quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Guiné 63/74 - P13680: Manuscrito(s) (Luís Graça) (40): Selfies /autorretratos: o meu amigo F..., pintor, e eu... Queria que fôssemos, a salto, até Paris, em 1965...



Guiné > Região de Bafatá > Contuboel > Junho de 1969 > O fur mil armas pes inf Luís Manuel da Graça Henriques, CCAÇ 2590/CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, 1969/71).

Fotos e texto: © Luís Graça (2014). Todos os direitos reservados.


Luís (*):

Eu tinha nascido no ano zero. 1945.
Lembro-me de teres escrito isso,
muitos anos depois, 
no catálogo da minha primeira exposição de pintura no SNI... 
Lembras-te, em 1965 ?!... 
Ainda pensámos em dar o salto até Paris, 
éramos vagamente existencialistas, 
anticolonialistas 
e anti-imperialistas, 
eu sonhava com Montmarte,
a boémia
e as copines das belas artes
(o meu lado mulherengo!),
enquanto tu devoravas o Camus e o Sartre!...
Tinhas a mania da filosofia e eu da pintura...
Não conseguimos convencer o nosso gestor de conta 
a financiar este inconsistente projecto de aventura.
Tu eras mais politizado 
e, sobretudo, mais realista do que eu:
– E os nossos pais ?
E a PIDE (, mais tarde DGS) à perna ?
E a Guardia Civil antes de chegares aos Pirinéus?
E os dez contos de réis para dares ao passador ?
E vais fazer o quê, em Paris ?
Trabalhar como maçon ?
E dormir no bidonville ?
E comer baguetes com marmelada ?

1945… 
Ano zero da idade atómica, 
escreveste tu no catálogo do SNI.
Hiroshima. 
O cogumelo. 
O horror. 
Mas também o fim da guerra. 
Libération!, proclamavam, eufóricos,  os franceses. 
O fim do pesadelo da ocupação nazi. 
O direito à esperança,
em toda a parte, incluindo a nossa terra.
O recomeço da humanidade… 
As palavras continuam a ser tuas,
que sempre tiveste muito mais jeito para a escrita do que eu,
e vinham no meu catálogo 
que até estava bonito,
não estava ?! ... 

Ah!, 1945, que raio de ano para se nascer, 
o fim de uma época, o início de outra… 
Que ilusão, meu amigo, 
tu que me chamavas o Renoir de Montemuro… 
só por que eu andava no 1º ano das Belas Artes
e fazia umas coisas démodées,
vagamente impressionistas,
já a caminho do abstracionismo... 
Enfim, aprendiz de Renoir, 
talvez imitador da Vieira da Silva,
de que só conhecia umas reproduções de má qualidade.
Ainda ganhei uns tostões com serigrafias,
havia gentinha com dinheiro fresco
que comprava tudo...

Na minha cédula pessoal, 
um nota a lápis já meio sumida,
letra talvez de regedor, de merceeiro, de padre 
ou de conservador do registo civil...
Qualquer coisa como 
mais uma boca com direito a senha de racionamento. 
Milho, açúcar, farinha, azeite… 
Havia racionamento de géneros por causa da guerra, 
a II Guerra Mundial. 
Lembras-te ? 
Talvez não,
nasceste depois, já em 47,
na Lourinhã (, se bem me lembro,)
já não apanhaste esses tempos que foram duros 
para os nossos pais e irmãos mais velhos.

Nesse mesmo ano e mês em que nasci, 
acabava de regressar da Índia 
(da Índia portuguesa, como então se dizia, 
englobando os territórios de Goa, Damão e Diu) 
o filho do francês
o cabo chefe da aldeia 
e um dos poucos que sabia ler, escrever e contar. 
Tinha uma pensão do ministério da guerra,
fora gaseado na Flandres, 
regressara tuberculoso e herói de La Lys. 
Admirava o Pétain, o Franco e o Salazar. 
Vociferava contra  a malta do reviralho,
os que eram contra a situação, como então se dizia. 

Era meu padrinho.
Por favores que lhe deviam 
(e deferências que lhe prestavam) 
os meus pais, 
nunca soube quais, 
nem nunca quis saber. 
Quando comecei a pensar pela minha própria cabeça, 
passei a detestar as relações de clientelismo e dependência 
que vigoravam na minha aldeia. 
Na minha aldeia da Serra de Montemuro, 
uma aldeia de pastores 
que não era muito diferente de tantas tabancas fulas 
que depois irei conhecer na Guiné, no Gabu… 
Ainda hás-de visitar a minha aldeia, 
num próximo verão em que fores lá cima ao Norte… 
Em agosto, no teu querido mês de agosto,
como tu lhe chamas,
num escrito, algures, que eu li no teu blogue…
Mas já nada tem a ver 
com a aldeida da minha infância
nem com as invernias agrestes daquele tempo.

Havia sempre festa na aldeia 
quando um filho regressava das colónias, 
mais tarde, do Ultramar. 
No nosso tempo, Ultramar, como bem te lembras. 
Quando puto, imagina, 
ainda sonhei ser missionário, 
e ajudar a converter os pretinhos 
lá nas missões de Além-Mar. 
Problemas de pulmões impediram-me de seguir 
essa vocação precoce...
Estás-me a imaginar de sotaina branca
e longas barbas pretas,
não estás ?! 
E acabar, santo e mártir,
frito no caldeirão de uma tribo de canibais!... 
Ah! Como era rica e delirante a nossa imaginação de putos!…
Não sei quem me metei essa ideia maluca na cabeça,
por certo o padre da freguesia, a catequista ou a professora...
Mas a serra de Montemuro,
Resende, Cinfães, Arouca, Castro Daire, Lamego,
deu muita gente para as colónias 
e depois para a guerra,
mas também para a emigração.

Em 45,  os tempos ainda eram bem duros, 
escondia-se, dos fiscais do Governo, 
na serra, nas minas,
o milho, os cabritos e os anhos,
como sempre se escondera
de todos os invasores e usurpadores. 
Isso contavam os meus pais. 
Mesmo assim fazia-se festa rija. 
O foguetório não era como hoje, 
nesse tempo era um luxo. 
Lançavam-se uns petardos, 
de pólvora seca,
não havia dinheiro para mais nada. 
Só no São João,
era a altura em que se fazia algum dinheirito. 
Os cabritos e os anhos do São João
ajudavam a compor o tísico orçamento das gentes da minha aldeia. 
Iam para o Porto, de comboio, pela linha do Douro, 
ou até nos barcos rabelos, 
embarcados no ancoradouro de Porto Antigo,
à boleia de algum patrão, amigo, compadre ou conhecido.
Ainda não havia as barragens, 
e o Douro era belo, puro, duro e selvagem… 
Hoje está completamente amansado.

O francês, meu padrinho, emprestava dinheiros a juros. 
Era o banqueiro do povo, diríamos hoje. 
Negociante de gado ou, melhor, intermediário.
Antes disso, ganhara muito dinheiro
no garimpo e no contrabando do volfrâmio,
com um sócio de Moncorvo,
seu antigo camarada de armas,
também "francês". 
Era, além disso, o dono da única mercearia da aldeia, 
com um anexo, misto de café e tasco, 
onde se podia ouvir a Emissora Nacional, 
através do único rádio existente ali e nas redondezas… 
Enfim, uma espécie de rádio, uma galera… 
Ele era engenhocas. um homem de vida, 
e, sobretudo, dava-se bem com gente graúda: 
por exemplo, um tal major de Porto Antigo, 
que, segundo se dizia, descendia do Serpa Pinto 
e estava bem colocado nos meios políticos e militares da época. 
A esposa desse tal major mandava cartas ao Salazar, 
contava a minha mãe, sempre atenta a 
(mas não menos temerosa de) 
os fios com que se costurava o poder. 
Nem por isso o meu padrinho metera uma cunha 
para livrar o filho da tropa,
durante a II Guerra Mundial. 
O rapaz esteve em Goa, como expedicionário,
com muito orgulho do pai 
e maior mágoa da mãe.

Já doente, com setenta e muitos anos, 
o meu padrinho soube da minha partida para África,
em 1968,
depois de eu ter chumbado em Belas Artes.
Eu nunca lhe pedira nada,
e muito menos agora 
lhe iria pedir que me safasse de ir parar à Guiné. 
Nem ele era homem
para aceitar um pedido desses, 
mais do que humilhante, 
inconcebível, para ambos.

Proibi, inclusive, os meus pais de o fazerem por mim. 
Tinha a mania dos princípios, dos valores, da palavra dada,
e da coerência, 
coisas que hoje não vejo ser valorizadas 
pelos mais novos, 
por exemplo os meus filhos e sobrinhos.

Quando voltei, deficiente, no verão de 1970, 
já ele tinha acabado de morrer. 
Ele e o Salazar,
que eu penso que ele nunca terá conhecido pessoalmente,
mas de quem era um admirador completamente acrítico.
O seu maior desgosto na vida 
terá sido um dos netos 
que devia seguir as peugadas do pai, 
advogado no Porto, bem de vida. 
Numas férias de verão, em meados de 60,
o neto ficou em Londres, a lavar pratos,  
e em setembro estava na Suécia. 
Foi dado como refratário ou desertor, 
não te sei dizer ao certo, 
que eu de RDM fiquei farto até aos cabelos. 
Como estava a estudar na Faculdade de Direito,
em Coimbra, 
beneficiava do adiamento da data de incorporação,
tal como eu, de resto.
Eu sei que nessa época ninguém escapava à guerra, 
até filho de general era mobilizado, diziam. 
Nunca conheci nenhum, 
nem general nem filho,
a não ser o Schulz e o Spínola,
mas não sei se esses tinham filhos em idade de ir para a tropa.
Imagino que, na pior das hipóteses, 
ficariam na guerra do ar condicionado: 
em Bissau, em Luanda, em Lourenço Marques…

O avô, pelo menos publicamente, 
viu na traição do neto uma desonra para a família,
e para a terra,
que ele,  abusivamente, considerava
uma extensão da família. 
Coimbra, a república dos estudantes, 
dera-lhe a volta à cabeça, lamentava-se. 
Para mais era o seu neto querido, 
o mais inteligente, 
o mais parecido com ele.
Rédea comprida e chicote curto, eis a desgraça
concluía o meu padrinho, 
quando o fui visitar, nas minhas férias em julho de 1969. 
Sua bênção, padrinho!
foram as primeiras palavras que lhe disse, 
desde há anos… 
– Já o pai não prestava, 
era um fraco
arrematava ele, entre dois ataques de tosse. 
As melhoras, padrinho! – 
foram as últimas palavras que lhe dirigi… 
Julgo que eram sinceras, 
que nada tinham de cínico. 
Impressionou-me a sua decadência, 
a sua descida do pedestal, 
desgastado pela doença,
acabrunhado pelos acontecimentos dos últimos tempos… 
A família a desmoronar-se,
o Salazar a morrer,
a Pátria a esvanecer,
a aldeia a minguar com a emigração… 
Não podia ouvir falar do Marcelo Caetano, 
que era para ele o coveiro do Estado Novo.
Ele próprio morreria, na aldeia, um ano depois,
respeitado mas não amado. 
Durante décadas fora pai, padrinho e patrão, 
um verdadeiro capo,  cabo chefe,
de uma aldeia serrana do nosso velho Portugal…
Era um régulo, se quiseres...

Gustavo, o neto do meu padrinho, 
ainda me escrevera um dia para o meu SPM,
quando eu estava em Nova Lamego.
Éramos amigos, 
ou melhor, mais conterrâneos do que amigos, 
tínhamos brincado juntos, quando garotos, 
nas férias de verão. 
Havia aquela cumplicidade de putos,
pesem embora as diferenças sociais.
Estudara em colégio particular, 
vivia no Porto, na Foz, em zona fina, 
passava esporadicamente férias na aldeia. 
Agora, em Estocolmo, na Suécia, 
militava num grupúsculo marxista-leninista qualquer 
e angariava dinheiro para o PAIGC. 
Dinheiro que tanto servia para comprar livros e medicamentos 
como armas e munições, questionava-me eu. 
Irritou-me a sua missiva, 
cheia de metáforas, 
clichés, 
prosápia,
slogans,
frases pomposas, 
retiradas do livrinho vermelho do camarada Mao 
(Devo dizer-te que sempre fui mais sinófobo do que sinófilo)…

As minhas próprias simpatias iniciais pelo PAIGC,
algo quixotescas,
guevaristas, 
desvaneceram-se 
com os imperativos da camaradagem na caserna 
e a prova de fogo na  frente de batalha. 
Não se podia objetivamente estar do lado de cá, 
fardado de camuflado,
e equipado com a G3,
a comandar 30 homens,
e ser-se um simpatizante, 
vagamente romântico, 
daqueles que nos combatiam,
de Kalash na mão
(e que nós combatíamos, objetivamente falando)… 
Além disso, chocavam-me os métodos de terror
usados pelo PAIGC 
contra os fulas, na zona leste.
Fiz alguns amigos guineenses,
quando passei pela região do Gabu,
em tabancas onde estive destacado
(Não me perguntes quais,
que os nomes varreram-se-me da memória)...

Nunca lhe respondi. 
Achava-o um puto mimado, burguês e provocador. 
Não me admirei de o vir a encontrar,
depois do 25 de Abril, 
num dos partidos do poder. 
Andará hoje  (ou andou) por Bruxelas,
segundo me disseram. 
Tinha-se casado com uma sueca, 
mas já estava divorciado nos finais da década de 1970. 
Secretamente, invejava-lhe a sorte, 
ele ali no bem bom da Suécia 
e das suecas louras, de olhos azuis,
que faziam parte do nosso imaginário de machos latinos… 
e eu a gramar a pastilha
de uma comissão de serviço militar na Guiné. 
Achei que o mundo não era justo,
mas mesmo assim não me podia queixar,
estava vivo,
e os primeiros tempos, 
passados entre Bafatá e Nova Lamego,
até nem foram maus de todo. 
Ainda fiz o gosto ao dedo 
e pintei alguns quadros 
que até tiveram um ou outro comprador. 
Outros ofereci, 
a um família de comerciantes
cuja casa costumava frequentar,
e que tinha uma filha que ainda andei a catrapiscar. 
Mas depressa percebi que esgotara o meu filão artístico. 
Afinal o teu Renoir nunca passara da cepa torta,
uma deceção...
Nunca me perdoei, de resto, ter chumbado nas Belas Artes
e de ter sido chamado para tropa...

Passei por uma crise existencial,
ou lá o que queiras chamar, não sou psicólogo,
ainda tive, uma vez, 
uma única vez, 
depois de ter despejado uma garrafa de uísque no bucho, 
a pistola Walther apontada ao céu da boca.
Senti a atração da morte, 
a vertigem do nada,
a comiseração da autodestruição,
a autopiedade...
Mas, mesmo anestesiado, 
era demasiado cobardolas para resolver, 
com um tiro mortal, 
as minhas contradições, 
pequeno-burguesas, dirias tu em 1965,
agravadas por uma idiota dor de corno.

A Flora, 
que ainda tu ainda chegaste a conhecer, 
no tempo da minha/nossa famosa exposição do SNI, 
a bela menina-família do Funchal, 
que estava a estudar serviço social, 
ali no Campo de Santana, em Lisboa, 
tinha-me trocado...
por um javardo de um herdeiro de uma fortuna venezuelana… 
Ainda trabalhara uns tempos,
na Misericórdia de Lisboa, 
num dos projectos de realojamento 
de população de um bairro de lata. 
Não esqueço a última carta que ela me mandou, 
de despedida. 
Era um encanto de miúda, 
delicadíssima, 
linda de morrer,
com pele de veludo e blusinhas de renda,
mas com pouca margem de decisão 
em relação à sua vida pessoal.

O clã é sempre quem mais ordena. 
O pai, tanto quanto percebi, 
era um homem do regime, 
da média burguesia funchalense, 
mas com problemas financeiros, 
por negócios mal sucedidos, 
na área do import-export, 
bananas, frutas tropicais, flores, ou coisa do género. 
Família numerosa, católica, um bando de filhos. 
Nunca iria dar certo o meu casamento com a Flora, 
nunca pensara, de resto, em pedir-lhe a mão, 
muito menos depois de conhecer o inferno na terra 
que foi a Guiné. 
Não me lembro de alguma vez lhe ter pedido a mão, 
achava-me no direito de a ter como namorada 
e madrinha de guerra e confidente...
Fui surpreendido 
quando um dos meus amigos do Funchal 
me veio lembrar que seria bom decidir-me, 
porque havia mais pretendentes na fila...
Foi um choque,
não estava preparado para tomar nenhuma decisão, 
muito menos para decidir 
quem deveria ser a mãe dos meus filhos. 
Estava na Guiné,
estava na guerra,
a milhares quilómetros da minha terra,
sem saber o que fazer ao certo da minha vida… 
sem saber sequer se iria chegar à meta, 
que era cumprir a minha pena, de 21 meses, 
de “perigos e guerras esforçados, 
mais do que prometia a força humana”, 
a pena a que fora condenado 
sem ter cometido nenhum crime… 
a não ser o de ter nascido em 1945, em Montemuro...
No mínimo, queria chegar à meta,
inteiro, de cabeça, tronco e membros.
Ainda tentei telefonar-lhe,
dos correios de Nova Lamego,
horas a fio à espera por um ligação para Lisboa... 
Em vão. 
A chamada caiu, 
nunca mais tive a conversa que gostaria de ter tido 
com a minha noiva,
que afinal nunca o fora. 
Acabei, já em Lisboa, bancário,
por casar com uma galega de Orense, 
que nunca chegarás a conhecer, 
pela simples razão de que já fomos,  
cada um de nós,
à sua vida.
É apenas a mãe dos meus filhos.

Depois, meu amigo, 
veio o rol de desgraças que me aconteceram:
a descida aos infernos,
a cafrealização, à maneira do Rimbaud, 
a porrada do segundo comandante no Gabu,
a ida para o sul, 
de casttigo, em rendição individual,
a mina anticarro 
que me mandou, mais de um ano e tal, 
para o estaleiro,
com passagem pela Estrela, Alcoitão, Hamburgo.
Poupo-te os pormenores,
um dia contar-tos-ei,
se tiveres tempo e pachorra,
eu próprio só agora ando a desenterrar esses esqueletos
guardados no armário da minha memória…

Tentei esquecer a Guiné durante décadas,
(o que é difícil quando se tem uma prótese...)
até ao dia em que, 
não sei porquê, 
por mero acaso,
vi o teu nome na Net 
a tua cara, 
os teus óculos, 
vi o teu nome associado a Bambadinca, 
um dos poucos sítios,
de passagen obrigatória para malta do leste,
de que guardava algumas, poucas, boas memórias…
Reconheci-te, numa foto antiga,
sem barbas, 
em tronco nu,
de óculos esfumados,
a G3 ao ombro,
em pose turística...

Em suma, desencontrámo-nos na Guiné. 
Eu nem sequer sabia que tu também lá tinhas estado,
podíamos ter ido a sorte de dar de caras um com o outro,
em Bafatá,
onde devemos ter estado alguma vez,
no mesmo dia e hora,
embora em sítios diferentes.
Mas achei piada ao teu jogo de palavras,
no mail em que me respondeste ao meu olá:
“o Mundo é Pequeno 
e a nossa Tabanca … é Grande”.

Um dia prometo telefonar-te
para marcarmos um encontro
e matar saudades.
Preciso de ganhar coragem.
Confesso que tenho medo de revisitar o passado.
E por agora ando a recuperar o tempo perdido,
depois de uma vida de idiota atrás de um balcão de um banco.
Até lá, um alfabravo,
como vocês dizem,  
do tamanho do nosso Rio Geba.
Parabéns pelo teu blogue
de que sou apenas um fortuito visitante.

Assina este relambório
o teu falhado amigo pintor, 
e, pior do que isso,
frustrado companheiro da viagem a salto
até Paris, 
viagem que nunca passou de um devaneio
de umas tantas tardes de verão 
em que estivemos, juntos, em 1965, 
no SNI, o Secretariado Nacional de Informação,
ali no Palácio Foz,
a preparar uma exposição que foi a minha vernissage,
entre copos de ginjinha nos Restauradores. 

Teu F...
o Renoir de Montemuro.

PS – Nunca mais voltei aos Restauradores 
para beber uma ginjinha… 
E perdi-te o rasto depois que fomos cada um para seu lado.. 
Mas pago-te uma ginjinha, com todo o gosto,
quando voltar a Lisboa.
Afinal fiquei com uma boa pensão de DFA,
a par da  reforma do banco.

Nota de L.G.:

Ainda estou para beber a tal ginjinha,
prometida pelo meu amigo F...
Nunca mais deu sinal de vida, 
depois que falámos longamente ao telefone,
há uns anos atrás.
Deve ter mudado de mail e de telemóvel.
Sei que adora(va) viajar.
E que tem(tinha) um filho, 
casado, arquiteto, 
a viver nos arredores de Paris. (**)

Adaptação livre, fixação e revisão de texto: LG


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Notas do editor


(*) Último poste da série > 26 de setembro de  2014 > Guiné 63774 - P13654: Manuscritos(s) (Luís Graça) (39):Portugueses pocos, pero locos... Ou como vemos (e somos vistos por) os outros...O que fazer com tantos clichés, estereótipos e preconceitos idiotas ? E não se pode exterminá-los ?

(**) Vd. também os postes já publicados da série "Selfies / autorretratos":

22 de Setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13634: Selfies / autorretratos (1): por que é que fomos à guerra... (Vasco Pires / Luís Graça / Francisco Baptista / José Manuel Matos Dinis)

22 de Setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13638: Selfies / autorretratos (2): filho único, com pai emigrado no Canadá, podia também ter saído do país, aos 17 anos... Passei pela universidade de Coimbra e lutas académicas, tendo decidido participar na guerra colonial, contrariado e sabendo ao que ia (Manuel Reis, ex-alf mil cav, CCAV 8350, Guileje, 1972/74)

30 de setembro de 2014 >Guiné 63/74 - P13669: Selfies / autorretratos (3): Em 1966 o meu pai preparou tudo para que eu fosse a “salto”, seguindo assim o trilho de milhares de portugueses (Juvenal Amado)

Guiné 63/74 - P13679: Agenda cultural (339): Apresentação do livro "Guerra Colonial na Revista Notícia", tese de Mestrado da jornalista Dra. Sílvia Torres, dia 9 de Outubro de 2014, na Messe dos Oficiais, Praça da Batalha, Porto

1. Mensagem do Coronel Cav Ref Manuel Barão da Cunha que foi CMDT da CCAV 704/BCAV 705, Guiné, 1964/66:

Caríssimos,
Após merecidas férias (eu estarei entre 9 e 19 deste mês sem computador), anexo convites para 12.º ciclo das tertúlias «Fim do Império», com patrocínio da CMO, LC e CPHM, entre outubro e janeiro, no Porto, Oeiras e Lisboa, e sessão especial na Fundação Marquês de Pombal.
O ciclo abre no Porto, com uma jovem jornalista e autora de Coimbra.
Quem puder ir será bem vindo e também se agradece divulgação, votos de saúde de
M. Barão da Cunha


Convite para assistir à apresentação do livro Guerra Colonial na Revista Notícia, tese de Mestrado da jornalista Dra. Sílvia Torres; com autora, editora Dra. Isabel Garcia e ilustrador Fernando Gonçalves, dia 9 de Outubro de 2014, na Messe dos Oficiais, Praça da Batalha, Porto.


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Nota do editor

Último poste da série de2 4 de Setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13646: Agenda cultural (338): III Jornadas sobre Valorização do Património Abaluartado da Raia Transfronteiriça, dias 26 e 27 de Setembro de 2014 na Biblioteca da Câmara Municipal de Castro Marim (António J. Pereira da Costa)

Guiné 63/74 - P13678: Os Últimos Anos da Guerra da Guiné Portuguesa (1959/1974) (José Martins) (5): 23 de Dezembro de 1964




1. Publicação da quinta parte do trabalho de pesquisa e compilação do nosso camarada José Marcelino Martins (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), que diz respeito aos últimos 5517 dias de luta pela independência da então Guiné Portuguesa.





(Continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 1 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13673: Os Últimos Anos da Guerra da Guiné Portuguesa (1959/1974) (José Martins) (4): 8 de Agosto de 1962

Guiné 63/74 - P13677: Inquérito online: Sim, fomos o exército do desenrascanço (António Pimentel, ex-alf mil rec info, CCS/BCAÇ 2851, Mansabá e Galomaro (1968/70)

1. Resposta do António Pimentel, grã-tabanqueiro da primeira hora, ao desafio lançado, em 29 de setembro,  pelos nossos editores: "Sem querer abusar da vossa paciência... 'Desenrasço' no TO da Guiné... é mesmo qualidade ? Ou é treta ?"


[António Pimentel, natural da Figueira da Foz, a viver no Porto; ex-alf mil rec info, CCS/BCAÇ 2851, Mansabá e Galomaro, 1968/70; foto de L.G., tirada no Palace Hotel Monte Real, em 8 de junho de 2013, por ocasião do VIII Encontro Nacional da Tabanca Grande]


Data: 30 de Setembro de 2014 às 16:28

Assunto: Sondagem: Fomos o exército do desenrascanço ?


Olá, Luís,

Eu acho que quase toda a nossa atividade militar durante a guerra colonial, não passava de uma série de desenrascanços (*).

A minha experiência é disso exemplo.

Como aspofmil [aspirante a oficial miliciano,], com a especialidade de reconhecimento e informações, e colocado no RI 6, no Porto, fui, em Dezembro de 1967, simultaneamente mobilizado para ir para a Guiné e convocado para seguir para Lamego para,  no CIOE, fazer o curso de Ranger.

Logo aqui se nota uma gritante falta de planeamento, já que atendendo à gritante falta de oficiais subalternos, me pareceu um desperdício fazer dois cursos em vez de um.

Além disso, sendo o teatro de operações em terras de África, não me pareceu ajustado fazer o dito curso em clima extremamente frio, como foi esse 1º trimestre de 1968.

Mas acabado o curso o que fui eu fazer?

Pois mandaram-me de volta para o RI 6 para dar instrução de reconhecimento a praças.

Mas eu não estava já mobilizado? Claro que estava, e o meu batalhão, que eu não sabia qual era, deveria estar em formação e instrução em qualquer sítio...

E eu a dar instrução a uma dúzia de rapazes que nunca mais vi, nem me lembro já quem eram. Isto a decorrer, até que recebo ordens para me juntar ao meu Batalhão, o BCAÇ 2851, no RI 1, na Amadora, pouquíssimos dias antes do embarque no T/T Uíge rumo à Guiné!

Chegados a Bissau, já bem de noite, fomos descarregados, é o termo, para um sítio ermo, e sem quaisquer condições, com o clima que bem conhecemos e a companhia de incontáveis mosquitos que nos deram as boas vindas. E assim passámos a primeira noite na Guiné, ao relento e em "boa" companhia. Creio que não é possível aceitar que esta ação de desembarque de tropas tivesse merecido qualquer planeamento. Seria mais lógico deixarem-nos passar a noite a bordo para sairmos de manhã cedo, por exemplo. O responsável por tal devia estar muito bem instalado em Bissau..

A meio da manhã, apareceu a escolta que nos iria levar ao nosso destino, Mansabá. Como eu era o alferes mais classificado, tinha a meu cargo o comando da companhia. Por isso procurei inteirar-me, minimamente, do que nos esperava. Fiquei impressionado, já Mansabá vinha a ser atacada todos os dias e os ataques às colunas eram frequentes, para além das minas, claro.

Então o alf Poças, da CCav 1749, disse-me ainda que não havia armas para nós. Depois as receberíamos em Mansabá... Eu pensei cá para comigo: "Então um gajo vem prá guerra e nem armas tem" ?...


A espingarda automática G3, a quem muitos militares no TO da Guiné chamavam "a minha namorada", por ser também uma arma muitop fiável.


Como já disse, fomos descarregados para um sítio ermo, mas para além de nós, géneros de todo o tipo, vinho, etc., e uns caixotes de dimensões consideráveis que me chamaram à atenção... Como já sabia que não havia armas para ninguém, a minha curiosidade adensou-se, e não demorei muito a abrir um deles, belos, de madeira muito branquinha, caixotes, que não traziam nada que desse para identificar o conteúdo, mas eu estava cá com um "feeling" ...

E não é que acertei?! Ali estavam elas, novas, reluzentes, ainda que desmontadas, as nossas queridas G3...

Mas quem passou pelos Rangers sabe que montar G3, até debaixo de água, se fosse preciso... Quem quis serviu-se... Por estranho que pareça, e a mim ainda hoje me parece muito estranho, as armas estavam sem qualquer vigilância

Munições não faltavam na coluna, claro...

Este foi o meu primeiro desenrascanço na Guiné.

Passados meses apareceu um pedido, muito tímido, a saber se alguém tinha dessas armas. Eu entreguei a minha, sem quaisquer  problema ou consequência, e não estou nada, nada arrependido!

 Felizmente a coluna deslocou-se sem incidentes de maior até Mansabá com passagem por Mansoa. Mas já depois de chegados a Mansabá,  tivemos as "boas-vindas" e a "festa" repetiu-se por quase todos esses dias de 1968!
Um abraço

António Pimentel

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Nota do editor:

(*) Vd. poste de 28 de setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13659: Sondagem: "Desenrascanço é uma qualidade nossa. Na Guiné demos boas provas disso"... Falso ou verdadeiro ? Totalmente falso ou totalmente verdadeiro ?


quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Guiné 63/74 - P13676: Os nossos camaradas guineenses (38): Reportagem, com vídeo, da revista "Sabado", e tese de doutoramento sobre os comandos africanos, de Fátima da Cruz Rodrigues (Coimbra, UC, 2012) (Virgínio Briote)


Lisboa >  Museu Militar >  15 de Abril de 2010 > Lançamento do livro do Amadú Bailo Djaló,  membro da nossa Tabanca Grande, "Comando, Guineense, Português" (Lisboa: Associação dos Comandos, 2010, 229 pp., 150 fotos, preço de capa: 25 €). É pena que não tenha saído o 2º volume, com as aventuras e desvanturas do autor, a seguir à independência do seu pais. Vive hoje em Portugal, na Amadora. Acabou a sua carreira militar como alf comando graduado, na CCAÇ 21, comandada pelo cap cmd grad JDamanca, um dos primeiros camaradas guineenses a ser fuzilado pelo PAIGC.

Foto: © Luis Graça (2010). Todos os direitos reservados

1. Mensagem do nosso querido amigo e camarada, editor jubilado, Virgínio Briote [, entrou para o blogue como coeditor em 11/7/2007; ex-alf mil comando, Brá, 1965/67]:


Data: 26 de Setembro de 2014 às 12:38

Assunto: Estudo sobre os comandos Africanos

Caros Luís e Carlos,

Para v/ conhecimento, com um abraço do VBriote (*)


2. De Wouter De Broeck {, jornalista,] para Virgínio Briote:

Enviada: 15 de julho de 2014 12:07

Assunto: estudo sobre os comandos Africanos

Caro Sr, Virgínio Briote,

Quero agradecer novamente a entrevista de há duas semanas. Foi muito útil para poder perceber o contexto que se vivia naquela altura.

Entretanto estou a trabalhar na matéria e lembre-me do estudo da socióloga da Universidade do Minho de que falou. Pode dar-me o nome dela, de maneira a que possa ir à procura do trabalho dela?

Muito obrigado,

com os melhores cumprimentos,

Wouter De Broeck  


Lisboa > Museu Militar > Sessão de lançamento de Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974), 14º Volume – Comandos, Tomo 1 – Grupos Iniciais, 1ª ed., Lisboa, 2009 > 10 de Março de 2009 > Velhos Comandos de Brá : ex-furr mil João Parreira, ex-alf mil Virgínio Briote e coroneis Amadeu Neves da Silva e Vitor Caldeira. 

Cortesia do  fotógrafo Raimundo, ex-1º Cabo do Destacamento Foto-cine, do QG, e ex-combatente na Op Tridente (jan/mar 1964).

3. De Virgínio Briote para Wouter De Broeck

Enviada: 15 de julho de 2014 22:20

Assunto: Estudo sobre os comandos Africanos

Boa noite, Caro Wouter

A investigadora é a Doutora Fátima Rodrigues [...] (**)

Não falei com a Fátima sobre este assunto mas se ela lhe perguntar quem lhe deu o email pode dizer que fui eu. De qualquer dea formas, amanhã vou tentar contactá-la.

Obrigado pela visita.


4. Mensagem de Virgínio Briote para Wouter De Broeck

2014-07-16 12:31 GMT+02:00 

Bom dia

Acabo de falar com a Doutora Fátima Rodrigues que manifestou ter todo o gosto de falar consigo sobre a questão dos comandos africanos.

Cumprimentos do V Briote


5. De Wouter De Broeck  [, jornalista], para virgínio Briote:

Enviada: 26 de setembro de 2014 10:42

Assunto: Estudo sobre os comandos Africanos

Caro Virgínio,

Conseguimos publicar a nossa reportagem na revista Sábado. Está na edição que saiu ontem. Através deste link pode ver o vídeo que fizemos

 [Vídeo 4' 36''. "A vida do lado errado da história"; entrevistados: Amadi«u Bailo Djaló, Juldé Jakité, Sadjo Camará, Virgínio Briote].

De qualquer forma queria agradecer lhe outra vez a sua disponibilidade para e entrevista e as fotos - das quais usamos algumas no vídeo. Foi muito importante para poder perceber a história dos comandos africanos.

Um abraço,

Wouter


Leiria > Monte Real > Ortigosa > Quinta do Paul > IV Encontro Nacional da Tabanca Grande > 20 de Junho de 2009 > Em primeiro plano, o Virgínio Briote e o Amadu Djaló, um e outro muito acarinhados por todos. Não sei o que é o que Virgínio, um homem sábio, europeu, estava a pensar, mas possivelmente estava a organizar a sua resposta à questão, pertinente, levantada pelo Amadau, outro homem sábio, africano: "Os portugueses, a alguns povos, deram-lhes novos nomes e apelidos, livros para estudar e consideraram-nos civilizados. Desta civilização não precisávamos, mas faltava-nos a cultura, porque a cultura, de onde sai não acaba e de onde entra não enche. E no nosso Alcorão está tudo, moral, comportamento cívico e civilização e nós não precisávamos de ser civilizados, o que nos faltava era escola para aumentar os nossos conhecimentos"...


Foto (e legenda): © Luis Graça (2010). Todos os direitos reservados


6. Recorte de imprensa > Sábado, 26 de setembro de 2014

Sociedade > O que aconteceu aos comandos portugueses de origem guineense?

26-09-2014

A 24 de Setembro de 1973 a Guiné autoproclamou a sua independência e meses depois deu-se o 25 de Abril e o império colonial desmoronou-se. O que aconteceu aos comandos portugueses de origem guineense?

Por Wouter De Broeck

Amadú Bailo Djaló, hoje com 75 anos [, autor do livro de memórias "Guineense, comando, português", Lisboa, Associação de Comandos, 210,] teria preferido abrir uma barraquinha no mercado de Bafatá, a sua cidade natal, a ter-se tornado comando. Como cidadão português, era obrigado a prestar serviço militar. O pai ainda falou com o chefe da administração local, mas não escapou. Contra vontade, Amadú tornou-se soldado-condutor com a função de fornecer água às tropas. Pensou que ia ser uma passagem tranquila pela tropa, pois no início de 1962 o PAIGC apenas lançava ataques esporádicos. 

“Certo dia, um prisioneiro deu-me uma carta para entregar ao tio. Mas primeiro mostrei-a ao meu superior, que me disse que não podia aceitar nada dos prisioneiros. Como castigo, conduzi o jipe carregado com sacos de areia e segui 100 metros à frente da coluna, a fazer de rebenta-minas.”

De túnica branca e gorro verde na cabeça, as mãos sobre os joelhos, Amadú fala em frases curtas, como se lhe faltasse a respiração. Talvez seja o medo que volta a sentir, a fibrose pulmonar que o tem afligido ou o pequeno quarto abafado que aluga numa cave na Amadora. 

“Passado pouco tempo já não aguentava. Ofereci-me para o primeiro grupo de comandos. Só quando estava metido naquilo, é que percebi. Todas as noites havia saídas em missão, assaltos aos acampamentos do inimigo. Lamentei a minha decisão, mas já não tinha saída.”

Amadú integrou o grupo de comandos, que recebeu formação em Brá a partir de Junho de 1964. Dois anos antes, em Angola, o exército português já tinha recorrido a pequenas unidades de tropas de elite, inspiradas nos comandos franceses e belgas. As unidades espalharam -se pelas colónias, com um papel fundamental na guerra da Guiné.

“Nunca matei ninguém”

Sadjo Camará diz ter 74 anos, mas também podem ser 76. 

“Obrigaram-me a mudar a idade quando fui para a tropa. Devia ter uns 17 anos, nunca tinha ido à escola, vivíamos da agricultura. O serviço militar era obrigatório. Quem não fosse, ficava com a PIDE à perna.”

Sadjo coloca a boina vermelha de comando, quatro condecorações balançam sobre o bolso do seu casaco, o olhar cansado mal se move quando nos conta num suave tom cantado: 

“No dia em que entrei para o quartel o meu pai deu-me uma ordem: ‘Não mates ninguém. No campo de batalha, numa emboscada não tens culpa, mas nunca mates ninguém cara a cara. Não entres em igrejas dos muçulmanos nem lhes deites fogo, deixa em paz as mulheres e as crianças. Se fizeres o que te digo, vais viver muitos anos.’ E cumpri as ordens. Nunca matei ninguém, nunca bati em ninguém.”

Pode ler a reportagem na íntegra, na revista Sábado que está na banca a partir de 25 de Setembro. Veja aqui o vídeo.

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 15 de janeiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12588: Os nossos camaradas guineenses (37): Os milícias e outras tropas auxiliares: as estatísticas dos tombados (José Martins / António J. Pereira da Costa / Jorge Picado)

(**) Tese de doutoramento: Fátima da Cruz Rodrigues - Antigos Combatentes Africanos das Forças Armadas Portuguesas: a Guerra Colonial como Território de (Re)conciliação. Tese de doutoramento apresentada à Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra para obtenção do grau de Doutor. Coimbra: FEUC - Faculdade de Economia.UC - Universidade de Coimbra. 2012, 349 pp.








Guiné 63/74 - P13675: Fantasmas ...e realidades do fundo do baú (Vasco Pires) (16): Um soldado de Artilharia na fronteira sul

1. Mensagem do nosso camarada Vasco Pires (ex-Alf Mil Art.ª, CMDT do 23.º Pel Art, Gadamael, 1970/72), com data de 26 de Setembro de 2014:

Bom dia Carlos,
Cordiais saudações.
Do velho e já desgastado baú, sempre algo pode surgir...

Lembro o já distante ano de 70, quando em meados do ano rumei a Gadamael, para assumir o Comando do 23.° PelArt, e por lá fiquei na maior parte da minha comissão de serviço.

A situação operacional de Gadamael, já foi descrita pelo Camarada Manuel Vaz na sua magistral "Uma visão alargada do ataque a Gadamael". Também, o Exmo. Sr. Coronel de Artilharia Morais Silva, caracterizou a situação: "...A CCaç 2796 foi fustigada de forma brutal nos seus primeiros passos em Gadamael numa primeira tentativa do PAIGC de, indirectamente, eliminar a posição de Guileje (o que veio a conseguir em 1973 por via directa). Sofreu baixas, incluindo o comandante da companhia (24Jan71)..." .

Gadamael - Espaldão de obus 10,5

Gadamael - Obus em acção de tiro
Fotos: © Humberto Nunes

O Pelotão era maioritariamente composto por soldados da incorporação local, somente o Comando, um Oficial e dois Sargentos vinham de Portugal, no sistema de rendição individual.
Os soldados (profissionais) eram operacionalmente eficientes, e sob aspecto disciplinar, só lembro um evento de relativa gravidade, quando um soldado na formação e revista diária do Pelotão, teve uma atitude (passiva) de insurbordinação.
Já falei antes da sorte que tive com os Furriéis, dedicados, eficientes e leais.

Coincidiu a minha chegada com a entrega das casas do reordenamento, sendo atribuida ao Pelotão, a última fileira de casas junto ao rio e aos obuses, conforme assinalado na foto.
Acredito que foi do Furriel Oliveira, a sugestão de também nós nos instalarmos na tabanca, e foi o que fizemos, na primeira casa junto aos obuses, aliás excelente sugestão, sob o ponto de vista operacional, como parece óbvio, se se olhar a foto.

Gadamael - Casas atribuídas ao Pel Art.ª
Foto: © Coronel Morais Silva

O Comando da Artilharia em Bissau (GAC 7), não permitia a saída do Pelotão sem sua prévia autorização, sendo portanto a atividade da Artilharia dentro do quartel, no "bem-bom" do arame farpado, segundo alguns.

Os quartéis da zona Sul, ficavam expostos a ataques de Artilharia, efetuados também além fronteira. As ordens do Comandante do Aquartelamento eram bem claras: "...Ao ... Pelotão sempre exigi, quando andava no mato, tempo de resposta que não podia exceder 1 minuto e perante uma "saída" das armas IN a resposta imediata de um obus fosse qual fosse, no momento, a direcção de vigilância..." - Ex-Capitão Art. Morais Silva.

Além da resposta a ataques IN, havia o apoio a tropas em movimento, e eventualmente atingir alvos determinados por alguma autoridade militar. ​Como somos poucos, e quase esquecidos, é sempre bom lembrar o papel da Artilharia na Guiné!!!

forte abraço
VP
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Nota do editor

Último poste da série de 18 de Setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13623: Fantasmas ...e realidades do fundo do baú (Vasco Pires) (15): Autorretrato de um soldado

Guiné 63/74 - P13674: Biblioteca em férias (Mário Beja Santos) (10): Viagens pelo Norte de Espanha: Bilbau e o indispensável Museu Guggenheim

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Setembro de 2014:

Queridos amigos,
Foi como meter o Rossio na Betesga. Surpreendentemente, teve um final feliz. Aterra-se em Bilbau, no dia seguinte parte-se para Logroño, a capital de La Rioja, e no dia seguinte Burgos, mais adiante Léon, depois Monforte de Lemos e Vigo até ao Porto-Campanhã.
Não podia ter enchido mais as medidas com aquele pedacinho do Norte de Espanha, que inteiramente desconhecia. E confirma-se que por melhor que se prepare o indivíduo para compreender o outro, para amortecer as novas sensações, etc. e tal, há sempre um denominador que acaba por ganhar – a surpresa. É a surpresa, mas suas múltiplas formas de contemplação, a mola de arranque para a viagem bem sucedida. E para o gozo do viajante.

Um abraço do
Mário


Biblioteca em férias (10) 

Viagens pelo Norte de Espanha: Bilbau e o indispensável museu Guggenheim

Beja Santos

Admitia na minha cabeça que só se justificava ir a Bilbau para conhecer o colosso de titânio e vidro desenhado por Frank O. Gehry, o arquiteto genial que Pedro Santana Lopes, então à frente da autarquia de Lisboa, convidou para apresentar um novo figurino do Parque Mayer. Beneficiei da minha ignorância para ser surpreendido por uma Bilbau, capital económica do País Basco, dinâmica, aprazível, moderna, e com um espantoso equilíbrio entre o passado e o presente. Pensava que Bilbau fora profundamente afetada pela Guerra Civil. Talvez tenha sido, mas os edifícios significativos do século XIX, caso do Teatro Arriaga, lá estão para testemunhar o triunfo da burguesia bilbaína com as suas empresas siderúrgicas navais, a recordar que já houve o esplendor mineiro e a exportação de lãs e curtumes. Estava impaciente por conhecer com os meus olhos o Guggenheim, aterrei, apanhei o autocarro para a cidade, pus os pertences na hospedaria, ala que se faz tarde, nada de conhecer o metro de Norman Foster nem a ponte que saiu do traço de Santiago Calatrava. A suar estopinhas (36 graus e uma humidade guineense), lá fui cirandando pela esplanada junto ao rio Nervión, e com a língua encortiçada cheguei ao deslumbrante Guggenheim.


Caminhei para a entrada da arquitetura mais vanguardista que conheço, fui ver o menu, as exposições que me esperam: Richard Serra e uma exposição admirável de Georges Braque. Toca a descer a escadaria, de boca à banda, não conheço nada de tão audaz e para lá do tempo. Pelo caminho, escolhendo recatadas sombras, vou disparando para as imagens dos séculos futuros, digam lá se eu não tenho razão


Os reformados têm sorte, naquele dia podia-se entrar por 6,50€ e até às 20h. Mas pouco antes de ingressar no interior do templo de arte retive esta imagem de uma face da modernidade, ao princípio chocou-me a seguir cativou-me:


Qual Richard Serra qual Georges Braque, quais exposições temporárias, primeiro quero andar na vida airada, a confirmar o que se escreve no prospeto de boas-vindas: “O edifício está composto de uma série de volumes interconectados, uns de forma octogonal e recobertos de pedra e outros curvados e retorcidos, cobertos por uma pele metálica de titânio. Estes volumes combinam-se com paredes de vidro que dotam de transparência todo o edifício. Devido à sua complexidade matemática, as sinuosas curvas de pedra, vidro e titânio foram desenhadas por computador. O calcário foi a pedra escolhida, devido à sua tonalidade, funde-se perfeitamente com a fachada da Universidade de Deusto”. E sigo embasbacado, já vi este miolo dezenas de vezes em livros e revistas, mas isto é como a Praça Vermelha ou a Pirâmide do Louvre ou ao Centro Georges Pompidou, é preciso ver claramente visto com os nossos olhos, naquele dia e àquela hora, é com satisfação que vos dou as imagens que iam empolando o meu estado de espírito, sentia-me muito feliz:


E mais adiante:


Já estou mais relaxado, petisquei o suficiente para poder conversar com as obras de arte, à nossa espera, antes de ir ver uma mostra da coleção Guggenheim Bilbau fixei esta instalação de Jenny Holzer, perturba a vista, avançamos e recuamos, não há dúvida que é vistoso, parece-me mais uma guloseima visual, nem sempre o que enche o olho provoca descarga estética, o deleite contemplativo vejam só:


Pronto, enveredei por salas enormes, parece que estou no CCB, não desfazendo. Dos vários autores expostos nesta mostra, dou-vos conta de José Manuel Ballester, alguém que escolheu para a sua arte a combinação da pintura e da fotografia, e acabei por concordar com o que li nos textos fixados acerca de Ballester. Ele interessa-se por espaços vazios, investiga a solidão do indivíduo e as contradições do mundo moderno através da arquitetura, transformando espaços em cenas artificiais. É um jogo entre o claro-escuro, entre o oculto e o visível, o público e o privado. A imagem que vos mostro vem da série Espaços Ocultos, reinterpretações da história de arte, no caso presente Ballester pegou num ícone do romantismo francês, a Jangada da Medusa, de Géricault, retirou-lhe as pessoas, a representação fotográfica de Ballester mostra os restos da jangada depois do resgaste dos sobreviventes e do desaparecimento dos cadáveres. Achei uma beleza.


Saí da mostra e fui até à instalação permanente onde estão oito esculturas em aço de Richard Serra, autor que conheci numa visita ao Museu Berardo. A instalação chama-se a matéria do tempo, tratar-se-á de uma reflexão à volta dos aspetos físicos do espaço e da natureza da estrutura. Richard Serra pretende estabelecer uma relação direta com o espetador, como se a experiência com o objeto passasse a formar parte essencial do seu significado. Andamos por aquelas elipses, à medida que as percorremos elas transfiguram-se, gera-se uma sensação de espaço em movimento. Vi gente aturdida com aquelas massas de aço, as espirais e as elipses, paredes que aprecem desabar, andamos à volta com se andássemos num labirinto até se chegar ao vazio. E quando se vê a exposição de um ponto alto acaba-se por concordar com o autor: temos ali matéria do tempo, e a cor terrosa daquelas toneladas de aço como se girassem desarticuladas, levam-nos a supor que a escultura contemporânea não se assemelha ao torvelinho fabril, é um maquinismo silencioso onde se passeia o indivíduo na era do vazio:


Não vos vou hoje estafar com o prato de substância, a esplendorosa exposição de Georges Braque, há muito que estava com apetite para ver algo de tão grandioso, multidimensional. Faz de conta que vou sair e depois volto, hoje ou amanhã, venho novamente ao exterior do Guggenheim. Um dos símbolos mais vistosos de Bilbau é o Puppy, concebido por um dos artistas mais conceituado da atualidade, Jeff Koons. É vistoso, não contesto. Mas dou comigo a pensar se este Puppy não faz parte do estado líquido da nossa modernidade, esta arte engraçadinha, tão engraçadinha como as telenovelas broncas e a imprensa porno soft, tão engraçadinha como os romances históricos escritos às três pancadas e com um mínimo de vocábulos. É assim também o nosso tempo em que se força a mistura entre Frank O. Gehry como Jeff Koons e fica tudo numa boa. Mas é engraçadinho, não há dúvida:


Mais tarde falaremos do Georges Braque, e do casco histórico de Bilbau e do seu Museu de Belas Artes onde referenciei santos do meu culto como El Greco e Francis Bacon. Bilbau enche-me as medidas. Ainda não parti e apetece-me voltar, juro.
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Nota do editor

Último poste da série de 24 de Setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13643: Biblioteca em férias (Mário Beja Santos) (9): Dentro do Peak District, a vasculhar belezas incomparáveis