sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Guiné 63/74 - P14226: A guerra vista do outro lado... Documentos apreendidos ao PAIGC em Nhacobá em 17 de maio de 1973 - Parte I (António Murta, ex-alf mil inf, 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513. Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74)


Solidariedade - Boletim de informação, agência Novosti, 4, 1971



Foto (em muito mau estado de conservação) de um militante do PAIGC algures na ex-URSS


Guia de marcha do PAIGC

Fotos (e legendas): © António Murta (2015). Todos os direitos reservados [Edição de CV]


1. Mensagem, com data de 8 de janeiro último, do António Murta [ex-alf mil inf , Minas e Armadilhas,   2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513. Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74] [, foto atula à direita]



Camaradas amigos, Luís Graça e Carlos Vinhal..

Gostava de vos entregar, para avaliarem o interesse, de alguns documentos que trouxe de Nhacobá em Junho de 1973, depois de esta base ter sido tomada pelas nossas tropas 20 dias antes.

Dado que não gosto de me alongar muito a escrever aqui, segue em anexo um texto explicativo em Word. Também em anexo seguem os documentos que no texto refiro.

Votos de boa saúde neste ano que agora começa para o Luís e para o Carlos e suas famílias.

Saudações fraternais do 
António Murta.


2. Camaradas amigos Luís Graça e Carlos Vinhal:

Mais de 40 anos depois, digitalizei algum material que trouxe de Nhacobá, pouco depois de as NT terem expulsado daquela base as tropas do PAIGC.

Isso aconteceu em 17 de Maio de 1973 com a acção da sacrificada CCAV 8351 do Cap Mil Vasco da Gama e, no dia seguinte, de novo com esta Companhia e, creio, com CCAÇ 18.

Guardei essas coisas até hoje pelo significado que têm para mim, e não tanto pelo possam valer. É pouca coisa  mas dava demasiado nas vistas ter “desviado” mais documentos naquelas circunstâncias.

São:

(i) dois  boletins informativos e de propaganda da ex-URSS, um de 1969 e outro de 1971; não posso precisar se existiam outros desta colecção no espólio encontrado em Nhcobá; chamam-se SOLIDARIEDADE – Para a Amizade Soviéto-Africana e eram editados pela Agência NOVOSTI. (formato 14,3 x 21,3 cm com 24 páginas cada);

(ii) um a fotografia não datada e em mau estado de conservação (está como estava), de um africano na ex-URSS; tal como os papeis que refiro a seguir, encontrava-se dentro dos boletins citados:

(iii) um discurso, não datado nem assinado, de agradecimento ao PCUS e à URSS, depois de um estágio militar naquela nação; foi redigido por alguém que se expressa em perfeito português e escreve com uma caligrafia primorosa; provavelmente o proprietário de todo o material encontrado, que era o comdt da força em Nhacobá; não parece fazer sentido ter na sua posse o manuscrito de outra pessoa;

(iv) uma guia de marcha com data de 3 de Dezembro de 1971, passada em Bolama, pequeno papel com os nomes bem claros dos intervenientes;  (quem sabe, alguém os possa identificar);

(v) um pedido de ajuda de um guerrilheiro em desespero, dirigido «ao camarada Caetano Semedo»;  É assinado por Fode Djassi (?)  em 16-09-1971 – Gansala; esta carta e o citado discurso estavam dobrados até ao formato A8.

No meu diário é referido como fazendo parte deste conjunto, o livro “Palavras de Ordem Gerais”.  de Amílcar Cabral, mas perdi-lhe o rasto.

Não creio que tenham grande importância para serem divulgados, mas ocorreu-me que se fizessem parte do espólio da nossa Tabanca, quem sabe, um dia, tenham algum interesse histórico ou, simplesmente documental. Ainda pensei fazer acompanhar estes pequenos documentos, que envio em anexo, da transcrição parcial do meu diário, onde dou conta das circunstâncias do achado (com direito a referência na história do meu Batalhão) em Nhacobá em 8 de Junho de 1973, cerca de 20 dias depois de se ter lá entrado e instalado. Mas depois pensei que é um assunto sem grande interesse para os demais.

Tratou-se apenas de uma mochila encontrada pendurada e oculta numa árvore, já depois de várias inspecções às instalações abandonadas pelos militares e pela população. Era um autêntico escritório e arquivo ambulantes, com uma quantidade surpreendente de documentação militar e particular do então comandante da base.

Foi tudo entregue ao Comandante do nosso Batalhão (4513), menos o que, alguns e eu incluído, conseguimos “desviar”, coisas sem importância militar mas que eram manga de ronco. No meu caso, conhecedor de sempre das ajudas soviéticas ao PAIGC, FRELIMO e MPLA e, com alguma formação política, ter ali à mão, pela primeira vez, as provas dessas ajudas (claro que já tinha as provas do material bélico) e o sabor das coisas clandestinas e “subversivas”, esse material tinha para mim um significado mais profundo. E,  vindo de quem vinham, tornaram-se objecto de estima. Até que ficaram no esquecimento nas caves escuras da memória. Havia também uma pistola de fabrico soviético, mas sumiu. (Ainda hoje, não sei se se podem referir estes factos...).

Perante isto, fica ao vosso critério publicar, guardar ou, simplesmente eliminar. Em qualquer dos casos, passa a fazer parte do espólio da Tabanca,  se o entenderem.

Os boletins SOLIDARIEDADE integrais seguem em PDF, mas tenho tudo também no formato JPEG.

Saudações fraternais,
António Murta
9 de Janeiro de 2015



Solidariedade - Boletim de informação, agência Novosti, 8, 1969




Pedido de ajuda, pungente,  de um guerrilheiro, Fodé Djassi, dirigido ao camarada Caetano Semedo; com data de 6-09-1971, Gansala.




Discurso, não datado nem assinado, de agradecimento ao PCUS e à URSS, depois de um estágio militar naquela nação; foi redigido por alguém que se expressa em perfeito português e escreve com uma caligrafia primorosa; provavelmente o proprietário de todo o material encontrado, que era o comdt da força em Nhacobá.

Fotos (e legendas): Fotos (e legendas): © António Murta (2015). Todos os direitos reservados [Edição de CV]

Guiné 63/74 - P14225 Agenda cultural (378): De 3 a 6 de fevereiro, a televisão pública (RTP2) evoca o início, há 54 anos, da guerra colonial: filmes, documentários, debates

1. De 3 a 6 de fevereiro, a nossa televisão púlica, através da RTP2 assinala o início da guerra colonial  (1961/74) através de documentários, filmes e debates. Embora possa não ser ainda consensual, este período da nossa história vai de 4 de Fevereiro de 1961 (assalto a prisões de Luanda) a 25 de abril de 1974 (a chamada revolução dos cravos, em Portugal).


RTP2 > 3ª feira,  3 de fevereiro de 2015,   23h34 A>  QUEM VAI À GUERRA [vd. aqui trailer]


A enfermeira paraquedista e nossa grã-tabanqueira
Rosa Serra, uma das participantes
do filme de Marta Pessoa (realizadora, ela própria filha
de militar que esteve na Guiné)

Quem Vai à Guerra é um filme de guerra de uma geração, contada por quem ficou à espera...

Entre 1961 e 1974, milhares de homens foram mobilizados e enviados para Angola, Moçambique e Guiné-Bissau para combater numa longa e mal assumida Guerra Colonial. Passados 50 anos desde o seu início a guerra é, ainda hoje, um assunto delicado e hermético, apoiado por um discurso exclusivamente masculino, como se a guerra só aos ex-combatentes pertencesse e só a eles afetasse. No entanto, quando um país está em guerra, será que fica alguém de fora?

Quem Vai à Guerra é um filme de guerra de uma geração, contada por quem ficou à espera, por quem quis voluntariamente ir ao lado e por quem foi socorrer os soldados às frentes de batalha. Um discurso feminino sobre a guerra.Com: Ana Maria Gomes, Anabela Oliveira, Aura Teles, Beatriz Neto, Clementina Rebanda, Conceição Cristino, Conceição Silva, Cristina Pinto, Ercília Pedro, Fernanda Cota, Giselda Pessoa, Isilda Alves, Júlia Lemos, Lucília Costa, Manuela Castelo, Manuela Mendes, Margarida Simão, Maria Alice Carneiro, Maria Arminda Santos, Maria Augusta Filipe, Maria de Lourdes Costa, Maria Laura Silva, Maria Odete Barata, Maria Rosa Redondo, Natércia Neves, Rosa Serra


Título Original:Quem vai à Guerra
Realização: Marta Pessoa
Produção: REAL FICÇÃO
Ano:2009
Duração:123 minutos

RTP2 > 4ª feira, dia 4 de fevereiro de 2015, às 23h30 >  ANDAR RÁPIDO E EM FORÇA (Série documental “A Guerra”)
[Disponível aqui, na íntegra, no portal "A Guerra Colonial", parceria da RTP e da A25A]

Este episódio relata o dia 4 de fevereiro de 1961. Antes dos ataques da UPA, em Março, já o pânico dominava Luanda desde 4 de Fevereiro, quando centenas de angolanos assaltaram as prisões da cidade. A resposta portuguesa, civil e militar, leva o terror aos muceques. E a violência sem limites propaga-se a todos os grupos sociais, quando o 15 de Março lança o pavor em todo o norte. Angola reclama por apoio militar, mas Salazar só mandará “andar rápido e em força”, depois de afastar Botelho Moniz, o general que, entretanto, tentara depô-lo.


RTP2 > 5ª feira, dia 5 de fevereiro de 2015, às 23h30 > O HERÓI [vd. aqui trailer]

Luanda é uma cidade assaltada por milhares de pessoas, à procura de uma só coisa: sobreviver

Vitório regressa da guerra. Uma guerra que durou quase três décadas, na qual entrou forçado, aos 15 anos, como soldado raso, pau para toda a obra. Vitório matou gente, viu os amigos morrerem, passou fome e antes de ser desmobilizado, pisou uma mina e perdeu uma perna. 

Após uma lenta recuperação no hospital, Vitório como milhares de angolanos, tenta a sua sorte nas ruas de Luanda.

O seu principal intento: sobreviver.

Título Original: O Herói
Realização: Zézé Gamboa
Produção: Paula Ribas [co-produção: França, Angola, Portugal]
Autoria: Carla Batista
Música: David Links
Ano: 2002
Duração: 97 m


RTP2 > 6ª feira, dia 6 de fevereiro de 2015 > 23h02 > DESCOLONIZAÇÃO - 40 ANOS


 Um debate moderado por Luís Marinho sobre a descolonização, com a presença dw:

Prof. Jaime Nogueira Pinto | Embaixador de Angola - Dr. Luís de Almeida | Embaixador Francisco Seixas da Costa.


RTP2 > 6ª feira, dia 6 de fevereiro de 2015 > 23h68 >   A COSTA DOS MURMÚRIOS [vbd. aqui trailer]

Uma visão feminina sobre a Guerra Colonial

"Sim, é verdade, nesse tempo chamavam-me assim... Nesse tempo Evita era eu..."
Evita recorda e corrige uma história que já lhe pertenceu.


No final dos anos 60, Evita chega a Moçambique para casar com Luís, um estudante de matemática que ali cumpre o serviço militar. Nos dias que se seguem, Evita rapidamente se apercebe que Luís já não é o mesmo e que, perturbado pela guerra, se transformou num triste imitador do seu capitão, Forza Leal.

Os homens partem para uma grande operação militar no norte. Evita fica sozinha e no desespero de tentar compreender o que modificou Luís, procura a companhia de Helena, a mulher de Forza Leal. Helena, submissa e humilhada, é prisioneira na sua casa onde cumpre uma promessa. É ela que vai mostrar a Evita o lado mais negro de Luís e a tenta atrair numa relação ambígua de destruição e morte.

Perdida num mundo que não é o seu, Evita cai numa teia de violência mesquinha, sem glória e sem honra. A violência de um tempo colonial à beira do fim. Um tempo de guerra, de perca e de culpa.
Trata-se de uma visão feminina sobre a Guerra Colonial, que assinalou a estreia da realizadora Margarida Cardoso no domínio da ficção cinematográfica e tem integrado importantes festivais de cinema, entre os quais se destacam a selecção para o Festival de Veneza 2004, na secção Giornate degli Autori, a participação no Festival de Manheim, durante o qual foi distinguido com o prémio especial do júri internacional e as mais recentes participações no Festival de Cinema Latino, em Chicago e no CINEPORT 2005.

"A Costa dos Murmúrios" é a adaptação livre do romance da escritora portuguesa Lídia Jorge.
"A Costa dos Murmúrios" foi distinguido com o Prémio Revelação, na 7º edição do Festival de Cinema Europeu, Cinessonne 2005


Ficha técnica:

Título Original: A Costa dos Murmúrios
Com: Beatriz Batarda, Carla Bolito, Monica Calle, Sandra Faleiro, Custódia Galego, Adriano Luz
Realização: Margarida Cardoso
Produção: Maria João Mayer
Autoria: Cedric Basso, Margarida Cardoso
Música: Bernardo Sassetti
Ano:2004
Duração:115 minutos

 RTP2 > 4ª feira,dia 11 de fevereiro de 2014,  às 00h15 >  GUERRA OU PAZ [vd. aqui trailer]

Uma outra face da guerra e a sua influência na sociedade atual. Entre 1961 e 1974, 100.000  [?] [, é uma grosseira gralha da produção!, foram mais de 1 milhão!] jovens portugueses  partiram para a guerra nas ex-colónias . No mesmo período, outros 100.000, saíram de Portugal para não fazer essa mesma guerra. Em relação aos que fizeram a guerra já muito foi dito, escrito, filmado. Em relação aos outros, não existe nada, é uma espécie de assunto tabu na nossa sociedade. Que papel tiveram esses homens que "fugiram à guerra" na construção do país que somos hoje? Que percursos fizeram? De que forma resistiram?


Ficha técnica:

Título Original: Guerra ou Paz
Com: António Setas; Arlindo Barbeitos; Cláudio Torres; João Freire; José Mena Abrantes; Luis Cilia; Manuel dos Santos Lima; Manuela Torres; Rui Simões
Realização: Rui Simões
Produção:Real Ficção - ICA/MC/RTP
Ano: 2012
Duração: 77 minutos

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Nota do editor:

Guiné 63/74 - P14224: Notas de leitura (679): Do livro "Família Coelho", edição de autor, 2014, de José Eduardo Reis Oliveira (JERO) (6): A Terceira Geração d'Os Coelhos (2)

 


1. Do livro, Família Coelho,(*) da autoria do nosso camarada José Eduardo Oliveira (JERO) (ex-Fur Mil da CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), aqui fica a segunda parte do capítulo dedicado à Terceira Geração.




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Notas do editor

(*) Poste anterior de 4 de fevereiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14219: Notas de leitura (677): Do livro "Família Coelho", edição de autor, 2014, de José Eduardo Reis Oliveira (JERO) (5): A Terceira Geração d'Os Coelhos (1)

Último poste da série de 6 de fevereiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14223: Notas de leitura (678): “Morreremos Amanhã”, por Carlos Tomé, Artes e Letras, Ponta Delgada, 2007 (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P14223: Notas de leitura (678): “Morreremos Amanhã”, por Carlos Tomé, Artes e Letras, Ponta Delgada, 2007 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Abril de 2014:

Queridos amigos,
Para bem da literatura e das memórias dos combatentes, não há padrão narrativo para os nossos relatos que podem integrar emboscadas e flagelações, medo e solidão, heroísmo e bravura, abnegação ou medo, são ingredientes mas há outros mais.
Carlos Tomé explora o cumprimento de uma dívida, vem assaltado pelo remorso, evoca aquele desconforto de que muitos de nós sofremos de não termos cumprido uma obrigação a pedido de um camarada. Carlos Tomé consegue uma obra equilibrada entre a simulação de uma reportagem, coisas da sua profissão, e o reencontro com o amor do seu mais íntimo camarada de guerra, tudo numa tessitura de plausibilidade, dois cinquentões solitários sentem-se capazes de recomeçar a vida.
E há as memórias escritas que o Rui deixou. Ele promete dar-lhes forma. Como se diz algures, só se morre quando ninguém se lembrar de nós, até lá mesmo os que combateram em África estarão presente nos testemunhos que lhes dedicarmos.

Um abraço do
Mário


Não consigo livrar-me daquilo, é o meu inferno privado

Beja Santos

“Morreremos Amanhã”, por Carlos Tomé, Artes e Letras, Ponta Delgada, 2007 é um romance que procura ir mais além das contingências de um teatro de operações, versa duas questões raramente abordadas frontalmente na literatura da guerra em África: Qual a dimensão do remorso e como o gerimos no ramerrão do quotidiano? Como subsiste, na nossa mente, a história da guerra depois da guerra, a que continua na memória dos sobreviventes, onde temos dívidas morais para pagar e torneamos permanentemente a incomodidade, a dilaceração do espírito?

O autor é jornalista e tem a sua vida profissional ligada à RTP Açores, desde 1976. “Morreremos Amanhã” não é a sua estreia literária mas será porventura a sua primeira incursão na guerra. Combateu em Angola, como oficial miliciano de Operações Especiais, entre 1972 e 1974.

O remorso não é obsidiante mas a memória dos acontecimentos não o larga:
 “Aquele tiro, todos os dias o ouço.
Ecoa na minha cabeça, num pontinho bem definido, atrás do ouvido esquerdo.
Às vezes surge sem aviso, no meio de uma conversa, na rua, no cinema, a meio da noite. Outras, adivinho-lhe o estampido à passagem de uma motorizada barulhenta ou quando algo cai, um vidro se estilhaça. No instante imediato, a minha cabeça parece explodir, sacudida por esse som que nunca consegui esquecer e me parece, até, cada dia mais nítido”.

Ele é jornalista, recebeu a incumbência de ir fazer uma reportagem a S. Miguel, as térmitas estão a destruir edifícios fundamentais do centro da cidade de Ponta Delgada. Tomou a decisão, passadas estas décadas, de procurar a Alice Tavares, a viúva do Rui, tem uma promessa para cumprir.

A guerra perpassará ténue e diáfana no contexto deste romance, mas é o condimento poderoso da amizade entre Tozé e Rui, fizeram uma jura de honra. Vacinados em Luanda, Rui Tavares tem a premonição que nunca mais irá voltar a ver a Alice, a família, os Açores. Tozé volta-se para Rui e propõe-lhe a seguinte combinação: se só um sobreviver dará um mês de ordenado à mulher amada. O Rui aceita. Rui já está em Ponta Delgada, bate à porta da Alice, na rua de Santa Catarina. Alice está maravilhada com o encontro, sempre previra aquele encontro, sempre ansiara ouvir da boca do maior amigo do Rui as razões da sua morte. A saudade não passou, transformou-se: “Já não choro quando me lembro do Rui, não me tranco no quarto, ao escuro, por dois ou três dias, e não rejeito o lado bom da vida. Tenho saudades, Tozé. Mas não é tanto saudades dele. São saudades da vida que não chegámos a viver os dois”. Conversam, Alice quer saber notícias da Luísa, Luísa e Tozé separara-se dois anos após o regresso de Angola. Marcam encontro para o dia seguinte, Tozé não teve coragem de cumprir o acordo que fizera com o Rui.

A reportagem sobre as térmitas é convincente, a desinfestação é cara, há monumentos como o Convento da Esperança que estão profundamente afetados. Interpolam-se cenas da guerra, ganha realce o acidente que vitima Rui Tavares, este estava a jogar às cartas numa divisão, ao lado, um furriel a limpar a G3 descarregou inadvertidamente a arma sobre uma parede de fraca espessura, atingiu Rui Tavares no pescoço, esvai-se em sangue. Isto em Mucondo, não muito longe de Nambuangongo. Tozé está ao lado do Rui naqueles momentos de estertor. A reportagem continua, Tozé está no Convento da Esperança, onde se guarda a imagem do Santo Cristo dos Milagres, e ele lembra-se que o Rui nunca se separava de uma pequena medalha do Santo Cristo, trazia-a, sempre, pregada com um alfinete, no interior do bolso esquerdo dólmen. “Se me acontecer alguma coisa, pá, deixa-a ir comigo”.

Tozé percorre Ponta Delgada e descreve-a na perfeição, visita os estabelecimentos afetados pelas térmitas, toma notas. Continua as entrevistas, um biólogo assegura-lhe que é impossível erradicar a praga. O seu pensamento viaja para a guerra de Angola, e lembra-se da salalé, a formiga aí constrói em altura: “Muitas dessas construções, enormes, por vezes com mais de dois metros de altura, surgiam, quase da noite para o dia, na improvisada pista de aterragem do Mucondo. Em dia de avioneta tínhamos de arrasá-las. À picareta”. Alguém, na Direção Regional da Habitação, dá-lhe conta das comparticipações do Governo e dos empréstimos a juro bonificado para todas estas obras.

Tozé vai jantar a casa da Alice, as suas recordações viajam até Mucondo, Tobias, um guerrilheiro capturado, pedira-lhe insistentemente para ir buscar a família, o capitão e os outros alferes opuseram-se, parecia a armadilha descarada. A operação correu bem, reganhou-se a confiança da população. Alice pede a verdade, Tozé conta-lhe o acidente com a armada de fogo. A única mentira foi de que o Rui não sofrera muito, ele bem vira aquele ferimento e os borbotões de sangue saindo da jugular seccionada. Alice entrega-lhe uns apontamentos do Rui que vinham dentro das cartas, eram notas para um livro que pretendia escrever quando regressasse, o que dá aso a vastas rememorações, por exemplo: “Cheguei a Angola com uma ideia errada do que acontece em combate. Soubesse que ia entrar numa guerra, pensava ter treinado o suficiente para enfrentar situações difíceis e, com um pouco de sorte, sair delas com vida. Mas não há um simulador para o medo. Nem treino para a estupefação ao som de uma rajada. De um momento para o outro somos invadidos, brutalmente, pela certeza de que alguém nos quer matar. O choque com a realidade é duro”. Todos aqueles apontamentos do Rui deram para recordar várias operações no Norte de Angola, havia ali notas de profunda indignação do Rui pela quase escravatura montada pelos fazendeiros:  
“O que não revelava era a existência de uma cantina onde, a preços exorbitantes, vendia tudo o que aos desgraçados poderia interessar. Fornecia açúcar, arroz, farinha, feijão, mas também roupas, sapatos, rádios a pilhas, óculos de sol.
De tanto de endividarem, quase todos ficavam de um ano para o outro, cada vez mais presos. Trabalhavam, já, por menos de um terço do terço que lhes cabia. Uns míseros tostões. O grosso ficava nos bolsos do fazendeiro, para abater na dívida.
O motim que os bailundos desencadearam só não acabou mal porque fomos chamados a intervir. Foi lá o Rui com os seus homens. Como ele próprio disse, o 7.º de Cavalaria desta vez salvou o bandido”.
E veio a propósito o pedido do sargento Figueiredo de trazer duas ou três raparigas de Quibaxe para consolar a companhia, deu-se luz verde, a operação seria supervisionada pelo furriel enfermeiro. Tudo correu lindamente, as meninas regressaram um mês depois desfeitas em lágrimas, nunca tinham encontrado gente tão civilizada.

Caminhamos para o desfecho, o jantar termina e fala-se na manhã seguinte em irem ao cemitério. Desta vez, Tozé arranja coragem e entrega-lhe o envelope que Alice prontamente devolve, não se podia insistir, o fundamental fora a nobreza do gesto. Tozé acaba de ler as últimas notas deixadas pelo Rui: “O 25 de abril veio trazer-nos mais esperança. Não queremos morrer aqui. Estamos demasiado longe das nossas casas, das nossas mães e das nossas mulheres. Havemos de morrer, sim, mas não aqui. E morreremos amanhã, se Deus quiser, de velhice, de cancro, de colapso cardíaco ou de outra maneira qualquer”. Rui pensa “Morreremos Amanhã é um bom título".

Ainda há algumas lembranças esparsas daquela guerra. Mas algo aconteceu entre Alice e Tozé. Alice corresponde a um beijo mas responde prontamente: “Pensei estar livre. Mas não estou. A tua vinda fez-me recuar muitos anos. Reabriu feridas que já estavam curadas. Preciso de tempo para me situar, de novo, e para voltar à mulher que sou”. Reconhecem que ainda é muito cedo para eles, precisam de tempo. E despedem-se, já estão a preparar o reencontro. Tozé é um solitário, reencontrou o amor, está embevecido com S. Miguel.

Nós só morremos no dia em que mais ninguém se lembrar de nós nem de quantos combateram em África.
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Nota do editor

Último poste da série de 4 de fevereiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14219: Notas de leitura (677): Do livro "Família Coelho", edição de autor, 2014, de José Eduardo Reis Oliveira (JERO) (5): A Terceira Geração d'Os Coelhos (1)

Guiné 63/74 - P14222: Parabéns a você (857): Ana Duarte, Amiga Grã-Tabanqueira; Fernando Franco, ex-1.º Cabo Caixeiro do PINT 9288 (Guiné, 1973/74); Hugo Moura Ferreira, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 1621 e CCAÇ 6 (Guiné, 1966/68) e José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf da CCAÇ 2381 (Guiné, 1968/70)




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Nota do editor

Último poste da série de 4 de fevereiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14217: Parabéns a você (856): José Belo, Cap Inf Ref, ex-Alf Mil da CCAÇ 2381 (Guiné, 1968/70) e Mário Silva Bravo, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 6 (Guiné, 1971/72)

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Guiné 63/74 - P14221: Historiografia da presença portuguesa em África (58): Revista de Turismo, jan-fev 1956, número especial dedicado à então província portuguesa da Guiné: anúncios de casas comerciais - Parte IX (Mário Vasconcelos): o madeireiro Manuel Ribeiro de Carvalho (Binta, Farim) e a carpintaria mecânica de Humberto Félix da Silva (Bissau)








Digitalizações:  Mário Vasconcelos (2015). [Edição: LG]



1. Continuação da publicação de anúncios de casas comerciais, da Guiné. Reproduzidos, com a devida vénia, de Turismo - Revista de Arte, Paisagem e Costumes Portugueses, jan/fev 1956, ano XVIII, 2ª série, nº 2. (*).

Trata-se de uma gentileza do nosso camarada Mário Vasconcelos [,ex-alf mil trms, CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, COT 9 e CCS/BCAÇ 4612/72,Mansoa, e Cumeré, 1973/74; foto atual à direita] que descobriu um exemplar, já raro, desta edição, no espólio do seu falecido pai.

Hoje publicamos mais dois anúncios: 

(i) O Manuel Ribeiro de Carvalho, que seria em 1956, antes da guerra, "o maior exportador de madeiras da Guiné"; tendo serração mecânica em Binta, Farim;

(ii) O Humberto Félix da Silva, de Bissau, telefone nº 6 (!), tinha carpintaria e marcenaria mecânica",  efetuava "todos os trabalhos de construção civil" e, muito importante, tinha "camionagem própria"...

A guerra deu cabo destes negócios, nomeadamente o da exploração e da exportação de madeira. 

Sabemos que o aproveitamento da "fileira florestal" vai se intensificar durante  a II Guerra Mundial, na sequência do aumento das cotações da madeira. As florestas do Cacheu, ricas em bissilião, vão ser duramente castigadas. A exportação de madeira, da província, passa dumas míseras 131 toneladas (32 contos), em 1931-35, para 24 vezes mais, em 1946-50: 3133 toneladas (2514 contos).

Coma o início da guerra, em 1963, as exportações rapidamente entraram em declínio: 13551 t (6734 contos), em 1960; 3406 toneladas (1848 contos), em 1965. A quebra mais acenuada, nessa década,   é a partir de 1963, onde o volume das exportações ainda ultrapassou as 17250 toneladas (e os 7900 contos). (Fonte: Dragomir Knapic - Geografia económica de Portugal: Guiné. Lisboa: Instituto Comercial de Lisboa, 1966, pp. 33/34).

Alguém se lembra destas duas empresas e dos seus donos ? Ainda conheci, em Contuboel, um madeireiro!....A serração do Albano ainda existia no meu tempo (junho/julho de 1969), quando Contuboel foi Centro de Instrução Militar, donde saíram, de entre outras, as futuras CCAÇ 11 e 12. A malta da CART 2479 / CART 11 deve-se lembrar bem do Albano. (**) (LG)

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Nota do editor:.

(P*) Vd. os dois postes anteriores:

3 de fevereiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14213: Historiografia da presença portuguesa em África (53): Revista de Turismo, jan-fev 1956, número especial dedicado à então província portuguesa da Guiné: monumentos - Parte I (Mário Vasconcelos): destaque para o edifício da administração civil (Bissau) e o monumento aos pilotos italianos mortos em 1931 (Bolama)

30 de janeiro de  2015 > Guiné 63/74 - P14205: Historiografia da presença portuguesa em África (52): Revista de Turismo, jan-fev 1956, número especial dedicado à então província portuguesa da Guiné: anúncios de casas comerciais - Parte VIII (Mário Vasconcelos): Mais 4 lojas de Bissau, três delas já com telefone

(**) Sobre outros madeireiros na Guiné:

7 de junho de 2010 >  Guiné 63/74 - P6549: O Nosso Livro de Visitas (92): O Xitole que eu e os meus pais conhecemos até 1962 (Maria Augusta Antunes, filha de Henrique Martinho, antigo madeireiro)

27 de julho de  2010 > Guiné 63/74 - P6794: O Nosso Livro de Visitas (96): Quem se lembra do Dr. Noronha (de Bafatá), Toscano de Almeida, madeireiro, do Dias Saboeiro, figuras que povoam a minha infância ? (Maria Augusta Antunes, que cresceu no Xitole, na década de 1950)

Guiné 63/74 - P14220: Pequenas recordações, a minha máquina fotográfica e o meu rádio (Leão Varela)

1. Mensagem do nosso camarada Leão Varela, ex-Alf Mil da CCAÇ 1566 (Jabadá, Pelundo, Fulacunda e S. João, 1966/68), com data de 27 de Janeiro de 2015:

Boa Noite Amigos Luís, Carlos e restantes Camaradas
Vinha com a ideia de escrever uma pequenina e simples história de cariz humano e que nunca mais esqueci pelo que significou para mim. Contudo, hoje vou ficar-me por vos deixar duas fotos: a da minha máquina fotográfica e a do meu primeiro rádio que só troquei na segunda vez que vim de férias e que comprei em Bissau mas que já não o tenho.
Elas aqui ficam.

Abraço-vos com amizade
Leão Varela



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Nota do editor

(*) Vd. poste de 11 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14007: Tabanca Grande (452): José Inácio Leão Varela, ex-Alf Mil da CCAÇ 1566 (Jabadá, Pelundo, Fulacunda e São João, 1966/68)