segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Guiné 63/74 - P12021: (In)citações (54): Revista do Expresso, de 24/8/2013, traz artigo sobre a vida e a obra do nosso camarada João Crisóstomo (Eduardo Jorge Ferreira)... E o nosso blogue gostaria muito de o ver condecorado num próximo 10 de junho, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas (Luís Graça)


Vilma Kracun e João Crisóstomo, no dia do seu casamento em Nova, 20/4/2012.  A história de amor de Vilma, cidadã eslovena, e do nosso camarada João Crisóstomo, já tinha sido publicada em The New York Times,de 28/4/2012, e antes disso no nosso blogue. . E chega também agora à imprensa portuguesa (Expresso, 24/8/2013).

O João Crisóstomo, natural de A-dos-Cunhados, Torres Vedras, ex-alf mil, CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole, Missirá, 1965/66), vive em Nova Iorque desde 1975 e integra a nossa  Tabanca Grande  desde 26 de julho de 2010.


Foto: LusoAnmericano, 24 de abril de 2013 (Reproduzida com a devida vénia...)



1. Mensagem do Eduardo Jorge Ferreira [, foto à esquerda,] ,ex-alf mil da Polícia Aérea (BA12, Bissalanca, 1973/74), natural de A-dos-Cunhados, Torres Vedras, e amigo pessoal do nosso editor Luís Graça:

Data: 2 de Setembro de 2013 às 16:33

Assunto: Artigo do Expresso sobre o nosso camarigo João Crisóstomo

Caríssimos Luís  Graça e co-editores:

Regressado de umas curtas férias,  só ontem dei uma olhadela ao Expresso, de 24 de agosto,  e em cuja revista  me deparei com uma reportagem sobre o nosso camarada João Crisóstomo.

A par do muito que já se escreveu no Blogue sobre esta personalidade ímpar,  julgo que não seria demais voltar a falar dele a propósito de mais uma notícia na imprensa acerca da sua vida fascinante.

Como já foi descrito trata-se de um Português com P grande, de quem muito nos orgulhamos, pelo seu contributo para a defesa de grandes causas [, Gravuras Rupestres de Foz Coa, Memória de Aristides Sousa Mendes, autodeterminação de Timor Leste e do Sará Ocidental. .], e um ser humano de imenso coração e ao mesmo tempo de uma simplicidade e generosidade cativantes.

Em boa hora o João Crisóstomo começou a fazer parte da nossa Tabanca Grande e já todos conhecemos a sua história que agora vai chegando também ao grande público nacional. Foi um privilégio muito grande para mim tê-lo conhecido e à (agora) sua Vilma Kracun, bem como poder ter confraternizado com ambos, embora por muito pouco tempo, em companhia do nosso comum amigo Luís Graça e esposa.

Eduardo Jorge [Ferreira]

2. Comentário de L.G.:

Eduardo, obrigado pela tua oportuna mensagem. Também li o referido artigo na Revista do Expresso, edição de 24 de agosto último, e tinha intenções de fazer sobre ele um pequeno poste. O João e a  Vilma aparecem fotografados no Central Park, com um brilhozinho nos olhos, sinal de que estão felizes.

Para os seus amigos e camaradas, como nós, é um motivo de orgulho as elogiosas referências ao João Crisóstomo, na imprensa (nacional e internacional). Só agora, acabadas as férias, é que disponho de um pouco mais de tempo para publicar e comentar a tua mensagem. Para já, mando-te um abraço e um xicoração para a tua gentilíssima esposa, que só conheci recentemente, justamente no passado mês de agosto, na casa da Abelheira, Lourinhã, do casal Marteleira, Glória e Laurentino, nossos amigos comuns. (Não está esquecida a promessa de a tua querida esposa nos contar histórias do tempo da sua infância e juventude, em Bissau, ou pelo menos nos mandar fotos do seu álbum).

E o que eu queria dizer e reiterar, a propósito do nosso João, teu conterrâneo e meu vizinho, é que ele é um português da diáspora que nos honra a todos. Já fez por nós e por Portugal provavelmente muito mais do que muitos diplomatas de carreira juntos.

É pena que a casa civil do Presidente da República, a nossa diplomacia, os membros do Governo e os membros das ordens honoríficas portuguesas andem distraídos e ainda ninguém tenha proposto ou referenciado, ao que eu saiba, o nome do João Crisóstomo, como elegível para uma possível (, justissima, quanto a mim!) condecoração no 10 de junho.

Este ano, o 2013,  essa distinção teria sido a cereja no bolo. Que seja ao menos no 10 de junho de 2014. A nossa Tabanca Grande vai fazer força para isso!...  (Como se sabe, "a concessão de qualquer grau das Ordens Honoríficas Portuguesas é da exclusiva competência do Presidente da República como Grão-Mestre das Ordens", segundo leio no sítio oficial da Presidência da República).

As nossas mais calorosas saudações bloguísticas para o casal nova-iorquino João e Vilma, que espero poder rever e abraçar para o ano!
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Nota do editor:

Último poste da série > 11 de julho de 2013 > Guiné 63/74 - P11825: (In)citações (53): Bem haja quem fundou o blogue, bem haja quem apreciou as crónicas do meu pai, e tu, pai, continua a escrever, peço-te. Da filha que te adora (Paula Ferreira)

Guiné 63/74 - P12020: Convívios (528): 15.º Encontro do pessoal da CCAÇ 4544/73, levado a efeito no passado dia 8 de Setembro de 2013 em Miranda do Corvo (António Agreira)



1. Mensagem do nosso camarada António Agreira (ex-Fur Mil TRMS da CCAÇ 4544/73, Cafal, 1973/74), com data de 9 de Setembro de 2013:

Realizou no dia 8 de Setembro mais um encontro dos militares da Companhia de Caçadores 4544,

O 15º convívio que se realizou no Restaurante O Careca em Casais de S. Clemente, Miranda do Corvo.

Este convívio revestiu se de um significado especial, fez neste dia precisamente 39 anos que estes "jovens" regressaram das terras da Guiné, mais concretamente de Cafal Balanta.

A outra questão que entendo digna de registo é o facto de termos contado com a presença pela primeira vez de mais 5 camaradas de armas entre os quais o Sr. Coronel Carlos Pratas.

Neste convívio não foram esquecidos os que por algum motivo não estavam presentes, tendo-se prestado uma pequena homenagem aos falecidos.

Não posso deixar de ter uma palavra de agradecimento a todos os presentes de um modo geral e em particular aos que marcaram presença pela primeira vez.

Cabe aqui também uma palavra a gerência do restaurante (O Careca) que nos recebeu com muita dignidade e profissionalismo.


A todos o meu muito obrigado

António Agreira
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Nota do editor

Último poste da série de 3 DE SETEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12003: Convívios (527): III Convívio da CCAÇ 3414, realizado nos passados dias 9; 10; 11 e 12 de Agosto de 2013 na Ilha do Pico (Joaquim Carlos Peixoto)

Guiné 63/74 - P12019: Notas de leitura (518): "Crónica dos Novos Feitos da Guiné", por António Ferra (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Maio de 2013:

Queridos amigos,
Este livro é uma agradável surpresa, nele se cruzam culturas e sobretudo é dado em cores muito vivas todo o processo tumultuoso da Guiné em 1991, por ali desfilam portugueses e guineenses, carros avariados, negócios corruptos de peças de automóveis, o Oliveira e o Tomazinho Batota ciranda-se pelo 24 de Setembro, o Sheraton, a Pensão da Dona Berta e o mercado de Bandim.
Parece um livro de apontamentos e a observação mordaz do autor não esconde o seu olhar de antropólogo.
Temos ali a Bissau febril dos expedientes e de gente que quer viajar, sobretudo para Portugal. Não se esconde que é um país em roda livre, sufocado numa miríade de especulações.
De leitura obrigatória para aprofundar a vida daqueles tempos, vistos por um cooperante.

Um abraço do
Mário


Apontamentos curiosos de um cooperante na Guiné, em 1991

Beja Santos

“Crónica dos novos feitos da Guiné” por António Ferra, Europress, 1995, é no mínimo uma obra de consulta obrigatória para se conhecer os sentimentos de um cooperante numa Guiné a passar do partido único para o multipartidarismo. António Ferra é licenciado em filologia germânica e professor do ensino secundário. No seu currículo refere experiências literárias com grande ligação ao teatro infantil e também na área da pedagogia e animação.

O seu livro é escrito como um caderno de apontamentos e os respetivos capítulos têm o sentido de uma crónica, começam assim: em que se fala, de como se pode viajar, em que se mostra, em que se conta, de como os cooperantes vieram para cooperar… regista cheiros, quadros de azáfama, sente-se atraído por mistérios, como o poilão, que ele assim descreve: “O poilão é uma árvore centenária de grande porte, irregular e grossa, sobretudo na base, onde pode atingir dois metros de diâmetro. As raízes começam então a engrossar e, salientes como as veias das mãos de um velho gigantesco, enterram-se no solo, afirmando um suporte sólido e a emanação da força da terra, à maneira de cordame robusto a prender o navio aos pilares do cais. O sagrado e o segredo do poilão parece concentrar-se nessa magia de se ligar tão solidamente à terra e tornear-se pelos ramos, caprichosamente, até ao céu”.

Está atento ao bulício do porto do Pindjiquiti, vai zarpar um barco para a ilhar Bubaque, dá-nos uma água-forte vigorosa e introduz-se uma figura transversal a todos estes relatos, o Oliveira: “Este homem, mais acastanhado, tinha grandes empreendimentos em mão, todo o tipo de construções, e trabalhava para grandes empresas como intermediário de mão-de-obra. O que se tornava nele original era o não trabalhar, o saber negociar e intermediar de uma maneira que o dinheiro em divisas ou em pesos lhe vinha parar às mãos, através das relações que mantinha com os poderes políticos locais e do momento. Com a chamada abertura à liberalização económica, Oliveira estava a realizar o seu sonho, que já fora do pai, agora exilado pelo Governo e partido oficial, vai para alguns anos”. Ficamos a saber que há viaturas avariadas lá para a embaixada portuguesa, o que transtorna muitas vezes já que o jipe é nação portuguesa cooperante na Guiné-Bissau. Ficamos a saber um pouco mais sobre Maurícia, a companheira do Oliveira, a zeladora da casa, somos introduzidos em ambientes de cooperantes e assistimos ao desabar do Oliveira.

É então que percebemos que Oliveira ocupa um lugar charneira entre a colónia e o país independente, teve sucesso nos amores e nos negócios e depois foi levado ao desastre quando se lançou na construção do chamado bairro dos cooperantes portugueses, que foi levantado um pouco acima do Sheraton. “Receberam o dinheiro e não terminaram a construção, está quase pronta, faltando apenas o quase, de há três anos para cá. Lá por dentro tudo já está mudado, porque, com os assaltos, lá vão desaparecendo as torneiras, os autoclismos e o material elétrico que chegou a ser instalado parcialmente. Claro que Oliveira, por seu lado, gastava tudo com o grupo dos acólitos, pagando rodadas na Tropicana e noutras boates que apareceram então em Bissau”. Despromovido, vive agora na tabanca, sobrou uma pequena destilaria mas em pouco tempo deixou de ter posses para pagar aos cortadores de cana, teve que regressar às origens, retomando os antigos hábitos e valores.

A descrição da “chapa” de Bissau é também muito vigorosa, como o Bandim daquele tempo, um sociodrama da Guiné, assim apresentado: “Tudo ali aparece ampliado e distinto. Do lado direito quem sobe, o passeio é estreito e depois, mais para dentro, aparece uma grande vala de cimento que vai até mais acima. Do lado interior da vala estão vendedores de plásticos – bacias, baldes, canecas – e de bacias esmaltadas da Tailândia. E logo começam, então, junto ao passeio, as mesinhas com pacotes de cigarros Marlboro e L&M, fósforos, sabão azul, muito azul, pastilhas elásticas, latinhas de leite evaporado francês a 1500 pesos”.

Descobrimos que o sonho de todo o guineense é viajar, com preferência para Portugal, essa Guiné da transição já se encontra em estado deplorável. Conta-se a história de Paulo da Silva que vive num quarto acanhado, numa zona degradada de São Bento. Nasceu em Cacheu, um tio levou-o para Bissau onde estudou no liceu Kwame NKrumah, aprendeu matemática com Vladimir, professor soviético, e a língua portuguesa com o seu tio, António Jaló Feliz. Paulo veio frequentar um curso de português em Portugal, gostou da comida, da cama limpa, decidiu não voltar à Guiné, ele e todos os outros. “Procuram outros guineenses em Lisboa. O Osvaldo, que também integra a comitiva, tinha um primo que trabalhava na construção civil e vivia ali para os lados da Pontinha. Quanto ganha ele, quanto? Tira 50 contos, o malandro, e ainda manda 5 ou 7 para a família. Quantos pesos são 5 ou 7 contos? Tantos pesos! Maldito câmbio! Porque não são iguais todas as moedas? Porquê esta diferença? Paulo da Silva ficou. Tio António: escrevo a bocê, digo que a minha fica na Lisboa num trabalho bom ca arranjou o tio de camarada Osvaldo numa obra de construssão di prédiu e tanbem pagão bem, em escudo, em peso é manga di peso e pode mandar tanbem ao tio algum, seu sobrinho sempre muito amigo da gente ai, tia e criança Abdul, Paulo da Silva”.

Como uma desgraça nunca vem só, vamos ver Oliveira acidentado, depois a sua filha Odete com febre altíssima, ele corre espavorido à procura do milagre da aspirina, não acreditava nos antibióticos nem nos hospitais, a pequenita Odete de olhos grandes morreu levada pelo impiedoso sarampo.

Muito se falará ainda de cerimónias religiosas, dos armazéns do povo que não têm praticamente nada para vender, dos apartamentos degradados da Ankar e dos usos e costumes dos cooperantes, retratos crus de sonhos e quimeras, de solidariedades e de oportunismos.

Caminhamos para o fim, Oliveira ainda pensa em refazer a vida, comprando um táxi, juntando algum dinheiro da pouca aguardente de cana que ainda vai vivendo. Mas uma fatalidade instalou-se, uma fatalidade ou uma praga que dá pelo nome de corrupção, que se espalha por todas as atividades, incluindo o da educação. Aqui e acolá, fazem-se referências ao bife da Casa Santos e à comida da Pensão da Berta, referindo-se esta por ser instituição a funcionar com o mesmo paladar, quer antes quer depois da independência e mesmo durante os períodos maus em que escasseavam os géneros, antes e depois dos fuzilamentos que o grupo do camarada Nino patrocinara em 1986.

Tecem-se críticas mordazes: o sonho de um guineense em ascensão era ser homólogo (isto é, a outra parte do trabalho do cooperante) com viatura e combustível, de preferência em projetos ricos e conta-se a história exemplar de Tomazinho Batota, um ladino aperfeiçoado em múltiplos expedientes, de óculos Ray Ban e calcinha branca, como se fosse novamente um colono português à boa maneira. E o autor despede-se, desejando sinceramente que tudo corra bem, ainda se encontra com Oliveira na praça Che Guevara e reflete como se sobe e desce tão rapidamente naquele entreposto que dá pelo de Bissau…
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Nota do editor

Último poste da série de 6 DE SETEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12012: Notas de leitura (517): BCAÇ 1933, História da Unidade (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P12018: Parabéns a você (624): Filomena Sampaio, amiga Grâ-Tabanqueira e Raul Azevedo, ex-Cap Mil, CMDT da 2.ª CART/BART 6522 (Guiné, 1972/74)


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Nota do editor

Último poste da série de 5 de Setembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12009: Parabéns a você (623): José Marcelino Martins, ex-Fur Mil TRMS da CCAÇ 5 (Guiné, 1968/70)

domingo, 8 de setembro de 2013

Guiné 63/74 - P12017: História da CCAÇ 2679 (63): O jogo do Poker (José Manuel Matos Dinis)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 5 de Setembro de 2013:

Olá Carlos!
Às vezes tenho saudades tuas e admiro a tua persistência na alimentação do blogue. Mas tenho andado com o inspiramento orientado para a política, sem verter coisa com coisa, terrível situação que os donos do jardim à beira mar plantado aproveitam para incrementar a exploração.
Hoje "naveguei" pelos últimos folhetins da História da 2679, e lancei o repto ao Morais para que desenvolvesse alguma narrativa com manifesto interesse histórico.
Entretanto ocorreu-me esta coisa dos vícios que a malta cultivava, e de que algumas vezes nos machucávamos. Espero que não desagrade.

Um grande abraço para ti e para o tabancal.
JD


HISTÓRIA DA CCAÇ 2679

63 - O jogo do Poker

Putos espigadotes, com 18 ou 19 anos, jogávamos durante as noites de sábado umas pokeradas muito bem esgalhadas, sempre em casa dos amigos Santa (um deles foi alferes no Gabú), cuja mãe tinha uma imensa paciência para nos aturar as madurezas. Havia um ritual: enquanto nos encaminhávamos para o "casino", depois da bica e, eventualmente, da amarelinha pretensamente cognacada, ainda fazíamos uma deriva por um quintal onde houvesse capoeira com aves. E já éramos "experts" nessa arte de pilhar galinhas durante as noites, quando o tempo de reacção dos donos era manifestamente lento para nos atingirem com uma hipotética carga de chumbo.

Uma noite invernosa a coisa não correu bem, e apanhámos uma pomba branca, que aconchegada por baixo da gabardine transmitia um calor muito agradável, e por isso era disputada por todos. O Calapez, alarve, já se babava na expectativa da canjinha, enquanto afagava a bicha para lhe manter o moral elevado, importante condição para a perservação da textura das carnes, mas os restantes, principalmente o Chabert, já se inspiravam que era a verdadeira pomba da paz, e remoíam a ideia do abate, em vez de olharem para ela como a inimiga de que nos tínhamos de livrar.

Chegados a casa, deixámos a pomba na cozinha, com um pedaço de miolo de pão para engordar até à hora do juízo final. A malta abancava em torno da mesa, onde os baralhos mereciam a maior contestação com tantas marcas em evidência. Dos bolsos jorravam as moedas de tostão e dois tostões. Quando um gajo tinha um trio, já era coisa para avançar com três tostões; e com um "fullen", era coisa para sete ou oito tostões, porque exibir prata aplicava-se para alta sequência. Pelas manhãs, havia quem perdesse ou ganhasse dois escudos, e era uma festa.

Voltando à noite da pomba, alguém tinha que se incumbir da matança, mas, contristados, os aspirantes a batoteiros não revelavam a decisão necessária para os grandes golpes. Quando o Chabert entrou na cozinha para saciar a sede, logo a malta acorreu fechando e trancando a porta, que a que dava para a rua já estava armadilhada.
- Chapa, só deves dar sinal depois de matares a pombinha!, gritaram-lhe.

Passados longos momentos, alguém se abeirou a perguntar pela situação, e o coitado do Chabert soletrou alguma coisa como "já está!"

Entreaberta a porta, os olhares curiosos verificaram que a pombinha ainda dava às asas. pendurada de uma corta que a asfixiava pelo pescoço. O Chapa, incapaz de a liquidar com a rapidez e eficácia desejadas, acabou por ser cruel ao admitir que assim custaria menos. Pronto, a dona da casa foi acordada, e pela manhã não faltou a canja reconfortante.

Embarquei para o Funchal com o Zé Tito a bordo do paquete Funchal que fazia uma viagem turística. Ao passarmos a barra, no tombadilho, com os olhos postos na orla costeira que se alongava até à nossa terra, confessámo-nos que estávamos tesos. A noite tinha sido de inflação desvairada. Por junto arranjámos cerca de um conto e trezentos, que logo foi decidido reproduzir no poker, que se jogava em várias mesas. O Tito decidiu que eu abancaria com um conto, enquanto ele foi para o bar encher-se de gins e morder as balzakianas.

Os parceiros eram pessoas simpáticas, mas "traiçoeiros" nas jogadas que consumiam as minhas "caves". Esgotava-se o saldo, quando eu começava a compreender os "mecanismos" da cada um, mas surgiu o Tito a informar-se de como decorria o negócio.
- Estou quase teso - respondi.

Surpreendentemente, passou-me outro conto para a mão, e em menos de uma hora ganhei cerca de seis contos. Pedi licença, e retirei-me satisfeito. No intervalo dos gins ele tinha ganho nos jogos de cavalinhos.

Quando desembarcàmos, seria sexta ou sábado, apanhámos um táxi para o Savoy. Na segunda apresentámo-nos e pedimos um abono ao Comandante, pois tivémos que alugar alojamento no Beco de Sta Emília, e fazer face às despesas de instalação e jantares. A vida correra-nos muito mal durante o fim-de-semana, com muita festa e o hotel de luxo para pagar. Estávamos novamente tesos.

Em Piche eu levava uma vida de alta competição, com uma constância quase imparável de patrulhamentos, colunas, operações e emboscadas noturnas metade das noites semanais. Quando dormia na cama, era para levantar cedo e abalar numa qualquer missão.
Uma noite, já eu pegara no sono, bebido, quando fui abanado. Reagi mal, como seria de esperar, e perguntei ao filho da puta o que queria. Já com os olhos abertos, deparei com a simpática carinha do nosso capelão, que me informava estar ali perto uma mesa muito simpática com malta para jogar o poker.
- Desculpe sô padre, não era para ofender. Vamos lá então durante um bocadinho.

Ganhei umas coroas, e voltei para a cama.

A cena repetiu-se por muitas vezes e, francamente, enquanto eu ganhava sempre, dei-me conta do milagre da multiplicação, pois o padre encavava todas as noites algumas notas de cem, sem retorno, e não tinha o ordenado de general. Mas se Deus escreve direito por linhas tortas, provavelmente estava ali para proteger o seu representante na terra, no sentido de não prejudicar a diplomacia necessária ao munus que ele exercia.

A minha última vez, aconteceu depois de eu sempre ter ganho.
Uma ocasião, os parceiros, com excepção do Zé Tito, tinham-se retirado da jogada. Na mesa, em disputa, estariam cerca de cinco contos, um dinheirão. Eu tinha ases por reis. O Zé apostou cem paus, e eu dupliquei. Ainda acrescentámos algumas notas ao monte que estava na mesa, e eu já me deliciava a imaginar o gajo em cuecas, teso como um carapau, esquecido pela alienação da nossa amizade

O Zé pagou para ver. Aí, exuberante e glorioso, atirei com as cartas para que todos vissem o mais mavioso dos "fullen" - full hand.


Quando me preparava para arrebanhar a massa, verifiquei que o Tito confrontava o seu jogo, e por cima dos óculos pousava o olhar nas minhas cartas.
Parecia desconfiado. Timidamente, ele demorava a dizer qualquer coisa, parecia que estava a mastigar alguma frase. E eu ampliava o gozo da minha vitória. Até que, numa posição de coluna curvada e quase prostração, o Tito balbuciou umas palavras que continham "sequência".


- O quê? - gritei ferido de morte.

Tomei consciência da vertigem e fiquei tão envergonhado que nunca mais voltei a jogar.
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Nota do editor

Último poste da série de 3 DE JULHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11798: História da CCAÇ 2679 (62): Invasão em Bajocunda (José Manuel Matos Dinis)

Guiné 63/74 - P12016: Em busca de... (228): Foto do malogrado Júlio Lemos Martins (, da CCaç 797, Tite e Nhacra, 1965/67, afogado no Rio Louvado, em 12/8/1965) para inclusão em livro dos combatentes mortos na guerra do ultramar, naturais de Ponte de Lima (Júlio Pinto)


Guiné > Região de Quínara > CCAÇ 797/BCAÇ 599 (Tite e Nhacra, 1965/67) > A bordo de uma LDM, no Rio Geba > Camaradas do malogrado fur mil Júlio Lemos Pereira Martins,  natural de Ponte de Lima, morto por afogamento em 12/8/1965, no rio Louvado ( vd. carta de Tite).  Foto da autoria de Ilídio Fernando Silva Pedrosa Rocha, sold cond auto, CCAÇ 797, Tite e Nhacra, 1965/67, .reproduzida com a devida vénia do blogue Combatentes de Avintes


1. Mensagem de Júlio Pinto, nosso leitor e camarada (ex-2.º Sarg da CART 1769, Angola, 1967/69):

Data: 31 de Agosto de 2013 às 15:35

Assunto: Pedido

As minhas saudações

Venho mais uma vez junto do vosso blogue solicitar o seguinte:

Já em tempos solicitei e através do vosso blogue soube o que acontecido a um amigo e conterrâneo que morreu afogado no rio Louvado [, em 12 de Agosto de 1965], e era o Furriel Miliciano da CCaç 797, Júlio Lemos [Pereira] Martins,  natural de Ponte de Lima. (*)

Agora o que solicito é que através do vosso blogue apele a algum camarada da CCaç 797 [, /BCAÇ 599, Tite, 1965/67,] que possua uma foto onde esteja o Júlio Lemos, me façam o favor de ma enviar, como anexo, para o meu e-mail.

Este acção destina-se a inclusão num livro que um camarada nosso e Limiano está a fazer sobre os Limianos  [, naturais de Ponte de Lima,] que andaram na guerra do Ultramar [e .

O Comandante de companhia do Júlio era o então Capitão Carlos Fabião. [Imagem à esquerda: brasão da CCAÇ 797, reproduzida com a devida vénia do blogue Combatentes de Avintes, e que é da autoria de Ilídio Fernando Silva Pedrosa Rocha, sold cond auto, CCAÇ 797, Tite e Nhacra, 1965/67; sobre a história da CCAÇ 797, ver aqui poste do nosso camarada e amigo Carlos Silva; neste documento, a morte do Júlio lemos é datada de 12/8/1965].

Desde já agradeço a publicação deste apelo, se for possível. (**)

Cumprimentos,
Júlio Pinto.
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de:

18 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2115: Em busca de...(12): Notícias do desaparecimento de Júlio Lemos, ex-Fur Mil da CCAÇ 797, Tite, 1965/67 (Júlio Pinto)

Guiné 63/74 - P12015: O pós-Guiné (Veríssimo Ferreira) (6): A saga do corte umbilical

1. Em mensagem do dia 4 de Setembro de 2013, o nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, 1965/67) enviou-nos mais um episódio da sua série Pós-Guiné:


O PÓS-GUINÉ 65/67

6 - E A SAGA DA MINHA CICATRIZ RESULTANTE, etc etc etc, CONTINUA

FIM DO ANO DE 1966

Baile na UDIB em Bissau, tocava um conjunto de música ligeira do Exército, onde tinha dois estimados amigos, um guitarra eléctrica, outro, organista electrónico. Interpretavam uma linda melodia para dançar à moda antiga (ou seja agarradinhos como convinha), chamada "Aline" e eu volteando com a namorada dum deles que só deixava que fosse eu o seu acompanhante e tal me houvera pedido, coisa que os pais dela presentes também, nem viam com desagrado, pois sabiam que eu era casado... bom rapaz... e conhecíamo-nos todos.

Sede da União Desportiva Internacional de Bissau
Com a devida vénia a Nelson Herbert

Só que:
Eu que nem era atrevidote, ou sequer disso fazia questão, e estava um pouco triste porque a minha mulher e a minha filha haviam regressado para a Metrópole nessa mesma manhã... atrevi-me... e... levei uma tal bofetada qu'ainda hoje a sinto aqui no semblante da face da cara, do lado esquerdo que m'alembro bem.

Apesar disso a noite passou-se depois em beleza, contrastando com o que se passava no mato, embora as comemorações hajam sido feitas um pouco por todo o lado.
Constatei que éramos capazes de esquecer o que de mau se passava, não nos entregávamos ao desalento, lutávamos e uníamo-nos se caso disso, distraíamo-nos quando a oportunidade surgia.
A noite acabou em completa e organizada desordem, própria daquela irreverente mas aguerrida juventude.

As ruas "na" Bissau, ao aparecer do nascer do dia, mais pareciam uma adega de garrafas partidas por tudo o que era sítio, e ali na Praça do Império ressonava-se no chão, vendo-se os três ramos das forças armadas a serem acordados com carinho pelas polícias militares.

Uns lá partiam para o mata-bicho disponível nos cafés das redondezas, outros tremelicando e ora caindo ora se levantando, provavelmente até devido às artroses, artrites, hérnias, enfim!!!

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ABRIL DE 1974

Bom.... depois veio um dia 25, (o que acontece curiosamente doze vezes por ano) em que acordei cedo, ouvi que havia uma revolução e todo contente fiquei, e ainda saudoso dos meus tempos de combatente, até ganhei novo alento e julguei que iria de novo pegar no meu morteiro 60, na minha G3 ou quiçá até, na Parabellum 9mm.
É que lá fora na rua, só ouvia "a luta continua" e para mim o significado de luta era combater contra quem nos emboscava nas matas da Guiné, ou seja responder aos tiroteios.

Cedo me desiludi, pois que afinal "luta" agora era outra coisa nada parecida, mas bem desvirtuada.
Por isso nem gritei VAMOS A ELES, avisando a malta.
Mas lá que foi divertido, foi.

Vi a tropa na rua, a princípio alinhada, disciplinada mas pouco, fardada qb que poucos dias depois desalinhou, indisciplinou-se e tanto andava com barba por fazer, cabelo comprido, G3 engatilhada e usada a tiracolo assim como eu hoje uso o chapéu que levo para tapar o sol na praia e até assisti a um juramento de bandeira na TV, que deveras me espantou dada a desagregação total das práticas constantes no RDM.

Tal rebalderia era vulgar acontecer nalguns aquartelamentos da mata, mas aí nem havia a presença de populações civis, como no caso da minha CCAÇ 1422 quando no K3. Por isso se fechava o olho, permitindo-se o uso de nem que mais não fosse, duns simples calções, bivaques em vez das tradicionais boinas, chinelos de enfiar... mas aqui na Metrópole este abandalhamento chocou-me sim senhor. E será que faria mesmo parte da "revolução em curso" como diziam, alguns dos seus tutores?

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ÓSPOIS

Lisboa transfigurou-se:
Deram-se as províncias ultramarinas... abandonaram-se os seus autóctones Portugueses que combateram ao nosso lado... regressaram os aqui nascidos e que haviam ido em procura de melhor futuro.

Os cais donde partíramos e chegáramos pareciam agora enormes armazéns onde milhares e milhares deixavam os poucos bens que conseguiram trazer. Retornados lhes chamaram, "alguns" daqueles, qu'agora mandavam, eles próprios também retornados, mas do exílio dourado e que foram recebidos como gente importante apesar de... e de.
Claro que também conhecemos as honrosas excepções.

Para além disso, afirmavam estes, os no poder à época, que tudo resultava duma descolonização exemplar.

E eu que revoltado já era, assisti, e como eu outros muitos mais, com muita tristeza e raiva ao que ia acontecendo e à malfadada sorte dos nossos amigos que ficaram lá na sua terra, e AO NOSSO LADO COMBATERAM.

Repito: "tudo resultava duma descolonização exemplar", como afirmavam os no poder à época.

Começaram contudo e felizmente a aparecer vozes discordantes e quem se insurgisse contra o descalabro para onde queriam levar o País... militares guerreiam contra militares... dão-se golpes e contra-golpes... e o pobre povo lá se ia manifestando gritando:
- "A luta continua".

E assim se passaram anos até que certo dia, o meu clube prega uma abada de 7 a 1 a um outro qu'até tinha um emblema com um "pesserinho" pousado em cima duma roda de bicicleta com pneu e tudo, e lá se apaziguaram os ânimos daqueles que com'a mim utilizavam os campos de futebol, para extravasar e largar uns inocentes palavrões.
Tive imensa pena de não ter visto o jogo, mas na semana anterior havia abandonado de vez o futebol que tanto me incomodava psiquícamente. Soube do resultado através do rádio ao vir de Peniche onde fora à pesca... trazia dois baldes grandes cheios de sargos dourados, mas comentei:
- Este gajo enganou-se...7 a 1? Pode lá ser ?

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE SETEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11998: O pós-Guiné (Veríssimo Ferreira) (5): A saga do corte umbilical

sábado, 7 de setembro de 2013

Guiné 63/74 - P12014: Os nossos seres, saberes e lazeres (55): Passagens da sua vida - 7000 milhas através dos Estados Unidos da América (3) (Tony Borié)

1. Em mensagem do dia 31 de Agosto de 2013, o nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), enviou-nos o terceiro episódio da sua viagem/aventura de férias, num percurso de 7000 milhas (sensivelmente 11.265 quilómetros) através dos Estados Unidos da América.



7000 milhas através dos USA - 3

Já devem de estar a pensar:
- Olha, lá vem a viagem, vamos lá ver o que é que eles fizeram hoje?

Pois vamos continuar companheiros de “Jornada”

Pela manhã, depois de tomar o pequeno almoço, a medicina, olhar o tempo que fazia lá fora, resolveram colocar no corpo roupa de inverno, porque parecia que iria chover dentro de pouco tempo.

A estrada número 70, que atravessa todo o Estado do Missouri, em direcção ao estado do Kansas, é uma grande estrada, com duas vias para cada lado, separadas por uma grande extensão de terreno, com distâncias consideráveis de rectas, das quais não se via o final, tendo, de um lado e de outro, pastagens onde se via algum gado bobino, poços de petróleo com as bombas em pleno movimento e alguns moinhos gigantes de energia, aqui e ali havia algumas casas de quintas, principalmente estábulos, uns em bom estado, outros abandonados, em alguns locais havia mesmo casas, com algumas árvores próximas, que pareciam novas ou quase novas, mas algumas sem janelas ou portas, parecendo abandonadas.

No início, pela manhã, ao sairmos da povoação onde dormimos, que era St. Charles, no Estado de Missouri, ainda se via ao longo da estrada algumas plantações de milho e amendoim, às vezes até por uma distância de milhas, mas que foram desaparecendo à medida que viajávamos para oeste, dando lugar à paisagem que descrevemos em cima.

Isto era a paisagem enquanto se via, pois quando começou a chover, como se de um tornado se tratasse, às vezes com mais intensidade do que estavam acostumados no Estado da Flórida, até mesmo do que o Tony se lembrava, quando da sua estadia em África, quando em cenário de guerra, naquela que então chamavam Guiné Portuguesa. Era uma chuva contínua que alagava a estrada, tendo que se viajar a 10 ou 15 milhas por hora e com as luzes acesas. Todo o cuidado era pouco, viam-se carros parados na berma da estrada com as luzes em posição de pisca- pisca. Choveu por horas, o vento puxava a chuva contra os vidros do jeep, em todas as direcções, fazendo-o balançar, e em alguns momentos ficava sem direcção, suspenso no ar, mas muito devagar fomos avançando, e lá mais para a frente, já havia algumas abertas, com menos chuva e a velocidade aumentou. Fomos progredindo no terreno.


Neste trajecto da nossa rota, era o local onde devíamos parar e viajar pela “Santa Fé Trail”, pois levávamos equipamento para o fazer, e era um dos nossos objectivos, caminhar por onde os nossos emigrantes caminharam centenas de anos atrás, quando saíam do rio Mississippi, em St. Louis e iam a caminho do oeste, mas não o pudemos fazer, talvez fique para a próxima, quem sabe! 

Quando a chuva abrandou um pouco, passámos próximo da povoação de Arrow Rock, que é hoje considerada “Nacional Históric Landmark”, tal como a povoação de Black Water, que fica próxima. Visitámos ambas as povoações, onde existe casas e ruas como eram há duzentos anos, tudo está conservado com algumas casas habitadas. Ambas as povoações faziam parte da “Santa Fé Trail”. Algumas pessoas deslocam-se de outros Estados para percorrerem alguns trilhos, que estão sinalizados, pelo menos dentro destas povoações, o que nós também fizemos.


Como dizíamos, estas localidades faziam parte do famoso trilho de Santa Fé, que era uma via que passava por vales, planícies e montanhas, cruzando os rios que eram atravessados por jangadas, que ia através do centro norte da América, desde o então Estado independente de Missouri até Santa Fé, no Estado de Novo México, seguindo daí para o México com o nome de “Caminho Real”. Era quase como quando o Tony tinha o nome de guerra de “Cifra” e estava estacionado na então província da Guiné, e ia de Mansoa para o Olossato, só que não havia vales nem montanhas.


Nesta localidade comeram no restaurante local a única ementa que havia, que era o que as pessoas comiam há centenas de anos, presunto de porco fumado, depois cosido em vapor, duas espigas de milho cosidas, pão de mistura de trigo, milho e beterraba, e chá de diversas plantas, incluindo a planta do tabaco. Um cálice de “moonshine” e um charuto terminava a refeição.
Uma senhora, muito gentil, que nos servia, vestida tal como há cem anos, com a face parecida com as que vemos nos filmes do oeste americano em que entram algumas vezes os tais “índios e cowboys”, tinha uma face linda de “pele vermelha”, não se calava, falando mal dos ingleses que eram umas pessoas más, que vieram da Europa ocupar esta terra tão bonita, que era deles, dos americanos!
O Tony não sabe onde é que já ouviu isto, mas falado em português "acrioulado"



Voltando à estrada número 70, seguimos em direcção à cidade de Kansas, e para os que não sabem, existem duas Kansas City, uma do lado do Estado de Missouri, outra do lado do Estado de Kansas. Há uma divisão, que não é divisão nenhuma, vimos os estádios de futebol e pouco mais, pois a chuva não nos largava. Atravessámos as cidades sempre debaixo de chuva, só com uma pequena paragem para mudança de óleo no Jeep, num estabelecimento especializado, previamente marcada.

Mencionando uma pequena curiosidade, na cidade de Kansas City existe um banco com o nome de “Jesse James”, o famoso pistoleiro, ladrão de bancos, das películas de Hollywood, pois os habitantes dizem que era oriundo de Kansas e têm orgulho em dizê-lo.

Em Kansas, muitos emigrantes, alemães, irlandeses, ingleses, suecos e russos, os tais que transitavam na “Santa Fé Trail”, que em tempos tinham vindo da Europa, por aqui ficaram e povoaram a região com a ajuda do governo, que foi negociando com as tribos de nativos, que gradualmente se foram transferindo para o norte, para um território que hoje se chama Oklahoma. O governo queria um território povoado para que se tornasse independente, a que deu o nome Kansas, pois anteriormente era um território indígena, juntamente com o Nebrasca e Oklahoma.


Seguindo a nossa rota em direcção ao Estado de Colorado, sempre na estrada número 70, que nos dava alguma segurança, passámos pelas cidades de Lawrence, mais adiante Topeka, tudo localidades isoladas no meio de nada. A paisagem continuava a ser, pastagens, estábulos, alguns abandonados, poços de petróleo, moinhos de energia e pouco mais. Havia, aqui e ali, de um lado da estrada, mas retirado, onde a paisagem era completamente deserta e plana, uma espécie de “barricada”, colocada estrategicamente no terreno, construída em madeira, com algumas aberturas, que se prolongava às vezes, por talvez um quarto de milha, que mais tarde o Tony veio a saber que era para protecção da estrada, e que tirava alguma velocidade aos vários “tornados”, nesta zona são frequentes.


Parámos em Junction City e fomos ver o “Fort Riley”, cujo nome foi dado em homenagem ao Major general Bennett C. Riley, que foi o primeiro militar a prestar suporte e alguma segurança ao longo da “Santa Fé Trail” e ajudava as pessoas que se movimentavam e faziam negócios ao longo dos caminhos que seguiam para o Oregon, Califórnia e Santa Fé. Em 1887, o Fort Riley passou a ser uma escola de cavalaria dos Estados Unidos, onde se formaram os famosos “all-black”, os 9.º e 10.º Regimentos de Cavalaria, que eram soldados a quem chamavam “Buffalo Soldieres”, que ali ficaram estacionados. O Fort Riley foi sempre uma importante base que ajudou em muitas situações e ainda hoje se mantém operacional.

Já perto da noite, cansados e com algum apetite, comemos e dormimos na simpática povoação de Hays, ainda no estado de Kansas, o que para nós foi tal e qual como um “oásis em pleno deserto”.

Tony Borie,
Agosto de 2013

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 31 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11995: Os nosssos seres, saberes e lazeres (54): Passagens da sua vida - 7000 milhas através dos Estados Unidos da América (2) (Tony Borié)

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Guiné 63/74 - P12013: Ser solidário (148): I Encontro/Convívio Portugal - Guiné-Bissau, dia 5 de Outubro de 2013 no Complexo de Ténis da Maia (José Teixeira)




1. Mensagem do nosso camarada José Teixeira, um dos principais animadores da Tabanca Pequena ONGD, com data de 5 de Setembro de 2013:

A Tabanca Pequena em parceria com a Associação EducÁfrica e a participação das Associações de Guineenses – NAOUNI – Associação de Amizade Matosinhos / Mansoa-, MON NA MON – Associação dos Filhos e Amigos da Guiné-Bissau e a Associação dos Guineenses no Porto, vão organizar no próximo dia 5 de Outubro o 1º ENCONTRO CONVÍVIO Portugal / Guiné-Bissau, com um almoço e tarde cultural abrilhantada com a participação do Grupo Musical Nuvem Musical composto na sua maioria por ex-combatentes da Guiné e pelo conjunto MON NA MON formado por filhos de guineenses com danças tradicionais da Guiné-Bissau.

Este Evento tem como finalidade: 
- Aprofundar as relações entre pessoas dos dois países, nomeadamente com os guineenses que se fixaram em Portugal. 
- Promover a angariação de fundos para os seus projetos de desenvolvimento que as Associações organizadoras têm junto das populações da Guiné-Bissau.

Tomamos a liberdade de juntar o Convite e o Cartaz


CONVITE 

As ONGDs Tabanca Pequena e Associação EducÁfrica, são duas Associações que têm por objetivo apoiar e promover o desenvolvimento das populações africanas dos PALOPs, muito em particular da Guiné-Bissau. 
Para atingir os seus objetivos vão promover o 1º Encontro/Convívio Portugal-Guiné-Bissau no próximo da 5 de Outubro.

Pretendem com este Encontro/Convívio: 
- Aprofundar as relações entre pessoas dos dois países, nomeadamente com os guineenses que se fixaram em Portugal. 
- Promover a angariação de fundos para os seus projetos de desenvolvimento junto das populações da Guiné-Bissau.

Assim sendo, têm a honra de convidar todos os amigos da Guiné-Bissau para participarem no referido evento, com o seguinte programa e do qual juntamos um Cartaz elucidativo:

EVENTO – 1º ENCONTRO / CONVÍVIO PORTUGAL – GUINÉ-BISSAU 

ALMOÇO: Sardinha Assada e Frango de Chabéu (Prato típico guineense)

TARDE CULTURAL: Canções tradicionais portuguesas pelo conjunto NUVEM MUSICAL do Clube GALP Norte Danças tradicionais da Guiné-Bissau pelo GRUPO CULTURAL MON NA MON

DATA: Dia 5 de Outubro de 2013

LOCAL: Complexo de Ténis da Maia, Av. Luís de Camões - Maia

Custo do almoço (por Pessoa) 15,00 pesos

As inscrições para o almoço podem ser feitas até ao dia 30 de Setembro para: 
- tabancapequena@gmail.com 
- projetos@educafrica.pt 
- Telm. 966238626 – José Teixeira 

Não se aceitam inscrições pelo Face Book
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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE JULHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11861: Ser solidário (147): Na última viagem ao Cacheu encontrei a minha amiga Mary doente e a precisar de ajuda (Carvalhido da Ponte / Sousa de Castro)

Guiné 63/74 - P12012: Notas de leitura (517): BCAÇ 1933, História da Unidade (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Maio de 2013:

Queridos amigos,
Lá encontrei mais uma história de unidade combatente na Guiné, andou entre o sector Leste, passou a correr por Mansoa e instalou-se em São Domingos.
Trata-se de um relatório minucioso com descrições de indiscutível utilidade quando fala do Leste e aponta a natureza da presença do PAIGC, com pendor ofensivo e uma extrema agressividade às populações nossas apoiantes.
É igualmente interessante ver a evolução na região de São Domingos num tempo em que o Senegal se tornou muito mais liberal com a presença do PAIGC, é desse tempo que data o fortalecimento das bases que irão inquietar profundamente as nossas tropas depois dos anos 70.

Um abraço do
Mário


BCAÇ 1933, História da Unidade

Beja Santos

O BCAÇ 1933 formou-se no RI15, depois concentrou-se no CIM de Santa Margarida e embarcou nos finais de Setembro de 1967 para a Guiné. No princípio de Outubro, o Comando e a CCS seguiram para Nova Lamego, o sector L3 ficou à sua responsabilidade bem como das CCAÇ 1586, 1588, 1589, 1683 e da CCAÇ 5, como também as CCAV 1651 e 1662 e a CART 1742, PEL MORT 1191, PEL AM DAIMLER 1143 e PEL CAN S/R 1200.

De acordo com a apreciação sobre a situação geral, a guerrilha tinha-se intensificado nos últimos meses de 1967, crescera a implantação de engenhos explosivos, ações contra as populações, incêndio de tabancas, etc. As flagelações a Buruntuma, Madina do Boé, Beli e Che-Che mantiveram-se a níveis de alta intensidade. Supunha-se que durante tal período houvera deserções constantes nas fileiras do PAIGC, esses elementos teriam ido para o Senegal.

O sector L3 tinha uma superfície correspondente a cerca de um quinto da área total da Guiné, o sector era servido pela estrada Bafatá-Nova Lamego-Piche-Buruntuma, dessa coluna vertebral ramificavam estradas para Bajocunda, Pirada, Cabuca, Che-Che, Madina do Boé e Beli, Canquelifá, Copá, Pirada, Paunca e Sonaco. Designadamente na época das chuvas, alguns destes itinerários ficavam intransitáveis, o que ditava o isolamento de Che-Che, Beli e Madina de Boé.

O sector dispunha de pistas de aterragem em Nova Lamego, Bajocunda, Canquelifá, Buruntuma, Piche, Madina do Boé, Copá e Beli. A população de todo o sector era de cerca de 45 mil habitantes, 1/12 da população total, com uma densidade populacional baixíssima, disseminada pelos regulados de Propana, Maná, Pachana, Pachisse, Boé, Chana, Tumaná de Cima e Cancumba. As etnias predominantes eram os Fulas, Mandingas e Pajadincas. Na mesma apreciação, registava-se uma nova tática do IN que o uso de franco-atiradores colocados nos morros em torno do aquartelamento de Madina do Boé.

Enumera-se a disposição de todos os efetivos, seguindo-se o registo das operações ao longo do último trimestre, salientam-se as flagelações constantes a Madina do Boé, Che-Che e Beli, minas anticarro e antipessoal. Em Janeiro, dá-se a saber que o IN não parava de contactar as populações e praticar atos de banditismo; no mês seguinte, referenciava-se que o IN se instalara na região de SIAI, irradiando a sua ação no itinerário Canjadude - Che-Che e em vários regulados, intimidando populações civis mediante assaltos e flagelações. Nesse mês chegou a Nova Lamego o BCAÇ 2835, após um período de sobreposição, o Comando e a CCS do BCAÇ 1933 seguiram para Brá, ficando como reservado do Comando-Chefe e as CCAÇ 2315, 2316 e 2317 foram deslocadas para Binar, Bula e Mansabá respetivamente, segundo se descreve no relatório, o IN estava altamente posicionado em território senegalês e apontam-se os locais e os respetivos dirigentes militares.

É observado que a atuação do IN é pouco determinada, nas áreas de S. Domingos e Susana atuava quase exclusivamente por meio de minas e na área de Ingoré desenvolvia ações fortes contra as populações em autodefesa, ponto curioso é que fala-se em pouca determinação e pendor ofensivo e logo a seguir refere-se que o IN se tenta instalar em diferentes áreas, que atua contra aquartelamentos como os de Varela, São Domingos e Ingoré, destruía diversos pontões e reagia à atividade operacional das nossas tropas com emboscadas.

É bastante interessante o levantamento que procede aos aeródromos ou pistas de aterragem, portos, importância das povoações, enumeração dos grupos étnicos, modos de vida, línguas e dialetos e aspetos económicos. A partir de Abril, o sector do batalhão cobria a área de S. Domingos, havia notícia que o PAIGC melhorara o seu material, agora o BCAÇ 1933 dispunha de outros efetivos disseminados por São Domingos, Barro, Susana, Varela, Ingoré e Sedengal. Em Junho, escreve-se que a atividade do IN tinha sido praticamente nula, embora houvesse notícias sobre a sua movimentação além fronteira, em especial na região de São Domingos. O PAIGC não disporia de qualquer base na área do sector do batalhão e procurava-se perceber porquê: as populações Felupe e Baiote continuavam a colaborar com as nossas tropas, em São Domingos a população inicialmente desconfiada passava a colaborar mais, na região de Ingoré-Sedengal as populações manifestavam-se muito colaborantes, havia o reordenamento em Antotinha.

Em Outubro, surgem notícias de que o material IN começa a afluir a bases em território senegalês e fala-se em Koundara, Cumbamore, Samine e Sedjo. As flagelações são esporádicas, há o registo de minas anti-pessoal e algumas emboscadas a civis. O registo a patrulhamentos na região da fronteira senegalesa não tem conta. Reparam-se estradas e em Junho chegaram as chuvas. Em Julho, o BCAÇ 1933 regressava à metrópole.

O BCAÇ 1933 foi alvo de muitos sinistros, participou em dezenas de operações e ações, no abandono do quartel de Madina de Boé, no desastre do Che-Che pereceram por afogamento 25 elementos europeus e 5 nativos da CCAÇ 1790. As suas subunidades andaram dispersas por Farim, Aldeia Formosa para além das anteriormente citadas.

O historial da unidade que foi dado consultar está na Biblioteca da Liga dos Combatentes, tem imagens de Beli, Madina de Boé, Aldeia Formosa, São Domingos, aparecem vários relatórios de operações e até um plano de instrução para milícias, que me pareceu um dado curioso. Aparece também um depoimento do furriel José Gabriel de Assis Pacheco Moreira (falecido em Maio de 2005) que assim termina: “Guiné é poesia pelo seu pôr-do-sol, pelas suas chuvas, pela alegria dos seus povos e pelo amor que lhes dedico, porque lá sofri e porque lá vivi os melhores momentos da minha juventude, porque lá senti o que era a diferença entre civilizações distintas das minhas, mas que me ensinaram que, na sua simplicidade, eram muito mais perfeitas na relação com a natureza”.

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Nota do editor

Último poste da série de 2 DE SETEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12000: Notas de leitura (516): "Le Naufrage des Caravelles", por René Pélissier (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Guiné 63/74 - P12011: Memória dos lugares (246): Gabu / Nova Lamego, 1972/73 (Joaquim Cardoso)

1. Em mensagem do dia 27 de Agosto de 2013, o nosso camarada Joaquim Cardoso (ex-Soldado de TRMS do Pel Mort 4574, Nova Lamego, 1972/74), enviou-nos algumas memórias fotográficas de Gabu entre 1972 e 1973:


Nova Lamego > Graça; Santos e Cardoso das Transmissões

Gabu Sara/Nova Lamego > Joaquim Cardoso

Posto de Rádio do quartel novo > António Santos e Joaquim Cardoso

Gabu Sara/Nova Lamego > Joaquim Cardoso junto a um Memorial aos caídos em campanha

Joaquim Cardoso à civil em Nova Lamego

Gabu Sara/Nova Lamego > Natal de 1972 > A partir da direita: Vasco; amigo Santos; Alferes Sousa, CMDT de Pelotão; Graça e Joaquim Cardoso. Atrás mais um camarada dos Morteiros

Bilhete Postal do Natal de 1972
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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11977: Memória dos lugares (245): Livro da 1.ª Classe do PAIGC recolhido nas matas do Cantanhez (1) (António Teixeira)

Guiné 63/74 - P12010: Conversas à mesa com camaradas ausentes - Estórias da História da Guerra Colonial – Guiné-Bissau (José Martins Rodrigues) (6): As férias na Metrópole e o regresso ao Xitole

1. Sexto episódio da série "Conversas à mesa com camaradas ausentes", pelo nosso camarada José Martins Rodrigues, ex-1.º Cabo Aux Enf.º da CART 2716/BART 2917, Xitole, 1970/72:

A todos os ex-combatentes da Guiné
Só peço ao meu futuro que respeite o meu passado

No baú das memórias de cada um de nós existem inúmeras “Estórias da Guerra” por contar.
O convívio semanal na Tabanca de Matosinhos e o nascimento da ONG Tabanca Pequena-Amigos da Guiné a que me honro pertencer, despertaram-me para o desafio de retirar do baú as minhas “estórias da guerra”. Para ultrapassar a minha manifesta falta de jeito para a escrita, socorro-me de um método narrativo baseado na descrição cronológica de episódios, a que chamarei “Conversas à mesa com camaradas ausentes”. Do outro lado da mesa estará sentada a esperança de encontrar alguém que se reveja nas “estórias” relatadas e sinta a emoção do reencontro com realidades da nossa vivência na Guiné.


CONVERSAS À MESA COM CAMARADAS AUSENTES

ESTÓRIAS DA HISTÓRIA DA GUERRA COLONIAL - GUINÉ-BISSAU

6 - As férias na Metrópole e o regresso ao Xitole

Ainda no Aeroporto de Pedras Rubras, tudo se conjugava para viver momentos inesquecíveis. Ficara para trás a incerteza da Guiné, a experiência de voo em aviões “Caravelle” a jacto, e era a presença da família, da namorada e de amigos da juventude.

Pela recepção e pelo carinho e emoção com que me rodearam, já sentia o quanto valeu a pena ter vindo de férias. Todos queriam saber de mim e da guerra. Para eles, essa coisa que, estando tão longe e por vezes tão perto, representava sempre risco de perderem alguém.

Já no aconchego da nossa casa, o meu Pai mostrava alguma compreensão pelas minhas escolhas na vida e era o mais interessado nos pormenores da guerra, especialmente naqueles com leitura política.
Como actuava o PAIGC?
Que forças tinham?
Que áreas controlavam?
E como é o teu dia a dia?

A minha Mãe, como todas as Mães do mundo, abraçava-me a toda a hora, como quem precisa de sentir para acreditar que o filho estava ali.
O rosto da minha namorada espelhava a felicidade de me ter a seu lado.
A minha velhinha avó paterna, que me criou até aos cinco anos e que nutria por mim uma afeição especial por eu ser o seu primeiro neto, achava que estava muito magrinho e insistia para que me alimentasse melhor.

Eram tempos de partilha com a família e do regular convívio de café com os amigos, alguns deles com a possibilidade de virem a “bater com as costas” na guerra de África.
As motivações que me impeliram para vir de férias faziam todo o sentido. Tinha agora uma relação mais afectuosa com o meu Pai, transmiti à minha namorada a confiança de que os nossos sentimentos eram o futuro e estava recuperado do enorme desgaste físico em que me encontrava. Mas o tempo voa, especialmente nestas circunstâncias e, quase sem se dar por isso, a data do regressar à Guiné estava aí.

No dia do regresso, a família e a namorada acompanharam-me ao aeroporto. Enquanto se aguardava a hora das despedidas, o meu Pai pediu-me que, no regresso definitivo a casa, lhe trouxesse duas garrafas de vodka para oferecer a amigos. Percebi a motivação do pedido e garanti-lhe que seria satisfeito.

Algo afastados do local em que me encontrava com a família, notei a presença de um grupo de pessoas que incluía algumas minhas conhecidas, todas de luto, e com semblantes de dor. Dirigi-me para junto dessas pessoas, cumprimentei as que conhecia, e indaguei dos motivos do luto e da presença no aeroporto. Foi como se tivesse levado um coice no peito. Fomos Amigos de escola, Colegas na equipa de Natação do Leixões, Companheiros da Vida e Tu, logo Tu, havias de tombar em combate na Guiné.

A família a namorada e amigos estavam ali à espera da urna para lhe fazerem o funeral. Partilhei com eles alguns momentos de pesar e dor. Quando os informei de que estava ali para regressar á Guiné, ficaram pesarosos e desejaram-me a maior sorte do Mundo.

O tempo que restava não me permitiu assistir
à chegada da urna do meu Amigo. Evitei que a minha família percebesse o motivo porque me tinha afastado. Posteriormente, viria a saber que o meu Companheiro e Amigo que servia nas tropas paraquedistas, havia tombado na zona de Galomaro, numa emboscada junto de uma fonte.

Era o regresso marcado pelas sombras da guerra. Mas valeu a pena ter vindo de férias. Estava grato pelo carinho de todos e fiquei rendido, aquelas lágrimas rebeldes que vi saírem dos olhos do meu Pai, no momento do abraço de despedida. Sim, eu sei que valeu a pena. Tal como a viagem de barco, a viagem de avião de regresso à Guiné faria escala em Cabo Verde, desta vez na Ilha do Sal.

Fizemos uma paragem de cerca de uma hora e, por aquilo que pude ver, a ilha era muito árida e pouco povoada. Desci em Bissau no início de Junho e já chovia. À boleia, numa viatura militar, fui de Bissalanca até ao Depósito de Adidos em Brá. Aqui, fiquei aguardar transporte para o Xitole.

Instalado, apressei-me a ir cumprimentar o Sargento Enfermeiro que me havia tratado quando cheguei à Guiné, pela primeira vez. Já não me conhecia, era normal, tanta gente lhe havia passado pelas mãos mas, devia-lhe a gratidão pelo seu cuidado e disso dei testemunho do meu agradecimento.

Este tempo de espera permitiu-me “saborear” Bissau, os seus recantos e encantos, mistérios e até perigos. Pude desta feita, conhecer os locais mais frequentados pela tropa “macaca”. Quantos de nós terão resistido à tentação de se aventurar pelo “Pilão” e sentir aquela atmosfera de provocação, aquela mistura de desafio, “pecado” e até magia que nos envolvia. Eram as mulheres mais lindas, sobretudo as de origem cabo-verdiana, o motivo maior da nossa atenção.
Falava-se de que, por estas bandas, aconteceriam rixas bravas entre as tropas especiais, cada qual, numa demonstração da superioridade das suas “boinas”. Eram os tempos de se “pisar o risco” e de se dar livre escape à irreverência da juventude.

Era a quase obrigação de se ir ao UDIB dar um mergulho na piscina, ver-se um filme e depois irem alguns, os poucos que gostavam, comerem-se umas ostras ali para os lados do cais. E o ponto de encontro, camaradas? Lembram-se do imperdível Café Bento? Haverá porventura alguém que tenha passado por Bissau, especialmente da classe das praças, que não conheça o Café Bento? Era o nosso ponto de encontro, camaradas. Ali se encontravam os amigos, os amigos dos amigos, os conhecidos dos amigos e até, pasme-se, os desconhecidos.
Em pouco tempo se ficava a saber tudo o que se passou, o que se passava e o que viria a passar-se em qualquer canto, por mais escondido que estivesse no território da Guiné. Era a nossa 5.ª Rep, o serviço de informações mais eficiente, existente no território.

Entre umas canecas de boa cerveja e uma engraxadela dos sapatos a conversa fluía sempre interessante e actualizada. Foi neste meio que encontrei o namorado, de uma colega de trabalho da minha namorada, que estava no Forte de Amura como Polícia Militar. Logo ali me disponibilizou cama e mesa de qualidade bem superior à do Depósito de Adidos. Porque será que não me surpreendeu a sua atitude? É que a malta, naquelas circunstâncias, é capaz das atitudes mais nobres só para ter por perto alguém que lhe fale daquilo que lhe é familiar.

E nestas andanças, chegou o dia 9 de Junho de 1971. Estávamos na véspera do Feriado Nacional e, para minha surpresa, estava nomeado Cabo de Dia ao Depósito de Adidos. Acreditem camaradas, nunca tinha feito tal serviço. Só fui promovido a Primeiro-Cabo na data do embarque em Lisboa e, no mato, os enfermeiros estavam dispensados de serviços, assim pensava eu.

Algo me dizia, e disso comecei a convencer-me, de que nada acontecia por acaso. Ao início da noite, enquanto o pessoal em formatura aguardava a chegada do Sargento de Dia para a verificação de presenças, ouviram-se uns enormes estrondos de rebentamentos, que me pareceram vir, ali mais para os lados de Bissau. À ordem do Sargento de Dia, todos fomos procurar abrigo nas enormes “valetas” que ladeavam a parada alcatroada.

Após os primeiros impactos, os Sargento e Oficial de Dia comentavam que Bissau estaria a ser atacada. Ó diabo, nem aqui se está bem? Não se ouviam sirenes de ambulâncias. O que estaria acontecer em Bissau, será que sofremos muitas baixas?
Essa noite foi de alerta geral. Aconteceu o que muitos, há muito tempo vaticinavam. Era o fim do mito do refúgio seguro.
O PAIGC tinha feito uma demonstração do seu atrevimento e força.

No dia seguinte, nas conversas do Café Bento o assunto era o ataque a Bissau. Era assunto incontornável a que ninguém ficava indiferente. Uns diziam que os “mísseis” caíram ali para os lados dos tanques de combustível da Sacor, que ficavam nas margens do Geba às portas da cidade. Outros, afirmavam que todos os rebentamentos se deram nas bolanhas bem longe da cidade. Em Bissau e no interior, esta evolução da guerra deixou-nos a todos muito apreensivos. Que futuro? 
Fiquei marcado com a convicção que nada seria como dantes na Guiné depois daquela noite.

Deixei Bissau de retorno ao Xitole a bordo de uma avioneta DO. Foi uma sensação difícil de descrever quando sobrevoei o Xitole, momentos antes de a avioneta tocar a “pista”.
Eu sabia o que via, eu sentia o que via e sabia ao que vinha. Nada podia alterar o rumo das coisas. Estava novamente confrontado com a amarga realidade da guerra.

Todas as visitas da avioneta ao Xitole geravam um movimento anormal de pessoas na zona do “hangar”, fosse pela curiosidade ou pela ânsia do tão desejado correio.
Lá estava, entre tantos, o meu camarada enfermeiro que, mal me viu, apressou o passo para me dar um abraço de boas-vindas e ajudar a carregar os meus haveres.

- Como te correram as coisas, só com o Galé a ajudar-te? - Disparei eu.
 
(Continua)

Principal avenida de Bissau

Messe dos oficiais e campo de futebol

Ponto de encontro – Café Bento

Momento de relaxe jogando-se a lerpa
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Nota do editor

Último poste da série de 29 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11991: Conversas à mesa com camaradas ausentes - Estórias da História da Guerra Colonial – Guiné Bissau (José Martins Rodrigues) (5): Os meses seguintes até às férias na Metrópole

Guiné 63/74 - P12009: Parabéns a você (623): José Marcelino Martins, ex-Fur Mil TRMS da CCAÇ 5 (Guiné, 1968/70)

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Nota do editor

Último poste da série de 4 de Setembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12006: Parabéns a você (622): José da Câmara, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56 (Guiné, 1971/73) e Torcato Mendonça, ex-Alf Mil Art da CART 2339 (Guiné, 1968/69)

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Guiné 63/74 - P12008: Agenda cultural (280): As nossas camaradas Enfermeiras Paraquedistas, Giselda Pessoa, Maria Arminda e Rosa Serra, vão estar amanhã, dia 5, na SIC, no programa Boa Tarde, a partir das 15h30

Amanhã, dia 5 de Setembro de 2013, as nossas camaradas Enfermeiras Paraquedistas, Giselda Pessoa, Maria Arminda e Rosa Serra, vão estar presentes no programa "Boa Tarde" da SIC, com início depois das 15h30.

Como não podia deixar de ser, a amizade que as une desde a formação deste fabuloso grupo de Enfermeiras Paraquedistas, as únicas no mundo que actuavam em teatro de guerra, será o ponto forte da entrevista. 

Como é do conhecimento público, estas três nossas queridas camaradas gravaram recentemente um anúncio, no qual é realçada a ligação existente entre elas, alicerçada pelas dificuldades da missão que desempenharam na Guerra de África, que as tornaram amigas inseparáveis e cúmplices.

Aqui fica a informação e convite para quem tiver oportunidade de assistir ao programa.

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Nota do editor

Último poste da série de 12 DE JULHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11830: Agenda cultural (279): O grande Kimi Djabaté, músico de Tabatô e do Mundo, dia 26 de julho, 6ª feira, às 22h30, na Casa da Música, Porto... A não perder, cambada!... O nosso blogue apoia a música da Guiné-Bissau!

Guiné 63/74 - P12007: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (7): Relato do ataque à capital da República da Guiné feito pelo Tenente Januário na Rádio Conacry

1. Continuação das "Memórias da Guiné" do nosso camarada Fernando Valente (Magro) (ex-Cap Mil Art.ª do BENG 447, Bissau, 1970/72), que foram publicadas em livro de sua autoria com o mesmo título, Edições Polvo, 2005:


MEMÓRIAS DA GUINÉ

Fernando de Pinho Valente (Magro)
ex-Cap. Mil de Artilharia 

7 - Relato do ataque à capital da República da Guiné feito pelo Tenente Januário na Rádio Conacry

"A viagem do Xime (porto próximo do Quartel dos Comandos Africanos de Madina Mandinga) até à ilha de Soga (no arquipélago de Bijagós) durou seis a sete horas.
Chegamos de madrugada a Soga. Não desembarcamos. O pessoal das lanchas não podia ir a terra nem o pessoal de terra podia ir a bordo. Gerou-se a confusão entre nós.
Todos perguntávamos: para onde iremos? Ninguém sabia, nem os pilotos das embarcações. O Comandante da minha lancha também não sabia.
A moral baixou.
Falava-se que iríamos para a ilha de Como, Cabo Verde ou Teixeira Pinto.

No dia anterior à partida foi-nos dada ordem para ir a terra trocar de fardamento e armamento.
Em terra encontrei gente estrangeira que não conhecia. De onde vieram? Ninguém sabia.
Um rapaz de Conacry disse-me que íamos à terra dele.
Aquele pessoal era da República da Guiné e ia ser levado até à sua terra.

Regressei a bordo e contei o que ouvi.
- Vamos para Conacry. Vocês estão de acordo?

Ninguém estava de acordo, nem os soldados, nem os sargentos, nem os oficiais, nem o Major.
O Comandante Calvão prendeu o Major (Leal de Almeida) que se insubordinou e mandou-o para Bissau.
O nosso Major (Leal de Almeida) foi para Bissau num dia e no outro voltou com o nosso General e o Comandante Calvão.
Foi reunida a Companhia (Comandos Africanos) e o nosso General disse que iríamos a Conacry somente levar os homens que estavam na ilha e mais nada.
Deixaríamos os homens no porto e regressaríamos. Mais nada.

Começamos a pensar na família. Se por acaso tivessemos qualquer contacto com tropas da República da Guiné? Se eles viessem à nossa terra e atacassem a nossa família, gostaríamos disso?
Tenho na Guiné Portuguesa o meu pai já velho, o meu filho, os meus amigos, a família toda.
Não estava de acordo em ir. A maioria dos oficiais, sargentos e soldados também não estavam de acordo.
Mas o General (António Sebastião de Spínola) convenceu a "malta". Disse-nos que era a única maneira de acabar com a guerra. Que estava tudo arranjado e que não haveria problemas. Disse-nos que as nossas famílias não seriam esquecidas se algum mal nos acontecesse.

O General disse que não haveria problemas e que a operação seria cancelada se houvesse qualquer alteração e se se verificasse, em qualquer altura, que não seria bem sucedida.
Que havia 95% de probalidades de êxito.
Já não pudemos invocar mais nada.
Tivemos que vir.

As forças com quem viemos e que se chamavam a elas mesmas Forças da República da Guiné eram cerca de 150 homens.
A minha Companhia (Comandos Africanos) tinha, também, 150 homens.
Havia também 80 fuzileiros.
Estas forças todas foram subdivididas em pequenos grupos. Cada grupo era destacado para um barco. Ao todo eram seis barcos, que partiram a horas diferentes.

Saímos às 8 horas da noite da ilha de Soga e chegamos aqui às 10 horas da manhã do outro dia. Quando à noite se começou a ver uma luz vermelha, que é a indicação de terra, foram-nos chamar.
O Capitão Bacar (negro) chamou-me e foi então que me apareceu o Capitão Morais (branco) todo pintado de preto que eu nem o conhecia.

Ele disse-me:
- Januário, vamos saltar aqui.
- O quê? Então disseram-nos que vinhamos só trazer o pessoal e eles é que desembarcariam e agora nós também vamos a terra?
- O General mandou e temos de ir lá.

Mandou seguir seis botes cheios de gente para terra.
Eu ia no bote imediatamente atrás do Capitão Morais.
Rumamos à costa. Junto a terra encontramos duas canoas, suponho de indivíduos que andavam a pescar.

Pensei alto: eles vão ser avisados e isto vai ser uma chatice.
- Oh, não. São pescadores. Parece que estás com medo...
- Não, não estou com medo. Se você vai eu também vou.

Chegamos a terra e desembarcamos.

O Capitão Morais disse-nos:
- A nossa missão é atacar o Aeroporto e destruir os MIG's. Outros grupos atacarão o PAIGC, a estação dos correios e a emissora.

Em terra fomos progredindo sem custo.
Subimos um muro e começámos a ver o Aeroporto. Depois parámos.
O Capitão continuou.
Eu parei. Fiz sinal aos homens que me acompanhavam para pararem também.
Perdemos a ligação com o Capitão Morais.

Disse aos soldados:
- Vamos atacar esta gente? Gostaríamos que nos fizessem o mesmo? Eu não atacarei ninguém. Quem quiser ficar comigo que venha para aqui. Os outros que corram para a frente.

Vinte homens que estavam comigo decidiram logo não atacar.
Regressamos todos ao ponto onde desembarcámos.
Eu bem sabia que quando chegasse a Bissau teria alguns anos de cadeia.

Quando chegámos à costa já não apanhámos os barcos.
Resolvemos esconder-nos e esperar pela manhã.
Resolvi apresentar-me às autoridades logo que amanhecesse.
Encontrei um rapaz daqui que me levou à Polícia Popular.
Aí disse o que tinha acontecido e fiz a entrega das armas.
Os soldados que estavam comigo acompanharam-me e fizeram o mesmo.
Verificou-se logo que as armas não haviam feito fogo.

Estas informações foram ditas por mim, Tenente Januário, e se não digo mais é porque mais não sei."
O Tenente Januário foi, passado algum tempo, julgado e condenado à morte, tendo, posteriormente, sido fuzilado.
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Nota do editor

Último poste da série de 28 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11990: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (6): A invasão de Conacry

Guiné 63/74 - P12006: Parabéns a você (622): José da Câmara, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56 (Guiné, 1971/73) e Torcato Mendonça, ex-Alf Mil Art da CART 2339 (Guiné, 1968/69)

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Nota do editor

Último poste da série de 3 de Setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P12001: Parabéns a você (621): Luís Gonçalves Vaz, amigo Grã-Tabanqueiro