! PUM! Os tiros foram para a parada onde não havia ninguém, direi que para uma altura que não atingia os pedestres, se lá houvesse.

Mas não houve festa. Antes, sucedeu um silêncio que muito apreciei. Como aquelas pausas na música, que lhes dão profundidade ou continuidade. O Pedro sentiu a morte a rondar-lhe. Logo argumentou que eu estava maluco, que não queria mais conversas comigo, e que eu era um perigoso assassino em potência. E, na verdade, passou cerca de 15 dias até voltar a falar-me. Mas à defesa. Sem confianças. Até que as relações voltaram ao normal, e hoje mantemos estima recíproca.

Semana de campo no Caniçal - Madeira > Pedro, Dinis, Gonçalves, Marino e Calvo

Bajocunda > Recepção aos piras

Piche > Rebenta-minas usado 

Piche > Oficina da ferrugem

Bajocunda > Crianças celebram as primeiras chuvas

Piche > Abrigo concluído pela ferrugem da 2679
Fotos de Pedro Nunes
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 11 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10517: História da CCAÇ 2679 (53): "Ataque" muito certeiro (Jose Manuel M. Dinis)

sábado, 13 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10529: Um artigo sobre o toque de "Silêncio" (José Martins)

1. Em mensagem do dia 9 de Outubro de 2012, o nosso camarada José Marcelino Martins* (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), enviou-nos este trabalho sobre o toque de Silêncio:


O toque de Silêncio 

Há dias, não muitos, recebi um mail do meu irmão mais novo que, sempre que encontra algo do género me envia. Apenso trazia o PPS intitulado Funeral Militar, com fundo musical de um clarim, [http://www.slideshare.net/amadeuw/toque-de-silncio-funeral-militar] e enviei-o aos editores do blogue, interrogando da possibilidade de o partilhar com a Tabanca Grande.
O nosso administrador sugeriu-me que pesquisasse o tema e o desenvolvesse. Aqui está o resultado.

A peça em questão e que pode ser visionado no link acima referido, esta referida como “Taps” que tem origem no termo holandês “Taptoe”, que significa, em tradução livre, “Fechar os botequins para que a tropa volte para os quartéis”.

Foto: Wikipédia (DR)

Voltando aos slides, eles contam um acontecimento ocorrido durante a Guerra Civil Americana ou Guerra da Secessão, que ocorreu entre 12 de Abril de 1861 e o dia 9 de Abril de 1865, entre os Estados Unidos da América e os Estados Confederados da América, também conhecidos como a União contra os Confederados, ou o Norte contra o Sul. Apesar de ter terminado o confronto em Abril, ainda houve escaramuças entre os militares de um lado e outro, sendo o último tiro sido dado e 22 de Junho desse ano. Estiveram envolvidos mais de 3.000.000, sendo cerca de dois terços da união, dividindo, inclusivamente, famílias, não só pelas ideias defendidas mas pela localização dos diversos membros da mesma.

Voltando ao acontecimento referido, de que não se conhece se é um facto que existiu ou se “tem contornos de lenda”, uma vez que várias versões foram encontradas.

Robert Elly, Capitão de Infantaria do Exército da União, durante a noite quando estava no seu posto de combate, ouviu gemidos vindo para além da sua linha de defesa. Desconhecendo quem se encontrava em sofrimento, rastejou, sob o fogo das armas que se fazia sentir, chegando junto do soldado que, já tenuemente, pedia ajuda. De imediato foi arrastando o militar ferido, até regressar às suas linhas, a fim de lhe prestar auxilio. Acontece que quando chega a local seguro, apercebe-se de que arrasta apenas o corpo de um militar já sem vida.

Levado para um local onde pudessem tentar identificar o soldado tombado, verificam pela farda que se trata de um soldado confederado mas, além desse facto, Elly constata que o corpo que se encontra sob o seu olhar, mais não é que o do seu filho, que tinha ido para uma cidade do sul estudar música. Não sabia que ele se tinha alistado nas tropas confederadas.

Pede, então, ao seu superior hierárquico que o autorize a fazer um funeral militar ao rapaz, apesar de ser um inimigo da União, permitindo uma guarda de honra e a presença de músicos no enterro.

É autorizado a utilizar uma pequena guarda de honra, mas quantos a músicos só dispensava um, deixando essa escolha ao pai desafortunado.


A escolha recaiu sobre um corneteiro, a quem o pai pediu que executasse, durante a cerimónia, algumas notas musicais, encontradas num papel no bolso da farda do filho.

Assim nasceu um “toque” que passou a ser usado, quer pela União quer pelos Confederados em funerais militares, sendo oficialmente reconhecido pelo exército dos Estados Unidos da América em 1874, passando o toque a ser executado, oficialmente, em todas as homenagens a militares falecidos a partir de 1891.

Executado apenas por um corneteiro, em conjunto com outros instrumentos de sopro e percussão, ou mesmo por uma orquestra sinfónica, a base do tema é sempre executada por uma trompete.

O toque é usado, segundo o que apurei, em muitas cerimónias militares de vários países, com algumas variações, mas tendo por base a versão original. Também foram adaptadas várias letras, ao tema, sendo um deles o seguinte:

O dia terminou. 
O sol se foi dos lagos, das colinas e do céu, 
tudo está bem,  descansa protegido. 
Deus está próximo.

A luz ténue obscurece a visão, 
e uma estrela embeleza o céu, 
brilhando luminosa. 
De longe, aproximando-se cai a noite.

Graças e louvores para os nossos dias. 
Debaixo do sol, 
debaixo das estrelas, 
debaixo do céu, 
enquanto caminhamos, isso nós sabemos.

Deus está próximo.

O Toque de Silêncio, assim como as Cerimónias fúnebres variam, de acordo com os resultados da pesquisa efectuado, de país para país, mas mantendo o “Toque de Silêncio” muita semelhança.

Em Portugal, não é habito a execução deste toque, em cerimónias fúnebres militares. Não tendo conseguido obter regulamento ou normas sobre o assunto, vamos basear-nos na observação directa destas cerimónias.

Há uma força, do ramo a que pertence o militar, que varia desde a secção ao pelotão, quando se trate de oficiais ou sargentos e praças. Aqui interessa realçar, já que esta patente não existia no nosso tempo, o Sargento-mor, apesar de pertencer à classe de sargentos, tem honras de oficial.

A força colocada à entrada do cemitério, presta honras à passagem do féretro na posição de “Funeral Armas”, enquanto o comandante faz “Continência”.

Pelotão de Infantaria - Salvas de Ordenança 
© Foto inserida no post 9804 [Aqui pretendia colocar fotos, de minha autoria, durante um funeral militar, mas não as localizei no arquivo].

Logo atrás do armão, segue um ou mais militares que transportam, numa almofada própria, as condecorações e o boné ou outra cobertura em uso.

O tempo do acto seguinte varia, um pouco, pelo que gostaríamos de ter encontrado documentos que revelassem a forma das mesmas.

O acto seguinte, e final pelo que a força destroça de imediato, é a “Salva de três disparos” que acontecem assim que o carro fúnebre entre no cemitério, ou no momento em que o corpo é depositado no jazigo ou desce à terra.

Após o “Toque de Recolher”, dando o sinal de que as tropas devem regressar ao quartel, é executado o “toque de silêncio” (ou era já, que muitas normas foram alteradas) após algum tempo, dando sinal de que o dia terminou e é tempo de descansar, até ao “Toque de Alvorada”. Este descanso só “pode/podia” ser interrompido por “algo extraordinário” que acontecesse, apesar de que muitos instrutores do nosso tempo, gostavam de proceder a “exercícios suplementares, em instrução extraordinária e, sobretudo, nocturna.

Em cerimónias militares, há sempre uma parte em que são Homenageados os Mortos em Combate, quer se esteja numa cerimónia junto a algum monumento que assinale esse facto, quer em paradas militares fora do ambiente de homenagem junto a algum monumento.

Nesse acto, e após colocação de flores na base do monumento, no caso de ser esse o motivo da concentração da força, é dada a voz de “Ombro Arma” e, nesta posição é executado o “toque de Silencio, querendo significar que “alguém” adormeceu na paz que não encontrou no combate que travou.

Com a força militar em posição de “Apresentar Armas” é executado o “Toque de Mortos em Combate”, acompanhado, ou não, por uma salva de artilharia de vinte e um tiros, seguindo-se um momento de silêncio.

Retomando a posição de “Ombro Arma” é executado o “Toque de Alvorada”, como um sinal de que é possível o reencontro com os camaradas que partiram e que, os que se mantêm em serviço, tudo farão para que o seu sacrifício não tenha sido em vão.

Toques militares – endereço (DR):
http://ultramar.terraweb.biz/Imagens/mocambique_ilidiocosta_toquesmilitares.htm

Toque de silêncio, com orquestra – endereço:
http://www.youtube.com/watch?v=fXS7bMh8vEA

José Marcelino Martins
8 de Outubro de 2012
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 6 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10490: Os Soldados não morrem, apenas tombam no campo de honra (3) (José Martins)

Guiné 63/74 - P10528: (Ex)citações (200): Pois que viva... o VAT 69! (Tony Borié / Luís Graça)



1. Mensagem do Tony Borié, um camarada luso-americano, a propósito de um comentário do editor L.G.  ao seu último poste, P10524:

Olá, Luis. Este poema (*), vai para o meu espólio de guerra. Já lá está. 

Que o Criador continue por muitos e longos anos a inspirar-te, e dar voz aos teus sentimentos, que são o de muitos milhares de antigos combatentes, felizmente ainda vivos, e que os podem ler, e ver neles a sua imagem reflectida. 

Estou um pouco longe do meu querido Portugal, já não uso o passaporte de Portugal, mas continuo a chorar ao ouvir o hino de Portugal e a sofrer ao lembrar-me na nossa vivência em África. 

Por favor, continua a dar vida à tua página na Internet, que é um grande motivo de coragem, e a voz de milhares de antigos combatentes. Talvez sem quereres, já fazes parte do património da história do nosso conflito com as antigas colónias de África. 

Um abraço do amigo, Tony Borié.

(*) Comentário de Luís Graça  ao poste P10524:

Tony, Ganda Cifra!... Pois que viva o Vat 69!... Ajudou-nos a (sobre)viver!... (Felizmente que eu nessa altura não era um homem... da saúde pública!). 

(...) Retenho ainda a imagem
Do nosso patético duelo
No bar de sargentos de Bambadinca,
Tendo por arma, letal,
Uma garrafa de VAT 69
(Ou era Jonhnie Walker ?
Ou White Horse,
a tal do cavalinho branco ?
Já não me lembro do rótulo,
Sei apenas que era scotch,
E do bom,
Daquele que vinha
From Scotland
For the Portuguese Armed Forces
With love!
)…

Um duelo de morte,
Gole a gole,
Até ao gole final,
Em menos de 15 minutos!...
Com árbitro e tudo,
Apostas a dinheiro,
Mirones e claques de apoio,
Como mandavam as regras
Dos apanhados do clima de Bambadinca!

Apanhados do clima, dizes bem,
Exaustos,
Usados e abusados,
Filhos de um Sísifo menor,
Condenados ao mais insano dos suplícios,
Uma guerra a que chamavam
De contra-guerrilha,
Uma guerra do gato e do rato…
Não, não, era a roleta russa,
Ninguém tinha pistolas de tambor,
Era o fado lusitano,
Era o fado da Guiné,

Meu camarada, meu amigo, meu irmão,
Era a nossa triste condição,
Era a nossa quiçá estúpida, mas viril, maneira
De matar… o tempo,
O tempo em tempo de guerra,
O tempo de espera entre uma e outra operação.
O tempo de espera que podia ser
Entre a vida e a morte.
Era a insanidade mental,
Era a raiva, traiçoeira,
Era a lucidez da loucura a tomar conta
De nós….

(...)

In Luís Graça > Blogpoesia > Elegia para um paisano.

2. Comentário do Tony Borié ao comentário do editor L.G.:

Olá, Luis:

O teu poema ao Vat 69 e outros" scotchs" é  um hino às horas que nós,  antigos combatentes, passávamos, nos intervalos da guerra, que sofremos no corpo e na alma!. Bem hajas. Nessas horas, éramos nós, oriundos da Europa, onde entre dois scotchs, dávamos largas aos nossos sentimentos, de amizade, abraços, amor ao próximo, esperando a paz dentro da guerra, e algumas chorávamos, lembrando o nosso recanto no Portugal, que o mapa colocou à beira mar plantado!. 

Nas minhas andanças pelo mundo, em alguns países, não havia Vat 69, e então olhava a garrafa e pedia um "cavalinho branco" [, White horse,] , como me sabia esse scotch, fechava os olhos e pensava no chão vermelho, no arame farpado, e no cheiro a camuflado sujo, roto e cheio de lama que via nos meus colegas secarem encostado ao meu mosquiteiro!. 

Não vou continuar, porque vou começar a ser piegas, e isso não é bom num antigo combatente!. Um abraço, Tony Borié.

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Nota do editor:

Guiné 63/74 - P10527: Agenda cultural (222): Tertúlias Fim do Império, Oeiras e Lisboa, calendário das sessões

CALENDÁRIO DAS TERTÚLIAS FIM DO IMPÉRIO EM OEIRAS E LISBOA



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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 12 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10521: Agenda cultural (221): Debate: "Que surpresas nos reservará a literatura da Guerra Colonial?", na Bertrand Dolce Vita Monumental (Lisboa), dia 16 de Outubro de 2012, pelas 18h00

Guiné 63/74 - P10526: Manuel Serôdio, ex-fur mil CCAÇ 1787 (Empada, Buba, Bissau, Quinhamel, 1967/68) (Parte II): Bula, Op Bolo Rei, uma grande operação de 15 dias, de 22/12/67 a 3/1/68: 40 mortos e 5 feridos confirmados e 14 capturados, do lado IN; 7 mortos e 32 feridos do lado das NT; recuperados 44 elementos pop





Guiné > Região do Cacheu > Bula >1967 >  Furriel Serôdio

Fotos: © Manuel Serôdio (2012). Todos os direitos reservados.
1. Continuação da publicação das memórias do Manuel Serôdio (*):


(i) A 4 do corrente, escreveu o Manuel Serôdio, de Rennes, França onde vive:

Amigo Luis, vejo que guardas conhecimento da língua Françêsa, vamos fazer um teste:  Je suis arrivé en France a 21 Aôut 1970, et j'ai depuis ce jour residence à Rennes, capitale de la Bretagne qui aujourd'hui compte près d'un million d'habtitants. (**)
Isto é uma pequena brincadeira, mas se lês a frase, não hà dúvidas que és um bom "francês",.,,,

Vou continuar a "escrita" possivelmente vou recomeçar certas passagens jà publicadas, mas assim vai tudo em "ordem". Queria responder a um comentário do Arménio Estorninho, mas ainda não percebi como enviá-lo. E PORTANTO ESTAMOS EM 2012. Um abraço amigo.

(ii) Resposta do nosso editor:

Salut le copain! Le français ? C' est ma première langue étrangère... Ton français écrit est de très bonne qualité... J'aimerais bien avoir beaucoup d'autres opportunités pour parler le français, une très belle langue latine!... Amitié. Luis

PS - Je viens de recevoir ton dernier message concernant l'histoire de ton unité militaire en Guinée... On la va publier.




2. Manuel Serôdio, ex-fur mil CCAÇ 1787 (Empada, Buba, Bissau, Quinhamel, 1967/68) (Parte II ):  Bula, Op Bolo Rei

Durante o período de permanência da Companhia em Bula, foi-lhe dado o treino operacional pela CCva 1693, tendo ficado posteriormente como Companhia de Intervenção do Comando Chefe.

1967


Novembro

Segurança aos trabalhos da estrada Bula-João Landim e estacionamento da engenharia.
Emboscadas 10
Escoltas a João Landim 09Patrulhas 03
Controle das populações 01


Dezembro

Proteção aos trabalhos da estrada Bula-João Landim e estacionamento da engenharia

Emboscadas 11
Escoltas a João Landim 05Patrulhas 03
Operações 07


OP "BARCAROLA"


1) Exploração da notícia que referia a existência de armas distribuidas pelo inimigo a elementos da tabanca de Biur.

2) Patrulhamento

3) Península de S. Vicente


4) 1 de Dezembro de 1967

5) Saída às 3 horas

6) CCça 1787, CCav 1693, 1 secção do pelotão de auto-metrelhadora ligeira 1106.

7) Efetuada uma rusga a Biur. Não foi confirmada a notícia.

OP "BOLOTA"

1) Coluna de reabastecimento.

2) Operação com a finalidade de escoltar uma coluna de reabastecimento a Binar e Biambe, e atuar ofensivamente com as forças de segurança sobre os elementos inimigos que tentassem atuar sobre a coluna.

3) Bula-Binar-Biambe
4) 4 de Dezembro de 1967

5) Saída pela 6,30 horas

6) CCaça 1787, CCva 1693, C. Art 1647, C. Art 1688, 1 secção do pelotão de auto metrelhadora ligeira 1106

7) Sem incidentes.


OP "BALUARTE BRANCO"

1) Exploração da notícia que referia a existência de um acampamento inimigo na península de Bissauzinho.

2) Ação ofensiva com a finalidade de destruir as instalações inimigas, aprisionar ou aniquilar elementos inimigos e capturar material e documentos.

3) Bissauzinho.


4) 9 de Dezembro de 1967

5) Saída pelas 12,30horas

6) 1 grupo de combate da CCaç 1787, CCav 1693, CArt 1647, CCav 1747, 1 secção do pelotão de Milícias 126.

7) As nossas tropas foram emboscadas pelo inimigo com lança-roquetes e metralhadoras ligeiras. À reação pronta e rápida das nossas tropas, o inimigo retirou com baixas prováveis. As nossas tropas sofreram 1 morto e 3 feridos graves. Foi batida a área, sem mais contactos.



OP "BARBA AZUL"

1) Detetar movimentos inimigos na região

2) Rede de emboscadas conjugadas com um patrulhamento ofensivo, com a finalidade se aniquilar ou prender os elementos inimigos que se revelassem, capturar material, documentos, e prender elementos suspeitos.

3) Região de Capafá, Bipo Delta, e Boté.


4) 14 de Dezembro de 1967

5) Saída pelas 22 horas

6) CCaç 1787, CCav 1693

7) Não houve contato.


OP "BOLETIM"

1) Coluna de reabastecimento

2) Operação com a finalidade de escoltar uma coluna de reabastecimento a Biambe, e atuar ofensivamente com as forças de segurança sobre os elemntos inimigos que tentassem atuar sobre a coluna.

3) Bula-Biambe

4) 18 de Dezembro de 1967

5) Saída pelas 8 horas

6) CCaç 1787, CCav 1693, CArt 1647, CArt 1648

7) Não houve contato.


OP "BENVINDO"

1) Coluna de reabastecimento

2) Operação com a finalidade de escoltar uma coluna de reabastecimento a Binar, e atuar ofensivamente com as forças de segurança sobre os elementos inimigos que tentassem atuar sobre a coluna.

3) Bula-Binar


4) 20 de Dezembro de 1967

5) Saída pelas 5 horas

6) CCaç 1787, CCav 1693, CArt 1647

7) Foram avistados por 1 grupo de combate da Companhia 1787, 8 elementos inimigos que fugiram ao serem detetados. 1 grupo de combate da Companhia 1693 avistou 3 elementos que fugiram sob o fogo das nossas tropas. 


Cerca das 12 horas voltaram a ser detetados 8 elementos inimigos, incluindo 2 brancos, que se furtaram ao contacto. 1 grupo de combate da Companhia 1647 foi flagelado por um grupo inimigo com morteiros, lança-roquetes e armas automáticas. 1 grupo de combate saiu de Binar em perseguição do inimigo até Poncho, causando baixas prováveis. Sem consequências para as nossas tropas.


OP "BOLO REI"

1) Missão: combater a atividade inimiga no setor.

2) Batida através de patrulhamento, golpes de mão e emboscadas.

3) Zona de ação: região norte do setor

4) Data de início: 22 de Dezembro de 1967

5) Duração: 15 dias

6) Forças intervenientes: CCaça 1787, 1788, 1801, CCav 1747, 1650, CArt 1746, 1648, 1647, 1802, e três  pelotões de rtilharia do BAC 1;


23 de Dezembro de 1967

Forças das companhias 1787 e 1788 que patrulhavam a trgião a sul de Bipo, foram emboscadas por 1 grupo inimigo. Â pronta reação das nossas tropas, o inimigo retirou com baixas prováveis. As nossas tropas sofreram 1 morto e 7 feridos. Neste contato, a companhi sofreu o seu primeiro morto e 5 feridos, dois deles graves.


31 de Dezembro de 1967

Apoiadas pela força aérea e pela artilharia, as CCaç 1787 e 1788 conseguiram entrar no acampaento inimigo de Choquemone, tendo capturado diverso material e destruído as instalações inimigas.


03 de Janeiro de 1968

As CCaç 1787 e 1788 efetuarm um cerco às tabancas da península de S. Vicente, tendo detido 83 elementos da população. Posteriormente, após interrogatório, verificou-se que 2, eram elementos inimigos.


Conclusões: 

Como reflexo da operação "BOLO REI", e até ao fim do mês de Janeiro de 1968, apresentaram-se 124 elementos da população de áreas anteriormente controladas pelo inimigo.

Durante a operação o inimigo sofreu 40 mortos e 5 feridos confirmados, e 14 capturados. As nossas tropas sofreram 7 mortos e 32 feridos. Foram recuperados 44 elementos da população.

(Continua)
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 3 de outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10474: Manuel Serôdio, ex-fur mil CCAÇ 1787 (Empada, Buba, Bissau, Quinhamel, 1967/68) (Parte I): De Oliveira de Azemeis a Bula e Empada

(**) Cheguei a França em 21 de agowto de 1970 e desde então tenho residência em Rennes, a capital de região da Bretanha, que hoje conta com cerca de um milhão de habitantes.

(**) Viva, companheiro! O francês é a minha primeira língua estrangeira.  O teu francês escrito é ótimo... Pessoalmente gostaria de ter muito mais oportunidades de falar esta bela língua latina... Com a amizade do Luís

PS -  Acabo de  receber a tua última mensagem, respeitante à história da tua companhia...  Vamos publicar esse material.

Guiné 63/74 - P10525: Fantasmas ...e realidades do fundo do baú (Vasco Pires) (1): Uma história do artilheiro de Gadamael, à beira da peluda, no 'bem-bom' de São Domingos...




Guiné > Região do Cacheu > São Domingos > O alf mil art Vasco Pires, ex-alf Mil, cmdt do 23.º Pel Art, Gadamael, 1970/72), nos últimos meses da sua comissão no 'resort' de São Domingos...

Foto:  © Vasco Pires (2012),. Todos os direitos reservados [Editada por L.G.]

1. Mensagem do nosso grã-tabanqueiro Vasco Pires,  tuga da diáspora, a viver no Brasil:

Caros Luis Graça e Carlos Esteves Vinhal,
Cordiais Saudações.
Estou em dívida com o blogue, pois ainda não enviei foto dos tempos da Guiné (*). 

Como eu disse em mensagem anterior, pedi a um parente para procurar essas fotos nos meus pertences que estão em São Paulo, contudo, teve que ausentar-se da cidade, e não pode ainda procurá-las. Me cedeu a foto, que vai anexa, que estava num álbum em seu poder.

Dita foto, acredito eu, é da fase final da minha comissão, três ou quatro meses que passei em São Domingos, na altura sede de um Batalhão de Infantaria (lamentavelmente não lembro o nome do oficial que dirige o jipe). 

Nós,  de rendição individual, por vezes tínhamos que esperar substituto, que normalmente tardava. Ao fim de mais de vinte meses de comissão, a maior parte deles passada em Gadamael, mandaram-me para São Domingos. 

A atividade operacional da artilharia em São Domingos era nula, assim quando cheguei, falei para os Furrieis, que a minha comissão tinha terminado (21 meses), mas faltava o substituto. Eram excelentes profissionais, tomaram conta do Pelotão e respeitaram a minha "aposentadoria" e,  como eu pedi, só me chamariam quando houvesse algum problema, o que nunca aconteceu. 

A minha atividade principal era jogar bridge, o Comandante do Batalhão, um Coronel à beira da reforma, era o mais entusiasta.

Chegados os 24 meses, pedi para o Tenente-Coronel,  2° Comandante, no exercício temporário do Comando do Batalhão de Infantaria, que me liberasse pois a minha hora de voltar já tardava, o que não aconteceu; dizia ele que só me liberaria com a chegada do meu substituto, sendo em vão os meus argumentos de que o Pelotão tinha dois excelentes Furrieis experimentados. 

O máximo que consegui foi autorização para ir a Bissau para ver se conseguia um substituto. Ao chegar ao GAC 7 (ou já seria GA 7?), fui-me apresentar ao Comandante, que acredito era o Coronel Cirne Correia Pacheco, que me recebeu cordialmente, e logo disse que ia mandar-me para casa, ao que eu retorqui:
- Infelizmente, não vai ser possível, porque o nosso Tenente-Coronel disse que é ele que manda, e não vai autorizar.

Vi que tinham sido "santas palavras", pois ele limitou-se a dizer 
- Ah é, ele disse que é ele quem manda ?!
- Sim,  senhor, meu Comandante - ousei dizer. 

Imediatamente ordenou a quem de direito provedenciar os meus papéis.

 Estava eu na sala de espera do Aeroporto de Bissau, quando vejo entrar o Comandante do GAC 7 [ou melhor, GA 7], dirigiu-se a mim e ao meu amigo, na altura Alferes Vinagre de Almeida, que também estava voltando, e depois de responder à nossa saudação, dirigiu-se a mim e disse em tom solene:
- Infelizmente o nosso Tenente-Coronel é quem manda e você tem que voltar!!!

Provavelmente viu que eu tinha mudado de cor, e logo emendou:
- Brincadeira, vim aqui para agradecer, e desejar boa sorte para vocês dois. 

Caro Carlos Vinhal, cá vai uma "estória" ou "causo", como falam aqui no Brasil, da nossa guerra, conforme você pediu na minha apresentação.

forte abraço, VP  [, foto atual à direita].


PS - Caros Amigos Luis Graça/Carlos Vinhal,

Ontem enviei um e-mail, e, procurando no fundo do "baú de recordações", sobre a fase final da minha comissão em São Domingos, disse que no começo de 72, era sede de um Batalhão de infantaria, ou seria um Batalhão de cavalaria?

Desculpem a minha falha mas, como disse anteriormente, saí de Portugal ainda em 72, e a Artilharia na Guiné era de rendição individual, e somente oficiais , sargentos e especialistas, pois praças e cabos eram da guarnição local. Então os contactos com os camaradas se perderam facilmente, e as memórias foram ficando mais diluídas.
forte abraço, VP


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Nota do editor:

(*) 27 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10443: Tabanca Grande (362): Vasco Pires, ex-Alf Mil, CMDT do 23.º Pel Art.ª (Gadamael, 1970/72)

Guiné 63/74 - P10524: Do Ninho D'Águia até África (17): Meia Missão, em África (Tony Borié)

1. Continuação da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.


Do Ninho D'Águia até África (17)

Meia Missão, em África

O dia, como costume, estava quente e abafado. Fez um ano que o Cifra desembarcou em África e esteve no tal acampamento, junto ao cais de desembarque.

Já não é um “periquito”, novato, é um veterano, já pode dar conselhos aos mais novos. É um posto, como se diz na zona de guerra.

Chamou o Setúbal, que como já sabem foi baptizado com este nome porque o principal era Jeremias e não dava muito jeito a pronunciar, mais o Curvas, alto e refilão, e disse:
- Como já devem saber, faço um ano de guerra, vamos festejá-lo? - Ao que o Setúbal logo respondeu.
- Fazes não, fazemos, pois viemos no mesmo barco. Não te lembras?.

Era verdade, embora colocados em unidades diferentes.

Foram buscar uma garrafa de Vat 69, sentaram-se os três debaixo da enorme Mangueira, que por sinal tinha sido baptizada com o seu nome, junto das gaiolas dos macacos e periquitos, abriram-na e atiraram com a rolha para longe, sinal de que não precisavam mais dela.

Acordaram umas horas depois, com os macacos a olharem para eles, umas vezes com a cara de lado, outras vezes emitindo grunhidos de angústia, dando voltas na gaiola, tentando abri-la, talvez para acordar os donos que os tratavam e lhe davam algum carinho.

Ao outro dia pela manhã, o Cifra, tinha umas fortes dores na cabeça e,  ao vestir os calções, desequilibrou-se e rasgou-os um pouco mais. Era normal, pois a roupa já estava bastante coçada, as botas gastas, e no comando diziam que só tinha direito a roupa nova quem a perdesse em combate ou coisa parecida, mas como o Cifra não andava em combate, não tinha direito a roupa nova.

Aqui funcionava o tráfico de influências. Os mais velhos trocavam duas camisas ou uma camisa e dez maços de cigarros por uns calções, com os mais novos, pois camisa é coisa que poucos usavam. Nessa altura, a mais importante pessoa
 passou a ser o sargento da arrecadação, onde não existia arrecadação nenhuma.

O Cifra falou com ele, pois os seus calções estavam rotos. E disse-lhe com cara de mau:
- Estou farto de calções rotos desde criança.

O sargento, com paciência, responde-lhe:
- Só se estiverem mesmo rotos e já não se possam usar.

O Cifra, nesse preciso momento, tira os calções do corpo, rasga-os ao meio e diz:
- Aqui está a prova.

Regressa nu ao centro cripto, pois há muito que não usava roupa interior. O caso correu fama e andou de boca em boca no aquartelamento.

Passado uns dias o Cifra tinha dois pares de calções novos. A partir desse momento foi colocada uma folha no refeitório, para colocarem o nome para que cada caso fosse analisado.

Os calções que foram distribuídos ao Cifra eram da cor verde azeitona e as camisas que algumas vezes usava eram amarelas, portanto, quando se vestia de roupa lavada, principalmente ao domingo, com calções verde azeitona e camisa amarela, tinha um aspecto de tropa diferente. O Curvas, alto e refilão, quando o via assim vestido, dizia:
- Tu não és nem nunca foste um militar. Tu és tropa fandanga! Não sei o que é que vocês aqui fazem. Vocês dizem que são cifras, vocês são mas é uma “granda merda”. Na altura em que andamos em patrulha, temos emboscadas, ou quando vamos em operações de destruição das bases das tuas amigas guerrilheiras, (falava sempre nelas), olho para o lado, e nunca te lá vi.

Era assim o homem, e o melhor era não lhe responder, pois o vocabulário ia estender-se, e como por vezes não andava o Trinta e Seis por perto...

Mas no fundo o Curvas, não era má pessoa, tinha tido uma juventude de sofrimento, sem carinho e nunca teve ninguém que lhe perguntasse alguma vez se tinha fome, se tinha frio e precisava de roupa, ou se tinha dores em qualquer parte do corpo, neste momento  devia ser o militar mais bem preparado para a guerra, que se encontrava no aquartelamento, era um autêntico “survivor”, necessitava somente de compreensão de alguém como o Trinta e Seis, a quem ele obedecia, sem refilar.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 9 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10504: Do Ninho D'Águia até África (16): As notícias (Tony Borié)

Guiné 63/74 - P10523: Memória dos lugares (192): Cufar (Mário Fitas, 1965/67; Eduardo Campos, 1972)

1. Mensagem do Mário Fitas [, ex-fur mil op esp Mário Fitas pertenceu à CCAÇ 763, Cufar, 1965/67,]  comentando,  a pedido dos nossos editores, as fotos do álbum do Armindo Batata sobre Cufar  (*):

Caro Luís,

É claro que as fotos do Armindo Batata sobre Cufar me fazem reviver aqueles tempos de 1965/66. Há quanto tempo!

Vamos então ao que consigo identificar e lembrar da reconstrução da quinta de Cufar Novo, à altura propriedade do sr. Camacho e que foi transformada numa das melhores bases de antiguerrilha no sul da Guiné.

Foto 62 [, à esquerda]:

À esquerda identifica-se a pista de Cufar em terra batida, inaugurada em 1957 pelo então presidente da Republica Craveiro Lopes na sua visita à Guiné.

Esta pista tinha na altura mil e novecentos metros de comprimento.

No começo da pista ficava a entrada principal do aquartelamento.

Ao fundo vê-se a mata de Cufar Novo, de onde foram extraídas as palmeiras para construção dos abrigos do novo aquartelamento.

Do lado direito, vislumbra-se a mata de Cufar Nalu onde existia uma importante base do PAIGC e que foi tomada em 15 de Maio de 1965 na operação "Razia".

É bastante visível no sentido descendente a estrada para o cais do rio Manterunga.



Foto 56 

É a parada com o pau de bandeira, que não consigo identificar, se é o cibe que nós lá colocamos.

Ao lado direito a Capela construída pelos "Lassas" e que posteriormente por outra companhia foi transformada em armazém.


Foto 64

Parada, vendo-se ao fundo a antiga fábrica de descasque de arroz do sr. Camacho, e que em seu redor em abrigos cavados no chão era o aquartelamento que existia.

De março a maio de 1965 foi um trabalho de loucos, para não sermos apanhados pelas chuvas nos buracos.

Foto 65 [, à esquerda]:

Esta foto foi tirada do varandim da habitação da antiga quinta e transformada em habitação e funcionamento do comando.

Foto 66 [, a seguir em baixo]:


Julgo tratar-se da fachada norte do comando onde existia a tabanca dos milícias do João Bacar Jaló.

Foto 60 [, a seguir em baixo]:

Varandim do comando, vendo-se ao fundo a casa do gerador. Na altura da CCaç 763, de permeio, existia o canil.

Um grande abraço para toda a Tabanca Grande e em especial para todos os "cufarenses".

Mário Fitas



 Foto nº 60


Foto nº 66


2. Comentário do Eduardo Campos [, ex-1º Cabo Trms da CCAÇ 4540, Cumeré, Bigene, Cadique, Cufar e Nhacra, 1972/74]:

Caro Luis.

Para responder ao teu pedido, terei de fazer um exercício de memória de 40 anos, e também pelo facto de ter estado em Cufar apenas 4 meses em diligência, ao serviço do COP 4 e adido à CCAC 4740, não será fácil:

Mas vamos às fotos:

Foto 62, é Cufar, mas quando lá cheguei em 72 o "aglomerado residencial" era muito maior.

Do lado esquerdo da foto, parecer ser a pista em terra (quando lá cheguei já era em alcatrão) e saída para Catió e Matofarroba. Lado direito, o que parece ser uma estrada seria a picada que ia para o porto no rio Combija.

As Fotos 56, 64 e 65 recordo, aqui sem dúvidas, que são de Cufar. As restantes fotos não me recordo.


Quanto a boas recordações de Cufar, direi que sim foram mesmo muitos boas: Manga de ataques com foguetões (tem outro nome mas era assim que era conhecido entre nós),dois ataques de armas ligeiras ao arame, dormir numa tenda de campanha em que o colchão foi feitas de folhas de árvores e ainda alguma fominha á mistura.

Quarenta  anos depois, e podendo até ser irónico, tudo isso para mim hoje, são mesmo boas recordações.As restante fotos não consigo identificar, por isso não ajudei em quase nada, mas por breves momentos voltei a Cufar, o que por si foi bom.Um abraço, Eduardo Campos.

PS - O que a foto 57 [, foto à direita,] nos mostra tenho a certeza que já não existia, pois pela sua originalidade eu jamais poderia  esquecer o engenho e obra de arte que a mesma transmite. (**)


Fotos: © Armindo Batata (2007). / AD - Acção para o Desenvolvimento Todos os direitos reservados [Fotos editadas por L.G.]


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Notas do editor:

(*) 11 de outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10515: Álbum fotográfico de Armindo Batata, ex- comandante do Pel Caç Nat 51 (Guileje e Cufar, 1969/70) (8): Cufar, 1970 (Parte II

(**) Último poste da série > 31 de agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10310: Memória dos lugares (191): O quartel de Guileje, visto dos céus, ao tempo da CCAÇ 2617, "Magriços de Guileje" (Março de 1970 / fevereiro de 1971) (José Crisóstomo Lucas)

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10522: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (1): 1º e 2º episódios: tempos de Mafra, EPI, CSM


Mafra > EPI > CSM [ Curso de Sargentos Milicianos] > BI do soldado instruendo Veríssimo Ferreira, emitido em 25 de abril de 1964




Guiné > Bissau > CCS/GG > BI do fur mil Veríssimo Ferreira, emitido em 14 de julho de 1966.

Fotos: © Veríssimo Ferreira (2012). Todos os direitos reservados.



1. Comentário do Veríssimo Ferreira, ex.fur mil,  CCAÇ 1422 (Farim, Mansabá, K3, 1965/67), à  sua apresentação na Tabanca  Grande (*):

Caro Amigo Luís Graça:

Obrigado pela deferência e até o meu ego está enorme. Aqui o tabanqueiro 581 está felicíssimo por poder estar convosco. A dificuldade maior vai ser o "tu" mas lá chegarei.

Sobre a historieta, real mas com algumas graçolas pelo meio, que não ofenderão, espero, vai já no 7º episódio. (Outras realidades, dolorosas e muito existem, mas não sei se consigo falar nisso.) O Luís Graça, quer que as remeta para o facebook? è que ainda não consigo metê-las no email, ou vai lá buscar-mas ao meu mural?

O meu email é (...).


 
2. Resposta do editor, em 8 do corrente:

Camarada: Somos da mesma geração, idade, dorminos nos mesmos buracos, bebemos a mesma água da bolanha, corremos os mesmos riscos... o que é preciso mais para nos tratarmos por tu ?... O Carlos Vinhal vai completar a tua ficha, o teu email é só para uso interno... Deves usar este endereço de correio eletrónico para comunicar connosco... Para já podes continuar a usar o Facebook, eu depois vou lá buscar o material. Mas tens que aprender o usar o mail e "anexar ficheiros" (seja texto ou fotografia)... Um abração. LG



3. Novo mail do Veríssimo, datado de 10 do corrente:

Assunto: CONSEGUI [mandar um mail] e dizem que burro velho não aprende línguas.~


 
4. Os melhores 40 meses da minha vida > 1º e 2º episódios (Mafra, EPI, Curso de sargentos Milicianos)


por Veríssimo Ferreira 


1º Episódio

E vai daí... Por edital, soube que me deveria apresentar em Mafra, na Escola Prática de Infantaria, a fim de frequentar o Curso de Sargentos Milicianos. 

Saí de Ponte de Sôr, pela matina e no comboio. Chegado a Lisboa, pedi informações para ir para o Martim Moniz, local donde sairia a camioneta para Mafra.  A confusão, nesta louca cabecinha, era mais que muita (1ª vez na grande cidade) e habituado que estava a ver muita gente junta, aquando das feiras, pensei:
- Há por aqui uma como a nossa de Outubro!!!

Bom, mas lá fui ter e parti para o destino...e cheguei enquanto no entretanto comi as duas sandes que a minha querida mãe preparara para a viagem.
Mafra, surpreendeu-me, quando logo ali mirei, o Mosteiro.
-Um quartel ? -  pensei.

Na entrada, havia um enorme grupo de juventude de cabelinhos cortados à inglesa curta e que esperava e a eles me juntei. Lá chegou a minha hora e preenchidos que foram uns papéis, mandaram-me para o alfaiate que tirava medidas olhando-nos de alto abaixo, o que significou que recebi umas roupitas bem bonitas por acaso... um bivaque onde cabiam duas cabeçorras, duas camisas cinzentas nº 54 e eu até aí, usava 42, dois pares de calças que me chegavam dos pés à cabeça, duas botas 47 e eu calçava 41....e por aí fora.

Na caserna, assim chamavam ao quarto luxuoso, um 5º andar e 183 degraus para subir, onde me colocaram, para me não sentir só deixaram-me acompanhado por mais 151 recrutas que se tornaram meus amigos.

2º episódio

...No dia seguinte, reuniram-nos num espaço rectangular, que ainda hoje existe, lá atrás do convento e a que chamaram e chamam "A parada".

Éramos, talvez, aí uns três mil recrutas, entre os que iam frequentar os cursos de Oficiais e Sargentos, Milicianos, palavra esta que poderemos traduzir desta forma: jovens que após regresso da guerra, serão dispensados do serviço militar obrigatório e passam à disponibilidade, ou seja, ainda poderão ser chamados para a tropa, se houverem alterações à ordem pública. (seja lá o que isso for)

Juntaram-nos depois, sentados no chão e rodeando o Oficial Instrutor, cá fora, ali ao lado esquerdo de quem entra, e esclareceram-nos sobre as normas nem vigor, para contactos eventuais, com os residentes civis e também como distinguir os postos militares.

Ficámos a saber que a coisa começava desta forma: O início e por aí fora:  Recrutas,  1º cabo, Furriel, Sargento, Aspirante, Alferes, Tenente, Capitão, etc. etc. General, Marechal; finalmente...  1º Cabo Miliciano!

Contentíssimo fiquei.... Então não é que o filho do meu pai, Eu, iria alcançar o mais alto posto, lá para Agosto e já especialista de infantaria e 1ª classe em metralhadora Dreyse 7,9 ? e 3ª classe em espingarda 7,9? e 1ª classe em comportamento? e atirador, terminada a instrução complementar?

Aparvalhado ainda, com o facto de ontem ter visto, Lisboa, aviões dos grandes e barcos a atravessar um rio a que ouvi chamarem Tejo e ter ainda a possibilidade de, e também, pela 1ª vez, poder ir ver o mar...as praias da Ericeira e mais agora esta notícia, plena de responsabilidades...

Olhem,f iquei de tal maneira entontecido... que julgo não ter voltado a ser o humano normal de antes.

Continências e divisas, foram-nos sabiamente mostradas, bem como o manejo duma espingarda, o seu desmanchar em bocados.e a consequente limpeza sem precisar, com o escovilhão.

No 3º dia e após o pequeno almoço, começou a preparação para que pudéssemos vir a ser militares disciplinados, bravos, heróicos e que acima de tudo voltássemos inteiros.

Corridinhas na tapada, rastejar no meio da trampa, percursos de combate, saltos para o galho, jogos de brutóbol, tiro na carreira do dito, actividades desportivas com vários empecilhos no meio, audição dos gritos estridentes e ameaçadores dos monitores do pelotão... enfim, toda uma panóplia útil que só mais tarde entendemos ter sido preciosa para que aqui e agora estejamos ainda semi-vivos e, ah, sempre acompanhados pela fiel Mauser e de capacete enfiado... no local próprio de enfiar capacetes.

Regressávamos depois e quase na hora do repasto almoçaral. Íamos, à suite, tomar um banhito rápido, mudar de fato, e proceder, se caso disso, a qualquer necessidade fisiológica ( eu, na época, dava-lhes outros nomes mas depois aprendi esta, da fisio... qualquercoisa e pronto...tornei-me fino...)

As retretes eram mais que modernas: três ao todo, para 152 à rasca. Tinham um buraco no chão, redondo, sem assentos, mas ladrilhadas e asseadas, tá claro. A mim, lembravam-me sempre, lá a margem direita do rio Sôr, onde durante anos dei "à calça" e,  não havendo papel, utilizava as ervas viçosas nascidas por ali, sem eira nem beira.

Só que, certa vez, pasmem!, uma urtiga veio anexa. A tremenda e incomodativa irritação borbulhenta provocada fez -me "arrepiar caminho" e comecei a usar pedras não bicudas, no local a limpar...

Toca a corneta e ala que são horas de almoço. Boas refeições,  sim senhor, e até vinho havia e da cor que entendêssemos, embora eu achasse que aquilo era mais água...e cânfora, substância que, e ao que diziam, transformava em eunucos, embora provisoriamente, quem bebia a zurrapa.

Aconteceu-me...mas quem me mandou ser sequioso e guloso? Voltei ao normal, podem crer, tomando como base que não tenho, nem nunca tive reclamações.

 (Continua)
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Nota do editor:

(*) Vd. poste de  3 de outubro de 2012 >  Guiné 63/74 - P10473: Tabanca Grande (363): Veríssimo Ferreira, natural de Ponte de Sôr, ex-fur mil, CCAÇ 1422 (Farim, Mansabá, K3, 1965/67)

Guiné 63/74 - P10521: Agenda cultural (221): Debate: "Que surpresas nos reservará a literatura da Guerra Colonial?", na Bertrand Dolce Vita Monumental (Lisboa), dia 16 de Outubro de 2012, pelas 18h00

"QUE SURPRESAS NOS RESERVARÁ A LITERATURA DA GUERRA COLONIAL?"
DEBATE NA BERTRAND DOLCE VITA MONUMENTAL
DIA 16 DE OUTUBRO DE 2012, PELAS 18H00


COM A PRESENÇA DE MÁRIO BEJA SANTOS E CARLOS VALE FERRAZ (CARLOS MATOS GOMES)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 7 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10493: Agenda cultural (220): Apresentação do livro "Alpoim Calvão Honra e Dever", dia 11 de Outubro, pelas 18h30, na Sociedade de Geografia em Lisboa

Guiné 63/74 - P10520: Palavras fora da boca... (1): "Nem mais um soldado para as colónias"! (José Corceiro / Manuel Joaquim / Manuel Botelho)



Lisboa > Dia 28 de Abril de 1974, ao fim da tarde, na Rua Fontes Pereira de Melo, antes de chegar às Picoas. Começou espontaneamente o pessoal a aglomerar-se, já depois da Rotunda, e enquanto o diabo esfregou o olho, estruturou-se uma manifestação, com muitos militares da Força Aérea, como se pode ver nas linhas da frente com farda azul e boina verde. As palavras de ordem: 'Nem mais um soldado para o ultramar'… 

Foto (e legenda): © José Corceiro (2010). Todos os direitos reservados.



1. O meu velho, Luís Henriques (1920-2012), gostava muito de falar em verso, de fazer rimas, quadras, versos de pé quebrado, citar provérbios populares, contar anedotas, evocar os seus tempos de expedicionário em Cabo Verde ou relembrar os tempos de jogador de futebol, e de treinador de camadas juvenis... Muitas vezes fazia-nos rir, sorrir, pensar... Tenho pena que muita da sua sabedoria popular tenha ido para a cova com ele... Algumas coisas fomos, eu e os seus netos,  registando, filmando, tomando boa nota... 

Mas ele era um repentista, um espontâneo, um improvisador, incapaz de repetir, com a mesma precisão e graça, o que acabava de lhe sair da boca... Tudo dependia do contexto, das situações, dos interlocutores, e da disposição e da inspiração de momento... E, claro, fiava-se na sua memória de elefante... Tinha um reportório para dar e vender... Nunca o vi escrever um dito, uma história, um verso... 

Tudo isto vem a propósito de uma quadra que ele gostava muito de citar,   apropriada para prevenir situações de conflito...

Palavras fora da boca,
São pedras fora da mão,
Tu mede bem as palavras,
Tira-as do teu coração.

As palavras às vezes magoam como se fossem pedras. Muito mais do que isso, às vezes chegam a ferir e/ou matar. Matam mesmo!... Ou podem matar!...  Quantas dessas palavras não foram lançadas ao vento como autênticos bumerangues que, não atingindo muitas vezes o alvo, se voltavam, no regresso,  contra o próprio lançador ?... 


"Palavras fora da boca" foram/são, muitas vezes, as nossas "palavras de ordem", de ontem e de hoje, slogans, grafitos, títulos de caixa alta nos jornais e, em menor grau, os nossos comentários, as nossas "bocas" bloguísticas... 

Há palavras incendiárias, há palavras que incendeiam o capim... independentemente da intentação ou da vontade de quem as profere... Veja-se há dias a infelicidade do prof Miguel Oliveira e Silva, presidente do Conselho Nacional da Ética para as Ciências da Vida,  tropeçando no trocadilho racionamento/racionalização dos medicamentos... Temos que saber lidar com elas, as palavras... tal como sabíamos com lidar as minas e armadilhas, as nossas e as do IN no TO da Guiné.  

Palavras fora da boca... é o título de uma nova série, que tem um propósito, se quisermos, didático, pedagógico, preventivo... Não é para alimentar polémicas, desgastantes, fraturantes, inúteis, mas para preveni-las.  Não é para a gente  fazer ajustes de contas com o passado, por opções político-ideológicas do passado, ou por tomadas de posição como cidadãos, nos nossos ainda verdes anos... 

É para apenas a gente refletir serenamente, sorrir se for caso disso,  e aprender eventualmente com os nossos erros, individuais, grupais e coletivos... 

E a primeira dessas "palavras fora da boca" aqui vai: "Nem mais um soldado para as colónias"... (Se calhar alguns de nós, a seguir ao 25 de abril, também gritámos palavras de ordem como estas ou parecidas, esquecendo-nos que continuava haver, nos TO da Guiné, de Angola e de Moçambique, camaradas nossos, combatentes, que ainda faziam a guerra, ou que preparavam a paz, ou que cumpriam o plano de retração das NT, ou que muito simplesmente aguardavam o regresso a casa,  em qualquer dos casos continuando  a arriscar o pelo)... 

São pedaços de prosa que repesquei do nosso blogue:


2. Comentário de Manuel Joaquim, em 5 de junho de 2010, ao poste P6526:

Caro Graça de Abreu

Concordo, totalmente, com o que dizes sobre o chamado "socialismo real", expressão usada para camuflar o termo "comunismo". Criaram-se regimes de terror, as provas são evidentes. Só as não vê quem não quer.


Parece-me, no entanto, que estes comentários não andam por aí mas sim pela "nossa" descolonização.O que me irrita e enoja é o espectáculo dos/das velhas virgens que andam por aí, de hímen reconstruído, a injuriar e a diabolizar a descolonização, a amesquinhar o comportamento militar em combate, a invectivar a "entrega da nossa Pátria aos comunas", a arrotarem "verdades" sobre personagens e situações que, de verdade, só têm as sílabas das palavras ditas.

Não são as vítimas da descolonização que me irritam com as suas queixas furibundas, às vezes injustas, nem sequer aqueles que defendem as asneiras que, politicamente, fizeram quando tiveram de decidir.

Quem me enoja são aqueles que eu vi, logo a partir de Maio/74 (*), com faixas e aos gritos "Nem mais um soldado para as colónias!".

Estas palavras de ordem propagaram-se como fogo em palha seca. Imaginei logo o que iria acontecer: a destruição de todas as hipóteses possíveis de entendimento com o IN, de qualquer energia ainda existente nos nossos combatentes, de qualquer hipótese válida de se formarem contingentes para render tropas no terreno.

Bem recordo alguns, hoje altos expoentes ideológicos de direita, altos cargos políticos, de Lisboa a Bruxelas, altos cargos na comunicação social, a liderarem tais manifestações, quer na rua quer na rádio, na TV, nos jornais.

Hoje vejo-os por aí causticando o modelo descolonizador e, paradoxo, incensados pelas vítimas da descolonização!

Seria muito interessante consultar a imprensa de 1974/75, falada e escrita, e ver como se expressavam sobre este assunto certas "aves raras" que hoje se pavoneiam por aí, "arrotando postas de pescada".
Um abraço 

Manuel Joaquim


3. Excerto de depoimento de Manuel Botelho, artista plástico (Poste P6789)

(...) “Nos últimos anos vi crescer o meu desejo de identificação com os homens da minha geração que há muito tempo embarcaram para Angola, Guiné e Moçambique, escondidos atrás de um camuflado e uma G3. 


"Sei que não fui um deles. Tive a fortuna de estar no último ano do curso de arquitectura quando o 25 de Abril pôs termo ao pesadelo que me ensombrou a adolescência, e já não experimentei a guerra ao vivo e em directo. Mas vivi-a intensamente, numa antecipação obsessiva que durou toda juventude.

"Desde então muito tempo passou, e a minha perspectiva da vida mudou também. A guerra na África portuguesa deixou de me interessar enquanto fenómeno político e passei a prestar uma outra atenção aos que a fizeram. Muitos (a esmagadora maioria), ainda estão vivos; têm sensivelmente a minha idade; estão carecas e cansados como eu. Alguns serão um pouco mais velhos, mas pertencemos todos a um mesmo tempo, a uma mesma condição. 


"E eis-me a viver um estranho paradoxo: eu, que andei pelas ruas a berrar “nem mais um soldado para as colónias”, comecei a ter sentimentos de culpa por não ter partilhado esse tempo de abnegação e sacrifício. E a minha pintura começou a falar das memórias dessa guerra, como em “Escombros de Wiryiamu”, o massacre no norte de Moçambique que escandalizou o mundo e que evoquei através de um soldado (eu, já velho), sob a ameaça de insectos gigantescos e segurando desoladamente uma G3. Foi essa G3 que quis fotografar de seguida. (...)
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Nota do editor:

(*) "4 de Maio de 1974 > Militantes do MRPP impedem, pela primeira vez, um embarque de tropas para as colónias. Palavra de ordem: Nem mais um soldado para as colónias!" (Fonte: Centro de Documentação 25 de Abril / Universidade de Coimbra > Cronologia Pulsar da Revolução)