sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Guiné 63/74 - P13500: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (47): Retrato de uma família - A guerra, a pobreza e a presença dos soldados portugueses

MEMÓRIAS DO CHICO, MENINO E MOÇO (CHERNO BALDÉ)

46 - RETRATO DE UMA FAMÍLIA 
A GUERRA, A POBREZA E A PRESENÇA DOS SOLDADOS PORTUGUESES

A minha família, até meados de 1948, ano da morte de Braima Djame Baldé, mais conhecido por Branjame, régulo de Sancorla, integrava o núcleo restrito da casa real (Lamido) deste regulado, direito esse adquirido atravês da nossa avó materna, Eguê Baldé, tia de Branjame.

Nesta qualidade, não se pode dizer que não conheciam os portugueses antes do início da guerra colonial, tendo em conta as ligações de uma aliança histórica mais ou menos estreita, de mútua (des)confiança e de dependência que existiam entre os chefes tradicionais e a administração portuguesa sediada nas circunscrições mais próximas em Geba ou Bafatá e/ou mais distantes como Bolama e Bissau, para onde os nossos pais, Nahôr e mais tarde Samba-Gaia (que disputaria o regulado com os filhos de Branjame), nossos patriarcas da família se deslocavam com frequência e, em nome das quais, se convocavam manifestações de júbilo ou se procedia a mobilização de homens válidos para as guerras de pacificação do território no decurso do último quartel do Séc. XIX e principios do Séc. XX.

Nessa altura, ouvia-se falar do homem branco como o eco de um som longínquo, que provocava curiosidade e medo pois se todos o queriam ver com os seus olhos, ao mesmo tempo todos tinham a consciência dos perigos que ele representava antes e depois. Antes porque associado ao temível fenómeno do desaparecimento de pessoas. Sim, pessoas que partiam para os seus campos de cultivo e desapareciam, de repente, sem deixar rastos. Depois porque, infelizmente, em África, este fenómeno de desaparecimento de pessoas não findou com o proclamado fim da escravatura, mas continuou durante algum tempo, inclusive sob a forma de sanções administrativas que consistiam na deportação das vítimas para terras distantes, o terrível desterro.

DESTERRO!!??...

Para o homem africano da época, não podia haver nada pior que o desterro que se traduzia no desenraizamento da pessoa e seu afastamento definitivo ou por largo período longe da sua família. Foi nessa época que apareceu no meio popular, entre os fulas, a frase que dizia: “O Branco que veja se o desterro é bom”, isto quando alguém queria fazer ver ao outro que, também ele, não tinha apreciado uma certa atitude deste num dado momento.


A figura do meu pai, El-haj Tambá Baldé


O meu pai, Aladje Tambá Baldé e o Cabo Tintim (nome emprestado da BD), que frequentava a nossa casa em Fajonquito. A foto é de 1967/68, pelo que o amigo Tintim deve ter pertencido à CCAÇ 1501 do Cap. Rui Antunes Tomaz ou da CCAÇ 1685 do Cap. de Infantaria Alcino de Jesus Raiano, cujas companhias passaram por Fajonquito entre 1967/68.


Nesta família pobre e simples que viveu e atravessou a Guerra colonial de ponta a ponta e, ainda sobreviveu ao genocídio silencioso do pós-independência, quero destacar o importante papel desempenhado pelo nosso pai, como chefe de uma família numerosa que conseguiu sobreviver sem sofrer muitos danos ou perdas de vida a lamentar, e tudo graças ao Deus todo poderoso em primeiro lugar e em segundo, graças ao talento de diplomata inato do nosso pai, acompanhado de uma boa dose de bom senso que o permitiram, sempre, aplicar o princípio segundo o qual: “O que é de César a César e o que é de Deus a Deus”, enquanto esteve à testa da família.

Vivendo num meio difícil, de sobreposição de vários poderes (oficial/tradicional, nacional/local, laico/religioso) e de constantes e rápidas mudanças, de guerras e montanhas de intrigas, soube sempre adaptar-se e relacionar-se bem com as condições vigentes sem nunca se comprometer inteiramente, mas também sem nunca se afastar demasiado para não criar suspeitas. Contrariando a vontade da mãe e nossa avó, desde sempre soube receber bem e criar amizades entre os soldados portugueses que, certamente, vinham a nossa casa por causa das nossas primas-irmãs que, na altura, andavam de corpo nu da cintura para cima e com as mamas ao léu.

Não sei, no fundo, se a sua admiração, como qualquer outro, do seu tempo e etnia, pelos portugueses era acompanhado de uma simpatia especial, o certo é que demonstrou sempre por estes muito respeito e consideração no que era largamente retribuído.

Ao contrário dos seus irmãos, nunca se ofereceu e nem foi mobilizado para a guerra e, felizmente, as suas funções de empregado comercial permitiam-lhe satisfazer o mínimo necessário, sem precisar de entrar em aventuras militares ou intrigas palacianas. O longo trabalho com comerciantes lusos criou nele a ambição legítima de fazer dos seus filhos pessoas preparadas para os desafios do futuro, numa época em que o obscurantismo predominava entre as massas camponesas, decisão a que nunca se renunciou apesar dos numerosos obstáculos pelo caminho.


A minha avó paterna, Eguê Baldé

Ao contrário do filho, a nossa avó paterna não mostrava simpatia pelos brancos em geral e, em particular, dos soldados que invadiam a nossa casa em Cambaju. Dizia sempre, referindo-se a presença destes: “Uoú!... tinha que viver para presenciar isto!..”. Fugia do olhar dos militares para se refugiar no interior da sua palhota. Designava-os por “orelhas vermelhas” e não perdia uma única ocasião para falar mal e criticar o comportamento pouco sóbrio dos jovens soldados que, muitas vezes, se comportavam, de facto, como se estivessem em terras por eles conquistadas bem ao estilo dos tempos romanos. Nunca aceitou nada que viesse do quartel e não queria que os seus netos o frequentassem como se tivesse medo que fossem alienados e entregues à razia da guerra que dava os seus primeiros passos e fazia as primeiras vítimas.

Morreu em Cambaju entre 1966/67, pouco antes de mudarmos para Fajonquito, numa idade bastante avançada. Provavelmente, ela era a única que carregava consigo os ecos dos tempos passados, contendo os resquícios de lembranças menos boas dos primeiros contactos com os europeus em África e da prática nefasta do comércio triangular de má memória e que contribuiu para esvaziar o continente da sua população.


O meu tio Dembaro Baldé

O irmão mais velho do meu pai, Dembaro, era a biblioteca da família, conhecedor profundo do percurso histórico dos fulas desde que saíram de Mácina, as crónicas épicas de Alfa Molo e de seu filho, Mussa Molo, no espaço sócio-cultural Firdunkê. Tinha uma grande admiração pelos portugueses em relação aos quais clamava alto e em bom som: “Sambu ghalel Tubakhô, khabhá pôlle gardânne” o equivalente, na língua fula, da famosa expressão latina “Veni-vidi-vici” de Júlio César ou das Lusíadas “Vós portugueses, poucos quanto fortes” (Canto VII) e, não se cansava de nos falar sobre as míticas figuras das guerras tribais no espaço sudanês de Mali, antes da chegada dos europeus e ainda sobre as guerras de pacificação sob a batuta de inigualáveis e intrépidos chefes de guerra portugueses como o Marques Geraldes, Graça Falcão ou Cap.Teixeira Pinto.


A minha mãe, Cadi Candé

A minha mãe era o que os portugueses vulgarmente chamariam de “moura” da casa, a primeira a levantar-se e a última a deitar-se e sobretudo no período de Ramadão, quando se impunha que as pessoas comessem durante a madrugada para poderem jejuar ao romper do dia, então ela, praticamente, não tinha tempo para se deitar e recuperar da fadiga do trabalho quotidiano da bolanha, do campo, da ordenha das vacas, trabalho caseiro e cozinha, sobretudo a maldita cozinha que lhe deu cabo dos olhos; pequeno almoço, almoço e jantar, quando tudo o que existia em casa era um grande amontoado de milho preto ou milho-basil no seu estado natural e que ainda precisava secar, pilar (esmagar), farinhar, separar em grãos, misturar com folhas da calabaceira em pó (lálôh), buscar lenha, pôr ao fogo, etc., etc.

Não sei o que ela pensava dos brancos, nunca nos disse e nunca ninguém lhe perguntou, mas como boa esposa, ela seguia os passos do nosso pai, isto é, tentar ser gentil, bem educada e acolher o melhor possível os hóspedes. Por falar em hóspedes, aqui está uma palavra mágica para os fulas do antigamente que, no decurso de toda a sua vida não faziam outra coisa senão preparar-se para receber bem e condignamente o seu hóspede. Lembro-me que, na infância, só acontecia comermos arroz e carne de galinha ou de algum outro animal no dia em que aparecia, saído de “nul part”, um hóspede qualquer, mesmo que se tratasse de um viajante maltrapilho, um vulgar vagabundo, bastava que não fosse das redondezas. “Felizes os servos que o Senhor, a sua chegada, encontrar vigilantes... porque o Filho do Homem virá numa hora que não pensais” (Lucas 37/40).

Mas, mesmo nessas raras ocasiões, as crianças tinham muita sorte se lhes calhava algum osso para chupar. Lembro-me de ter comido muita tripa de galinha, sim a tripa que deitavam fora, depois de uma apressada limpeza do conteúdo, metia-se na brasa e a seguir para dentro das nossas barrigas redondas, inflamadas de desnutrição crónica. “Se deitas fora é carne desperdiçada, se o comes, comeste merda”, dizia a nossa avó a respeito das tripas.


Samba Candé ou Sam-forrea, meu avô materno

Por várias ocasiões, já aqui evoquei a figura do meu avô materno, o seu nome era Samba que as pessoas transformaram em Sam-Forrea por ser originário da região de Forrea (Contabane). Era caçador profissional e fez parte do contingente mobilizado para a guerra de Canhabaque. Conta a minha mãe que, quando voltou da guerra, estava irreconhecível devido a enorme cabeleira e a barba de muitos meses que lhe cobriam toda a face. Fizeram mais de 60 km a pé, de Bafatá a nossa aldeia de Farimbali. Voltaram de mãos a abanar, como tinham partido, sem dinheiro, sem espólio de guerra. Tinham lutado pela honra de Sancorla e da pátria portuguesa, afirmavam. Claro que esperavam obter alguma compensação material, o que neste caso não aconteceu.

No caminho de regresso a casa teria cruzado com o grupo de pessoas da sua aldeia que o vinham acolher, mas nem eles o puderam reconhecer envolto naquela enorme cabeleira e barba de um ano nem ele os reconheceu vindo daquela ilha maldita dos Canhabaques onde muitos dos seus companheiros tinham perdido a vida, incluindo o príncipe herdeiro de Sancorla, Abdu Branjame, que pouco antes tinha participado numa exposição colonial em Portugal, muito provavelmente a de junho de 1934 no Porto.

Na Guiné, desde o Séc. XIX que os portugueses tinham descoberto e privilegiado a contribuição da classe dos caçadores nos conflitos que os opunham a certos grupos indígenas. Homens singulares, de coragem ímpar e conhecedores do terreno, seriam largamente utilizados também, durante a guerra colonial, principalmente, como guias e/ou para organizar os grupos nativos de milícias e de auto-defesa.

Ao contrário do meu pai, ele era o que se podia classificar de anti-social e politicamente nulo, pois passava todo o seu tempo metido no mato a conviver com as aves e animais selvagens e raramente participava em eventos da comunidade. Homem de poucas palavras, durante as festas religiosas, quando toda a gente se preparava para vestir as suas melhores vestes e pavonear-se na reza colectiva, ele se oferecia para pastar o nosso gado bovino em substituição das crianças que, por norma, tinham essa incumbência.

Em Fajonquito, foi ele que teve a ideia genial de introduzir-me no quartel, quando, na verdade, nunca lá deveria pôr os pés por imposição da minha avó. Se não falava com os seus próprios conterrâneos muito menos o fazia com os jovens soldados portugueses que, inebriados com a visão das bajudas semi-nuas, raramente perdiam tempo com os velhos da tabanca. Pela manhã, quando estes entravam na morança ele pegava na sua “Longa” (arma de fogo de fabrico artesanal que funcionava por meio de pólvora e pedaços de metal embutidos no interior do cano, de frente para trás) e saía para o mato, onde fazia dias ou semanas antes de voltar. De vez em quando lá trazia partes de uma gazela ou de porco-espinho que distribuía pelos familiares, amigos e vizinhos.


Mariama Baldé ou Néné-Maudhô, a minha avó materna

De todos os membros da família, foi ela que mais me marcou em virtude da sua insistente e inútil teimosia de fazer de mim um homem de bem, deveras. Nunca desistiu, desde a idade de 4 ou 5 anos, em meados de 1964, quando fugimos juntos do primeiro ataque a nossa aldeia e, desorientados pelo medo, acabamos por dormir no meio de uma bolanha infestada de bichos e capim selvagem, com folhas tão afiadas que nem facas de cirurgião. No dia seguinte, quando finalmente nos encontraram, tínhamos cortes em tudo que era corpo, mas pelo menos estávamos vivos.

Incansável, todas as manhãs ia a casa que servia de dormitório dos rapazes para nos lembrar que a sorte estava com aqueles que se levantavam cedo, depois da primeira oração da manhã. Até hoje não o consegui fazer. Todas as tardes, antes de escurecer ia procurar-me a fim de certificar-se que já tinha tomado banho e trocado de roupa.

O seu nome era Mariama Baldé, ou Néné-Maudhô (Mamãe-velha) e faleceu em 1994 estava eu, na altura, em Lisboa. Como habitualmente acontece, só damos o devido valor àquilo que já perdemos. Era uma mulher alta e sofria de elefantiase numa das pernas o que lhe dava um aspecto algo bizarro em que uma das pernas era normal e pequena e a outra exageradamente grande e deformada, facto que a impedia de usar sapatos.

No entanto, era a todos os títulos uma pessoa especial e de valor inestimável para mim, pois ela foi a minha guardiã e verdadeira educadora durante a nossa atribulada infância e adolescência que se estende, praticamente, desde o inicio da guerra no norte (1964) até 1975, altura em que deixei a família para continuar os meus estudos no Liceu de Bafatá.

Dizem que ela viveu os cem anos, é bem provável. Não raras vezes, nas narrativas sobre a sua juventude, referia-se à cidade de Farim, importante centro de trocas comerciais em princípios do Séc. XX, onde as jovens bajudas iam trocar ou vender produtos junto dos comerciantes europeus e sirio-libaneses como o Coconote ou a borracha natural, extraído de uma planta selvagem e concentrado em formatos redondos como as bolas de futebol, resultado de meses e meses de labuta na floresta.

A Néné-Maudhô encarava a sua obrigação de nos dar uma boa educação de tal modo que era capaz de tudo para cumprir com a sua obrigação. Uma vez, já era quase noite e ainda não tinha saído do quartel para casa quando, surpreendendo tudo e todos pela ousadia, a minha avó penetrou dentro do quartel à minha procura. Passou pela sentinela na porta de armas que ou estava apanhado do clima e já não distinguia uma bajuda de uma mulher grande ou se calhar julgara tratar-se da lavadeira do 1.º Sargento e por isso, não queria arranjar encrencas.

A semelhança de todas as mulheres grandes que conheciam o irreverente atrevimento dos soldados nas tabancas, procuravam sempre ficar longe para não servir de bode expiatório às suas maluquices o que, de forma alguma não queria dizer ter medo, pois no dizer da minha avó, estes não passavam mesmo de “crianças grandes”, irrequietas e mal-educadas.

A sentinela saiu da sua sonolência acordado pelo barulho das vozes que de todos os lados gritavam dentro do quartel dirigindo-se a pobre da minha avó com uma canção que lhes era peculiar naquele tempo:
- “mulher grande cá tem cabaço óh-lé-lé-lé-lé... foi o Manel que o tirou óh lé-lé-lé-lá...”- no meio da algazarra de assobios e gargalhadas.

Imperturbável, ela seguiu caminhando e a todos que a perguntavam através da mímica gestual o que procurava ali, respondia em língua fula por uma única frase que ela sabia ser irreversível, aconteça o que acontecesse, universal, até ao fim do mundo: “Tcherno Abdulai!.. o meu neto... vai pra casa... já e agora!..”. Com excepção dos meus colegas rafeiros, ninguém sabia quem era o Tcherno Abdulai, pois no quartel o meu nome era Chico e por isso, os soldados pensavam estar diante de uma velha maluca com duas pernas diferentes uma da outra.

Assolada por uma multidão cada vez maior de soldados curiosos, não arredou pé enquanto não foram à caserna dos condutores, onde era faxina, para me alertarem. Tinha sido a primeira vez, mas não seria a última e, as tantas, o Dias (o meu amigo e patrão), quando via a sua silhueta invulgar aproximar-se da porta de armas, antes que se iniciasse o diálogo de surdos entre a sentinela e a minha avó, gritava com a sua voz rouca:
- Óh Chico, desanda dai que a velha já está a tua espera!...

Com estas palavras de alerta, sabia que estava na hora de deixar o quartel e voltar pra casa, que a minha avó estava ali a minha espera donde não arredaria o seu pé de elefante com que assustava os soldados, mesmo com tiros de G3.

Passados muitos anos depois, quando li o maravilhoso livro “A Mãe” do escritor russo, Máxim Gorki (Alekxei Makxímovich Peshkov), não podia deixar de pensar na minha avó e compreender finalmente, que estava perante um fenómeno universal. Então os meus sentimentos de raiva e de ódio devidos a teimosia daquela mulher grande se transformaram, de repente, numa grande compaixão.

No que me concerne, depois do choque inicial, pouco a pouco comecei a ser atraído pelo quartel tal qual a luz nocturna atrai os pequenos bichos voadores. A curiosidade de conviver e conhecer pessoas diferentes, o gosto pela comida do quartel tinha começado desde Cambaju entre 1965/67, mas em finais de 1967 ou inicio de 68, o nosso pai foi transferido e mudou com a família para Fajonquito. Nessa altura o aquartelamento situava-se no meio da tabanca e havia alguma promiscuidade entre a população local e os militares ocupantes do quartel que se traduzia na infiltração constante das crianças na zona ocupada pelos soldados.

Em 1969, com a chegada da companhia do Cap. Carvalho fez-se um reordenamento que transferiu toda a população do lado oeste para leste e isolou o aquartelamento com arame farpado e portas fechadas. Este sistema de apartheid, por assim dizer, por um lado permitiu separar as águas e impor certa ordem e disciplina no quartel, mas por outro criou um fosso enorme entre dois mundos que se complementavam mutuamente e que, pouco a pouco, se foi aumentando para se transformar numa guerra fria de mútua desconfiança. Este facto não será alheio ao destino final do comandante da companhia antes do fim da sua comissão.

 Cherno Baldé, aos 14 anos, em Fajonquito (1974)

Cherno Baldé, estudante do Instituto Superior de Economia de Kiev (1986/90), com duas colegas (russa e ucraniana) da mesma promoção. A imagem que serve de fundo é o rio Dnepr que divide a cidade de Kiev em duas partes

O meu irmão Carlos (2 anos mais velho, hoje Farmacêutico, formado pela faculdade de Farmácia da Universidade Técnica de Lisboa), durante a alocução por ocasião do dia 10 de Junho de 1971, Dia de Portugal e de Camões, na escola primária de Fajonquito. Na imagem estão dois oficiais da companhia do Cap. Figueiredo (CART 2742), um dos quais, o Alferes Félix encontrou a morte no mesmo dia que o seu Capitão. Talvez o José Bebiano que esteve na mesma altura em Fajonquito, em rendição individual, possa ajudar o identificar os dois oficiais aqui presentes.

 O amigo José Cortes (CCAC.3549 - 1972/74), junto a porta d’armas do quartel de Fajonquito

Festa em Fajonquito com a presença de artistas portugueses para animar a malta (1971), ao fundo está o Cap. Borges de Figueiredo a esquerda da cantora Eva Maria. 
Foto cedida por José Bebiano

O mesmo grupo de artistas portugueses, constituido por Eva Maria, Tino Costa e Fernando Correia, actuando no palco, em Galomaro (1971)
Foto de Antonio Tavares, BCAC 2912 (1970-72), extraida do nosso Blogue (P13433)

Os nossos amigos da Ferrugem, Torres Berliet e o 1.º Cabo Sérgio (CCAC 3549) na nossa morança, em Fajonquito (1972/73).

O 1.º Cabo Condutor-auto, Sérgio Rodrigues, fazendo companhia às bajudas, Fajonquito (1972/73)


Homenagem póstuma ao Cap. Carlos Borges de Figueiredo(*)

Em 1970 chegou uma nova companhia (CART 2742 do Cap. Figueiredo) e com ele inaugurou-se o período mais profícuo e dinâmico de Fajonquito. Nessa altura sentiu-se, de facto, que a Guiné estava a mudar e positivamente. Foi nessa altura, também, que acabei por me fixar no quartel como faxina num dos quartos da ferrugem (condutores), onde tinha a clara consciência de estar no meio de amigos, mas nem por isso isento de perigos. Sentia-me a vontade quando estava na caserna com os meus amigos condutores, mas sempre vigilante quando deambulava sozinho dentro do quartel. A idade, o stress provocado pela guerra, as saudades da terra natal e, provavelmente, o sentimento de impunidade por actos considerados menores, propiciava alguns exageros em forma de brincadeira que não eram sancionados. Claro está que, salvo raras excepções, normalmente os lobos não se comem uns aos outros.

O Cap. Figueiredo baniu a proibição da entrada no quartel, abriu as portas aos meninos, mas como contra partida pediu para que todos fossem à escola depois das horas de trabalho de faxina. Não era agradável, mas compensava. Pela primeira vez, foram colocados postes de iluminação na rua principal da vila, para alegria da criançada. Os oficiais da companhia davam apoio aos professores locais dentro e fora das aulas, com modalidades de futebol e ginástica. Foi instituída uma merenda para todos os alunos e prémios aos que se distinguiam nas aulas e nos exames finais, por exemplo, a participação nos campos de férias da Mocidade Portuguesa.

Muitas das pessoas que hoje são quadros nacionais na Guiné têm uma dívida de gratidão aos soldados portugueses que, como o Cap. Figueiredo e o grupo dos seus oficiais e sargentos, contribuíram para a sua formação de base. O meu caso não é paradigmático porque fui obrigado a ir às aulas que detestava com todas as minhas forças, mas a teimosia dos meus pais, em particular a minha avó, e também, porque o quartel já não servia de refúgio aos refractários, tinha que cumprir as condições do nosso Capitão, depois pouco a pouco o meu horizonte que antes estava confinado à vida da minha aldeia e arredores, foi-se abrindo as maravilhas da ciência e do mundo externo.

Mas como se costuma dizer, Deus escreve direito por linhas tortas, porque depois de tudo o que fizeram por nós, estava predestinado que ele e parte dos seus oficiais nunca voltariam à sua terra natal. Eis a razão desta homenagem, também, ao Cap. Carlos Borges de Figueiredo.

A toda a sua família e aos que o conheceram ou partilharam parte da sua vida e do seu percurso, quero expressar, em meu nome pessoal e em nome de todos os habitantes de Fajonquito, os meus sentimentos de pesar, mesmo que tardios e enaltecer o comportamento do Cap. Figueiredo, como homem e como militar que, a justo título, foi um comandante exemplar para a sua época, que veio, sem medo, para o cenário da guerra trazendo consigo a semente da paz; que sem descurar a defesa dos seus homens, transformou as operações militares em operações para a promoção do desenvolvimento; acreditou na capacidade dos mais novos para a construção de uma Guiné melhor sem esquecer a sabedoria dos mais velhos; que investiu parte dos poucos recursos de que dispunha numa derradeira tentativa de construção dos fundamentos do homem novo que a Guiné tanto precisava.

Carlos Borges de Figueiredo foi oficial e comandante que compreendeu como poucos e soube executar com mestria a nova filosofia que o Gen. Spínola queria com a sua politica por “uma Guiné melhor”.

Bissau, Agosto de 2014
Cherno Abdulai Baldé (Chico de Fajonquito).
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Notas do editor

(*) - Sobre o Cap Carlos Borge de Figueiredo, ver poste de Cherno Baldé de 14 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9041: Memórias do Chico, menino e moço (30): A propósito do poema K3, de Nuno Dempster: Relembrando dois malogrados capitães de Fajonquito, Carlos Borges Figueiredo (CART 2742) e José Eduardo Marques Patrocínio (CCAÇ 3549) (Cherno Baldé)

Último poste da série de 3 de Abril de 2014 > Guiné 63/74 - P12929: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (46): Depois do ataque

Guiné 63/74 - P13499: Notas de leitura (622): Trajectórias divergentes: Guiné-Bissau e Cabo Verde desde a Independência, na Revista "Relações Internacionais R:I", dirigida por Nuno Severiano Teixeira (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Fevereiro de 2014:

Queridos amigos,
O historiador Norrie MacQueen traça neste artigo o quadro das divergências que se acentuaram entre a Guiné-Bissau e Cabo Verde após o golpe de Estado de 1980.
Escrito e publicado em 2005, ano em que Nino Vieira teve uma reeleição inédita em África (um ditador eleito democraticamente) e em que Pedro Pires e o PAICV regressam ao poder, o autor justifica o abismo que separa os dois antigos camaradas de guerra, deixa claro que há um país africano à deriva e um outro país, a 500 km, que chega a ser requestado para ingressar ou se associar à União Europeia.

Um abraço do
Mário


Trajetórias Divergentes: 
Guiné-Bissau e Cabo Verde desde a Independência

Beja Santos

A revista “Relações Internacionais R:I”, dirigida por Nuno Severiano Teixeira, no seu número 8 (dezembro de 2005) publicou uma elaborada e judiciosa análise de Norrie MacQueen sobre o percurso e as substanciais divergências que se operaram na Guiné e Cabo Verde, depois da sua curta união (1974-1980). Norrie MacQueen já aqui foi falado, é professor na Universidade Dundee (Reino Unido) e autor de A Descolonização da África Portuguesa (Editorial Inquérito, 1998) de que oportunamente se fez recensão. Ver Poste 9643

Aquando do ato de declaração unilateral da independência da Guiné-Bissau e posteriormente de Cabo Verde, os líderes dos dois países declararam o propósito da unificação de ambos os territórios. Trinta anos depois, a Guiné oscilava entre crises políticas e intervenções militares endémicas e Cabo Verde parecia sonhar em ser um parceiro da União Europeia.

O historiador mergulha no passado das relações políticas em que o PAIGC era um único movimento de libertação: “Os cabo-verdianos constituíam, até certo ponto, a burguesia colonial da Guiné e, tal como pela África fora, essa foi a classe que, quando chegou a hora, forneceu a liderança ao movimento anticolonial. Em última análise, um relacionamento artificial, artefacto da história colonial que, retrospetivamente, tinha poucas hipóteses de sobreviver para além das lutas de libertação. O mito da unificação iminente durou escassos cinco anos após a independência. Mas, na realidade, os dois regimes haviam já muito aceite que a retórica da unificação pouco mais era do que um slogan político”.

E o autor enumera as disparidades: a população de Cabo Verde nunca foi considerada africana pelo Estado Colonial; o Estatuto do Indigenato nunca se aplicou a Cabo Verde e a cidadania portuguesa foi concedida aos cabo-verdianos muito antes de se ter generalizado no resto da África portuguesa.

A luta armada na Guiné foi uma verdadeira coqueluche internacional, mereceu uma atenção desproporcional considerando o seu tamanho ou a sua relevância económica ou estratégica, goste-se ou não, tudo começa e se desenvolve graças a Amílcar Cabral, à sua estratégia, à sua diplomacia, ao prestígio e credibilidade que ganhou na arena internacional. Na Guiné era quase total a ausência de europeus e o combate era do tipo unificado, não havia competição com outros grupos armados, cedo a FLING saiu do jogo. A maioria do mundo nutria consideráveis esperanças em relação à Guiné, escreve MacQueen. Existiam grandes expetativas de que, após a independência continuasse a servir de exemplo a outros países africanos a braços com os desafios de um mundo ideologicamente dividido e economicamente desigual. Mas a realidade não era bem assim: a coesão da luta não podia iludir que o povo Fula era conservador e muçulmano, encarava com circunspeção os objetivos revolucionários do partido; no interior do PAIGC eram claras as divisões entre os combatentes guineenses e os políticos cabo-verdianos. MacQueen considera que o assassinato de Cabral teve sobretudo a ver com as dissensões internas do PAIGC. A par deste jogo de enganos, a Guiné foi determinante para o 25 de Abril, escreve o autor que o detonador do movimento dos capitães foi a Guiné, começou por ser a principal causa de fratura entre Spínola e Caetano, os capitães receavam um desastre humilhante na Guiné já independente. A descolonização de Cabo Verde fora negociada e garantida pelo PAIGC com relativa facilidade, os negociadores portugueses nunca aferiram de que a unidade Guiné-Cabo Verde era um saco vazio.

Luís Cabral possuía pouca autoridade e quase nenhum carisma, a sua liderança foi medíocre, procurou superar os problemas internos com represálias e deixou que se acentuassem os conflitos interétnicos. O autor passa em revista o relacionamento entre a Guiné-Bissau e Portugal ao longo desses anos e do esforço de Cabral em melhorar as relações entre Portugal e Angola. O golpe de Estado de 1980 não abalou as relações com Portugal, grande fricção surgirá com as execuções de Paulo Correia e Viriato Pã, entre outros, em 1986.


 No tocante a Cabo Verde, cedo o regime do PAIGC com Aristides Pereira na presidência e Pedro Pires no cargo de primeiro-ministro, descobriu que não podia fazer alquimia revolucionária, Cabo Verde padecia de uma seca que durava há longos anos, o novo Estado dependia de fontes externas para suprir 90 % das suas necessidades alimentares, não podia subestimar que dependia grandemente das remessas da sua vasta diáspora. Ocupando o arquipélago um lugar estratégico no Atlântico, seguiu um modelo rigoroso de não alinhamento mas o pragmatismo levou-o tomar medidas que desagradaram à organização da unidade africana quando concedeu facilidades à África do Sul na utilização do aeroporto do Sal.

Os anos 1990 trouxeram uma mudança crucial, o fim da Guerra Fria trazia os ventos da democratização, na Guiné e Cabo Verde começou a preparação para a mudança rumo à democracia multipartidária. Na Guiné os progressos tardaram enquanto em Cabo Verde o ritmo do processo de democratização foi impetuoso, em 1991, o PAICV foi derrotado pelo Partido para a Democracia, houve novo presidente da República e novo Governo. Nino Vieira demorou o processo da democratização mas aceitou a liberalização económica.

Aquando da guerra civil, Nino pediu a intervenção do Senegal e da Guiné-Conacri e agarrou-se às iniciativas portuguesas por intermédio da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Cabo Verde teve um papel preeminente na crise, envolveu-se no Grupo de Contacto de Alto Nível. Nino Vieira deixou transparecer dúvidas quanto à motivação de Cabo Verde. “Em notória paranoia, Nino Vieira suspeitou da existência de uma conspiração luso-cabo-verdiana para o derrubar”.

E chegámos ao novo século, a Guiné precisava desesperadamente de estabilidade, que nunca chegou, basta pensar em Koumba Yalá, o descontentamento militar que levou ao assassinato do general Veríssimo Seabra e as eleições de 2005 que, segundo o autor, revelaram algo sem precedentes em África: a reabilitação democrática de um ditador de posto. E ele continua: “Parece que o cenário foi montado para assegurar a continuidade de um conflito entre facões na Guiné. A eleição de Vieira resultou essencialmente de processos negativos. Decorre de uma aliança tática dos partidos antiPAIGC ao nível político. Mas também resulta, em parte, do desespero sentido pelos votantes após anos de fraca e frágil liderança”. A trajetória de Cabo Verde continuou numa via divergente em relação à da Guiné. Pedro Pires regressou mas num clima globalmente distinto; o primeiro-ministro, José Maria Neves, cedo se impôs pela seriedade e competência. Na terminologia das Nações Unidas, Cabo Verde é um país “medianamente desenvolvido”. Na triangulação das relações Portugal/Cabo Verde/Guiné, o único eixo com solidez é o de Portugal/Cabo Verde. Que o leitor não esqueça que este artigo foi publicado em 2005: “O relacionamento Guiné-Cabo Verde afigura-se problemático, mas se calhar também é o menos significativo dos três. Com Vieira e Pires a ocupar as presidências de cada um dos países, é natural encarar-se um retorno aos tempos difíceis que marcaram o início dos anos 1980, quando o projeto de unificação caiu por terra”.
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Nota do editor

Último poste da série de 11 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13484: Notas de leitura (621): “Direitos Civil e Penal dos Mandingas e dos Felupes da Guiné-Bissau”, por Artu Augusto da Silva (2) Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P13498: "Francisco Caboz", um padre franciscano, natural de Ribamar, Lourinhã, na guerra colonial (Horácio Fernandes, ex-alf mil capelão, BART 1913, Catió, 1967/69): Parte III: Um periquito praxado com pornografia à mesa do comandante... E as primeiras impressões (más) de Catió e do destacamento de Ganjola...

Horácio Fernandes, ex-alf mil capelão (CCS/BART  1913, Catiói, 1967/69).

[ Foto à direita tirada pelo nosso saudoso Victor Condeço, 1943-2010, que foi fur mil mec armam, CCS/BART 1913].


1. Continuação da publicação do testemunho do nosso camarada, o grã-tabanqueiro Horácio Fernandes.que foi alf graduado capelão no BART 1913 (Catió, 1967/69) (*)

Esse tstemunho é um excerto do seu livro autobiográfico, "Francisco Caboz; a construção e a desconstrução de um padre" (Porto: Papiro Editora, 2009, pp. 127-162).

O Horácio Fernandes vive no Porto. Vestiu o hábito franciscano, tendo sido ordenado padre em 1959. Deixou o sacerdócio no início dos anos 70. É casado, tem 3 filhos. Está reformado da Inspeção Geral de Educação onde trabalhou 25 anos na zona norte. Em 2006 doutorou-se em ciências da educação pela Universidadfe de Salamanca, Espanha.

Foi o nosso camarada e amigo Alberto Branquinho quem descobriu o paradeiro do seu antigo capelão (*).Tenho a autorização verbal do autor (que de resto é meu parente e conterrâneo), dada por altura do nosso reencontro, 50 anos depois da sua missa nova (em 15 de agosto de 1959, em Ribamar, sua terra natal), para reproduzir esta parte do livro, relativa à sua experiênciade como capelão militar na Guiné, muito marcante e decisiva para o seu futuro como homem e como padre.

O livro já aqui foi objeto de recensão crítica por parte do nosso camarada Beja Santos (*).

Francisco Caboz é o "alter ego" do Horácio Fermandes (n. 1935, Ribamar, Lourinhã). O livro começou por ser uma tese de dissertação de mestrado em ciências da educação, pela Univeridade do Porto (1995): Francisco Caboz: de angfélico ao trânsfuga, uma autobiografia. Nesta III parte (pp. 139/143), o autor relata-nos como foi praxado à sua chegada a Catió... E descreve-nos também as suas primeiras impressões de Catié e do destacamento de Ganjola. /(LG)

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Guiné 63/74 - P13497: Recortes de imprensa (68): Notícia sobre o lançamento do livro "O Corredor da Morte", do nosso camarada Mário Gaspar, no Jornal Apoiar



1. Em mensagem do dia 7 de Agosto de 2014, o nosso camarada Mário Vitorino Gaspar (ex-Fur Mil At Art e Minas e Armadilhas da CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68), enviou-nos um exemplar do Jornal APOIAR de Maio/Junho onde consta a notícia do lançamento do seu livro "Corredor da Morte"(*).
Com a devida vénia ao referido Jornal, aqui fica a reprodução das páginas 8 e 9. 





Clicar nas imagens para permitir a leitura do texto
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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:

1 de Maio de 2014 > Guiné 63/74 - P13077: Agenda cultural (312): Convite para o lançamento do livro “O Corredor da Morte”, de Mário Vitorino Gaspar, no próximo dia 22 de Maio, 4ª feira, pelas 17h30, no Forte do Bom Sucesso, em Belém, Lisboa, com a presença, entre outros, do ten gen Joaquim Chito Rodrigues, presidente da Liga dos Combatentes, e do psiquiatra Afonso de Albuquerque, autor do prefácio

30 de Maio de 2014 > Guiné 63/74 - P13214: Notas de leitura (595): "O Corredor da Morte", pelo nosso camarada e tertuliano Mário Vitorino Gaspar, ex-Fur Mil Art MA da CART 1659 (Mário Beja Santos)

3 de Junho de 2014 > Guiné 63/74 - P13229: Agenda cultural (321): "Corredor da morte", de Mário Gaspar: a sessão de lançamento foi no passado dia 22, na presença de muitos amigos e de antigos combatentes... O autor irá promover o seu livro também no IX Encontro Nacional da Tabanca Grande, em Monte Real, no próximo dia 14
e
3 de Junho de 2014 > Guiné 63/74- P13230: Notas de leitura (597): Excerto do livro de Mário Gaspar, "O Corredor da Morte", cap 19: desmontando minas e armadilhas nos últimos dias de Gadamael, outubro de 1968

Último poste da série de 23 de Setembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12075: Recortes de imprensa (67): a situação, em Portugal, dos nossos camaradas guineenses (Deutsche Welle Africa)

Guiné 63/74 - P13496: In Memoriam (193): Manuel Vieira Moreira (1945-2014), ex-1º cabo mec auto, CART 1746 (Bissorã, Xime e Ponta do Inglês, 1967/69), natural de Águeda, poeta e amante do fado


Guiné > Zona leste (Bambadicna) > Xime > CART 1746 (1967/ 69) > O Manuel Moreira (1). Foto do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.


Guiné > Zona leste (Bambadicna) > Xime > CART 1746 (1967/ 69) > O Manuel Moreira (2). Foto do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.



Leiria > Monte real > VII Encontro Nacional da Tabanca Grande > 21 de abril de 2012 >Dois camaradas do Xime, o Manuel Moreira, à esquerda, o Sousa de Castro, à direita. Foto: cortesia do Sousa de Castro, editor do blogue CART 3494 & Camaradas da Guiné,


 1. O Paulo Santiago telefonou-me ontem, de  tarde,  e deu-me a triste notícia que já corre pelas moranças da Tabanca Grande: "Morreu o meu amigo e vizinho, e nosso camarada,  Manuel Moreira. Morte súbita. Tinha feito uma intervenção cirúrgica há pouco tempo. Vou mandar um email para o Vinhal" (*)

Manuel Moreira  foi 1.º cabo mec auto, CART 1746 (Bissorã, Xime e Ponta do Inglês, 1967/69), companhia comandada pelo nosso grã-tabanqueiro António Vaz, com quem acabei de falar por volta das 20h00, estava ele em Canhas de Senhorim, a passar uns dias em casa de um amigo de infância.

Embora fragilizado, física e psicologicamente, o António Vaz recebeu da minha boca a triste notícia de que a família da CART 1746 estava mais pobre, com o desaparecimento do Manuel Moreira. Confidenciou-me que tinha falado com ele há 15 dias. 

É, também ele,  António Vaz, um camarada que está a passar por um momento difícil, mas que tem revelado grande dignidade,  coragem e lucidez... "Luís, não estou nem pior nem melhor... O mais importante é que estou vivo"!...  Enfim, é mais um, de entre  muitos outros camaradas nossos, quie precisa do nosso carinho e alento. De vez em quando telefono-lhe e prometi-lhe reencontrarmo-nos em Lisboa, em setembro, depois das férias.

Mas voltando ao nosso já saudoso Manuel Moreira (que eu presumo que tenha nascido em 1945, a 29 de setembro): era natural de S. Martinho, Aguada de Cima, Águeda, e portanto vizinho quer do Paulo Santiago que do Victor Tavares. Havia  descoberto o nosso blogue há 6 anos, por volta de agosto de 2008. E foi justamente pela mão do seu vizinho Paulo Santiago que ele entrou na Tabanca Grande, três meses depois, em novembro de 2008 (**).

Foi um diunamizador e co-organizador, sempre generoso e entusiástico, dos encontros do pessoal da sua companhia. O último foi em Fátima, em maio último. Troquei com ele diversas mensagens, tendo-o conhecido pessolamente no nosso 7º Encontro Naciional, em 21/4/2012, aliás na mesma altura em que conheci o seu capitão, o António Vaz.

Incentivei-o a publicar algumas letras de fado de que era autor (por exemplo, a célebre Canção da Fome) e que já vinham do tempo da Guiné, dos sítios por onde passou (Bissorã, Xime, Ponta do Inglês). Tinha o gosto pela quadra popular, tendo esccrito uma espécie de diário em verso, com centenas de quadras populares... Infelizmente só publicámos umas tantas alusivas à emboscada, na Ponta Coli, em  14/11/1968, em que morreu o fur muil SAM Fernando Dias (***)., bem como algumas letras de fado.

Fica, aqui, uma das letras com que  o nosso  poeta de Águeda nos  brindou, e para a qual ele arranjou uma música, que vem muito a propósito, o Fado Primavera... (Peço-vos que oiçam a mgiostral interpretação de Amália...). Morreu o poeta e o amante de fado e com ele o projeto de um dia nos encontramo-nos,  ele, eu, e demais amigos e camaradas da Guiné, amantes do fado, para uma noite dedicada ao fado da guerra colonial...Oxalá as suas letras e fotos não se percam. Que a sua memória, essa, ficará connosco!...

Deixa cerca de 30 referências no nosso blogue. Para a família e amigos mais próxiomos, bem como para os camaradas da CART 1746 vão as nossas sentidas condolências. Até sempre, Manel!... LG

2. Sangue, Suor e Lágrimas

por Manuel Vieira Moreira

Adapt do Fado Saudade, silêncio e sombra
Letra: Nuno de Lorena: Música: Pedro Rodrigues: Fado Primavera (, ouvir aqui uma versão na voz ímpar de Amália Rodrigues)


Muitas noites tenho passado,
Na guerra bem acordado,
Por não conseguir dormir.
Com os olhos sempre alerta,
Pois é sempre pela certa
Que os turras cá possam vir. (Bis)

Certa noite fui acordado
E por estrondos alarmado,
Às duas da madrugada.
Mas rapidez é comigo,
Corri logo a um abrigo
P'ra responder de rajada. (Bis)

A nossa bela Nação
Defendo-a do coração,
Estas são as minhas dádivas.
Misturadas com a dor,
Lágrimas, Sangue e Suor,
Suor, Sangue e Lágrimas. (Bis)

Manuel Moreira

Xime, 20 de Dezembro de 1968

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Notas do editor:

(**) Vd. postes de:

27 de novembro de 2008 >  Guiné 63/74 - P3526: Tabanca Grande (99): Manuel Moreira, ex-1.º Cabo Mec Auto da CART 1746, Ponta do Inglês e Xime, 1967/69


(...)
285

O Novembro de 68
Foi o mês de pior sorte,
A Companhia sofreu,
Em Combate, a única morte

291

Mas 14 de Novembro
É a data mais lembrada,
Morreu-nos o Vaguemestre
Em terrível emboscada.

292

Ia em muitas colunas,
Comprar gado era a missão,
Pois ele era o responsável
Pela nossa alimentação.

293

Fernando Dias, de seu nome,
Furriel era o seu Posto,
Era muito popular,
Sentimos grande desgosto. (...)

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Guiné 63/74 - P13495: In Memoriam (192): Manuel Vieira Moreira (ex-1.º Cabo Mecânico Auto da CART 1746), faleceu hoje, dia 13 de Agosto, repentinamente.

1. Em mensagem de há pouco mais de duas horas, o nosso camarada Paulo Santiago deu-nos mais uma daquelas notícias que ninguém quer dar.


De manhã, pelas 11 horas, faleceu repentinamente, em sua casa, em S. Martinho - Aguada de Cima, o nosso tertuliano Manuel Vieira Moreira (ex-1.º Cabo Mecânico Auto da CART 1746 - Bissorã, Xime e Ponta do Inglês, 1967/69).

Mais informa o Paulo, que o funeral do nosso camarada Moreira é amanhã dia 14, quinta-feira, às 17 horas.


Manuel Moreira está(va) connosco desde Novembro de 2008, tendo a sua colaboração neste Blogue sido variada embora mais marcada pela sua poesia, donde se destaca a "Canção da Fome".


O seu último poste de Março deste ano é dedicado ao Fado da Despedida de Frei Hermano da Câmara, a que ele emprestou a sua letra.




Até um dia, camarada Moreira


Em nome da Tertúlia deste Blogue, enviamos à família enlutada os sentidos pêsames e a certeza de que amanhã pelas 17 horas, onde quer que estejamos, vamos dedicar um momento de recolhimento em memória do seu ente querido.
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Nota do editor

Último poste da série de 25 de Junho de 2014 > Guiné 63/74 - P13330: In Memoriam (191): António Manuel Martins Branquinho, natural de Évora (1947-2013), ex-fur mil at inf, CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71)... Para que a sua memória não fique na "vala comum do esquecimento"

Guiné 63/74 - P13494: Efemérides (172): Ainda o Naufrágio no Rio Geba em 10 de Agosto de 1972, aflorado no P10246

A propósito da passagem dos 42 anos sobre o "Naufrágio no Rio Geba", ocorrido em 10 de Agosto de 1972, que resultou na morte de três militares da CART 3494, lembrado pelo nosso camarada Jorge Araújo no Post 13482 de 10 de Agosto passado e pelo nosso camarada António José Pereira da Costa no Post 13493 de hoje, e seguindo a sugestão deste útltimo camarada, republica-se aqui e agora o primeiro Poste a aflorar o acontecimento, também de autoria do ex-Fur Mil Op Esp Jorge Araújo da CART 3494, o Post 10246 de 10 de Agosto de 2012. 

Os Editores
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1. Mensagem do nosso camarada Jorge Araújo (ex-Fur Mil Op Esp/Ranger da CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, 1972/74), com data de 9 de Agosto de 2012: 

Caríssimo Camarada Luís Graça, e restantes operacionais do nosso blogue:

Os meus melhores cumprimentos.

Serve o presente para anexar uma narrativa dos acontecimentos relacionados com o Naufrágio de 10 Ago 1972, no Rio Geba, envolvendo alguns militares da CART 3494.

Através desta metodologia pretende-se transferir o conhecimento individual de quem viveu de forma intensa aquele contexto, descrevendo-se um conjunto de detalhes julgados pertinentes com o objectivo de se conceber a sua história, agora que estão decorridos quarenta anos após esse acidente.

Ela é, ainda, mais uma pequena contribuição que é disponibilizada à opinião pública, por meio deste espaço plural de partilha, como é o caso da «Tabanca Grande», sobre as diferentes ocorrências registadas durante o conflito militar no CTIG, quer ela seja interpretada pelos ex-combatentes quer se trate da análise a realizar pelas gerações mais novas no âmbito multidisciplinar.

Obrigado pela atenção.
Jorge Araújo.
Ex-Furriel Mil Op Esp/RANGER
CART 3494
Xime-Mansambo
1972/1974


O RIO GEBA E O MACARÉU 

O NAUFRÁGIO NO DIA 10.AGO.1972

I – O NAUFRÁGIO NO RIO GEBA – 10.AGO.1972

No intervalo das duas emboscadas sofridas pela CART 3494 na Ponta Coli, local situado na estrada entre o Xime e Bambadinca, e já objecto de narração anterior (Postes 9698* e 9802*), focalizámo-nos hoje em mais um acontecimento que marcou a vida colectiva dos seus membros, em particular daqueles que directamente nele estiveram envolvidos, e que ficou conhecido, na história da Companhia e do Batalhão, como o Naufrágio no Rio Geba. 

Este episódio verificou-se exactamente a meio dos dois acontecimentos anteriormente assinalados, contabilizando-se um período de cento e onze dias entre cada um deles, o que é uma coincidência interessante. 

Durante alguns minutos vivemos entre a água e o céu, entre a terra e o inferno, entre a vida e a morte, sendo que esta última expressão/conceito viria a aplicar-se, lamentavelmente, a três dos catorze militares que naquela 5.ª feira, dia 10 de Agosto de 1972, faz hoje quarenta anos, tinham por missão fazer a travessia entre as margens esquerda e direita do Rio Geba, por esta ordem, com o objectivo operacional de sinalizar eventuais vestígios deixados no terreno pelo IN, vulgo reconhecimento à zona circunvolvente ao Destacamento de Mato Cão. 

Curiosamente, nessa mesma data, foi testemunhado o movimento de um meteoro, que se tornou conhecido como A Grande Bola de Fogo Diurna de 1972, sobre as Montanhas Rochosas do Sudoeste dos EUA em direcção ao Canadá e que, caso tivesse explodido (dizem os cientistas),  seria semelhante à explosão de Hiroshima (Bomba Atómica Little Boy), ocorrida em 03.Ago.1945, ou seja vinte e sete anos antes, e que acabaria por estar ligada ao términus da II Guerra Mundial concretizado oficialmente após a assinatura do armistício verificada em 02.Set.1945, na Baía de Tóquio. 

Entretanto, a travessia do Rio Geba, a iniciar-se no Cais do Xime, seria feita com recurso a um bote de fibra de vidro conhecido por Sintex, com motor fora de bordo de 50 Cavalos, sendo sugerida, como elemento de segurança, que a sua lotação não deveria ultrapassar a dezena de indivíduos, incluindo o barqueiro. 

Para se ter a noção deste tipo de embarcação, uma vez que não existem imagens reais da ocorrência, seleccionámos a foto ao lado, publicada pelo Correio da Manhã em 27.Jun.2010, na rubrica “A Minha Guerra”, e que serviu para enquadrar a História de Guerra contada pelo nosso amigo e camarada ex-alferes Joaquim Mexia Alves,  naquele órgão de comunicação social. 

Porém, tudo leva a crer que estamos perante o mesmo bote que foi utilizado naquele dia 10 de Agosto, uma vez que o ex-alferes Mexia Alves, ao ser nomeado CMDT do Pel Caç Nat 52 algum tempo depois, viria a ser colocado no Destacamento de Mato Cão, ficando este sob a jurisdição do BART 3873, e, portanto, dependente do seu apoio logístico. 

Com efeito, e porque ainda hoje subsistem algumas dúvidas sobre como tudo aconteceu, nomeadamente causas e efeitos das decisões tomadas pela linha de comando, este texto corresponde tão só e apenas ao que ainda guardamos em memória deste tema (e ainda bem que o ser humano tem memória), uma vez que também neste caso estivemos envolvidos até ao tutano. 

Procuramos, através da informação retida e das muitas imagens ainda bem presentes, caracterizar cada elemento do todo fenomenal, com o objectivo de acrescentar algo mais ao que já foi tornado público em outras ocasiões, em particular no Blogue da CART 3494 (vidé: poste 17 (10.fev.2009); poste 29 (22.mar.2009) e poste 44 (12.nov.2009). 

Tal como nos depoimentos anteriores, o método utilizado assenta numa estrutura organizada cronologicamente a partir de cada um dos diferentes momentos: o antes, o durante e o depois dos factos. 


II – O DIA 09 DE AGOSTO DE 1972

Tendo por cenário as ocorrências contabilizadas durante a primeira emboscada sofrida pela CART 3494, através do seu 4.º GComb, no dia 22.Abr.1972, levando-o a ficar inoperacional por algum tempo, como consequência dos diferentes graus de enfermidade e de inferioridade física de parte significativa dos seus elementos, foi decidido superiormente que transitaríamos de imediato para o 1.º Pelotão, em virtude deste GComb estar desfalcado de quadros de comando. 

Esta transferência, que no início tinha carácter provisório acabaria por ser definitiva, pelo que nos mantivemos neste pelotão até ao final da comissão de serviço no CTIG, justificada, em certa medida, pela transferência do seu oficial adstrito (ex-alferes Carneiro) para uma CCaç, e que, por motivos que desconhecemos, não viria a ser rendido. 

Assim, em conformidade com o plano das acções/missões atribuídas a cada pelotão, o dia 09 de Agosto de 1972 foi passado no cumprimento das diferentes tarefas logísticas internas como sejam a limpeza, recolha e abastecimento de água pelos diferentes abrigos e outros serviços de manutenção ao aquartelamento, sob a orientação operacional dos três furriéis do grupo: Godinho, Ferreira e eu próprio. Concluídas as diferentes missões, o restante tempo que faltava para encerrar o dia foi utilizado no jantar, na messe, e depois recolhemos ao nosso Tê Zero, procurando recuperar energias para o dia seguinte, já que a missão atribuída na escala era de intervenção, desconhecendo-se, naquele momento, o que estava previsto ou pensado para esse efeito. 

Já na posição horizontal, recebendo o ar fresco da ventoinha suspensa na estrutura da cabeceira da cama, eis que entra no quarto o ex-Furriel Ferreira, com ar de poucos amigos, contando que tinha sido chamado ao Gabinete do CMDT da Companhia, ex-Cap. J. A. Pereira da Costa, líder da CART 3494 desde 22.Jun.1972, recebendo instruções para preparar a sua Secção (Bazuca) reforçada com mais alguns elementos do Pelotão, com o objectivo de no dia seguinte, de manhã, participar num patrulhamento a efectuar na margem direita do Rio Geba, estando prevista a inclusão, na acção, do Major de Operações do BART 3873, ex-Major de Art. Henrique Jales Moreira. 

Perante os sinais de ansiedade transmitidos em cada frase emitida e o nervosismo sentido em cada movimento corporal, logo o questionámos – eu e o Godinho – o que se passa contigo? 

A resposta não foi imediata. Mas, depois de alguma insistência, afirmou sentir-se um pouco em baixa de forma. Perguntei-lhe se queria que eu fosse no seu lugar. A sua resposta foi afirmativa, deixando cair, então, um grande fardo que tinha sobre os seus ombros.

Questionado se já tinha dado instruções aos seleccionados para a missão, a sua resposta foi positiva. 

Passado algum tempo chega a informação de que o bazuqueiro, ex-Soldado Ricardo Teixeira (imagem ao lado), tinha ficado ferido durante o serviço de limpeza, em consequência de ter espetado um prego no pé, ao tentar compactar o lixo que se encontrava na viatura, deixando-o, assim, incapacitado para a tarefa agendada para o dia seguinte. 


III – O DIA 10 DE AGOSTO DE 1972 – o naufrágio no Rio Geba 

As actividades militares do dia em referência foram iniciadas com a concentração vs organização dos militares destacados para a acção identificada no dia anterior, grupo constituído por nove praças devidamente equipados para a missão, por mim próprio, a quem tinha sido entregue um rádio de transmissões AVP1, a que se juntou, no Cais do Xime, o CMDT da Companhia, ex-Cap. Pereira da Costa, o ex-Alferes Guimarães, em situação de Estágio Operacional e o ex-Major de Operações Henrique Jales Moreira, totalizando treze elementos. 
A este número faltava adicionar, ainda, o barqueiro do Sintex, perfazendo então um universo de catorze militares a transportar no bote que, como referido no ponto I, era aconselhada uma lotação máxima de dez indivíduos.

Parecendo estarem reunidas todas as condições operacionais para o sucesso da missão, embarcámos para o bote Sintex, distribuindo-se a totalidade dos elementos de modo equitativo, dando-se então início à navegação por volta das 09:00 horas. 

Depois de percorridas algumas dezenas de metros, verificou-se que o plano de água não permitia o avanço da embarcação, uma vez que o hélice do motor batia no fundo do rio, pois estávamos ainda na situação de baixa-mar, pelo que era necessário aguardar pela passagem do macaréu. Por isso regressámos ao local da partida, dando por concluída a primeira tentativa da travessia do Geba. 

Uma vez que o Aquartelamento distava do cais entre 250/300 metros, e a nossa presença não era necessária naquele contexto, decidimos ali regressar. Quando estávamos já no seu interior, muito perto da parada, depois de ultrapassada a porta de armas original, cujo modelo ou patente julgamos não ter sido registada, ouvimos um sinal sonoro no nosso rádio AVP1, que atendemos. O conteúdo da informação recebida dava conta da passagem do macaréu, pelo que se solicitava a presença de todos os militares no cais, para dar-se início a nova viagem. 
Contudo, foi com algum espanto e muita perplexidade que recebemos a notícia da passagem do macaréu, na medida em que conhecíamos mais ou menos bem a sua evolução no processo de enchimento da maré, devido à situação de proximidade com o rio, facto que suscitou em nós, desde o início, uma natural curiosidade pela observação deste fenómeno da natureza.

E o que é o fenómeno macaréu? 

A hidrografia explica que o macaréu é o choque das águas de um rio caudaloso com as ondas durante o início da maré enchente. 

Este fenómeno das marés, que dá origem à elevação do nível das águas oceânicas, faz com as mesmas invadam a foz dos rios, podendo formar ondas até dezenas de metros de largura, com três a cinco metros de altura, atingindo uma velocidade entre trinta e cinquenta quilómetros por hora. Esta poderosa massa de água que se transforma em onda pode durar entre quinze minutos e uma hora. 

Para além do Rio Geba, este fenómeno é observado em vários pontos dos cinco continentes, nomeadamente no Brasil, na foz do rio Amazonas e afluentes do litoral paraense e amapaense, como sejam os rios Araguari, Maicaré, Guamá, Capim e Moju, e na foz do rio Mearim, no Maranhão. 

Nessa região amazónica, esse fenómeno é designado por pororoca, mupororoca ou macaréu. Porém, outras designações são atribuídas ao mesmo fenómeno, com diferentes escalas, observado em diferentes rios do mundo, de que é exemplo o caso de Inglaterra, na foz dos rios Severn, Tamisa e Trent, conhecido por bore. Eis algumas imagens de cada um dos diferentes fenómenos. 


Na França, o exemplo observado na foz dos rios Gironda, Charante e Sena é conhecido por mascaret ou barre.

De regresso ao cais, as dúvidas suscitadas inicialmente quanto à oportunidade de dar-se início à travessia não se dissiparam, antes pelo contrário, elas ampliaram-se em função da qualidade de agitação da água do rio. Esta nossa avaliação era coincidente com a do Cabo Silva (um militar da Marinha, que durante mais de duas décadas viveu as experiências das diferentes marés por onde andou, por ter estado ligado às actividades dos submarinos) e que naquela ocasião se encontrava no cais, dirigindo os trabalhos de carregamento de madeiras para a embarcação civil CP10.

Esta conclusão resultou do facto de ter escutado a parte final da conversa havida entre aquele militar e o Major de Operações, em que o primeiro tentou convencer o segundo a não se fazer à água naquele momento, aconselhando-o a aguardar mais algum tempo de modo a diminuir o risco de um eventual acidente, mas sem sucesso. À ordem de avançar porque se fazia tarde, eis a mensagem que circulou, entrámos pela segunda vez no bote Sintex, mantendo-se a distribuição anterior. 

A partida aconteceu no local indicado na foto ao lado (Cais do Xime), agora em ruínas. 

O sentido da navegação corresponde igualmente à da imagem apresentada, sendo a margem esquerda aquela que se encontra à direita e a margem direita a que se encontra à esquerda. 

Demos, então, início à segunda tentativa da travessia do Rio Geba. Com a navegação a cargo do barqueiro, com o motor em funcionamento e com as águas muito agitadas, certamente que cada um de nós se interrogou quanto ao sucesso da aventuraem que tínhamos embarcado e que não tinha hipóteses de retrocesso. 

Logo nas primeiras dezenas de metros, os “palpites” começaram-se a escutar, na medida em que a embarcação não podia tomar o rumo certo. Uma ordem foi escutada: desligue-se o motor, o que foi acatado pelo barqueiro. Mas, mesmo assim, dava a sensação de que o bote continuava com o motor ligado, tal era a velocidade com que o mesmo deslizava naquelas águas revoltas. 

O pânico subia à medida que a embarcação se aproximava da cabeça do macaréu, cada vez com mais agitação e remoinhos à mistura. Naquele momento, um novo conceito surgiu no léxico dos militares, particularmente nas praças, que traduzia o sentimento que estavam a viver, ou seja “eu não sei nadar”, no princípio entredentes e depois mais audíveis e expressivos. 

O cenário começava, então, a ficar cinzento, diria mesmo muito cinzento no sentido da cor negra, independentemente de estar um dia óptimo, cheio de sol e com a temperatura ambiente a aumentar. 
A pergunta filosófica que, certamente, cada um formulou para si, era a de saber como poderíamos sair daquele imbróglio, sãos e salvos?

Entretanto, uma nova ordem foi dada, visando criar algumas réstias de esperança quanto à possibilidade de sobrevivência colectiva, apontando para uma “navegação o mais perto possível da margem esquerda”, ou seja, a mesma donde partíramos. Quando nos encontrávamos a cerca de quatro/cinco metros do tarrafo – zona de lodo ainda não submersa, e onde habitualmente a comunidade de crocodilos (alfaiates) se organiza em frisa apanhando os seus banhos de sol – eis que se escuta uma nova ordem: “haja um que salte para o tarrafo levando consigo as correntes do bote com o objectivo de o poder suster”. 

Olhando à minha volta, e perante a ausência de candidatos e/ou voluntários disponíveis para o cumprimento deste desiderato, eis que tomámos em mãos esse desafio. Porque a embarcação continuava instável face à movimentação das águas, o salto só poderia acontecer quando a distância entre o bote e o lodo fosse de molde a facilitar a operação proposta. 

Não sendo possível identificar o melhor momento para o salto, eis que no tempo «X» saltámos levando nas mãos a dita corrente já referida anteriormente. Durante o salto, feito de frente para o tarrafo, ouvimos, vindo da nossa rectaguarda, um ruído provocado pelo embate da proa do bote na parte mais alta do lodo, tendo como consequência a inclinação do mesmo projectando para a água todos os seus ocupantes, primeiro os que se encontravam no lado esquerdo da embarcação e depois os do lado direito, por efeito do desequilíbrio de peso que entretanto ocorrera (lei da física). 

Quanto a nós e na sequência do salto, ficámos de imediato enterrados no lodo até aos joelhos, procurando, mesmo assim, manter o controlo da embarcação através do uso da sua corrente, mas não por muito tempo. Face à diminuição da nossa resistência por via da força da maré, que nos conseguiu arrancar ao lodo arrastando-nos num espaço de alguns metros quase até à posição de «pino», não tivemos outra alternativa senão deixar o bote entrar à deriva. 

Como podem imaginar todo esta descrição corresponde a uma fracção de tempo diminuto entre alguns segundos e poucos minutos, mas que no terreno mais parece uma eternidade. 

Entretanto, na água, a luta era extremamente desigual entre o poder do homem e o poder da maré. Cada um dos militares, equipados e vestidos com os seus camuflados que lhes dificultava a mobilidade dentro de água, procuravam chegar a terra firme o mais rapidamente possível, pondo-se a salvo. E isso aconteceu a oito de um total de catorzes elementos. 

Dos seis em falta, três conseguiram entrar no bote: o barqueiro (nome que desconhecemos, pois era elemento da CCS), o Miranda (1.º Cabo de dilagramas) que remando com a sua sacola das granadas permitiu recolher o ex-Major de Operações Jales Moreira em situação muito difícil. E os três seguiram ao sabor da corrente na direcção de Bambadinca, local onde estava sediado o Batalhão. 

Os outros três elementos em falta eram: o José Maria da Silva Sousa, o Manuel Salgado Antunes e o Abraão Moreira Rosa, que acabariam por desaparecer nas águas barrentas do Rio Geba, sem que existisse qualquer hipótese de salvamento. No caso do José Sousa ainda o vi emergir três vezes. Mas como tinha em seu poder a bazuca e esta estava presa à paleta da camisa, provavelmente esta situação não lhe foi favorável, dificultando-lhe ainda mais os movimentos. 

Para além de não se ter concretizado a travessia, de o grupo ter ficado fraccionado e com baixas, de termos ficado desarmados e sem meios de comunicar com a nossa Companhia, tínhamos ainda pela frente um longo caminho a percorrer até chegarmos ao nosso Aquartelamento, no Xime. 

Assim, os oito elementos que estavam aparentemente a salvo, mas ainda dentro de água tentando localizar alguma das armas perdidas, tinham ainda pela frente um osso difícil de roer, passe a imagem metafórica, uma vez que faltava transpor o obstáculo tarrafo até chegar a terra mais sólida. 

E a primeira dificuldade com que nos deparámos tinha a ver com a necessidade de percorrer cerca de quinze metros de lodo extremamente mole, num momento em que as águas continuavam a subir a um ritmo veloz, e em que o movimento de elevação de cada perna, correspondente a cada passo, era sempre maior que o anterior, fazendo lembrar que estávamos perante um contexto de areia movediça. 

Após os primeiros passos, não nos restava outra alternativa senão tentar nadar no lodo, agora cada qual em tronco nu mas com os seus objectos sob controlo (roupa, cinturão e carregadores). Na sequência de cada braçada, esses objectos eram arremessados para a frente, para depois se efectuar nova braçada e novo arremesso. Todo o nosso corpo era lodo: o cabelo, o rosto, a boca, os membros, etc., etc., etc.. Para percorrer os tais quinze metros de tarrafo, aproximadamente, foram gastos cerca de vinte e cinco minutos, o que diz bem das dificuldades sentidas. A meio da viagem, por efeito de estar verdadeiramente exausto, pensei que já não seria capaz de ali sair. A força e a energia tinham-se esgotado. 

Depois de um curto descanso a pedido do corpo e da mente, aconteceu um novo impulso antes da última transcendência (a morte), conseguindo então chegar ao fim da linha. Espalhados ao longo do lodo encontravam-se ainda os meus sete camaradas, cada um lutando para ultrapassar as suas dificuldades. 

Fazendo uso da faca de mato, que usávamos presa ao cinturão, procedemos ao corte de alguns troncos dos arbustos existentes na zona, arremessando-os na sua direcção, visando facilitar a mobilidade nos últimos metros da tortura. Os pequenos troncos, porque foram colocados entre os corpos e o tarrafo, funcionando como estrado, acabariam por provocar ligeiros ferimentos, particularmente no peito e zona abdominal, devido às suas saliências. 

Tendo saído vitoriosos da primeira batalha, outra seguir-se-ia, mas esta sem alvo pré-definido, uma vez que o itinerário era desconhecido, impondo-se, então, uma decisão quanto ao rumo a tomar (sentido de orientação). É que estávamos no início de uma bolanha (exemplo: imagem ao lado) e tanto quanto o horizonte visual nos permitia enxergar, não víamos alma nem qualquer vestígio da presença humana. 

Avançámos de forma empírica corrigindo a direcção por simpatia, sabendo-se, no entanto, que aquela zona estava sob controlo das NT, e que provavelmente estávamos em presença da bolanha de Nhabijões, o que se veio a confirmar depois. 

Durante a caminhada, sob um sol abrasador e com uma temperatura a rondar os 35/40 graus (a estação da época era a das chuvas), a resistência de cada um de nós voltou a ser, uma vez mais, posta à prova, concluindo-se que o humano não conhece os seus limites. A exaustão e a desidratação eram compensadas com um mergulho na bolanha a cada dez metros, distância suficiente para fazer secar os corpos e a roupa. Passado algum tempo não cronometrado - esse detalhe não era importante naquela situação - avistámos ao longe umas chapas de zinco brilhando por efeito do sol, tendo seguido nessa rota. Estávamos então nas traseiras da Tabanca de Nhabijões. Aí chegados, impunha-se conquistar uma merecida sombra e a ingestão de líquidos e de alguns alimentos. Mas há falta de recursos, bebemos água e eu comi uma lata de salada de frutas de conserva que jamais esquecerei. 

O CMDT do pelotão aí residente estranhou a nossa presença, pois não sabia do que nos tinha acontecido. E foi a partir desse momento que sinalizámos a nossa existência na rede de comando, solicitando uma viatura para nos transportar até ao Xime, onde chegámos a meio da tarde. 

À chegada, foi-nos confirmado o desaparecimento dos três camaradas anteriormente referenciados, bem como a ancoragem do Sintex no Cais de Bambadinca transportando os três elementos que nele entraram para uma viagem única em que foi aproveitada a força da maré. 

Entretanto, e porque o ex-Major de Operações Jales Moreira foi o primeiro a dar a notícia da ocorrência, logo se providenciou no sentido de se mobilizarem os meios operacionais, nomeadamente a partir dos recursos humanos da CART 3494. Sob o comando do ex-Cap. Pereira da Costa foi encetado um novo patrulhamento com maior incidência na zona do naufrágio, visando encontrar os corpos dos militares afogados, mas sem sucesso. Esta acção contou com o apoio de meios aéreos. 

O regresso ao Xime aconteceu já de noite. 


IV - CAUSAS/EFEITOS DO NAUFRÁGIO

O dia seguinte foi vivido, por todos, sob o efeito das diferentes ocorrências do dia anterior, todas elas contribuindo para um estado de espírito francamente negativo, em particular pela perda, de uma assentada, de três membros do nosso grupo, num acidente inquestionavelmente estúpido, como são todos aqueles que poderiam ser evitados. Deste modo, a angústia e a ansiedade dominaram este e os dias seguintes, desenvolvendo-se a crença e/ou a expectativa dos corpos dos desaparecidos poderem ser recuperados. 
Essa crença e/ou expectativa apenas se concretizou uma vez, lamentavelmente.

Decorridas mais de trinta horas após o acidente foi localizado um corpo/cadáver junto ao Cais do Xime (imagem ao lado); era o do José Maria da Silva Sousa (o bazuqueiro).

O seu corpo estava desnudo e em processo de transformação, o que é natural neste tipo de ocorrência. O seu comprimento aumentara substancialmente, ultrapassando largamente os dois metros, assim como o seu peso, agora com valores a rondar os cento e cinquenta quilos. 

Dois dias depois procedemos à realização do funeral, numa tarde de autêntico dilúvio e com direito a Honras Militares, ficando o seu corpo sepultado no cemitério de Bambadinca, conforme se demonstra na foto ao lado, cedida pelo ex-1.º Cabo Condutor Auto – Abílio Soares Rodrigues. 

Durante mais alguns dias, todos os olhares estiveram direccionados para o Rio Geba, esperando que ele nos devolvesse os restantes corpos, mas em vão.
Entretanto, devido a ter-se verificado mortes e desaparecido material de guerra, foi decidido pelo CMDT do Batalhão 3873, ex-Tenente-Coronel Tiago Martins (que já não está entre nós) a abertura de um Auto de Averiguações, que decorreu durante os primeiros meses, tendo sido consultados/inquiridos os militares envolvidos neste acidente. 

Treze meses depois do naufrágio – Setembro de 1973 – fomos convocados para comparecer no Tribunal Militar Territorial, em Bissau, para participar no acto de julgamento do processo, tendo como Réu o ex-Major Henrique Jales Moreira, e na qualidade de testemunhas oculares, eu próprio e o 1.º Cabo Miranda. 

Tratou-se de uma nova aventura e de uma grande experiência que não gostaríamos de repetir, em função do ambiente em que decorreu. 

O veredicto final do Tribunal determinou a absolvição do Réu. 

Por último, resta-nos referir que esta nova história que ousei narrar sobre um tema sensível no contexto da CART 3494 / BART 3873, escrita na primeira pessoa e que agora vos dei a conhecer, ocorrida durante o projecto militar desenvolvido no CTIGuiné (1972/1974), ficará gravada indelevelmente para sempre na minha história de vida, na medida em que é difícil fazer-se o seu luto. 

Em cada um dos diferentes momentos foi possível retirar lições de vida, ajudando-nos a melhor compreender os desempenhos socioculturais e sociopolíticos do ser humano. 

Assim, deixo à consideração de cada um dos leitores a competente avaliação do valor do escrito e das lições que dele julguem poder retirar. 

Um grande abraço para todos, e até à próxima história. 
Jorge Araújo.
Agosto/2012.
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Nota do editor

Último poste da série de 10 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13482: Efemérides (171): Relembrando o naufrágio no Rio Geba, no dia 10 de Agosto de 1972, em que perderam a vida três camarada da CART 3494 (Jorge Araújo)

Guiné 63/74 - P13493: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (12): Como vejo o 10 de Agosto de 1972

1. Mensagem do nosso camarada António José Pereira da Costa (Coronel de Art.ª Ref, ex-Alferes de Art.ª na CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69; ex-Capitão de Art.ª e CMDT das CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, e CART 3567, Mansabá, 1972/74), com data de 12 de Agosto de 2014:

Olá Camarada
Pareceu-me grande demais para inserir como comentário.
Por isso, segue em anexo "A Minha Guerra a Petróleo n.º 12".

Um Ab.
António J. P. Costa



A MINHA GUERRA A PETRÓLEO

12 - Como vejo o 10 de Agosto de 1972 

Ficámos ali junto à margem do Geba, no tarrafo, e reagrupámo-nos. Ainda vimos o sintex à deriva com alguns homens a bordo. Fiquei logo a saber que faltavam três camaradas e não os vendo por ali, decidi que iríamos em direcção a Nhabijões, cujos telhados de zinco brilhavam ao Sol. A progressão foi difícil, porque a bolanha, entre o rio e a tabanca, estava muito alagada. Além disso, o Sol estava muito forte – já passava das 11 da manhã – e o esforço de quem tinha andado dentro de água e agora progredia com o equipamento e o uniforme molhados, era redobrado.

Perto da tabanca, as crianças que por ali brincavam, fugiram quando nos viram. Não sei se de medo se para irem informar a guarnição da tabanca. Fomos recebidos pelo alferes do Reordenamenmto, cujo nome não fixei e fomos tomar duche vestidos, tal era a quantidade de lama que levávamos em cima.


Foto © de Jorge Araújo

Depois dirigimo-nos para a estrada onde fomos recolhidos por uma coluna da CCaç 12 que vinha de Bambadinca, comandada pelo 2.º Cmdt, major Sousa Teles. Dirigimo-nos ao Xime onde deixei o pessoal que estava comigo. Aqui tenho “uma branca” de algum tempo. A idade não perdoa e eu já falei com o Araújo que também não sabe explicar o que se passou.

Sei que fui Bambadinca e vi que havia um helicóptero que serviria para fazer um reconhecimento à área do acidente. Ainda havia a possibilidade de algum dos desaparecidos ter ficado perdido e exausto no tarrafo. Fiz o reconhecimento aéreo e sugeri ao comandante que batêssemos a zona a pé à procura de sobreviventes. Pedida autorização à BA 12, fui largado com o furriel Domingos (homem muito generoso) e três soldados da CCaç 12 nas imediações do local do naufrágio.

Cabe aqui referir que o piloto era um meu ex-colega de liceu Passos Manuel – o Luís Cabanelas – que, em vez de nos largar a cerca de 4 metros, como era “do regulamento” deixou-nos a cerca de um metro. O terreno e a área da operação permitiam-no e evitámos o pancadão, o que, para mim que estava consideravelmente cansado, foi uma boa ideia.

Eu levava apenas a espingarda e os carregadores emprestados pelo comandante, sem qualquer outra espécie de equipamento. Vim depois a aperceber-me de que nem lenço levava. Estava previsto que, no final da batida à margem do rio, seríamos recuperados pelo helicóptero, se o tempo o permitisse, ou, pelo rio, por um sintex, se assim não fosse.

Batemos a margem do rio para montante e jusante e não encontrámos o menor sinal de vida. Entretanto, o helicóptero partira e nós começámos a cortar ramos para podermos chegar o mais à frente possível sobre o lodo, quando o sintex nos viesse recuperar. Era o que esperávamos.

Entretanto, por razões que não consegui determinar, perdemos o contacto rádio com comando do BArt 3873. A noite caiu e tendo falhado o contacto rádio com Bambadinca, entrei em contacto com o Xime e procurei fazer sair um GrComb que viesse recuperar-nos pela estrada. Subitamente, as comunicações com Bambadinca restabeleceram-se e recebemos ordem de para ali nos dirigirmos. O percurso a fazer era maior do que para o Xime, mas começámos a progressão debaixo de uma chuvada tropical acompanhada de trovoada que deixava o céu iluminado durante segundos, de um tom róseo depois de a faísca ter caído.

Aproximámo-nos de Bambadinca num percurso em que mal se via o caminho e orientando-nos somente pelas luzes dos aquartelamentos. Já perto do quartel fomos recolhidos por um pequeno grupo da CCaç 12, sob o comando do capitão Bordalo Xavier, que, com um petromax à cabeça, nos ia orientando.

Já agradeci ao ex-alferes Cabanelas e ao capitão Bordalo, pessoalmente, o apoio que nos foi dado. Deixo-o agora aqui também em público.

Como entrei no quartel não me lembro. Lembro-me que a esposa do comandante ficou admiradíssima de quanto eu estava molhado e concluiu que “felizmente, eu só tinha 25 anos”

Tomei uma bica no bar de oficiais e tenho presente uma cena em que eu sentado no chão do quarto do major Sousa Teles estou a despir-me revoltadíssimo e ele a tentar acalmar-me. Efectivamente, se as minhas relações com o comando já não eram boas, a partir daí… pioraram.

Regressei ao Xime com uma farda n.º 2 que me emprestou.

Depois, foi feito o relatório da acção que eu contestei, enviando a minha versão às mesmas entidades que o tinham recebido emitido pelo Batalhão.

Entretanto, apareceu o corpo do Sousa a boiar no rio. Éramos oito a tirá-lo e eu quero repetir um pouco do meu texto “As Idas ao Fiofioli” (que publiquei no blog) para prestar homenagem à generosidade do alferes Gomes, que tanto sofreu, na sua inadaptação à vida militar:

Quando retirámos da água o corpo sem vida do Sousa, afogado no Geba, queria, recorrendo aos toscos conhecimentos dum primeiro ano de medicina incompletissimamente estudado, retirar do corpo, a água que impedia que fosse metido no caixão. O Sousa acabou por ser sepultado em Bambadinca, dentro de um caixote de bacalhau, ao fim de vários dias de espera pelos ferros e luvas de autópsia que permitissem aproximar o corpo das suas dimensões normais.(1)

As consequências do relatório e contra-relatório não se fizeram esperar. E de tal forma que, no domingo posterior ao naufrágio, um helicóptero demandou o Xime. A bordo, um alferes para a companhia – que tinha falta deles – o adjunto-operacional do general Spínola e o comandante da Defesa Marítima da Guiné. Queriam ver o macaréu que, por casualidade, nesse dia, seria o maior do ano. Assim o dizia a tabela das marés que até dava a hora de passagem em Caió.

Recebi-os e descemos ao cais. Tranquilamente, o barqueiro Adelino navegava no rio. O oficial da marinha mandou-me avisá-lo de que o macaréu estava a aproximar-se. Assim fiz e o Adelino, no seu melhor sorriso gritou, do meio do rio:

- “Ah! Nosso captão inda falta”!...

Calmamente, remou para a margem, atracou o dongo e descarregou o que trazia. Cumprimentou-nos com vénia e continuou o seu caminho. Nós ficámos ali a ver e do macaréu… nada.

Por fim, com um atraso apreciável surgiu um macaréu de altura verdadeiramente “júnior” e que não correspondia às características indicadas na tabela. A Natureza tem destas particularidades!

Entretanto, após um período de “averiguações sumárias” entrou-se num processo de corpo de delito. Fui, como já disse, ouvido como declarante, assim como todos os outros ocupantes do sintex.

Deixei a CArt 3494 em Novembro de 1972 sem nada saber da marcha dos autos. Nunca mais fui inquirido, nem por deprecada, acerca do sucedido. Soube depois do desfecho e, só recentemente, o Jorge Araújo fez um esforço para determinar a data e os detalhes do julgamento.

Preparei este texto que sintetiza a minha visão sobre o sucedido no dia 10 de Agosto de 1972 na margem esquerda do Geba.(2)

Um Abraço
António J. P. Costa
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Notas do editor

(1) - Vd. poste de 13 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5456: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (1): Esta noite fomos ao Fiofioli

(2) - Vd. poste de 10 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13482: Efemérides (171): Relembrando o naufrágio no Rio Geba, no dia 10 de Agosto de 1972, em que perderam a vida três camarada da CART 3494 (Jorge Araújo)

Último poste da série de 6 de Julho de 2013 > Guiné 63/74 - P11810: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (11): Ainda o poste do Cherno Baldé e outros

Guiné 63/74 - P13492: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (87): João Neves, sócio da empresa de transportes rodoviários de mercadorias João Manuel M. Neves Lda, com sede em São Bernardo, Aveiro, esteve em 1974, em rendição individual, na Ponte Caium, setor de Piche, com malta do 3º Gr Comb / CCAÇ 3546 (1972/74), "Os Fantasmas do Leste", e quer encontrar-se com essa malta... Ao fim de 40 anos, e através do nosso blogue, descobre esse elo perdido!



Guiné-Bissau > Região de Gabu > Piche > Ponte Caium > Memorial aos mortos da CCAÇ 3546 (1972/74): "Honra e Glória: Fur Mil Cardoso, 1º Cabo Torrão, Sold Gonçalves ["Charlot"], Fernandes, Santos, Sold AP Dani Silva. 3º Gr Comb, Fantasmas do Leste. Guiné- 72/74"...

Foto: © Eduardo Campos (2010). Todos os direitos reservados

1. Mensagem do nosso leitor (e camarada) João Neves

De: João Manuel M. Neves, Lda

Data: 11 de Agosto de 2014 às 16:57

Assunto: Ponte Caium

Olá boa tarde

Sou João Neves e sou de Aveiro.

Finalmente consegui o elo de ligação que procurava há cerca de 40 anos

Estive na Ponte Caium,  no pelotão dos Fantasmas em 1974,  em rendição individual, com colegas da CCaç 3546 e teria o maior gosto em me encontrar com todos esses colegas que lá estiveram comigo.

Agradecia que logo que haja essa oportunidade me informasse . Possivelmente será um dia dos mais felizes da minha vida voltar a encontrar essa malta

Ficarei-lhe sempre grato

Um abraço e fico a aguardar

Sou João Neves.


2. Comentário de L.G.:

Localizei na  Net a empresa do João Neves, com sede em São Bernardo, Aveiro.  Aqui ficam alguns dados que poder ajudar os interessados a chegar à fala com o João;:

(i) A empresa, de transportes rodoviários de mercadorias João Manuel M. Neves, Lda, tem sede na Rua Anselmo Lopes 101, São Bernardo, Aveiro, 3810-209 Aveiro;

(ii) Contactos:

GPS: 40.624585,-8.624764
Telefone: 234 341 58
Fax: 234 342 743

O João Neves fica automaticamente convidado para integrar a nossa Tabanca Grande donde já constam vários camaradas que passaram pela famosa Ponte Caium e que pertenceram ao 3º Gr Com ("Fantasmas do Leste") da CCAÇ 3546, como o Jacinto Cristina (Ferreira do Alentejo), o Carlos Alexandre (Peniche) ou o Florimundo Rocha (Lagoa).

Vou tentar saber quando é o próxmo encontro da CCAÇ 3546 (Piche, 1972/74).

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Nota do editor:

Último poste da série > 11 de julho de 2014 > Guiné 63/74 - P13388: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (86): A banda musical portuguesa Melech Mechaya de novo em terras escandinavas, Finlândia e Suécia (José Belo, régulo da Tabanca da Lapónia)