Hélder Sousa, Bissau, c. 1970/72 |
Em anexo envio um texto em que pretendo recordar a efeméride da morte do Alf. Lourenço, para mim um verdadeiro herói, ocorrida em 5 de Março de 1973.
É, também, um apertado abraço público, solidário, ao Manuel Reis, amigo do malogrado Lourenço e a quem ainda hoje esta recordação 'mexe' profundamente.
Caso vejam que pode ser publicado, seria bom fazê-lo no dia 5 de Março.
Não tenho fotos a acompanhar mas penso que se pode usar a foto n.º13 do "P11908" do cooperante Carlos Afeito e uma foto do Manuel Reis.
Abraços
Hélder Sousa
2. Efemérides: recordando o dia 5 de março de 1973: Homenagem ao alf mil Victor Paulo Vasconcelos Lourenço... Ou quem é ou o que é um herói ?
por Hélder Sousa
Várias coisas me levaram a fazer este texto.
O factor mais recente foi uma homenagem prestada pelo nosso camarada Armando Faria às vítimas das minas em Cufar em 2 de Março de 1974. Mas já há muito que um outro acontecimento, ocorrido um pouco mais a sul mas cerca de um ano antes, concretamente em 5 de Março de 1973, me tinha impressionado e que várias vezes me assaltava à mente. Refiro-me à morte trágica do Alf. Mil. Lourenço, o último Alferes a morrer na Guiné, segundo uma listagem que já vi publicada, pertencente à CCAV 8350, “Piratas de Guileje”, e que foi uma das 9 baixas mortais que essa Companhia sofreu.
O seu nome foi recordado em placa colocada pelos seus camaradas, dando assim o nome de “Parada Alf. Lourenço” em sua homenagem àquele pedaço de chão, conforme se pode ver na foto n.º 13, da autoria de Carlos Afeitos, ex-cooperante na Guiné entre 2008 e 2012 e que se encontra no “P11908”.
De seu nome completo Victor Paulo Vasconcelos Lourenço, era natural de Torre de Moncorvo, está sepultado na Caparica. Foi uma das 9 baixas mortais da companhia também por "Piratas de Guileje" e um dos 75 alferes que perdeu a vida no CTIG.
Foto: © Carlos Afeitos (2013). Todos os direitos reservados
Às vezes, também, restringindo o ‘heroísmo’ a tempos e a acções de guerra, temos tendência para dar essa classificação a quem foi “muito bom a matar”, deixando de lado aqueles que, como eu entendo ser o caso deste Alferes Lourenço, que em vez de tirar deram literalmente a sua vida em prol de outros. Nos registos, a morte do nosso camarada Lourenço ocorreu por “acidente” e não “em combate”, sendo que isso, para o resultado final, não tem qualquer diferença.
A diferença está, isso sim, nas circunstâncias em que ocorreu.
Esse relato está colocado em comentário que o nosso camarada Manuel Reis publicou no acima referido “P11908” (*). Em traços gerais, o que sucedeu foi que, aquando duma acção para (re)utilização duma picada entre Guileje e Mejo, verificou-se que num determinado local havia uma granada desarmadilhada mas não em segurança, o que o Alf. Lourenço se preparava para fazer, tendo ele dito ao Manuel Reis, que estava junto dele, que haviam duas em cada trilho e que já tinha colocada a primeira em segurança.
Subitamente a alavanca saltou e naquelas fracções de segundo a decisão que o malogrado Lourenço tomou foi a de proteger os seus camaradas que se encontravam próximos, oferecendo o seu corpo para ‘amortecer’ o impacto da deflagração tendo ficado, em consequência, ‘completamente esventrado’, como indicou o Manuel Reis.
O que o levou a tomar essa decisão? Tanto quanto nos apercebemos do relato do Reis, que se encontrava a um passo, havia mata cerrada na envolvente, havia o seu grupo de combate à frente a montar segurança, havia os capinadores e o Régulo atrás, pelo que atirar a granada para longe, fosse para onde fosse, essa tentativa provocaria, talvez, muito mais ‘estragos’. Mesmo com o seu gesto, para além da morte imediata do Lourenço, ainda se produziram 6 feridos evacuados para o Hospital, entre os quais o Régulo em estado grave.
Volto a interrogar-me: o que teria levado o Lourenço a decidir assim? O sentido da responsabilidade? O sentido do ‘peso’ do comando que determinou a necessidade de proteger os seus homens em detrimento da sua possível segurança? Como conseguiu, naquela fracção de segundo, decidir não seguir o ‘instinto de defesa’ e lançar a granada para longe? Será possível alguma vez responder a estas questões seriamente?
Será que classificar o gesto altruísta (e fatal) do Lourenço de “acto heróico” é injusto?
Para mim, não é injusto! É inteiramente merecido! Que mais poderia ter dado, para além da própria vida?
Por isso aqui deixo a minha comovida homenagem, neste dia do 42º aniversário do seu sacrifício, de modo a que a sua memória e a memória do seu gesto possam ser do conhecimento de mais gente. (**)
E também não quero deixar de dirigir umas palavras ao nosso camarada Manuel Augusto Reis, ‘amigo do peito’ do Lourenço, a quem a sua morte, em si mesma e nas circunstâncias referidas, muito abalou, naquele tempo e que ainda hoje fazem “doer”. Companheiros de quarto, confidentes, com cumplicidades cimentadas nos tempos da Universidade onde idealizavam um País mais igual, mais justo, mais solidário, no qual a guerra estivesse excluída, o Reis sabia da intenção do Lourenço casar quando viesse a Portugal (à Metrópole, como se dizia) nas próximas férias. Não veio!
Também calhou ao Manuel Reis a ingrata tarefa de reunir os haveres do Lourenço e tentar estabelecer o diálogo com a mãe dele, tendo ideia de que era filho único. Se relacionarem a data, Março de 73 e os nomes de Guileje e Gadamael (que, dizem, causam ‘cansaço’ a alguns) pode-se perceber que esses contactos através de cartas não seriam muito ‘eficazes’. Tanto quanto sei, as cartas da mãe eram de revolta e choro e que nunca chegou a ‘aceitar’ a morte do filho, pelo menos nesses tempos.
Portanto, na efeméride deste acontecimento, deixo aqui expresso o meu respeito e admiração no gesto heroico do Alferes Miliciano Víctor Paulo Vasconcelos Lourenço, natural de Torre de Moncorvo e sepultado na Caparica e também o meu abraço solidário ao sobrevivente Manuel Augusto Reis que, cumulativamente, é igualmente merecedor do meu enorme respeito pela forma cordata e paciente como tem ‘aguentado’ todas as odiosas ‘observações’ com que alguns ‘heróis de pacotilha’ o tentaram enlamear.
Honra ao Alferes Lourenço!
Um abraço para toda a Tabanca!
Hélder Sousa
Fur MilTransmissões TSF (Piche e Bissau e 1970/72)
Guiné > Região de Tombali > Guileje > Abril de 1973 > CCAV 8350 (1972/73), Piratas de Guileje > O Alf Mil Reis junto ao monumento erigido à memória do Alf Lourenço, dos "Piratas de Guileje", morto em 5 de março de 1973, na explosão de uma armadilha. Segundo nos conta o J. Casimiro Carvalho, "um dia, o alferes Lourenço, a manusear uma granada duma armadilha , e rodeado de militares - eu estava emboscado com o meu grupo -, a mesma explodiu-lhe na mão, tendo-o morto instantaneamente. Ficou sem meia cabeça e o abdómen aberto. Eu, já no quartel, ao ajudar a pegar no cadáver, este praticamente partiu-se em dois… Que dor!... Chorei como nunca, e isto foi o prenúncio do que nos esperava".
Foto: © Manuel Reis (2009). Todos os direitos reservados
3. Comentário do Manuel Reis [ex-alf mil, CCAV 8350, Guileje, 1972/743] ao poste P11908 (*)
Então aí vai amigo Luís. Já a contei imensas vezes, talvez não o tenha feito no Blogue, e tão pormenorizada. Não vou ocultar qualquer facto, julguem-me como entenderem.
Lourenço era o meu melhor amigo e após a sua perda se tivesse por onde me furtar, em segurança, e com garantia da minha integridade física, adeus, Guiné.
Estava prevista a reabertura da estrada Guileje-Mejo, para posteriormente se reabrir um aquartelamento em Quebo, mais próximo do Cantanhez. A localização do possível aquartelamento já fora por nós visitado, num patrulhamento que Coutinho e Lima comandou. Nesse dia a sorte estava do nosso lado, quando exaustos, descuidámos a proteção. O PAIGC estava no local, mas nunca imaginou que pisássemos aquele terreno, controlado por eles. A maré do rio começou a encher e tivemos de regressar, sem qualquer percalço.
Por volta das 8 da noite, dia 4 de Março, o Lourenço recebe ordem para fazer proteção à reabertura da referida picada ( estava limitada a um pequeno trilho pela imensa mata que a ladeava) no dia 5 de Março, logo que a visibilidade o permitisse.
Como sempre fazíamos, dada a nossa grande intimidade, abordámos a situação da reabertura da estrada e concluímos que aquela picada brevemente se transformaria num campo de minas, o que se veio a concretizar.
Estava de serviço ao aquartelamento, colaborando na limpeza, ajuda na cozinha, recolha de água e qualquer outra tarefa, que se tornasse necessária.
Depois de orientado o serviço, dei uma saltada à picada que estava a ser reaberta. O trabalho era feito pelos capinadores recrutados na população.
Constatámos os dois que os trabalhos tinham avançado imenso, a que era atribuído à presença, quase permanente, do Coutinho e Lima. Alertei-o para a granada, que estava desarmadilhada, mas não em segurança. Respondeu-me que sabia, cada trilho tinha duas e ele já colocara em segurança a primeira.
Depois de um pequeno bate papo solicitou-me que lhe pegasse na arma e que iria pôr a granada em segurança. Fumava um Português Suave (sem filtro e pegou na granada para a colocar em segurança. A alavanca saltou e o Lourenço para proteger os outros ficou completamente esventrado.
A situação era complicada e o tempo escasso para decidir. Estava junto dele e o sexto sentido aconselhou-me que a que recuasse um passo (não havia espaço para mais) e me baixasse com a arma dele. Em frente tinha a mata cerrada e o risco de lhe cair junto aos pés era grande. Atirá-la para a frente era arriscado, encontrava-se o seu grupo de combate a montar a segurança. Atirá-la para trás era impensável, lá se encontravam os capinadores e o Régulo que já se encontrava a dois metros de distância de nós.
A situação resumiu-se à morte imediata do Lourenço e à evacuação, para o hospital de 6 capinadores e do Régulo, este em estado grave.
Não cheguei a ver o estado do Lourenço, era fácil deduzir como se encontrava. Fiquei em estado de choque e refugiei-me na messe dos Sargentos.
Com o Lourenço partiu metade de mim. Para agravar todo este estado anímico, nessa hora, fomos visitados por camaradas sediados em Bissau que vinham planificar as obras a realizar no aquartelamento e que acabaram por me melindrar por me encontrarem num estado debilitado e em sofrimento.
Obrigado, Amigo. Descansa em Paz. Não esquecerei a data trágica de 5 de Março e recordar-te-ei para sempre.
Manuel Reis
Notas do editor:
(*) 6 de agosto de 2013 > Guiné 63/74 - P11908: Memória dos lugares (243): Núcleo Museológico Memória de Guileje - Parte II (Carlos Afeitos, ex-cooperante, 2008/2012)
Lourenço era o meu melhor amigo e após a sua perda se tivesse por onde me furtar, em segurança, e com garantia da minha integridade física, adeus, Guiné.
Estava prevista a reabertura da estrada Guileje-Mejo, para posteriormente se reabrir um aquartelamento em Quebo, mais próximo do Cantanhez. A localização do possível aquartelamento já fora por nós visitado, num patrulhamento que Coutinho e Lima comandou. Nesse dia a sorte estava do nosso lado, quando exaustos, descuidámos a proteção. O PAIGC estava no local, mas nunca imaginou que pisássemos aquele terreno, controlado por eles. A maré do rio começou a encher e tivemos de regressar, sem qualquer percalço.
Por volta das 8 da noite, dia 4 de Março, o Lourenço recebe ordem para fazer proteção à reabertura da referida picada ( estava limitada a um pequeno trilho pela imensa mata que a ladeava) no dia 5 de Março, logo que a visibilidade o permitisse.
Como sempre fazíamos, dada a nossa grande intimidade, abordámos a situação da reabertura da estrada e concluímos que aquela picada brevemente se transformaria num campo de minas, o que se veio a concretizar.
Estava de serviço ao aquartelamento, colaborando na limpeza, ajuda na cozinha, recolha de água e qualquer outra tarefa, que se tornasse necessária.
Depois de orientado o serviço, dei uma saltada à picada que estava a ser reaberta. O trabalho era feito pelos capinadores recrutados na população.
Constatámos os dois que os trabalhos tinham avançado imenso, a que era atribuído à presença, quase permanente, do Coutinho e Lima. Alertei-o para a granada, que estava desarmadilhada, mas não em segurança. Respondeu-me que sabia, cada trilho tinha duas e ele já colocara em segurança a primeira.
Depois de um pequeno bate papo solicitou-me que lhe pegasse na arma e que iria pôr a granada em segurança. Fumava um Português Suave (sem filtro e pegou na granada para a colocar em segurança. A alavanca saltou e o Lourenço para proteger os outros ficou completamente esventrado.
A situação era complicada e o tempo escasso para decidir. Estava junto dele e o sexto sentido aconselhou-me que a que recuasse um passo (não havia espaço para mais) e me baixasse com a arma dele. Em frente tinha a mata cerrada e o risco de lhe cair junto aos pés era grande. Atirá-la para a frente era arriscado, encontrava-se o seu grupo de combate a montar a segurança. Atirá-la para trás era impensável, lá se encontravam os capinadores e o Régulo que já se encontrava a dois metros de distância de nós.
A situação resumiu-se à morte imediata do Lourenço e à evacuação, para o hospital de 6 capinadores e do Régulo, este em estado grave.
Não cheguei a ver o estado do Lourenço, era fácil deduzir como se encontrava. Fiquei em estado de choque e refugiei-me na messe dos Sargentos.
Com o Lourenço partiu metade de mim. Para agravar todo este estado anímico, nessa hora, fomos visitados por camaradas sediados em Bissau que vinham planificar as obras a realizar no aquartelamento e que acabaram por me melindrar por me encontrarem num estado debilitado e em sofrimento.
Obrigado, Amigo. Descansa em Paz. Não esquecerei a data trágica de 5 de Março e recordar-te-ei para sempre.
Manuel Reis
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(*) 6 de agosto de 2013 > Guiné 63/74 - P11908: Memória dos lugares (243): Núcleo Museológico Memória de Guileje - Parte II (Carlos Afeitos, ex-cooperante, 2008/2012)
(**) Último poste da série > 2 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14314: Efemérides (181): Recordando o dia 2 de Março de 1974, dia de horror, impotência e luto em Cufar (Armando Faria)