sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10769: Tabanca Grande (371): João Carvalho Meneses, ex-2º TEN FZE RN, DFE 21, 1972, grã-tabanqueiro nº 591



Notícia do juramento de bandeira do 19º CFORN, na Escola Naval, em 14 de abril de 1972... Foto: Revista da Armada, junho de 1972, p. 24 (Com a devida vénia...)


1. No passado mês de novembro, "assinou" o nosso livro de visitas o camarada João Meneses, na sua qualidade de 2º Ten FZE RA, antigo oficial do Destacamento de Fuzileiros Especiais 21, na Guiné, no ano de 1972, e DFA - Deficiente das Forças Armadas, ferido em combate na provincia do Cubisseco [, a sudoeste de Empada, vd.carta de Catió,] em 27 de Setembro desse ano (*).

Hoje mandou-nos a seguinte mensagem:

Caro Luís:

Já vi publicados os meus últimos mails, que muito agradeço. Junto agora algumas fotografias, duas em que é o meu juramento de Bandeira, outra a Imposição das Boinas, e outra em Homenagem ao Rebordão de Brito, com quem servi na Guiné, na data da sua medalha de Torre e Espada. Foram tiradas da Revista da Armada, exemplares que tenho em meu poder. Junto também uma fotografia "actual", cópia da que tenho no meu cartão DFA.

Com um grande abraço
2ºTen FZE Carvalho Meneses


 O João Meneses, ou Carvalho Meneses, como era conhecido na Guiné,  pediu formalmente o ingresso na nossa Tabanca Grande, tendo para o efeito entregue uma foto atual [ vd. acima, à direita,] e fotos de grupo do seu  tempo de tropa.

De seu nome completo João Frederico Saldanha Carvalho e Meneses, nasceu a 5/1/1948, fez parte do 19.º CFORN - Curso de Formação de Oficiais da Reserva Naval, tendo sido alistado a 19/9/71, e jurado bandeira e promovido a aspirante em 12/4/1972.



Notícia da imposição das boinas a 130 novos fuzileiros especiais, do 27º Curso de FZE, em cerimónia que decorreu a 16 de março de 1972. Notícia dada pela Revista da Armada, maio de 1972, p,. 24.


19.º CFORN - Curso de Formação de Oficiais da Reserva Naval


Segundo elementos informativos que recolhemos da página Reserva Naval, do nosso camarada Manuel Lema Santos, o 19º CFORN incorporou 115 cadetes assim distribuídos pelas várias classes: (i) 23 cadetes na classe de Marinha, (ii) 1 cadete da classe de Médicos Navais, (iii) 6 cadetes da classe de Engenheiros Maquinistas Navais, (iv) 32 cadetes da classe de Administração Naval, (v) 28 cadetes na classe de Fuzileiros e (vi) 25 cadetes na classe de Técnicos Especialistas.

Vinte 20 oficiais deste curso serviram no TO da Guiné, incluindo o João Menezes. Aqui vai a lista completa (Fonte: Reserva Naval)

2TEN RN Alfredo Augusto Cunhal Gonçalves Ferreira e 2TEN RN José Manuel Soares Dionísio na LFG “Sagitário”,

2TEN RN Emídio Branco Xavier na LFP “Alvor”,

2TEN RN Virgílio Manuel da Cunha Folhadela Moreira na LFP “Aldebaran”,

2TEN RN José Aparício dos Reis na LFG “Cassiopeia”,

2TEN RN José Alfredo Queiroga de Abreu Alpoim na LFG “Argos”,

2TEN RN Luís Alberto Moreira Pires e Pato na LDG “Alfange”,

2TEN AN RN José Manuel do Nascimento e Oliveira Covas,

2TEN AN RN Miguel Ângelo da Cunha Teixeira e Melo,

2TEN FZ RN António Patrício de Sousa Betâmio de Almeida e 2TEN FZ RN José Manuel Correia Pinto no Comando de Defesa Marítima da Guiné,

2TEN FZ RN Celestino Augusto Froes David na CF 12,

2TEN FZ RN João Pedro Tavares Carreiro e 2TEN FZ RN Manuel Maria Romãozinho Alves Ferreira na CF 2,

2TEN FZE RN João Carlos Cansado da Costa Corvo e 2TEN FZE RN José Manuel de Carvalho Passeira no DFE 22,

2TEN FZE RN João Frederico de Saldanha de Carvalho e Meneses e 2TEN FZE RN Manuel Maria Peralta de Castro Centeno no DFE 21,

2TEN FZE RN José Manuel da Silva Morgado e 2TEN FZE RN Luís Pereira Coutinho Sanches de Baena no DFE 12.


Destacamento de Fuzileiros Especiais nº 21 (DFE 21)


O nosso novo grã-tabanqueiro Carvalho Meneses serviu no prestigiado DFE 21, mas por pouco tempo, dado ter sido ferido gravemente em combate e evacuado para o Hospital Principal, em setembro de 1972 (*).

Veja-se, entretanto,  o interessante apontamento sobre a história do DFE 21, escrito pelo Manuel Lema Santos. Aqui vão alguns pontos:

(i) Para ingressar nos quadros de Fuzileiros Especiais Africanos do Comando de Defesa Marítima da Guiné foram seleccionados 150 de um total de 900 voluntários (!);

(ii) Foi dada preferência aos assalariados do Comando de Defesa Marítima, dos Serviços de Marinha, guias das Unidades de Fuzileiros, impedidos das câmaras dos navios e das messes de oficiais, pessoal na generalidade familiarizado com a vida na Marinha; também foram admitidos estivadores e pessoal que já cumprira o serviço militar em companhias de milícias ou caçadores nativos;

(iii) Na formação do DFE 22 (inicialmente comandado por 1º TEN FZE Rebordão Brito, foto à esquerda,  cortesia da Revista da Armada) já teve em linha o critério étnico ou o chão, o que não aconteceu com o DFE 21 (, o que terá sido um erro, segundo Manuel Lema Santos);

(iv) O centro de instrução situava-se em Bolama; os oficiais e sargentos bem como alguns cabos e marinheiros eram metropolitanos, de rendição individual;

(v) O recrutamento inicial de elementos guineenses para integrar o DFE 21 ocorre em Setembro de 1969;

(vi) Depois de activado, em 21 de Abril de 1970, participou, até Maio, em diversas operações no sul da Guiné,  tendo sofrido pesadas baixas entre mortos e feridos, entre os quais se incluíram alguns oficiais e sargentos;

(vii) Juntamente com o DFE8, passou a estar sedeado na vila de Cacheu;

 (viii) Em Agosto de 1970, depois de uma curta passagem por Buba, o DFE 21 foi transferido para Brá, para se juntar aos preparativos que antecederam a organização da Op Mar Verde, já em curso na ilha de Soga e na qual viria a participar.

O comando do DFE 21 integrou maioritariamente oficiais da Reserva Naval. Na sua estrutura inicial, teve como Comandante o 1º TEN FZE Raul Eugénio Dias da Cunha e Silva que tinha ingressado nos Quadros Permanentes, na classe de Fuzileiros, depois de ter efetuado uma primeira comissão de serviço na Guiné, como terceiro oficial do DFE 4, de 1965 a 1967. Pertenceu originalmente à Reserva Naval onde integrou o 7.º CEORN.

Em 21 Junho de 1971 o comando do DFE 21, foi sendo parcial e progressivamente rendido, ainda que alguns dos elementos que o constituíam continuassem voluntariamente até 1 de Abril de 1973. Passou a ser Comandante o 1TEN FZE José Manuel de Matos Moniz, também ele originário da Reserva Naval (8º  CEORN) e, no final do curso foi integrado no DFE 1 (Moçambique, 1967/69), depois do que concorreu aos Quadros Permanentes na classe de Fuzileiros.

Composição do DFE 21:

Comandantes:

1TEN FZE Raul Eugénio Dias da Cunha e Silva, 7.º CEORN, ingressou nos QP's

1TEN FZE José Manuel de Matos Moniz, 8.º CEORN, ingressou nos QP's

Oficiais Imediatos:

1TEN José Maria da Silva Horta, QP's

2TEN Luis António Proença Maia, QP's

2TEN FZE RN António José Rodrigues da Hora, 11.º CFORN, ingressou nos QP’s

2TEN FZE RN Manuel Maria Peralta de Castro Centeno, 19.º CFORN, ingressou nos QP’s

Oficiais:

2TEN FZE José Carlos Freire Falcão Lucas, 13.º CFORN

2TEN FZE RN Eduardo Madureira da Veiga Rica, 14.º CFORN [, ferido em serviço em evacuado]

2TEN FZE Manuel José Fernandes Guerra, 15.º CFORN

2TEN FZE RN Jaime Manuel Gamboa de Melo Cabral, 16.º CFORN

2TEN FZE RN Francisco Luis Saraiva de Vasconcelos, 16.º CFORN

2TEN FZE RN João Frederico Saldanha Carvalho e Meneses, 19.º CFORN [, ferido em combate e evacuado; João Meneses passa a ser hoje membro da nossa Tabanca Grande]

2TEN FZE RN Cândido Alexandre Lucas, 20.º CFORN

2TEN FZE RN José Joaquim Caldeira Marques Monteiro de Macedo, 21.º CFORN [Zeca Macedo: nasceu na Praia, Santiago, Cabo Verde, em 1951; vive nos Estados Unidos, onde é advogado; é membro da nossa Tabanca Grande,foto à direita, quando jovem cadete da Escola Naval].


O João tem um grande orgulho de ter servido o país como fuzileiro, e uma especial preocupação pela sorte dos seus camaradas guineenses do DFE 21. Eis um excerto do seu último mail:

(...) Não deixarei de procurar saber se ainda tenho homens vivos e se ainda poderei fazer qualquer coisa por eles, pois aquela terra está ainda muito longe da calma e estabilidade, com sucessivos golpes. Infelizmente está-lhes na massa do sangue, tanto pela guerras étnicas, como pelo dinheiro fácil - a droga, como também por ganâncias pessoais. Mas isso são problemas que eles têm que resolver e amadurecer (infelizmente à custa de sangue), mas há histórias giras para contar. Vivências, pura e simplesmente.E é sobre isso que gostaria de contar mais.

Quanto ao nome que prefiro, a malta dos Fuzos conhecem-me por Meneses.  Mais acima era o Tenente Meneses, Gostaria no entanto de ter antes do nome próprio o FZE do DFE21, que me honra, dá peneiras, Eh Eh Eh!,  e tenho muito orgulho. Foi assim que servi Portugal quando era activo nas Forças Armadas. Meu Bisavô, meu Avô também morreu em Angola, etc. Família,  sabes. (...)


2. Comentário dos editores:

João, já te desejámos as boas vindas, esperamos que se te sintas confortável entre esta maltosa toda, filha das mais diversas mães (e pais), a grande maioria da qual serviu na Guiné, como tu.  Temos uma representação da Marinha, pequena, discreta mas condigna. (Vocês, embora bons, também não eram assim tantos...).

Agora é preciso que contes as histórias do teu tempo. E que tragas também mais camaradas, nomeadamente fuzileiros (**). O nosso blogue é  um como um animal  carnívoro que precisa de muitos milhares de calorias por dia para se alimentar... Não, não somos predadores: somos apenas um espaço de partilha de memórias e de afetos, e estamos todos aqui, numa boa, sem querer fazer ajustes contas com ninguém, nem sequer com o passado. Achamos, por outro lado, que blogar faz bem à saúde (mental). Também podes aparecer no Facebook, na nossa página Tabanca Grande...


_______________

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10768: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (4): Eu tinha dois doutores

1. Mensagem do nosso camarada Armando Pires (ex-Fur Mil Enf.º da CCS/BCAÇ 2861, Bula e Bissorã, 1969/70) com data de 3 de Dezembro de 2012:

Meu Caro Luís Graça.
Camaradas Editores.
Em anexo, segue o 4º texto com que dou seguimento à série " furriel enfermeiro, ribatejano e fadista".

Dado que somente após o Natal voltarei a dar o meu modesto contributo ao acervo histórico do nosso Blog, aproveito para a todos os camaradas envolver no meu desejo de que esta Festa seja o continuar da Glorificação da vossas Famílias.

Abraços do
armando pires


Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (4)

Eu tinha dois doutores

 "... Só com a criação das carreiras médicas, em 1971, é que se começou a melhorar a formação especializada dos nossos médicos e cirurgiões... Para muitos camaradas médicos, o HM 231 (Bissau) e o "tirocínio" no mato foram uma "grande escola"...
Luís Graça, em comentário ao P10622

Eu tinha dois doutores.
Era para ter três, mas perdi um mesmo à saída da escada de portaló.
Era um oftalmologista em quem alguém descobriu, logo ali, insuspeitadas capacidades para ver fundo na raiz dos dentes, razão porque ficou em Bissau para uma especialização de três meses em medicina dentária, findos os quais percorreu todos os quadrantes dessa Guiné, em socorro de algum militar carente dos seus serviços.
O que é preciso é que tudo tenha corrido bem. Portanto, o meu Batalhão ficou com dois médicos.
Os alferes milicianos médicos Chaves Ferreira e José Manuel Oliveira.
Tão parecidos e tão diferentes.

Dermatologista, o Ferreira, licenciado em psiquiatria o Oliveira. Ambos eram altos, muito altos, para a época. Andavam devagar, falavam como se sussurrassem, sorriam como se não houvesse amanhã, faziam amigos como se fosse obra fácil.

O Chaves Ferreira, lisboeta nascido no casco velho, gingava nas palavras que traziam consigo saudades da Madragoa.

Natural de Matosinhos, o Oliveira era todo ele sotaque. Afável no trato, senhor da fina ironia com que me respondeu daquela vez, em Bissorã, quando recebemos a visita do tal oftalmologista que se tornou dentista. Era um tipo moreno, de média estatura, onde ganhava destaque uns óculos com um par de lentes, daquelas que parecem fundos de garrafa.

- Mas ó dr., ele era mesmo oftalmologista?
- Ouve lá pá - respondeu-me – então não lhe estás na cara?

A minha amizade com o dr. Chaves Ferreira nasceu ainda no quartel de cá, quando descobrimos que ambos eramos sócios do C. F. os Belenenses.
A amizade com o dr. Oliveira foi cimentada no dia a dia da Guiné, e permanece tal qual ainda hoje.
Mal chegados à Guiné, o dr. Chaves Ferreira foi direitinho a Bissorã, e mais tarde a Binar, dividindo os seus cuidados, nomeadamente, entre as CCAÇ 2444 e 2464.
O dr. Oliveira ficou junto da CCS, mas a seu cargo tinha a vigilância médica de todas as unidades dentro do sector do BCAÇ 2861.

Quem esteve no Olossato, Biambe, Bissum ou em Encheia, por exemplo, naqueles anos de 69/70, deve lembrar-se da sua passagem por lá. Nestas suas andanças era o Chaves Ferreira que vinha substituí-lo à sede do Batalhão (ver P10629).

Fev. 1969 - Uíge - Algures no mar, entre Lisboa e Bissau, o alf. mil. médico Chaves Ferreira crava um cigarrinho ao fur. mil. Pires, tendo como testemunha o cap. Pratas, comandante da CCAÇ 2466. 

Não cuidem que cometo o atrevimento de aqui me debruçar sobre o perfil profissional destes dois homens. Era o que mais faltava. Evoco-os porque o comentário do Luís Graça me sugeriu que o fizesse, mas evoco-os como homens, sobretudo ao Dr. Oliveira, aquele com quem mais tempo e mais de perto trabalhei. Mais do que o médico que a tudo e a todos acudia, o dr. Oliveira, talvez face à sua especialidade, ganhou rapidamente a confiança dos homens sobretudo pela sua disponibilidade para os ouvir.

Ele era aquele em quem se podia confiar, o único capaz de tratar e compreender a mais grave doença que tolhia o corpo e a devorava a alma daqueles rapazes feitos homens. A saudade.

E também lhes ganhou o respeito quando certa noite, em Bula, enfrentou o capitão Pinto, comandante da CCAÇ 2466, que pretendeu passar por cima de ordem sua.
Três homens daquela companhia encontravam-se num estado de saúde que exigia repouso. O capitão, reclamando dos seus galões, pretendeu obrigá-los a sair para uma operação, porque “quem mandava era” ele. Lá do alto do seu metro e oitenta e picos, diz-lhe o Oliveira:
- E aqui o médico sou eu. Se aqueles homens saírem, o senhor capitão assume todas as responsabilidades e eu terei de participar.

Surpreendido pelo desafio “do alferes”, o capitão Pinto foi queixar-se ao major Candeias, então oficial de operações.

- Bem, se o doutor diz que estão doentes é melhor não brincar com a saúde dos homens. Se não estão em condições ficam aqui.

Naquele quartel, até as conversas mais secretas corriam velozes. A admiração pelo dr. Oliveira e a pouca estima que os homens tinham pelo seu capitão, foram silenciosamente festejadas com uma ovação na caserna.

1969 - Bula - A parada do aquartelamento era o consultório dilecto do alf. mil. médico J. M. Oliveira, na foto ouvindo as confidências do cabo Lamelas, da CCS do BCAÇ 2861. 

Ao longo da comissão, entre o enfermeiro que eu era e o médico que era ele, sempre existiu grande convergência na acção. Nem eu era capaz de me deitar cedo nem ele de se levantar tarde. Nem eu me importava que ele chegasse à enfermaria pontualmente às nove, nem ele se agastava por eu chegar à hora de assinar o expediente.

Certo dia, fui forçado a trocar-lhe as voltas. Cansado das queixas do Filipe, o furriel vagomestre que partilhava o quarto comigo e que naquela noite não me deixara dormir com as suas queixas gastro intestinais, levantei-me para ir à enfermaria buscar uma boa dose de bicarbonato de sódio, com o qual pretendia pôr fim ao sofrimento dele e, já agora, também ao meu. Boquiaberto, o Machado, o meu 1º cabo enfermeiro, ao ver-me entrar consultou o relógio, que marcaria para aí umas oito e meia da manhã, e com aquele sorrisinho sacana que Deus lhe tinha dado, cumprimentou-me:
- Muito bom dia, meu furriel.

Com o bicarbonato nas mãos preparava-me para sair quando avisa o Machado:
- Vem aí o chefe.
- Qual chefe? - perguntei eu.
- O doutor Oliveira.
- O doutor Oliveira agora é chefe? – atirei-lhe com a aspereza capaz de contrabalançar a sacanice do seu bom dia.
- Ó furriel, a esta hora já vem lixar a cabeça à gente? É o chefe, não sabe que a malta aqui na enfermaria trata-o por chefe? Pronto.

O chefe entrou, fez um compasso de espera entre a porta e a secretária, e perguntou-me:
- Estás doente, pá?
- Não doutor – retorqui-lhe – É o furriel Filipe que não se limita a envenenar o pessoal no refeitório e envenenou-se também a ele.

Como se não tivesse bastado a sacanice do Machado, também o doutor me despediu com aquele sorriso que ficava ali a meia distância entre o mercado de Matosinhos e o Bolhão. Nunca lhe disse que a malta o tratava por chefe. E reconheço hoje que fiz bem. Considero-me assim vingado por ele só muito mais tarde me ter contado o que se passou naquela distante noite de 18 de Novembro de 1970.

Estávamos a um passo de terminar a comissão. Já se encontrava em Bissorã o BCAÇ 2927, para nos render. Já noite, depois do jantar, cruzei-me com o doutor que me disse, “eles andam aí”.
Subi à enfermaria e avisei o Machado que não deixasse sair a nossa malta para as tabancas. Desci ao bar de sargentos, onde já todos tinham feito o mesmo que eu, isto é, prevenir os seus homens, e com o Johnnie Walker do costume, dei de beber à espera. Foi um pouco longa, mais longa do que era hábito, mas pelas 22h45 o IN fez saber da sua presença.

O ataque, felizmente, levou muito pouco trabalho à enfermaria. Meia dúzia de feridos, todos da população, sem gravidade por aí além, quase não deu para os “piras” enfermeiros do 2927 saberem o que era trabalho. Já íamos no rescaldo quando me veio à cabeça que o doutor não aparecera. Também, não havia nada de especial para o ocupar. Mas se mais depressa pensasse nele, mais depressa ele aparecia.

Vi-o assomar à porta e perguntar:
 - Está tudo bem?

Deu-me vontade de lhe responder que ele é que não parecia grande coisa. Assim num repente, pareceu-me vê-lo com a roupa algo “desarrumado”. Mas, c’os diabos, acabáramos de sofrer um ataque, era natural que tivesse entrado no abrigo que tinha mais a jeito. E como ali estava tudo bem, ele foi indo e eu nada disse.

Tempos depois, recordava-lhe o que fizera ele para salvar vida a uma mulher e aos gémeos que estavam em posição muito difícil para nascer, quando lhe ouvi:
- É pá! – se há expressão que se transformou em parte identitária do dr. Oliveira, foi esta.
- É pá, a pior não sabes tu.

E por entre desvairadas gargalhadas, eu ouvi-o fazer o relato que, com a sua autorização, aqui reproduzo no melhor que for capaz.

“Naquela noite do nosso último ataque em Bissorã, apareceu-me o Zé, aquele manjaco que era cozinheiro da messe de oficiais, a pedir-me que lhe acudisse a casa que a mulher estava para ter filho. 
- Qual mulher, ó Zé? – o gajo tinha três mulheres, pá. 
- Ó senhor doutor, é a mais nova. 
E eu, já tínhamos informações de que os gajos podiam atacar naquela noite, comecei a pensar – e se eles atacam e sou preciso na enfermaria, como é? -, digo ao manjaco: 
- Mas olha lá, ó Zé, achas que ela vai ter menino agora? 
- Vai sim, senhor doutor, ela já está muito aflita. 
- Ó Zé, e se eles atacam esta noite? 
- Ó senhor doutor, não tem preocupação. Eu tenho tudo preparado. A mulher já está dentro do abrigo, à espera. 

Estás a ver Pires, o gajo já sabia que íamos mesmo ser atacados. Mas como já passava das dez, pensei que se calhar o ataque já não era nessa noite e pronto, lá fui a casa dele. 
Entrei no abrigo, a mulher estava deitada na esteira, e à volta dela as duas outras mulheres do Zé. 
Ajoelhei-me na esteira para começar a ajudá-la, e não é começou mesmo o ataque? Ó pá, aquilo foi o fim do mundo. Ela a gritar, as outras duas mulheres a gritarem, as bombas a caírem e as galinhas, que o Zé também metera dentro do abrigo, doidas, a esvoaçarem por cima da mim, e à volta da mulher a parir, penas por todo o lado… o fim do mundo, pá. Já viste, Pires, e logo comigo, que a última coisa que gostava de fazer era partos.”

Pronto, Chefe, já passou.

1970 - Binar - Depois de uma semana passada em Binar, onde estava sediada a CCAÇ 2464, o alf. mil. médico J. M. Oliveira despede-se do soldado maqueiro Lopes, à esquerda, e do Patricio, soldado que era seu conterrâneo.

O Dr. José Manuel Soares de Oliveira, foi Assistente de Psiquiatria na Faculdade de Medicina do Porto e reformou-se quando era Chefe de Serviço de Psiquiatria do Hospital de S. João.
Na sua juventude jogou voleibol na equipa do Leixões e, mais tarde, foi médico da equipa de futebol sénior leixonense, na época dos famosos “Bebés de Matosinhos”.
No passado dia 28 de Novembro, a ilustre Tabanca de Matosinhos convidou-o para um dos seus almoços.
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 7 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10629: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (3): Enquanto não chegar a evacuação, ao meu lado ninguém morre! ... Promessa cumprida! (Parte II)

Guiné 63/74 - P10767: Convívios (485): Almoço/Convívio de Natal da Tabanca dos Melros, dia 15 de Dezembro de 2012 no Restaurante Choupal dos Melros - Quinta dos Choupos - Fânzeres - Gondomar


 Mensagem da Tabanca dos Melros, a propósito do Almoço/Convívio de Natal que vai acontecer no próximo dia 15 de Dezembro de 2012 no local apropriado, o Restaurante Choupal dos Melros, nas Quinta dos Choupos, do nosso camarada Gil Moutinho, ex-Fur Mil Pilav:

Amigos e Camaradas
Junto anexo o cartaz publicitário do almoço de Natal da Tabanca dos Melros.


Já agora, apela-se para a boa compreensão da rapaziada e pede-se para se inscreverem com a devida antecedência para o almoço para sermos bem servidos como é timbre do nosso amigo e camarada Gil.

Os anarquistas têm de compreender que o restaurante onde a Tabanca assenta, não é um restaurante que serve refeições com menu diário e só abre para eventos [como o nosso] aos sábados e domingos. Portanto, não façam comparações com o que não é comparável e sejam compreensivos com esta situação não desestabilizando.

O Gil agradece-vos apela vossa compreensão.
____________

Nota de CV

Vd. último poste da série de 3 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10753: Convívios (484): Jantar de Natal da Tabanca de Matosinhos, dia 8 de Dezembro de 2012, na Junta de Freguesia de Bonfim - Porto

Guiné 63/74 - P10766: Antologia (77): Os heróis da LDM 302, atacada e afundada no Rio Cacheu em 19/12/1967: banda desenha de Malheiro do Vale e Baptista Mendes (Revista da Armada, nº 8, maio de 1072, pp. 16-17)









Banda desenhada dedicada ao episódio do ataque à LDM 302, no Rio Cacheu, em 19 de dezembro de 1967, de que resultou o seu afundamento e a morte do patrão da lancha, o marinheiro de manobra Domingos Lopes Medeiros. Esta banda desenhada via-a, pela primeira vez, no sítio do nosso camarada Manuel Lema Santos, Reserva Naval (poste de 15 de dezembro de 2008 > Guiné, LDM 302, atacada e afundada).

Este episódio heróico da nossa marinha e dos bravos seis marinheiros que constituíam a guarnição da LDM 302, toca-me muito em especial por entre esses heróis estar um amigo meu, colega de escola, conterrâneo e vizinho, o marinheiro fogueiro Ludgero Henriques de Oliveira, precocemente desaparecido aos 64 anos. Eramos da mesma colheita, a de 1947.

Em sua homenagem e aos restantes camaradas da tripulação da LDM 302, já aqui reproduzimos, com a devida vénia, dois postes do sítio Reserva Naval, um espaço na Net que é de visita obrigatória para os camaradas da Guiné (*). Hoje tomo a liberdade de editar e publicar esta  interessantíssima banda desenhada, com texto do próprio contra-almirante Malheiro do Vale, diretor da Revista da Armada,  e desenho de Baptista Mendes. (Reprodução com a devida vénia).


Capa (parcial) do nº 8, ano I,  da Revista da Armada, maio de 1972,  36 pp. Legenda da imagem da capa: "Marinheiros dos navios  brasileiros da escolta  ao N/M  «Funchal »  que conduziu os restos mortais  de D. Pedro, vestindo uniformes  da época".

Esta "publicação oficial do Ministério da Marinha" tinha como diretor e editor o Comodoro António de Jesus Malheiro do Vale. A orientação gráfica era de... Hernâni Lopes. Cada número, avulso, custava 3$00. A assinatura anual era de 24$00 para o Continente, Ilhas, Ultramar e Brasil (via marítima); 59$00 para as Ilhas (via aérea); e 113$00 para o Ultramar (via aérea).


Sumário (parcial) da edição nº 8 da Revista da Armada,. maio de 1972, donde consta a "banda desenhada" de M. do Vale e B. Mendes, "Heróis dos Rios da Guiné", pp. 16/17.

___________

Nota do editor:

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10765: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (31): Dr. Abel Gandra

1. Em mensagem do dia 30 de Novembro de 2012, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais uma das suas memórias do seu tempo de estudante, desta vez lembrando o seu professor Abel Gandra:

HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES (31)

Dr. Abel Gandra

O insigne mestre, Dr. Abel Gandra, era natural de Moçambique, região de Lourenço Marques, hoje Maputo; o pai era europeu e a mãe africana, de etnia Landim.
Era um professor extremamente culto; dava aulas e/ou explicações sobre todas ou quase todas as cadeiras do 7º ano e de todas as alíneas daquela época. Explicava cada matéria com precisão e saber, fazendo-se entender perfeitamente pelos alunos, o que nem sempre acontece. Era um grande psicólogo; a sua maior pecha era não ser tão bom disciplinador como era ensinador: não conseguia dar um “murro em cima da mesa”, sempre que um aluno descarrilava no seu comportamento durante a aula, pondo em causa o bom aproveitamento dos colegas bem comportados e predispostos a cultivar-se.

Perante uma turma de alunos disciplinados com vontade firme de assimilar sempre mais e mais, ele era uma máquina bem lubrificada a ensinar, a elogiar, a encaminhar, a incentivar os alunos para que conseguissem ir sempre mais além e mais acima.

Este nosso ilustre mestre concluiu o ensino liceal em Moçambique; veio de seguida para a chamada Metrópole, a mãe do Império, para frequentar os estudos superiores. Como cadeira opcional, creio que no Instituto dos Estudos Ultramarinos, escolheu o dialeto Landim, sem nunca manifestar que era oriundo dessa etnia. Na prova oral, o examinador cumprimentou-o em andim; ele ”gaguejou“ propositadamente, um pouco como se tentasse escolher cuidadosamente as palavras uma a uma. Aí o professor entrou a pés juntos (ou de “chancas”)! Perante uma nova resposta desenvolta e precisa do examinando, o mestre perguntou-lhe:
- De que raça provém?
- Landim! - Respondeu o jovem Gandra, secamente.
- Acabou o seu exame! Pode seguir. - Concluiu o avaliador.

Provavelmente terá sido neste exame que adquiriu aquele gosto especial de ver um aluno “enrolar” (ou tentar) um professor! Na universidade tornou-se um “profissional do estudo”: concluia um curso e iniciava logo outro.

O pai não gostou! Saturou-se de gastar tanto dinheiro nos estudos sem fim de seu filho e decidiu fechar definitivamente a torneira.

Vendo-se sem dinheiro para “alimentar” seu vício… de estudar, avançou como voluntário para a Guerra Civil de Espanha. Fechadas as portas da guerra, voltou à Pátria e começou a ganhar a vida no ensino, tendo sido colocado no Liceu Camões, em Lisboa.

Um dia, num exame oral história, do 7º ano, ele fazia parte do júri mas não era o examinador. Apareceu um aluno que fez uma prova “bombástica”, “anormal”, (anormal para cima, pela positiva, como afirmava jocosamente o saudoso Leonel Castro Nunes).
O examinador perguntou aos colegas de júri:
- Que nota hei-de atribuir a este aluno?

O Dr. Abel Gandra respondeu curto e grosso:
- Vinte! Não há mais!
-Vinte é para o professor! Comentou o examinador.
- E se o aluno souber mais que o mestre?! - Replicou o Dr. Gandra

Não sei qual foi a nota final atribuída àquela dita “bisarma” mas o mote estava lançado.

Um dia teve conhecimento que a Penitenciária de Lisboa pedia professores para ensinar naquele Estabelecimento Prisional; ele concorreu e foi selecionado. Combinaram a matéria a lecionar, o salário e o horário a praticar. No dia e hora aprazados ele compareceu no local para ministrar a sua primeira aula a presidiários. Pretenderam, logo à chegada, colocar-lhe à volta do cós das calças um cinturão com uma pistola pendurada e verdadeiramente municiada; ele recusou, terminantemente, dar aulas armado.
Alegaram que era altamente perigoso andar desarmado entre prisioneiros tão perigosos. Não se deixou convencer e iniciou o seu novo trabalho… sem arma à cintura..

O pessoal da segurança deve (?) ter-se colocado, estrategicamente, espingarda em riste, de modo a poder proteger eficientemente o mestre em caso de emergência.
Vale mais prevenir… que remediar – segurança acima de tudo!
Nada de mal aconteceu!

Passados uns meses ele comunicou a um dos encarcerados que gostaria de conversar com ele no fim da aula. No momento oportuno o mestre perguntou:
- O que é que o senhor mais gostaria que lhe acontecesse nesta época de Natal que se aproxima?
- O que eu mais adorava, na vida, Sr. Doutor, era passar a noite de Natal com a minha mulher e os meus filhos!

No fim de mais uma aula, na ante-véspera de Natal, chamou junto de si o mesmo prisioneiro. Conversaram durante largos minutos até que os mestre lhe transmitiu, com pompa e circunstância:
- O senhor cai trocar de roupa comigo; seguidamente sai com os meus livros debaixo do braço e vai passar a noite de Natal com a sua família.

No dia X, antes da hora de início da aula, o senhor entra calmamemnte na Penitenciária, com a minha roupa vestida e os mesmos livros debaixo do braço como se viesse dar a “sua aula”. Tudo vai correr bem, espero!
- Esteja descansado, doutor, que eu cumprirei com a minha parte da melhor maneira possível! Acredite! Só tenho uma palavra! Nunca “roí a corda”!

O prisioneiro saiu da sala, passou pelos guardas sem qualquer complicação… e reentrou no dia e hora aprazados. Aconteceu tudo como fora concebido!
Encarcerado pode ser (terá sido) criminoso e até perigoso… mas este não deixou de ser honesto, cumpridor e reconhecido!

O Dr. Gamba foi contratado para dar aulas no C.O.A. à volta do ano de 1959. Foi meu professor de História no 7º ano; a turma era pequena e todos o admirávamos muito. Éramos todos bons rapazes! Assim tinha de ser!

Uma ou duas vezes por semana ele perguntava-nos:
- Amanhã, a que horas?

Ele pretendia saber a que horas da “madrugada” estávamos disponíveis para ele dar mais uma longa aula extra a toda a turma; normalmente sugeríamos que estaríamos prontos às 6 horas. Àquela hora ele lá estava, ledo e fagueiro. Juntávamo-nos no terraço do ginásio e andávamos ali ás voltas durante cerca de 3 horas. Ele explicava a matéria, e fazia perguntas; e assim se aprendia história.
Ele afirmava que nós (mestre e alunos) éramos os peripatéticos do século XX! Reeditávamos os “passeios” de Pitágoras e seus aprendizes no jardim de Academo, proximo de Atenas
Cumpre informar que estas aulas não eram remuneradas: nem nós nem pelo Colégio; pagavam o que quer que fosse por este trabalho; pelo menos para nós ele trabalhava gratuitamente.

Numa das primeiras aulas, informámos o mestre que nos exames do ano anterior, o Dr. José Bento, professor do Liceu de Aveiro, havia “enrolado” todos os examinandos do C.O.A. com determinado tipo de perguntassempre idênticas: - Quais os costumes dos Lusitanos? Cortavam o cabelo? O que comiam? De que se ocupavam no dia-a-dia?
Fazia o mesmo tipo de inquirição sobre os Gregos, os Romanos e outros povos. Ninguém soube responder a tais perguntas, cujo conteúdo não constava dos calhamaços por onde os alunos tinham estudado. O Dr. Abel Gandra colocou logo à nossa disposição uns volumes da História Universal da autoria do francês Mâle, onde o Dr. José Bento “teria bebido” aquele tipo de informação .

Lembro-me que acerca dos costumes dos gregos o autor advogava que eles “costumavam repousar e conversar, deitados sobre uma espécie de cama/cadeira, chamado de triclínio, apoiados sobre o cotovelo esquerdo, comendo bolos de cevada/aveia temperados com cebola e alho e saboreando uma bebida “fermentada” que estaria, provavelmente, na origem da cerveja”.

O Dr. José Bento veio de novo ao C.O.A. examinar os alunos da nossa turma de História. O primeiro a ser interrogado foi o Ângelo Carvalho – creio que era um ex-seminarista e que entrou no C.O.A. apenas no 7º ano. O examinador iniciou o interrogatório, tal como no ano anterior:
- Fale-me sobre os costumes dos Romanos!

O Ângelo “desbobinou” quase uma página do Mâle; o professor mudou de assunto e não fez tais perguntas a nenhum dos outros alunos, mas algo havia de acontecer para pôr em pé os já poucos cabelos do Dr. José Bento.

O Dr. Gandra incitava-nos imenso; apregoava que eu “estava obrigado” a “esticar” aquele examinador.
Quando respondíamos a uma pergunta do Dr. José Bento “com palavras da nossa lavra” mesmo que devidamente enquadradas, normalmente ele replicava: “no livro (único) não está bem assim!

Ele também gostava que nós aprendêssemos a lição “de carreirinha”. Mas no 7º ano não havia livro único! Que falta - digo eu - ele (livro) faz nestes tempos conturbados imensa falta para tonar os calhamaços mais baratos e o ensino mais uniforme em todas as escolas!

Era permitido estudar pelas obras de um ou vários autores e podíamos justificar qualquer resposta nossa apresentando a versão de determinado mestre. Quando fui chamado para a prova oral, logo o nosso Abel Gandra colocou “descaradamente” sobre a carteira que se encontrava atrás de mim, vários “alfarrábios” de História para que, com eles, eu pudesse (abalizadamente), fundamentar qualquer divergência que, casualmente, surgisse.

1ª Pergunta: - Como foram colonizadas as ilhas do Atlântico?
Ele não permitiu que eu dissertasse sobre o tema, exigindo que eu respondesse diretamente à pergunta.
Assim teve de ser! - As Ilhas dos Açores e da Madeira foram colonizadas por meio de capitânias.
- Esse sistema foi utilizado noutra parte.
- Mais tarde foi abundantemente, utilizado no Brasil, mas foi primeiramente experimentado nas Ilhas do Atlântico que foram divididas em capitanias e confiadas aos descobridores.

Passou à frente com nova pergunta: - Quais eram as classes sociais em Atenas?
- Segundo uns autores: Eupátridas, Zeugitas e Tetas; outros incluem também os Hipeis; segundo outros ainda, temos: Pentacosiomedimnienses , Triacosiomedimnienses, Zeugitas e Tetas.

De seguida pretendi explicar o que significava cada um destes “palavrões” mas ele não permitiu; passou a outra pergunta: - Quem foram os representantes na Conferência de Berlim?
- Citei uns três ou quatro nomes e acrescentei: - “e, voltando a página, o cardeal Bembo.”
- Acabou o seu exame! Replicou o Dr. José Bento

Ao fundo da sala (aquela onde o Arqº José Alberto (Betinho) filho segundo dos donos do C. O.A nos mostrou o vídeo, interesantissímo sobre o Colégio, no dia 9 de Junhos de 2012), o Dr. Gandra delirava… por todos os poros; desfez-se em elogios. “É o corolário dum longo mas eficaz ano de trabalho árduo”, apregoava ele eufórico.
Nunca o vi tão exuberante! Tão entusiasmado.

O sr. Almeida transportava, os professores de Aveiro para o Colégio e vice-versa, no seu ”boca de sapo”; durante a viagem, o Dr. José Bento contou ao nosso Diretor:
- O nº 7, Belmiro, sabia pouco de Filosofia e pouco também de Organização Política… mas sabe muito de História!

O dr. Gandra foi também nosso professor de História da Literatura; explicava-nos eficientemente qualquer parte daquela disciplina um tanto diversificada e complicada.
Antes do início duma aula conversávamos displicentemente sobre religiões; o Dr. Gandra pretendeu ser apenas mediador ou mesmo apaziguador (quando o ambiente aquecia “lançava” água na fervura); hoje chamar-lhe-íamos moderador.
Ouviu opiniões mais ou menos diversas e até, certamente disparatadas; a dado momento pôs termo à conversa do seguinte modo:
- Todas as religiões são boas! Nenhuma manda praticar o mal! Mas também são muito complexas! Umas mais que outras prestam-se a interpretações mais díspares! Uns prosélitos são mais acérrimos, mais intransigentes (hoje fundamentalistas) mas, seja como for, somos levados a concluir, sabiamente, que “não há religião melhor que a nossa!”

Mais tarde soubemos que ele, afinal, não era católico, como todos os alunos ali presentes; nunca nos manifestou que religião professava!

Um dia ordenou que escrevêssemos um texto (não uma curta redação como acontecia em anos anteriores) sobre o seguinte tema: “ Cada dia que passa é um passo para a morte!”

Quase todos os alunos emitiram opiniões mais ou menos diversas, mas todos concluíam que era difícil, complicadíssimo, trágico até, escrever sobre tema tão verdadeiro mas incomum e incómodo.

Perante uma objeção mais arrojada do Tó Zé Almeida (o filho mais velho dos diretores), o Dr. Gandra insistiu na veracidade do tema.
O Tó Zé redarguiu:
- Isso nem sempre é verdade, Sr. Doutor!
- Oh António José! Não me diga que hoje o senhor não está mais perto da morte do que ontem?!
- Eu estarei, certamente! Mas continuo a defender que isso nem sempre é verdade!
- Não entendo o seu raciocínio, mas… explique-se!
- Ontem Caryl Chessman estava mais perto da morte que hoje!

Obs: Caryl Chessman era um presumido criminoso (assassino), o “lanterna vermelha”, que havia sido condenado à morte pela Justiça Americana; nunca aceitou ter sido tal personagem (lanterna vermelha) e conseguiu adiar a execução algumas vezes. Entretanto, enquanto aguardava a execução ou a comutação da pena, escreveu (ou alguém o terá feito por si) a obra: “2455 – Cela da Morte”.

Ouvindo tal justificação, o Dr. Gandra ficou pasmado, mudou de cor (passou a ser branco por breves instantes) mas logo recuperou e encontrou a seguinte saída salvadora:
- Na verdade, somos levados a aceitar que, não há regra sem exceção!

O Dr. Abel Gandra terá sido, em meu modesto entendimento, um dos melhores – talvez mesmo o melhor e mais completo – professor que passou pelo COA, no meu tempo.
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 18 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10692: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (30): Colégio de Oliveira de Azeméis (3) (Belmiro Tavares)

Guiné 63/74 - P10764: (In)citações (47): Em louvor dos bravos marinheiros da LDM 302 e dos mártires do meu DFE 21 (João Meneses)

1. Já aqui foi apresentado, como leitor e visitante, o nosso camarada, 2º ten FZE RA, João Meneses, que pertenceu ao DFE 21, e que pretende ingressar na nossa Tabanca Grande  (*), estando nós a aguardar o emvio das duas fotos da praxe para a sua apresentação formal.

Antes disso, a 6 de novembro último, ele já tinha respondido a um mail do Carlos Vinhal, nestes termos:

Caro amigo Carlos

Amizade expontânea, unidos pela Guiné. Brevemente enviarei, via mail, o que me foi pedido. Blogue que veio (e continua a) trazer luz ( na sua grande maioria com casos reais, outros, como o pescador que apanhou um peixe de 8 metros !!!!) que ajuda a reviver, a fazer-nos falar, do que alguns NUNCA conseguiram falar, a desabafar e, porque não, a recordar amizades unidas pelo sangue.

Parabéns pela iniciativa e por manterem vivo este Blog

Com amizade
João Carvalho Meneses

2. Em 26 de novembro último, o João Meneses manda-nos a seguinte mensagem:

Caros amigos

Venho agora corrigir um erro ao identificar a suposta LFG a que se fez referência anteriormente (*).

A memória atraiçoa-nos pela acção do tempo, tornando difusa a exactidão, mas grava sempre no subconsciente, que se aclara por vezes em “flashes” .

Assim escrevi que não era uma LFG na Tabanca Nova da Armada e sim uma LFP. Na realidade tratava-se da LDM 302, (cuja história está descrita e muito bem,neste Blogue ) (**), então abatida ao servíço, de onde se retirou a Oerlinkon, da qual existem fotografias no livro do Luís Sanches Baena.

Essa mesma fotografia de “ronco” foi tirada com elementos do meu DFE21. Serve pois para completar ou complementar a história desta LDM
Alguma nomenclatura:

LFG - Lancha de Fiscalização Grande
LFP - Lancha de Fiscalização Pequena
LDG - Lancha de Desembarque Grande
LDM – Lancha de Desembarque Média
LDP – Lancha de Desmbarque Pequena

Isto leva-me para outro assunto: É um estado de Alma e Coração que transformou todo o meu futuro:

Alguns deles (Praças do DFE21), direi, quase todos, assassinados após o “exemplar” incompetente abandono e traição, pelos nossos “internos” libertadores, que não respeitaram as vidas humanas que ao seu serviço ofereciam a deles. 

Não está em causa a independência da Guiné. Está em causa sim, a forma como foi feita. Em nenhuma guerra da história se abandonaram elementos das respectivas forças armadas, que se sabia irem ser fuzilados,(não só por razões de crenças étnicas como por vinganças políticas). Não se poderá atribuir a “escolha” individual a sua permanência na Guiné. Não se lhes deu, sequer, a hipótese de, como Portugueses que eram, virem para a então “metrópole”. Eram soldados Portugueses inscritos nas suas fileiras e como tal obrigatoriamente  de nacionalidade Portuguesa. Não eram mercenários. 

Vergonha, Vergonha e Revolta  minhas, que não tive a hipótese e a possibilidade de interferir por eles nesse processo. (No entanto falei disto ao Nino, quando o transportei, muito mais tarde, de avião de Lisboa para Bissau). Pedi, na altura do meu internamento no INAB após ter sido ferido, para trazer para Portugal o enfermeiro Fuzileiro Pedro, que demonstrou vontade em vir, mas foi-me negado o pedido, por ser muito complicada uma transferência de um militar.

Esta revolta acompanha-me há quase 33 anos. Lembro-me de ver o Augusto Có a chorar, quando fui evacuado pelo Héli. Bem haja,  Augusto. Entrei em coma logo a seguir.

Não falo aqui de convicções políticas, que as tenho, mas sim de convicções morais, que as mantenho

O que consente é conivente com o executante. Daí que .... a conclusão é triste e chocante
Um abraço a todos,

2º Ten FZE João Meneses (***)

____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 12 de novembro de 2012 >  Guiné 63/74 - P10659: O nosso livro de visitas (152): João Meneses, 2º ten FZE RA, DFE 21, gravemente ferido na península do Cubisseco, em 27/9/1972


(**) Vd. poste de 28 de junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10084: Antologia (76): Vida e morte da gloriosa LDM 302, a cuja heróica guarnição pertenceu o marinheiro fogueiro Ludgero Henriques de Oliveira, natural da Lourinhã, condecorado com a Cruz de Guerra em 1968 (Manuel Lema Santos / Luís Graça)

(***) Último poste da série > 3 de dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10755: (In)citações (46): O cadete Lima, do último curso de oficiais milicianos que reuniu em Mafra, em 1964, a juventude do império... (Rui A. Ferreira)

Guiné 63/74 - P10763: As mulheres que, afinal, foram à guerra (19): O que fazer com a nossa correspondência, estimada em mais de 300 milhões de aerogramas e cartas, enviados e recebidos ao longo da guerra do ultramar ? (Manuel Joaquim / Luís Graça / Alice Carneiro)

1.  Tive ontem a felicidade de receber a seguinte mensagem do nosso amigo e camarada Manuel Joaquim, um dos mais generosos dos nossos grã-tabanqueiros, além de mestre-escola:

Meus queridos amigos, esforçados editores:

Hoje venho com uma ideia que se calhar "é de jerico", como dizem na minha terra. Como estou a fixar, em letra de forma, a minha correspondência de guerra,  lembrei-me de vos questionar sobre o interesse da sua publicação no blogue. 

Sinceramente, para além de mim e dos meus familiares mais queridos, não sei se terá qualquer outro valor para alguém. Creio que alguma da chamada correspondência de guerra, não a minha, poderá ter (tem) algum valor atualmente, mesmo já valor histórico. Tenho a certeza que toda a correspondência de guerra que "sobreviva" terá cada vez mais interesse e valor com o decorrer do tempo, sejam quais forem os temas que incorpore, dos mais simples da vivência diária dos combatentes aos mais "arrebitados" discursos de cariz sociológico e/ou político, tenham muita ou pouca, alguma ou nenhuma qualidade literária,  pois o seu valor não virá da qualidade da escrita mas do seu conteúdo que terá sempre valor histórico mesmo quando se limite a contar o que se comeu (ou não) no dia a dia ou num certo dia.

Anexo as minhas primeiras seis cartas, três minhas e três da namorada que foi depois (e é) minha esposa. Esta deu-me a devida autorização, só me pedindo que o seu nome não ficasse "escarrapachado" no texto. Assim o fiz, também com o meu nome, ficando só as iniciais dos nomes próprios usados.

A publicação destas cartas no blogue é, para mim, coisa secundária. Se acharem interessante, aqui estão.

Um grande abraço para todos, e cada um, cá do Manel





O primeiro poste da I Série do nosso blogue... 23 de abril de 2004... Dedicado à nossa correspondência de guerra. Na época devo ter inflacionado o volume da correspondência: (...) "Em treze anos de guerra, cerca de um milhão de soldados terá escrito mais de 500 milhões de cartas e aerogramas. E recebido outros tantos" (...).

O mais realista é apontar para um total  entre 250 e 300 milhões de cartas e aerogramas, enviados e recebidos. O número de soldados metropolitanos mobilizados paras as 3 frentes (Angola, Guiné, Moçambique) será da ordem dos 800 mil, a que se deverão somar mais 200 mil soldados do recrutamento local. É de admitir que estes escreveriam muito menos, até por que a grande maioria (nomeadamente na Guiné) não sabia ler nem escrever português.

O número de aerogramas disponibilizado anualmente pelo Movimento Nacional Feminino ultrapassava os 30 milhões (32 milhões em 1974, de acordo com o orçamento ordinário previsional do MNF). Admite-se que muitos (talvez um terço) fosse inutilizado, servindo de papel de rascunho... Em 13 anos de guerra, possivelmente a TAP ( e os TAM) deverá ter transportado de (e para) o ultramar, qualquer coisa como 200  milhões de aerogramas, a que  se poderão acrescentar mais 50 a 100 milhões de cartas. No total, 300 milhões, o que me parece uma estimativa, conservadora mais realista, do que os 500 milhões iniciais... (Recorde-se que os aerogramas, uma invenção portuguesa, eram isentos de franquia: porte e sobretaxa aérea; vd aqui um completíssimo texto sobre a sua história).  

Estimava-se em 300 mil o número de madrinhas de guerra. Um em cada três militares deveria ter uma madrinha de guerra, segundo uma sondagem que aqui fizemos em tempos. E todos nós, com raras exceções, nos correspondíamos regularmente com os pais, irmãs e irmãos, esposas, noivas, namoradas, amigas, vizinhas... Em dois anos de comissão, 24 meses, é possível que um soldado metropolitano escrevesse ou recebesse em média um dúzia de cartas e aerogramas por  semana. Arredondando, 300 cartas e aerogramas, enviados e recebidos, "per capita...(LG)

2. Resposta, imediata, do editor L.G. [, foto á esquerda, em 1970, em Nhabijões, Bambadinca]

(i) Eureka!, Manel Joaquim, meu querido camarada!... Ando há 9 anos (!) a pedir para "salvarem" as nossas cartas e os nossos aerogramas, esqueciso no fundo dos nossos baús!...  Aliás, o primeiro poste do nosso blogue, I Série, de 23 de abril de 2004, começou justamente com o título Saudosa(s) madrinha(s) de guerra...

Da I Guerra Mundial há menos de 100 cartas no arquivo histórico militar!... Do meu pai, de Cabo Verde, do tempo da II Guerra Mundial, não tenho nenhuma!... E dos mais de 300 milhões de cartas e aerogramas que eu estimo que se tenham escrito durante toda a guerra colonial (incluindo as da Índia!), quantas se irão salvar ?

Vamos já abrir uma nova série só para ti!... Parabéns pela tua coragem e generosidade!... LG

(ii) Não escrevi cartas nem aerogramas a ninguém.  Limitei-me a mandar algumas fotografias, com breves legendas, aos meus familiares mais próximos, para os tranquilizar: que estava bem, que estava vivo, que estava de saúde!... Hoje, sinto uma culpa imensa!... Na época não tinha namorada, e muito menos madrinha de guerra!... Em contrapartida, mantive, com irregularidade, um "sofrido" diário... Das cartas e aerogramas que recebi da família e dos amigos, perdi o rasto... E sinto-me mal por isso, por não ter acautelado a salvaguarda dessa correspondência... Teria, hoje, seguramente algum valor documental. Eu diria: todas as nossas cartas têm um excecional interesse como para os investigadores da área das ciências sociais e humanas, nomeadamente, da história, da linguística, da antropologia, da sociologia...

Em contrapartida, tenho a sorte de poder ter acesso à correspondência mantida por aquela que haveria de ser (e é) a minha companheira de um vida, a Alice Carneiro, igualmente nossa grã-tabanqueira... Trata-se de algumas centenas de cartas e aerogramas, enviadas (e recebidas) pela Alice... Mais as recebidas do que as enviadas: em boa verdade, das enviadas, só restam as que o mano José, combatente em Angola, guardou e arquivou religiosamente... em Camabatela, norte de Angola. E não são tão poucas quanto isso...

O Zé [, foto à esquerda,] já não se lembra do nº da companhia. Nem parece ter grandes saudades do seu tempo de tropa e de guerra. Sabe apenas que era 1º cabo, operador de transmissões, de  rendição indvidual, e que esteve aquartelado em Camabatela e que andou a guardar os cafezais do norte de Angola, nos já idos anos de 1969/71.

Recebia e escrevia muitas cartas e aerogramas, isso sim. Das que recebeu (dos manos, pais, cunhados, amigos, amigas ...) guardou-as todas, e arquivou-as, uma a uma, por autor e data... Só da mana, Chita,  tem mais de 100, no seu arquivo. Essa coleção é já um hoje um fonte de informação interessante não só para a história da família mas também sobre o quotidiano da guerra em África, e das necessidades e preocupações que os nossos militares deixavam transparecer. 

As saudades da terra eram sempre mais do que muitas, as referências às festas anuais, à matança do porco, às vindimas, ao Natal, etc., eram frequentes. Era isso que fazia lembrar a pátria distante... Nos dois anos que lá esteve, nunca veio a casa, que as viagens eram caríssimas. Fez férias em Luanda, tanto quanto sei.

Ao voltar mais uma vez a Angola, em julho e em outubro passados, e mais concretamente a Luanda, em trabalho, lembrei-me do meu querido cunhado, com quem às vezes falo dos nossos tempos de "meninos e moços"... Quis  fazer-lhe uma pequena surpresa por ocasião do seu 63º aniversário, selecionando algumas das cartas (mais do que aerogramas) que ele mandou à mana Chita, e que felizmente chegaram até nós (apenas umas 20 e tal). Muitas outras ter-se-ão perdido, com o tempo, e as andanças da mana. A Alice já trabalhava na Junta de Colonização Interna (Ministério da Agricultura) e andou por vários sítios,  de norte a sul do país.

Aqui vai então uma pequena antologia de excertos dessas cartas. É também uma homenagem a uma família, de três filhos e três filhas, que mandou dois dos seus rapazes (curiosamente o mais velho e o mais novo) para a guerra: o António, para Moçambique, onde foi gravemente ferido, em acidente com arma de fogo; e o José,  o "caçula", que fez a sua comissão de serviço em Angola, sem "problemas de maior"... Esta seleção da sua correspondência foi já publicada no blogue da família, A Nossa Quinta de Candoz... Que sirva, ao menos, de estímulo para que outros camaradas, da Guiné, seguiam o  exemplo do nosso Manuel Joaquim. (LG)



Angola > > Cuanza Norte > Ambaca > Camabatela > Janeiro de 1974 > Avenida central de Camabatela; ao fundo, a igreja católica. A cidade de Camabatela (ou Kamabatela, como também se escreve hoje ) foi fundada pelos portugueses em 1611, e é sede do município de Ambaca, na província do Cuanza Norte (ou Kwanza-Norte), a leste de Luanda. Foto de Henrique J. C. de Oliveira, Cambatela, 1/1/1974.

Foto: Cortesia de Prof2000 > Aveiro e Cultura > Arquivo Digital


3. Cartas de Camabatela: do Zé Carneiro para a mana Chita (1970/71) > Excertos


Remetente: José Ferreira Carneiro, Caixa postal 150, Camabatela, Angola

(i) Camabatela 19/05/70

Querida mana: Aqui me tens de novo, conversando como estivesses a meu lado. Começo por te desejar óptima saúde na companhia das tuas colegas e de toda a nossa família. 

Já deves ter conhecimento de que estou de novo no destacamento. Cá estou a passar mais 45 dias de férias no mato…

Quanto ao meu castigo, tenho-te a dizer que ficou tudo em águas de bacalhau. O Capitão chamou-me e só me disse que não devia ter feito a troca sem o avisar. Escusas de te preocupar, está tudo bem.

Por hoje é tudo. Recebe do teu mano um xi coração muito forte, adeus até 1971. (...)


(ii) Camabatela 16/06/70 

Querida mana Chita:  Estou a escrever uma carta porque os aeros [aerogramas] chegam a demorar cerca de um mês até chegarem ao seu destino, isto quando não são devolvidos. Estou mesmo muito aborrecido com isto. Pensei agora só escrever cartas, mas de 15 em 15 dias. Assim as cartas só demoram 3 dias a chegar a vossa mão. Tens que escrever é para a caixa postal. Que achas? Assim não repetimos as notícias. Quando receberes carta minha, peço-te que telefones aos pais para ficarem descansados. Está bem assim? 

Já te mandei o nº dos sapatos por 4 vezes e ainda continuas a pedir!.. Isto quer dizer que não tens recebido o correio.

Então como anda a tua saúde? Iniciei a carta sem fazer aquela lenga, lenga de sempre… Quanto a mim, desde já te digo que estou forte e que gozo de boa saúde.

Termino com um xi coração muito apertado do teu mano que te adora. Bjs


(iii) Camabatela 04/07/70

(...) Agora mesmo acabo de receber mais uma carta tua, juntamente com uma encomenda que trazia os sapatos e a camisa. Cada vez as encomendas estão a demorar menos tempo. Comparar com as primeiras que foram enviadas!...

Os sapatos e a camisa ficam-me a matar, só não queria que mos oferecesses. Tens mais em que gastar o dinheiro, mas aceito. Esta não está esquecida!

Já estou de novo em Camabatela, já estava cansado de tanto capim. Não posso dizer mal, porque desta vez engordei 3kg e aqui perco sempre peso.

Faz hoje 11 meses que embarquei em Lisboa, já pouco mais falta do que um ano, e um já se passou!... (...)


(iv) Camabatela 18/11/70

(...) Depois de ter chegado de uma operação que durou 5 dias, aqui estou a dar-te notícias.

Hoje mesmo parto novamente para o mato, onde vou passar o Natal e talvez o Ano Novo. Desta vez calhou-me a mim, o ano passado foram os meus colegas.

Com isto, estou quase a entrar no ano da peluda [, fim da comissão e passagem à disponibilidade]. Cada vez falta menos. Oxalá que este termine sem problemas.

Apesar de ainda não saber o que vou fazer quanto ao meu futuro de vida, não me sinto com ideias de meter o xico….

Por aqui vou ficar, mandando cumprimentos para todos os nossos vizinhos, as tuas colegas, e tu do mano muito amigo, um forte xi coração. (...) 


(v) Camabatela 14/01/71

(...) Aproveito estar uma grande trovoada e chuva para te escrever, porque assim as comunicações não funcionam, tenho que desligar os aparelhos.

A encomenda que mandaste, chegou dois dias depois do Natal. Chegou tudo bem. As castanhas começamos a comê-las e só terminamos quando acabaram. Sabes uma coisa? O bolo Rei não tinha fava!

Já só faltam 7 meses! Isto vai com calma.

Enquanto vós estais aí com grandes nevões, (segundo dizem os jornais), por aqui a temperatura é agradável, só as chuvas é que são esquisitas.

Já estou de novo em Camabatela. Já estava saturado de estar no mato e de ver tanto capim.

Acompanhado duma boa musiquinha, consegui estar contigo no pensamento.

Agora que o temporal já lá vai, tenho que regressar ao trabalho e ligar os aparelhos que já me provocam raiva só de olhar para eles. Tenho que estar em forma.

E assim me despeço com um forte xi coração do teu mano amigo. Adeus e até Agosto ou Setembro. (...)


(vi) Camabatela 15/02/71 

(...) Querida mana, não calculas como eu fiquei ao ler a tua carta e me falavas da matança do porco [, foto à esquerda, Candoz, c. 1980, foto de L.G.] . Aquelas fêveras e os rojões de que falavas. Não continha a minha cabeça e os meus pensamentos. Pareciam o Rio Douro quando traz uma enchente das chuvas. O mano António também me falou do mesmo.

Sabes uma coisa? Estou muito, muito cansado. Andei 3 dias e 3 noites no mato a andar sem poder dormir e ainda carregado com o respectivo rádio. A roupa molhou-se e secou-me no corpo por 3 vezes. Foi por esta razão que te demorei mais a escrever.

Querida mana, quanto ao que vou fazer quando acabar a tropa, o mais certo é eu ir estudar. Sem isso eu não tenho possibilidades de ter um emprego digno. Já falei com o Capelão para me colocar como Perfeito no Seminário, assim já podia estudar e trabalhar. (...) 


(vii) Camabatela 17/05/71

(...) Espero que esta minha carta te vá encontrar de óptima saúde, bem como toda a nossa família.

De facto tens razão em dizer que estou a esquecer-me um pouco de vós, mas não. Nada tem acontecido de grave por cá. Tudo corre pelo melhor.

Não te devia dizer, mas já estou de novo no mato. Esta estadia aqui, será a última para completar a minha comissão.

Não estejas preocupada que eu aqui no mato só tenho como rival o isolamento. De resto tudo é melhor do que na vila de Camabatela.

Quando me falas do que vou fazer quando regressar. Nada te sei dizer, estou a ver tudo muito escuro, mas na lavoura eu não quero ficar. (...).




(viii) Camabatela 14/06/71

Querida mana: Só hoje recebi a tua carta e logo te respondo. Parece impossível que as cartas demorem tanto tempo. Entre tu escreveres e eu receber, chegam a demorar 15 a 20 dias. Chegamos a estar 20 dias sem correspondência o que é muito duro para quem está aqui. As coisas ainda pioram mais quando estamos no destacamento (mato) que chegamos a estar 45 dias. 

Também penso o mesmo que tu, que sou preguiçoso, que já não tenho saudades vossas, etc. etc. mas o que interessa é que só faltam 50 dias para isto acabar.

Vou te contar um segredo: Andei a fazer umas economias para comprar uns presentes para vos levar, mas acontece que um colega que sabia do meu mealheiro, foi lá e roubou-mo. Eram 2.500$00. Este colega foi-me falso e ando muito triste, mas tenho que esquecer. Depois quando eu chegar, te contarei melhor como tudo aconteceu.

Gostava de chegar aí e tu estares ainda de férias, seria bom, mas a tropa é que manda!.. (...) 


(ix) Camabatela 04/08/71

(...) É precisamente o dia que devia terminar a minha comissão e que te escrevo para desta forma estar em contacto contigo.

Aquilo que desejas saber, ainda não é desta. Porque apesar de ter terminado a minha comissão, ainda não chegou o substituto para me render, mas como há falta de pessoal tenho que aguentar. Com a graça de Deus tudo vai acabar bem.

Desta vez a minha carta levou pouco tempo a chegar aí. Nesse mesmo dia escrevi também a mana Nitas.

Desculpa não escrever mais, mas estou cheio de sono.

Um forte abraço de saudades do teu mano Zé (...)


4. Reproduz-se,por fim, uma das 100 cartas (e aerogramas) que a mana Chita mandou ao mano Zé quando ele fez 22 aninhos... Ele, lá longe, no Norte de Angola, em Camabatela, para onde a Pátria o chamou, entre 1969 e 1971, uma eternidade...Ela já a trabalhar, mas ainda a viver em Candoz, na casa dos pais... O meu obrigada ao Zé por ter arquivado todas as cartas e os aerogramas que a família e os amigos lhe mandaram!... Tudo direitinho!...





Marco de Canaveses > Paredes de Viadores > Candoz > Quinta de Candoz > 21 de outubro de 2012 > O Zé Carneiro, na véspera de completar 63 anos, apanhando sentieiros (cogumelos).

Foto: © Luís Graça (2012). Todos os direitos reservados.


Candoz 9.9.70

Querido Mano:

Após algumas horas terem passado do teu aniversário [, ontem, dia 8,], aqui estou a contar-te como o passámos.


Como já há 6 anos que lá não [ ia, à festa do Castelinho, ], este ano sempre me decidi e fomos, eu, o pai, a Rosa, o Quim, António e Graça. Fomos de manhã e chegámos à noite. Para te dizer que gostei muito, isso não. Sabes que só era alegria quando fazíamos as viagens a pé. Agora ninguém o faz e portanto deixa de ter aquela alegria sã como dantes. Isto é a minha opinião!... Mas julgo que a dos outros será a mesma.

Assisti à Santa Missa no adro e depois do almoço fui para o penedo onde permaneci até vir embora. Não estava calor, pois de manhã tinha chovido, portanto não fazia pó. Fomos todos à capela rezar por ti e assim se passou o dia. Não andava muito contente mas isto são problemas de 'amor'. E também por que estou muito magra, depois que vim de Lisboa já emagreci ainda mais 4 kg. 

Também te quero dizer que hoje mesmo recebi mais uma carta tua. Até que enfim te decidiste a escrever-me. Acredita que andei uns tempos chateada, mas já passou.

Quanto às fotos realmente tens razão. Eu tinha uma série delas tiradas em Pegões, e ficaram de mas mandar, mas até hoje ainda nada apareceu. Até eu estou a ficar aborrecida, mas o remédio é ter paciência. Quando me for possível, eu tas mandarei.

Neste momento estou a escrever-te do consultório médico. Vim com a mãe, vamos ver o que diz o médico. Não te aflijas porque [ela] anda bem, o médico é que quer ver se está melhor.

Quanto às uvas, para já o preço de 2$80 o kg, não é mau de todo mas a s vindimas só podem ser feitas a partir do dia 28. Isso é que será pior e mais ainda se agora não parar a chuva, então teremos tudo podre.

Por hoje é tudo, resta-me finalizar com um abraço da família Barbosa e meninas, cumprimentos dos vizinhos, beijinhos dos pais e da tua mana uma xi-coração de amizade. Maria Alice.

PS – Escreve para casa porque, embora trabalhe todos os dias, venho cá dormir.



5. O projeto  FLY – Cartas Esquecidas  (1900-1974) (Centro de Linguística da Universidade de Lisboa)

Recorde-se que a  Alice disponibilizou a sua coleção de cartas e areogramas da guerra colonial (cerca de três centenas e meia) para um projeto de investigação, chamado FLY. Todos os documentos foram devidamente digitalizados, sendo depois devolvidos à proprietária (e, no caso das cartas do mano, fiel depositária). Cito aqui a investigadora e doutoranda Leonor Tavares, da Equipa FLY, do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa:

(...) "O projecto FLY - Cartas Esquecidas (1900-1974) é um projecto que procura recolher, digitalizar e editar cartas do século XX dos contextos de prisão, exílio, guerra (colonial e mundial) e emigração. Este projecto continua o projecto CARDS - Cartas Desconhecidas (1500-1900) que já conta com 2000 cartas transcritas. Os dois projectos estão neste momento parcialmente disponíveis no site http://alfclul.clul.ul.pt/cards-fly/.

"O objectivo do projecto FLY é recolher e editar 2000 cartas dos contextos referidos, sendo que se estipulou um total de 700 cartas para o contexto da guerra colonial. Este arquivo digital (composto pelas 2000 cartas do projecto CARDS e as 2000 do projecto FLY) estará disponível para investigadores de várias áreas (principalmente as áreas da Linguística, da História e da Sociologia), para que os documentos (as cartas) sejam imortalizados como objectos históricos de grande relevância linguística. Os estudos que podem ser feitos a respeito deste tipo de documentos compreendem, entre muitas outras hipóteses, aspectos relacionados com a sintaxe, a fonologia, a pragmática, a história cultural e/ou social e aspectos da sociologia das migrações, das desigualdades e classes sociais.

"O projecto FLY compromete-se a omitir todos os dados pessoais dos intervenientes nas cartas, nas transcrições e nas imagens disponibilizadas on-line. (...)".


Recolha de cartas portugueses do Século XX (1900 a 1974) > Apelo

“Se guarda em sua casa cartas particulares e deseja que ela sejam dignificadas enquanto objeto de conhecimento, por favor contacte os investigadores do projeto FLY 1900-1974 (Cartas Esquecidas).”

Rita Marquilhas
Centro de Linguística da Universidade de Lisboa
Avenida Professor Gama Pinto, 2, 1649-003 Lisboa
Telefone : 21 790 49 57
Fax : 21 796 56 22

Email : fly@clul.ul.pt
Endereço do site : http://alfclul.clul.ul.pt/cards-fly/

_______________

Nota do editor:

Último poste da série > 1 de julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8494: As mulheres que, afinal, foram à guerra(18): As madrinhas de guerra e a Cecília Supico Pinto,precursora do Facebook (António Matos)

Guiné 63/74 - P10762: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (17): 18.º episódio: Emboscando a morte

O triunfo da morte, de Pieter Brueghel o Velho, (1562)


1. Em mensagem do dia 1 de Dezembro de 2012, o nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422, Farim, Mansabá, K3, 1965/67), enviou-nos o décimo oitavo episódio da sua campanha no K3, dias que fazem parte dos melhores 40 meses da sua vida.


OS MELHORES 40 MESES DA MINHA VIDA

18º episódio: Emboscando a morte

Certo dia preparei-me para aprisionar uma presença indesejável que todos sabíamos por ali andar. Pretensamente fantasmagórica mas que não nos assustava, a sua missão era a de arrebanhar gananciosamente, algum menos cauteloso e desprotegido.

Muitos de nós já com ela tinham convivido, bem como eu próprio, até que um dia e por via da tão ansiosa e sôfrega procura, "mostrou-se".
Ao fazê-lo, caiu na emboscada que lhe preparei, após um pensado e melhor elaborado plano de captura, abaixo descrito.

Algemada aí estava pi-ursa, ameaçando, gesticulando, implorando.

De estatura mediana, pr'aí um metro e setenta de altura, viseira verde, fato anti-bala, esgrimia com a mão direita um tridente, que é uma espécie de forquilha, mas só com três dentes.

Vinha do lado de lá atacante, decidida a despachar-se rápido, e pensando decerto que seria canja o cumprir do objectivo a que se propunha, mas eu, esperto e atento e de fato branco de anjinho e Judas, (cá está o plano) finquei os pés no chão vermelho, deixei-a aprochegar, empunhei a canhota ao mesmo tempo que inocentemente, mas com ares teatrais, lhe gritei:
- Rende-te morte... ou desfaço-te". ( E fá-lo-ia... se a não partisse em quatro, pelo menos abri-la-ia d'alto a baixo)

Solicitada que estava a ser a minha presença, ateia-a a um cajueiro, vesti de novo o camuflado e ainda cheguei a tempo de ajudar o 44, felupe de nascimento e que na altura se esforçava para introduzir duas granadas na bazooca, pois que ao que me disse acabaríamos mais depressa com a peleja, dada ser hora para o jantar.

Repelida que foi mais esta flagelação, fui interrogá-la. Havia mudado de visual e agora estava bem mais atraente, fazendo-me crer ter-se transformado na BB. Confessou-me que não fugira porque não quisera, e que estava apaixonada por mim. Aguardara-me pois pretendia que fosse com ela. Disse-me que se poderia mudar para a forma que eu quisesse e aí tremeliquei e estive quase a pedir-lhe para ser aquela professora que quase tudo me ensinou na faculdade da vida e cujas aulas frequentei desde os 14 anos, uma vez por semana, ao sábado.

E não foram mais os leccionamentos, pois que dez escudos... eram uma pipa de massa. Ainda hoje considero uma lástima terem acabado com essas Universidades (em 1964? 1965?) dado que aprendíamos mesmo e as "meninas" não eram tão despidas de pêlo como as d'hoje, que se depilam... depilam e ficam tão sem jeito.

Voltando à prisioneira: sendo inimiga e estando sob o meu jugo, não lhe dei quaisquer abébias embora estivesse mesmo sedento de vingança e com um rancor inimaginável.

A novidade foi-se divulgando, provavelmente devido a fugas de informação, ou não, porque a operação fora considerada secreta e logo se foram vindo alguns outros camarigos que mesmo explicando-lhes antes, quem era a terrífica personagem não deixaram de a vir espiolhar.

E saíam insinuando que cá o JE, estaria de "cabeça grande" mas que, e como de costume, mantinha o proveito de sempre bem acompanhado.

Lá por altas horas da noite, deixei que fugisse, não sem que antes me garantisse que só me voltaria a contactar lá para 2049 e eu, em contrapartida e por exigência dela, terei , se o conseguir à época, e em conjunto, "partir qualquer coisa".

(continua)
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 2 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10750: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (16): 17.º episódio: O mistério das luzinhas do K3

Guiné 63/74 - P10761: Parabéns a você (504): Manuel Carvalho, ex-Fur Mil da CCAÇ 2366 (Guiné, 1968/70)

____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 2 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10748: Parabéns a você (503): Herlânder Simões, ex-Fur Mil da CART 2771 e CCAÇ 3477 (Guiné, 1972/74)

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10760: Memória dos lugares (201): Pelundo, Junho de 1968 (Manuel Carvalho)

 

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Carvalho (ex-Fur Mil Armas Pesadas Inf, CCAÇ 2366/BCAÇ 2845, Jolmete, 1968/70), com data de 2 de Dezembro de 2012:

Caro amigo Carlos Vinhal
Vou enviar algumas fotos e dizer alguma coisa sobre as mesmas, para tratares como muito bem entenderes.




Navio Niassa, Maio de 1968 > Em primeiro plano e da esquerda estou eu, o Gandra, o Mirandela e o Martins. A jogar cartas estão dois camaradas julgo que do BCaç 2845, dos quais não me lembro dos nomes e a quem peço desculpas por isso.

Basta olhar as fotos e não é difícil de imaginar os pensamentos que vão dentro das nossas cabeças. Para oficiais e sargentos o tratamento dentro do barco até era bom, agora as praças viajavam em condições péssimas como todos nós sabemos.


PELUNDO



Pelundo, Junho de 1968

O quartel ficava do lado esquerdo da estrada já na saída para Jolmete.
Naquele tempo estava lá um pelotão e duas Panhards.
No meio da Tabanca onde saía a estrada para Có havia um fortim cuja foto já foi mostrada no blogue e onde todas as noites ficava uma secção.
Nunca tivemos problemas mas o pessoal não gostava nada de ir para lá, como o fortim ficava rodeado por tabancas, era complicado responder a um ataque naquelas condições, mas como sempre quem manda manda.

No quartel, por duas três vezes o PAIGC fez pequenas flagelações só para dizer que andavam por ali.

Todos os dias seis ou sete iam a Teixeira Pinto buscar água e géneros. Levávamos sempre muita população de boleia e isso era a nossa segurança.
Ao sair mandávamos uma mensagem e se não chegássemos em meia hora saiam ao nosso encontro.

O Pelotão que nos substituiu não davam boleia a ninguém e nos primeiros dias tiveram logo uma mina.

Como dizia o outro vidas passadas.

Um grande abraço para todos e muita saúde.
Manuel Carvalho
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 1 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10744: Memória dos lugares (200): Ponte do Saltinho no Rio Corubal: fotos do álbum do Arlindo Roda (ex-fur mil, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71) (Parte II)

Guiné 63/74 - P10759: Do Ninho D'Águia até África (32): Falsa notícia (Tony Borié)

1. Trigésimo segundo episódio, enviado em mensagem do dia 1 de Dezembro de 2012, da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.


Do Ninho D'Águia até África (32)



O Cifra, já tinha uns meses que estava localizado em cenário de guerra. Estava ainda no período de ambientação e quase todos os meses tinha a missão da entrega do novo código da cifra, pelas diversas unidades de acção, que essas sim, se encontravam na verdadeira zona de conflito.

Não sei se já foi dito, que para esse fim usava os mais variados meios de transporte, eram os que nesse momento se deslocavam de unidade para unidade, tanto podia viajar numa coluna militar como na avioneta do correio ou no helicóptero, mas quase sempre era a célebre coluna militar, e era onde se sentia mais seguro, lá ia, sentado, sempre com a G-3 entre as pernas, que o Setúbal tinha limpado e oleado, dizendo depois que estava operacional.

Ia sempre a tremer de medo, tentando falar sempre com alguém que se sentasse a seu lado, para desanuviar a mente, pois sempre que ouvia um ruído ou um movimento fora do normal, ficava em pânico.

Uns dias depois de ter passado na estrada, que mais parecia um carreiro, entre Bissorã e Olossato, uma coluna foi atacada, havendo alguns feridos entre os militares.

O Cifra nunca soube porquê, mas porque no Olossato estava um companheiro que era da sua zona em Portugal, com quem tinha falado, talvez esse colega tivesse escrito, dando a notícia aos familiares de que tinha havido um ataque à coluna onde houve militares feridos. Daí terá corrido a falsa notícia na sua aldeia, no vale do Ninho D’Águia, que o Cifra tinha sido ferido, e “como quem conta um conto, acrescenta um ponto”, a menina Teresa, a tal costureira solteirona, que por saber ler e escrever, entre outras coisas era a conselheira da família, estava na cabeleireira da vila, a fazer a permanente e a eliminar o bigode, com um produto novo, que cheirava muito mal, que tinha vindo de França, ouviu dizer que tinha morrido um rapaz na Guiné que era do norte da vila, mas não sabiam o nome.

Pronto, foi o suficiente, para chegar ao conhecimento da mãe Joana, que o Cifra, já não tinha sido ferido, mas sim, morto em combate, onde tinha lutado contra muitos guerrilheiros, dado muitos tiros, e tinha morrido abraçado aos restos da bandeira nacional, que estava toda em farrapos dos tiros e da explosão das granadas. Era um herói porque naquela altura a província da Guiné andava nas bocas do povo, como se fosse o inferno, pois alguns contingentes de tropas tinham sido desviados da província de Angola e Moçambique, para irem de emergência, e alguns mal preparados, diga-se de passagem, para a província da Guiné.

Calculam a aflição da mãe Joana, ela não queria saber nada se o filho era um herói, se tinha morrido agarrado à bandeira nacional, nessa altura em farrapos, o que ela queria era o seu filho vivo. A pobre, lavada em lágrimas, foi ao quartel, onde recebia o dinheiro todos os meses, perguntar aflita, onde lhe disseram que não sabiam de nada, mas que iam imediatamente telefonar e que esperasse, que já lhe respondiam.

Era mentira! Estava vivo e sem problemas, pelo menos era a informação oficial. Na próxima carta, que a mãe Joana notou, e que a menina Teresa escreveu, conta-lhe toda a história, e o Cifra manda-lhe um aerograma com as seguintes palavras:

Mãe, estou vivo e com saúde! Morto, só se for afogado em cerveja ou de saudades vossas!

E da unidade militar onde o Cifra tinha sido treinado antes de ir para a província da Guiné, onde talvez tivessem conhecimento das investigações sobre a dita falsa morte do Cifra, a sua mãe recebe uma carta de encorajamento, foto em baixo, onde entre outras coisas, dizia:

“Minha senhora, o vosso filho António..., [...] aqueles sentimentos que dignificam e enobrecem o homem..., [...] a família militar, é uma extensão da família de cada um de nós..., [...] podeis, legitimamente, orgulhar-vos do vosso filho..., [...] aprumado e respeitador, qualidades estas que a par de óptimos sentimentos e carácter, o tornam o digno de ser considerado como um exemplo a seguir pelos seus camaradas e igualmente digno do apreço dos seus superiores. E se uma mãe, se pode orgulhar de um filho assim, permita-me minha senhora que, sem querer ferir a vossa modéstia, afirme que esse filho, se pode orgulhar também de sua mãe, por esta ter sabido educá-lo de tal forma”.

E assinava por baixo, Mário Belo de Carvalho, Major de Artilharia.


Não há dúvida, que estas palavras serenaram a mãe Joana, que já não se lembrava se a bandeira nacional estava em farrapos, o que talvez até já estivesse, pois o povo andava triste, com a guerra colonial a levar os jovens das aldeias, vilas e cidades para a África, ficando assim despovoadas, deixando as raparigas solteiras e sem namorados, alguns não mais regressavam, mas a mãe Joana, agora “babando-se” de orgulho por o seu filho ainda estar vivo. Todos os dias se levantava ao passar do comboio das seis e meia, que ao apitar aflito, ao descer o vale do Ninho d’Águia, em direcção ao mar, a acordava, e mesmo antes de acender o lume na lareira, onde fervia a água para fazer o café de chicória numa grande panela de três pernas, que era o utensílio mais importante da casa, pois era nessa panela que cozinhava todas as refeições, e também “entalava”, alguns vegetais para os animais, acendia uma vela ao Santíssimo e rezava um Pai Nosso e uma Avé-Maria à Nossa Senhora de Fátima, para que o filho regressasse vivo da maldita Guiné!

 (Texto, ilustrações e fotos: © Tony Borié (2012). Direitos reservados)
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 1 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10743: Do Ninho D'Águia até África (31): O Movimento Nacional Feminino em Mansoa (Tony Borié)