quarta-feira, 15 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14879: 3 anos nas Forças Armadas (Tibério Borges, ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726) (2): Passagem pelo BII 18 de Ponta Delgada, IAO no RI 11 de Setúbal e embarque em Lisboa no Ana Mafalda

1. Continuação da apresentação do trabalho do nosso camarada Tibério Borges (ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726, Cacine, Cameconde, Gadamael e Bedanda, 1970/72), intitulado "3 anos nas Forças Armadas", enviado ao nosso Blogue em 28 de Junho de 2015:


3 anos nas Forças Armadas (2)

Passagem pelo BII 18 de Ponta Delgada, IAO no RI 11 de Setúbal e embarque em Lisboa no Ana Mafalda

Tibério Borges

Lembro-me alguns pormenores da minha chegada a este quartel. Fizeram-me e a outros a recepção da praxe. Na altura não entendi este método e não fiquei bem disposto. Sei que nos sentaram à volta duma mesa de sala de estar, sem comer, enquanto eles, os organizadores desta cena, comiam lautamente. Depois perguntaram se o barman podia fornecer martini em nosso nome. Eu que não tinha dinheiro para mandar cantar um cego e mal disposto com esta recepção a resposta foi um não. Tive pena, passados tempos, de não ter ido na jogada. Teria sido mais engraçado.

Outro episódio foi o de um preso ter arrombado o tecto da prisão para fugir. O episódio foi comunicado ao comandante que com a sua experiência pediu calma e mandou uma viatura com alguns soldados mas sem armas a casa do fugitivo para o trazer de regresso. Ainda me lembro de lhe ter dito para não me criar problemas e regressar ao quartel mas ele foi peremptório na resposta que regressava só porque não vinham armados como de outras vezes. E veio nas calmas.

A disciplina era muito rigorosa mas havia quem se estava a marimbar para a vida. Morrer por morrer Marquês de Pombal.

Mas a companhia foi-se formando. Muitos treinos debaixo de chuva, frios, vento… fora deles eram outra vida fora do quartel. Os continentais alferes como eu dormiam fora do quartel. Já nem me lembro onde ficava se dentro ou fora. Esta minha memória está de rastos. Sei que andava a namorar e todo o tempo que tinha era para estar com a minha namorada. Não foi fácil este namoro. Mas aconteceu.

Finais de sessenta e nove, Ponta Delgada mais parecia uma aldeia e sem condições. O pouco que havia de restauração fechava depois das horas de expediente. Vida nocturna só em particulares. Quem tinha o privilégio de entrar num grupo estava safo. O contrário era uma situação difícil pois o micaelense era demasiado fechado. Apenas um pequeno grupo desta sociedade tinha regalias porque eles próprios as criavam. Havia muito sangue azul. Mas havia pequenos grupos já da futura classe média que se reuniam para patuscadas cujo convívio são era muito agradável. O sair de casa à noite era um prestígio. Tudo era diferente comparativamente com 2008 onde o inverso existe. Foi passar dum extremo ao outro depois do 25 de Abril de 1974.
Se lerem “Gente feliz com lágrimas” vão entender bem a sociedade que existia na altura.

O que é certo é que depois da companhia formada embarcamos rumo a Setúbal onde tirámos o IAO cujas iniciais já não me lembro o significado. Era o passo anterior à ida para a Guiné, local destinado à nossa companhia. Já nem me lembro porque não era batalhão.

Setúbal era na altura uma cidade simpática porque conseguimos entrar num pequeno grupo local com o qual passamos bons momentos. O mundo era diferente, muito diferente de Ponta Delgada. Havia muitos locais onde se podia comer. E lembro-me de uma vez termos ido comer a uma tasca onde começamos pelo pão enquanto se esperava pela refeição. Foram vinte e dois papos-secos que quatro ou cinco pessoas devoraram num pouco. O homem da tasca ficou estupefacto a olhar para nós pois não sabia que éramos açorianos.

Em Setúbal

O mundo aqui era mais largo. Disso já me tinha apercebido quando vim estudar para o continente. Em vésperas de embarcar de Lisboa para Bissau o nosso capitão Magalhães deu-nos a noite livre mas marcou uma hora para formar e ninguém podia faltar. Era ver toda a malta ir já não sei como para Lisboa. Fomos para a “night”. Percorremos uma série de pubs e sei lá que mais. Bebeu-se, comeu-se e depois cada um terminou-se. Também já não me lembro como regressamos a Setúbal. Só sei que no dia seguinte, 11 de Abril de 1970, estávamos em Lisboa a fazer a marcha de despedida às altas patentes.

 Desfile antes do embarque

Depois de estarmos no navio, o Ana Mafalda, tivemos oportunidade de ver um mar vasto de gente com lenços brancos, gritando de dor a despedida do seu ente querido que o mais certo era não o tornar a ver. Era arrepiante constatar esta dura realidade. Era deprimente. Era este cenário que Salazar evitava publicar. Largamos debaixo de gritos profundos de dor e rumamos a mar alto com destino a Bissau.

Despolitizado, como éramos todos, não tinha a noção da verdadeira realidade. Lembro-me que quando tinha aulas nos Jesuítas, ali para os lados de Sete Rios, pois apanhava o comboio em Sta Iria, falava-se a boca fechada ou dava-se a entender muito sobre o regime de Salazar. O Cardeal Cerejeira era muito badalado. Havia uma revista que era muito lida pelo clero e que era muito discutida. Soube mais tarde que a PIDE expulsou de Portugal padres que pertenciam à Congregação onde estudei, Sagrados Corações de Jesus e Maria. Os meus professores eram holandeses.

A bordo do Ana Mafalda

Uma semana em alto mar deu muito para pensar e escrever. Na altura estava a namorar e eu escrevia longas cartas. Tinha tido quase dois anos de filosofia e isso dava-me campo para de uma frase expandir as minhas ideias. Lembro-me de ter tido um diário de 4 anos sem falhar um dia mas como apanhei meu pai a lê-lo e achei que aquilo era só meu decidi queimá-lo. Mais tarde arrependi-me mas já era tarde. Muitos pormenores da minha vida desapareceram, simplesmente. Mas eu estava em alto-mar. E neste percurso lembro-me de um soldado se querer atirar borda fora. Foi uma situação crítica e foi dado conhecimento ao capitão.

Foi um tempo de antevéspera à crueza duma guerra sem sentido como todas as guerras. Já o Padre António Vieira dizia: “É a guerra aquele monstro que se sustenta das fazendas, do sangue, das vidas, e quanto mais come e consome, tanto menos se farta. É a guerra aquela tempestade terrestre, que leva os campos, as casas, as vilas, os castelos, as cidades, e talvez em um momento sorve os reinos e monarquias inteiras. É a guerra aquela calamidade composta de todas as calamidades, em que não há mal algum que, ou se não padeça, ou se não tema, nem bem que seja próprio e seguro. O pai não tem seguro o filho, o rico não tem segura a fazenda, o pobre não tem seguro o seu suor, o nobre não tem segura a honra, o eclesiástico não tem segura a imunidade, o religioso não tem segura a sua cela; e até Deus nos templos e nos sacrários não está seguro”.
A nossa literatura está cheia de escritos sobre a corrupção de quem lidera a nação. O mesmo Vieira escrevia: “O maior jugo de um reino, a mais pesada carga de uma república são os seus imoderados tributos. Se queremos que sejam leves, se queremos que sejam suaves, repartam-se por todos". Está muita coisa inventada e dita. É uma questão de interpretação. E tudo isto dito no século dezassete.

E mais. O Vieira era o imperador da língua Portuguesa segundo Fernando Pessoa. Sobre as conquistas pelos holandeses de terras portuguesas no Brasil: “Se esta havia de ser a paga e o fruto de nossos trabalhos, para que foi o trabalhar, para que foi o servir, para que foi o derramar tanto e tão ilustre sangue nestas conquistas? Para que abrimos os mares nunca dantes navegados? Para que descobrimos as regiões e os climas não conhecidos? Para que contrastámos os ventos e as tempestades com tanto arrojo, que apenas há baixio no oceano, que não esteja infamado com miserabilíssimos naufrágios de portugueses? E depois de tantos perigos, depois de tantas desgraças, depois de tantas e tão lastimosas mortes, ou nas praias desertas sem sepultura, ou sepultados nas entranhas dos Alarves, das feras, dos peixes, que as terras que assim ganhámos, as hajamos de perder assim! Oh!, quanto melhor nos fora nunca conseguir, nem intentar tais empresas!”.
Para quê mais comentários? E no Séc XIX ainda teimávamos em ficar com terras africanas.

E lá íamos a caminho de África teimar em combater por ficar com aquilo que não era nosso. Uma semana num barco a caminho de Bissau. Soldados mal acomodados como gado de exportação. E para tudo se inventava uma desculpa esfarrapada para não se dar melhores condições a quem ia defender a Pátria. Mas seria realmente a Pátria que ia defender? Não. Ainda hoje vivo revoltado com toda esta situação. A Pátria grita por justiça! Abram os olhos! Ex-combatentes! Agora é altura de defender a Pátria. Mas somos nós que tomámos as rédeas do rumo da Pátria.

Estava um calor húmido terrível. Antes de desembarcarmos ficamos horas esperando ordem para o desembarque. Tudo era estranho. Outro mundo. Tudo diferente.

(Continua)
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Nota do editor

Primeiro parte inserta no poste de 8 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14850: Tabanca Grande (469): Tibério Borges, ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726 (Cacine, Cameconde, Gadamael e Bedanda, 1970/72)

terça-feira, 14 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14878: História do BART 3873 (Bambadinca, 1972/74) (António Duarte): Parte XXIV: janeiro de 1974: (i) flagelação a Finete, na margem norte do Geba Estreito, frente a Bambadinca, causando 5 mortos civis e a destruição de 25 moranças; (ii) ataque, com granada de mão defensiva, ao edifício dos CTT, de Bambadinca; e (iii) o jornalista e escritor sueco Christopher Jolin (1925-1999) visita Bambadinca e Nhabijões



Guiné > Zona leste > Setor L1 > Bambadinca > Pel Rec Daimler 2046 (maio de 1968/fevereiro de 1970) > O edifício dos CTT, contrariamente à capela, a escola (e a casa da professora), e o posto administrativo (e casa do chefe de posto),  ficava fora do recinto do quartel de Bambadinca... Mais exatamente, segundo a precisosa descrição do Humberto Reis, ficava no lado da rampa que, descendo do quartel, atravessa a tabanca de Bambadinca, dando acesso do lado esquer4do ao porto fluvial (e destacamento da Intendência) e do lado direitoa estrada (alcatroada) para Bafatá... edifício dos CTT ficava do lado oposto da casa e loja do Rendeiro (, comerciante, branco, da Murtosa)...

O insólito foi o ataque, à granada (de mão. defensiva) perpetrado contra o edifício, em 18/1/1974, às 20h45, embora sem consequências...  Tudo indicava que havia, por esta altura, uma célula ativa do PAIGC na localidade de Bambadinca... Foram encontradas mais duas granadas, do mesmo tipo, chinesas, que não rebentaram...

Foto: © Jaime Machado (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: LG]




Guiné-Bissau > Zona Leste > Bambadinca > 1997 > "O antigo edifício dos correios... Mas legendas para quê ?! Está lá escrito na parede com as mesmas letras de há 35 anos. Daqui telefonei para Lisboa umas 3 ou 4 vezes. In ilo tempore, em que se pedia a chamada com dois dias de antecedência e com hora marcada!"... O edifício ficava na tabanca de Bambadinca, fora do recinto do quartel e posto administrativo, esclarece o Humberto Reis.

Foto (e legenda): © Humberto Reis (2005) (com a colaboração do Braima Samá). Todos os direitos reservados.


 1. Continuação da publicação da História do BART 3873 (que esteve colocado na zona leste, no Setor L1, Bambadinca, 1972/74), a partir de cópia digitalizada da História da Unidade, em formato pdf, gentilmente disponibilizada pelo António Duarte (*)

[António Duarte, ex-fur mil da CART 3493, a Companhia do BART 3873, que esteve em Mansambo, Fá Mandinga, Cobumba e Bissau, 1972-1974; foi transferido para a CCAC 12 (em novembro de 1972, e onde esteve em rendição individual até março de 1974); economista, bancário reformado, formador, com larga experiência em Angola; foto atual à esquerda].

O destaque do mês de janeiro  de 1974 (pp. 81/84) vai para:

 (i) o ataque, no dia 12, em pleno dia,  contra a tabanca e destacamento de milícia de Finete, no regulado do Cuor, na margem norte do Rio Geba Estreito, a escassa distância de Bambadinca, sede do batalhão;

(ii)  as baixas foram importantes: 5 mortos (civis), 25 moranças totalmente destruídas bem como grande parte da colheita de arroz;

(iii) atentado, a 18, às 20h45, contra o edifício dos CTT de Bambandinca, edifício que ficava fora do perímetro de arame farpado; o facto era inédito, por se tratar de um objetivo civil, localizado a escassas dezenas de metros do quartel (e da porta de armas, a norte); foi utilizada uma granada de mão defensiva, de origem chinesa;

(iv)  flagelação, a 9, do destacamento do Mato Cão, guarnecido pelo Pel Caç Nat 52; 

(iv) flagelação, a 20, do destacamento de Missirá (gurnecido pelo Pel Caç Nat 54 e Pel Mil 202);

(v) flagelação, a 31, do Xitole, com 4 canhões s/r; destruídas 8 moranças;

(vi) flagelação,a  20, do Xime;

(vii) o jornalista sueco Cristopher Jolin (**) visitou Bambadinca e o reordenamento de Nhabijões;

(viii) apresentaram-se às autoridades 9 elementos pop sob controlo IN, 6 dos quais estavam, coercivamente,. a receber treino no centro militar do Boé;











História da Unidade - BART 3873 (Bambadinca, 1972/74) - Cap II, pp. 81/84
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 28 de abril de 2015 > Guiné 63/74 - P14535: História do BART 3873 (Bambadinca, 1972/74) (António Duarte): Parte XXIII: dezembro de 1973: flagelação do Xime, com foguetões 122 mm: sete mortos civis



Christopher Jolin, discursando
em 1973, em Trafalgar
Square, Londres,
num "meeting" organizado
pelo Euopean Freedom Council.
 Foto: Cortesia da Wikipedia
(**) Christopher Jolin (1925-1999) foi um joinalista, escritor e comentador político, sueco, ligado à ireita nacionalista, com posições nalguns casos próximas da extrema direita xenófoba e antissemita...Vd, aqui, em sueco, uma entrada sobre ele, na Wikipedia.

Da tradução que o Google me fez do sueco para inglês (, sempre é melhor do que do sueco para português), percebi o seguinte:

"Jolin wrote in 1972 the book 'Left rotation: threats to democracy in Sweden', where he ran the thesis that the extreme left have infiltrated the state TV and radio. During this time, Jolin also participated extensively in the anti-communist magazines Arguments for Freedom and Operation Law and Sweden, and the Swedish National Association of Free the Word. Jolin also spent time in the circle of SNF's Chairman Ulf Hamacher. Jolin, who enjoyed some respect from the parliamentary right, later became notorious as the extreme right and anti-Semitic."

O nosso grã-tabanqueiro luso-lapão Joseph Belo talvez nos possa dizer algo mais sobre este homem
 que visitou Bambadinca e Nhabijões em janeiro de 1974, 
e que muito provavelmente não deveria  gostar da teoria do lusotropicalismo do Gilberto Freyre, Era, se bem entendi, contrário à "miscigenização", leia-se "mestiçagem".

Guiné 63/74 - P14877: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (11): De 23 a 24 de Maio de 1973

1. Em mensagem do dia 7 de Julho de 2015, o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos a 11.ª página do seu Caderno de Memórias.


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74 

11 - De 23 a 24 de Maio de 1973

23 de Maio de 1973 - (quarta-feira) - Cumbijã

Mais uma vez tenho o grupo de reserva. Ontem à noite mandei uma mensagem para Aldeia Formosa para saber se continuamos aqui: afirmativo. Continuamos, portanto, (...).

De manhã recebi correspondência para o meu pelotão e cerveja, mandada pelo nosso Cap. B. da C. que nos levantou um bocado o moral, sobretudo pelas suas palavras, e bem que precisávamos, pois há nove dias que saímos de Nhala e vivemos quase como animais. Junto à encomenda que nos enviou, vinha um aerograma que dizia:

“Meu caro Murta: 
Estava ansioso por saber notícias vossas, embora soubesse que não tem havido problemas com o nosso pessoal. (...) Já falta pouco para isso acabar e tentarei dentro das limitações recebê-los cá o melhor possível. Poderá parecer-lhe estranho, mas todo o pessoal daqui [Nhala] sofre visivelmente com a vossa situação. Se precisar de alguma coisa diga para aqui (...). Envio-lhe 5 cx. de cerveja por pelotão e 500$00. Das cervejas ofereço particularmente 2 a cada homem. O resto será vendido em cantina. O dinheiro será para financiar de momento o pessoal completamente teso, ao menos para cerveja. Depois apresentará contas. Desculpe não poder mandar mais nada mas nas condições de limitação económica em que nos encontramos, foi o que se pôde arranjar. Coragem, que é pouco mais.
Peço-lhe que transmita um voto de apoio e noção da situação a cada um dos seus homens. Um grande abraço do vosso melhor amigo, B. da C.".

[Ainda pensei não publicar esta carta, por respeito e protecção do recato do autor. Mas, se o fizesse, não se perceberia quão benéfica ela foi junto dos meus soldados e até em mim, tão carenciados de uma palavra amiga. Para se perceber melhor devo dizer que, a caminharmos para o décimo dia sem tomar banho e sem mudar de roupa, tínhamos que cumprir com as obrigações operacionais, suportar o calor inclemente, comer insuficientemente e quando calhava e, no final, não nos podíamos refrescar com uma cerveja por falta de dinheiro... É fácil de entender como seria o estado físico e psicológico de todos, propício, ainda, a atritos e quezílias que agravavam ainda mais o estado geral. Outros estariam na mesma situação ou, até piores, ali e por toda a Guiné, mas a mim o que importava era defender o meu grupo de combate, sabendo que havia alternativas àquela situação desumana, tal como se veio a verificar.

Depois desta atitude nobre e solidária do nosso comandante de Nhala, outras se seguiriam no futuro, já com a Companhia toda reunida mas sofrendo, periodicamente, da escassez de tudo, devido à falta de reabastecimentos. Certo dia relembrei-lhe que a falta de tabaco na Cantina de Nhala, estava a raiar o insuportável. (Quem não fuma não poderá entender isto!). Disse-lhe, ainda, que o pessoal estava em vias de se recusar a sair para o mato, amotinando-se. E que eu próprio, que comprava o tabaco por grosso e não à unidade, estava a ficar sem ele pois estava, já há algum tempo, a distribuí-lo aos fumadores do meu pelotão para serenar os ânimos. Em pouco tempo uma avioneta fretada foi a Buba deixar-nos o tabaco e outros bens essenciais. Toda a Companhia pareceu refrescada por um bálsamo. Poderia dar outros exemplos da generosidade e solidariedade do nosso capitão, mas eles surgirão a seu tempo.

Com estas palavras de gratidão e, porque não dizê-lo, de homenagem genuína, poderão ficar confusos aqueles que conheceram o modo infausto como ele acabou a comissão, mas esses derradeiros acontecimentos em nada beliscam ou anulam, tudo o que eu disse atrás sobre o homem de carácter íntegro e de grande formação humana. Com fraquezas, naturalmente, como qualquer ser humano].

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Desde que aqui chegámos a Cumbijã que me tem doído a cabeça. (...). Hoje já não suportava mais e resolvi pedir ao Cap. Horta (?) para ir ao médico a Aldeia Formosa. Tenho o sistema nervoso arrasado e grande fraqueza geral. Meti-me na coluna que vinha de Nhacobá com a Engenharia e, caso curioso, a dor de cabeça começou a passar-me com a aplicação de álcool puro na cabeça. Já tenho o organismo cheio de Acetalgina.

À saída de Mampatá houve um acidente mortal: um rapazito da Engenharia, (são rapazitos e quase crianças muitos dos assalariados - quase todos capinadores -, caiu da viatura em que seguia, sentado no taipal, e bateu com a cabeça no chão tendo morte imediata. Embora não me impressionasse nada, porque já nada me impressiona, fazia pena o pobre do rapaz. Atravessado na estrada, braços debaixo do ventre, coberto de pó, (...). Levámo-lo connosco para Aldeia Formosa.

À chegada a Aldeia Formosa falei com o médico, que me deu um medicamento para os intestinos. Tomei banho e vesti uma farda que me emprestou o camarada alferes José Maia da 3.ª CCAÇ. Depois de jantar ouvi música e fui para o quarto dos oficiais onde dormi. Qual quê?!... Até à uma da madrugada diverti-me com as canções e os disparates dos meus camaradas de Aldeia Formosa. Era disto que eu precisava. Quase todos eles estão marcados pela situação. São crianças barulhentas e todos estão completamente “apanhados”.

[Para além do Maia, sempre sereno, recordo com saudade o António Marques da Silva com a sua boa disposição, o Amado João e a sua bonomia, e o Manuel Mota que era o cúmulo da irreverência].

Eu em Aldeia Formosa num domingo de Julho de 1973, vindo de Cumbijã para tratar de papéis. 

Aldeia Formosa - 1974, vendo-se à esquerda a pista, ao centro o quartel e à direita a tabanca.

Aldeia Formosa - 1974: Porta de armas vista do interior do quartel.

Aldeia Formosa - 1974: Edifício do Comando ao centro.

Aldeia Formosa - 1974: Aspecto da pista.

Aldeia Formosa - 1974: Tabanca e paiol.


24 de Maio de 1973 – (quinta-feira) – A. Formosa / Cumbijã

Levantei-me tarde, tomei o pequeno-almoço e escrevi para casa. Fui novamente falar com o alferes médico e ele receitou-me uma série de medicamentos. Às 11 horas regressei a Cumbijã integrado na escolta da água. O meu grupo continua hoje de serviço e, até agora, sem problemas. Os rapazes estão um bocado mais bem-dispostos, embora continuem sujos. À noite tive momentos altos de boa disposição, (era disto que eu precisava!), com o Cap. Vasco da Gama (de Buarcos) e restantes graduados da sua Companhia. Discutiu-se alegremente e bebeu-se muito uísque. A Companhia do Cap. Vasco da Gama sai amanhã de manhã para se instalar definitivamente em Nhacobá, aliás, foi esta companhia (a 51 de CAV), quem teve maior participação na expulsão do PAIGC.

Perto das 0 horas, depois de ter dormido, mal, durante umas duas horas, acordei com o barulho dum temporal que, de repente, se aproximava. Estava a dormir numa tenda grande de campanha superlotada, e tivemos que sair de emergência para ir esticar os cabos que a sustentavam de pé, de modo que o vento ciclónico não a arrancasse do chão. Em breve começou a chover, mas por pouco tempo e, até o vento, subitamente, deixou de soprar. A tempestade passou ao lado. Mesmo assim deixou-me com os nervos arrasados, pois se as condições já eram precárias, depois do breve temporal ficaram piores.

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[É notório, e ao mesmo tempo curioso, que estes meus registos da época estejam tão focados nos problemas do pessoal e nos meus próprios, passando de leve as referências às actividades operacionais. Dou-me conta disso ao transcrever, agora, apontamentos que nunca relera. Mas isso tem uma explicação: se me dissessem, naquela altura, que mais tarde iria sentir a falta das notas com resenhas militares, eu fartar-me-ia de rir com tamanho disparate. Na minha cabeça, e na dos outros por certo, a guerra ficaria ali enterrada para sempre com os seus aspectos burlescos e trágicos, mal virássemos costas no regresso à Pátria. E assim foi durante 40 anos. Até conhecer a nossa Tabanca Grande e mergulhar nas histórias de quantos por lá passaram, surpreendendo-me e alentando-me a contar as minhas].


Da História da Unidade do BCAÇ 4513 e Resumo dos Factos e Feitos

Maio/73, 25 - De acordo com as ordens do COMCHEFE, pelas 22h00 inicia-se o movimento de retirada da região de NHACOBÁ até CUMBIJÃ. No entanto mantem-se os patrulhamentos constantes na região e as acções de segurança aos trabalhos de Engenharia. (!!!).

Do meu diário:

25 de Maio de 1973 – (sexta-feira) - O abandono de Nhacobá

Hoje o meu grupo esteve de reserva e logo de manhã tivemos autorização para irmos a Mampatá tomar banho e, embora tivéssemos que vestir a mesma roupa, isso deixou-nos bem-dispostos.

De vez em quando, como já vem acontecendo há vários dias, ouvem-se para os lados de Guilege os rebentamentos produzidos pelas bombas largadas pela nossa aviação.

À tarde, um rapaz do meu grupo, o Celso, foi acometido de qualquer ataque (supõe-se cardíaco) que o deixou inanimado e quase sem respiração. Foi evacuado para Aldeia Formosa.

Cerca das 16h30, chegaram aqui as viaturas da 51, carregadas com o material da Companhia que tinha seguido de manhã para Nhacobá. O Cap. Vasco da Gama ficou com o pessoal instalado lá, sendo arrasados os abrigos e tudo trazido de novo para Cumbijã. Não sei bem o que se passa, mas isto está tornar-se feio. Consta-se que Guilege foi ontem tomada pelo PAIGC depois de as nossas tropas terem abandonado tudo. Hoje, a decisão de abandonar Nhacobá, coincide com os boatos de que aquilo ia ser atacado em massa e, também, com a chegada de um Brigadeiro aqui a Aldeia Formosa.

A minha situação aqui continua sem alteração à vista, embora eu entupa os ouvidos aos “crânios” expondo-lhes os meus problemas. Há 11 dias que saí de Nhala com o pessoal e não vejo hipótese de rendição. Estamos a ficar com os camuflados podres, a desfiarem-se e, desde há muito que cheiram a azedo e salgado da transpiração acumulada.

Cerca das 23h30 chegou a CCAV 51 abandonando, em princípio, Nhacobá. Poucas horas depois, quando o meu pessoal já tinha entregado as tendas aos verdadeiros proprietários, desencadeou-se um violento temporal, apanhando-os a dormir ao ar livre. Isto vem agravar claramente a nossa situação.

(continua)

Texto e fotos: © António Murta
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Nota do editor

Postes anteriores da série de:

16 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14373: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (1): Embarque para a Guiné, 16 de Março de 1973

8 de abril de 2015 > Guiné 63/74 - P14446: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (2): Partida para Bolama, IAO e visita do General Spínola

5 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14570: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (3): Reunião com o Gen Spínola e início do IAO em Bolama

12 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14603: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (4): Segunda semana de campo

19 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14637: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (5): A caminho de Nhala

2 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14691: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (6): Chegada a Nhala

9 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14720: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (7): Levantar minas. Ponte interrompida

16 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14755: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (8): Início de Maio de 1973 – Os devaneios e a crueza da guerra

16 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14755: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (8): Início de Maio de 1973 – Os devaneios e a crueza da guerra
e
7 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14844: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (10): 20 a 22 de Maio de 1973

Guiné 63/74 - P14876: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (VI Parte): A nossa causa é uma causa justa

1. Parte VI de "Guiné, Ir e Voltar", enviado no dia 10 de Julho de 2015, pelo nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489 (Cuntima), e Comando do 2.º curso de Comandos do CTIG (Brá), CMDT do Grupo Diabólicos (1965/67).


GUINÉ, IR E VOLTAR - VI

A nossa causa é uma causa justa

"Esta é a voz do comando, a voz que ireis ouvir ao longo do curso e durante a vossa permanência neste Centro de Instrução.
Numa guerra clássica, a moral tradicional militar defende a ideia de que a luta se trava exclusivamente entre os contendores, os que pegaram em armas para disputar a posse de um território, não sendo as populações envolvidas no combate. A guerra seria sobretudo uma luta entre os militares de ambas as partes.
A guerra que travamos é diferente. Em primeiro lugar, é uma luta pelo domínio das populações e estará em vantagem aquele que as tiver do seu lado.

A água e o lodo são os nossos campos de batalha. O terreno é plano e alagadiço, há muitos rios, pântanos e bolanhas, que são as terras alagadiças, que tu já conheces, e que servem para as populações cultivarem o arroz. Há grandes alterações das marés. Vais palmilhar matas e florestas densas.
Aqui, na Guiné, não existem mais de 60 quilómetros de estradas pavimentadas, o resto são cerca de 1500 quilómetros de terra batida. Os outros meios de comunicação são picadas e caminhos sujeitos às marés, às vezes intransitáveis.

A população é constituída por etnias das mais variadas origens. Têm hábitos próprios e cada uma tem as suas características, às vezes muito diferentes umas das outras.
Os mais numerosos são os Balantas, depois os Fulas, os Manjacos, os Mandingas e os Papéis. Depois há outros: os Brames, também chamados Mancanhas, os Beafadas, os Bijagós. Os outros, com menos gente, são os Felupes, os Baiotes, os Nalus e os Sossos.

Nem sempre tem sido fácil ganhar estas populações. Muita desta boa gente tem sofrido forte mentalização do IN e albergam guerrilheiros, a quem fornecem apoio alimentar.
Esta população mantém grande discrição sobre a presença da guerrilha, que a obriga a colaborar, escondendo as armas.
O IN tem-se aproveitado destas populações. Bem armado, tem um forte espírito guerrilheiro e exerce acção psicológica sobre elas, apoiado em emissões radiofónicas diárias, a partir de Conacri.

Relembremos o que aconteceu aqui, na Guiné. A vida decorria normalmente, o ambiente era de paz e só este é propício ao trabalho, ao bem-estar e à riqueza. Nem tudo estaria feito, nem tudo seria perfeito, mas existia bom ambiente social. O inimigo que hoje nos combate em Angola e aqui na Guiné, vem desde há muito procurando convencer os povos africanos portugueses de que só com a saída dos brancos a vida dos negros poderá melhorar. Seria essa a maneira mais eficaz e mais rápida de conseguir melhoria de nível para os africanos. O branco ao mar!
Deram início à luta armada, apoiados por potências com pretensões à posse destas terras com quem mantemos ligações há séculos. Foram elas que lhes forneceram armamento e foram elas ainda que treinaram os primeiros chefes guerrilheiros no combate. A guerra foi assim imposta por um IN comum, em Angola e aqui na Guiné, e obrigou-nos a pegar em armas para defender as nossas gentes, o nosso património.

Nem toda a população aderiu prontamente ao IN. Talvez que a grande maioria do povo preferisse a paz e dentro dela trabalhar para um futuro melhor. Isto não interessou ao IN que, aterrorizando as gentes, matando, levando-as a fugir e a fixar-se em novas zonas de mata onde facilmente as pudesse controlar e obrigar a trabalhar para si, ficou em posição de melhor poder resistir ao nosso esforço armado para restabelecer a ordem e a paz.
Todos conhecemos casos concretos aqui, exemplificativos do terror que o IN lançou nas populações. Foi este o sistema de mentalização adoptado por eles e do mesmo modo continuam. Quem lhe não obedece, sofre represálias, morre!

Como é sabido, o guerrilheiro não pode combater um exército sem o apoio da população. É ela que lhe dá o dinheiro, comida, informações a nosso respeito e o refúgio de que ele necessita. O guerrilheiro infiltra-se nas tabancas consideradas pacíficas. Abandonada e escondida a arma, ele aparece novamente aos nossos olhos como um elemento simpatizante e acolhedor porque saúda a tropa afavelmente e procura mostrar-se prestável. E mais, sabendo que como militares somos levados apenas a ver um terrorista no homem emboscado que contra nós dispara e, por conseguinte, a não desconfiar das mulheres, dos velhos, dos rapazes novos.
Utiliza precisamente estes como agentes de ligação, de informação e como cadeia de reabastecimento de víveres, medicamentos e munições. Esta é a situação actual. O que deveremos fazer?
Poderemos ver apenas o IN que contra nós dispara? Deveremos tratar como soldado prisioneiro um homem sem farda que não nos combate francamente e ataca sempre pelas costas? Ou tratá-lo como desordeiro e assassino, responsável por tantas desgraças? O que é que pensas? Qual a tua opinião?

É preciso controlar a população! Convencê-la a abandonar as áreas onde o ambiente é mais propício à guerrilha e fixá-la em zonas em que lhe possamos garantir protecção e segurança. Há que dar a possibilidade àqueles que não quiserem a guerra de se acolherem à paz. Assim o guerrilheiro ficará isolado, identificado e sem o apoio de que necessita. Quem não vier, é porque não quer! Pertence ao bloco IN que nos combate da mata.

A guerra é um mal, mas não fomos nós que a começámos. Uma vez começada, temos que a ganhar. Não viemos cá passar dois anos de comissão, viemos para ganhar a guerra. A nossa missão é conquistar a população e destruir o IN, para que em todo o mundo português se possa viver em paz, trabalhando para um futuro melhor. A nossa causa é uma causa justa!

Comando!

A tua guerra vai começar!
O resultado da acção do grupo depende de ti!
Finalmente estás pronto para combater!
O curso foi útil, violento e cansativo. Podes pensar que a tua tarefa terminou.
Não! Até agora nada fizeste, ainda nada provaste!
A ocasião está aí. O teu contributo vai ser notado!
Comando! Confia em ti, não esperes pela sorte!
Vai, cumpre a tua missão.”

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O Grupo

Ainda durante o curso de instrutores, os futuros comandantes dos grupos com alguns sargentos, reservaram uma semana para conhecerem os futuros instruendos, dispersaram-se pela Guiné, um para Bula, outro para Farim, outro para Tite, num ou noutro caso viram soldados e graduados em acção no mato, ouviram comandantes de companhia e de pelotão, falaram-lhes de uma forma diferente de fazer a guerra, puseram-nos a pensar no assunto, que se quisessem concorrer o podiam fazer, um ou outro comandante da companhia a empurrarem-lhes asmáticos e problemáticos, este gajo é que é bom para vocês, é rápido no gatilho, quando está de sentinela passa as noites aos tiros.
Juntaram-nos todos em Brá, recambiaram logo três ao fim de dois dias. Em Julho deram início ao Curso de Comandos para praças que durou até 3 de Setembro de 1965.

Bom atirador, ouvido e olhos apurados, pisteiro experiente, sentido de orientação, experiência de sapadores, desconfiado até de si próprio, há aqui alguém de cá, com estas condições? Para todo o lado, olha para o chão, para a frente, para a esquerda e para a direita. Quem é que havia de ser o primeiro homem da 1.ª equipa? Cabo Marcelino da Mata, claro, já vem com a experiência toda, tem sido sempre o primeiro homem da 1.ª equipa.
Quem é o amigo do Marcelino que é canhoto? És canhoto mas não és amigo dele, tu também és canhoto, não és amigo dele também? Para a direita, o teu espaço de visão é a direita, fazes parelha com o Marcelino, não podes ir para todo o lado com ele, porquê? Tem três mulheres? Melhor para os dois, primeira parelha arrumada.
O terceiro homem do grupo1 sou eu, comandante do grupo e da equipa, a esquerda está por minha conta também. Quem é o melhor em rádios, o melhor lançador de granadas, para mais longe e sobretudo mais certeiro nos lançamentos, afinal quem é o mais diferente de todos? Como sabes que não há cá disso? Para as árvores que estão lá em cima a olhar para ti, para quem haviam de olhar?
O quinto tem que ser o melhor especialista em primeiros socorros, estás a olhar para mim porquê, tu claro, olhas para a esquerda, nunca percas a ligação com a equipa de trás! És canhoto, essa agora? Mas és voluntário, ou não? Ah, o "Ligaduras" não é canhoto. Fechado! Ora bem, a 1.ª equipa do grupo, a equipa de comando está feita, prá frente!
A 2.ª, a 3.ª e a 4.ª são equipas de manobra. Bons atiradores e bons referenciadores de tiro, o quarto homem de cada uma delas tem que ser bom sapador, vamos para a frente que se está a fazer tarde. Furriel Azevedo, faça a 2.ª equipa!
3.ª Equipa. O número 4 é o Albino, apontador da MG-42, tu és a parelha dele, fazes também de municiador. Como fica a sua equipa então, sargento Valente?
Black com a 4.ª Equipa, o quarto homem protege...
5.ª equipa, a apoiar....

Cinco carregadores, granadas, os números 5 de cada equipa, excepto da última, levam duas incendiárias, rádios Nationals para os números 4 de cada equipa, toda gente leva punhal, os números 5 de cada equipa, excepto o maqueiro, são portadores de filtros individuais, o número 4 da 4.ª equipa leva o lança-roquetes Vacci2, os dois primeiros homens levam nylon, todos de mangas arregaçadas, excepto o primeiro, a lanterna eléctrica quem é que a deve levar, o maqueiro, claro! Duas bússolas, uma carta junto ao comandante do grupo, e pronto, alguma dúvida? Então, vamos lá ouvir!
Equipas lá para fora, para a fotografia enquanto está sol, em coluna por um como se fôssemos para o Oio.

Um grupo na fotografia

Click, click, formar o grupo agora, sentido, Caeeeirooo, mãos fechadas, que lindo, Albino endireita-me essa corcunda, peito para fora, direita volver, em frente marche, Silva para onde vais com os braços, à altura do ombro só, que não é preciso mais. O pé, porra, assenta pelo calcanhar, assim, todos a olhar para ver como é, perna estendida.

Comandante do grupo e chefes de equipa com o 1.º homem do grupo, 1.º Cabo Marcelino da Mata

“Nas conversas com os teus amigos nunca digas para onde vais, um comando é para ser admirado por toda a gente, o comando deve tratar a sua espingarda com todo o jeitinho, deve escrever semanalmente à sua família, à bajuda também, os comandos não choram os seus mortos, vingam-nos, para onde quer que olhe para lá tem virada a arma, comandos ao ataque, ó da guarda, vivam os comandos da Guiné, um comando não é melhor nem pior, é diferente, ó meu sargento, temos tão pouco que fazer, queremos mais instrução, estou mortinho para ir para a porrada, plano de refeições, ao pequeno-almoço, granadas fritas em trotil, um petardo P4 com molho de plástico, para o almoço, para o jantar cartuchos 12,7 salteados com pólvora de caril, uma ceia em Morés, meninas não saiam de casa, o Benfica e os comandos estão sempre na final, não há pai para eles, o Eusébio com a taça na mão, um comando com um morteiro 82 made in URSS.”
Viam-se dísticos por todo o lado, no edifício do comando, no refeitório, na sala de luta, nas camaratas. E durante a noite, também nos altifalantes ligados aos quartos e às camaratas.

“Repara em ti próprio, comando, faz um exame de consciência e diz francamente se já não te sentes outro, se já não estás tão diferente daquele maçarico que aqui entrou há 5 semanas? Nessa ocasião só tinhas vontade, só tinhas o querer de seres um comando, tudo o resto te faltava, a energia, a decisão, o espírito de sacrifício, a certeza de seres um bom combatente. E só passaram 4 semanas de instrução, 4 semanas em que aprendeste unicamente os princípios básicos de um bom combatente. Mas, nestas semanas aprendeste bastante e, muito especialmente, formaste sobre ti próprio uma ideia bem diferente daquela que inicialmente tinhas.
Ganhaste um apreciável espírito de sacrifício e a atestá-lo estão as noites mal dormidas, a fadiga física pronta a vencer-te, mas sempre a ser dobrada pela tua força de vontade. Depois destas semanas, já tens espírito de sacrifício. Mas tens mais, ganhaste decisão, tens energia e especialmente, tens o orgulho de vires a ser um comando! Atingiste metade do caminho, e se esta metade não for mais dura, mais leve não vai ser! Continuarão a pedir-te tudo, a tua vontade, o teu interesse, a tua atenção e a instrução continuará, quer chova impiedosamente quer faça um calor escaldante. Tudo com uma finalidade: fazer de ti um combatente decidido, consciente, sabedor e capaz de sozinho sobreviver às dificuldades. Mas tu nunca estarás sozinho, terás sempre o apoio da tua equipa. Por isso vive com a tua equipa e para a tua equipa, porque ela representa para ti a condição da tua sobrevivência.
Estás a viver perigosamente, mas todo o perigo, por maior que pareça, poderá ser reduzido se o enfrentares com consciência. E é essa consciência que neste Centro de Instrução, os teus instrutores procuram que tu obtenhas. Então sim, então serás um comando!
Dedica-te, corrige as tuas deficiências, repete cada exercício, tantas vezes quantas as necessárias, para atingires automatismos. Não te esqueças que muitos dos teus camaradas, por não terem as tuas qualidades, ficaram pelo caminho. Tu continuas e basta isso, para teres a certeza que virás a ser um bom comando. Ouviste a Voz do comando".
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Notas:
1 - Quando havia efectivos disponíveis, o que só aconteceu nas primeiras operações, os GrsCmds eram constituídos por 5 equipas com 5 homens cada: 1 equipa de Comando (Cmdt do GrCmds, 1 operador de rádio, 1 socorrista e 2 atiradores); 3 equipas de Manobra (cada uma constituída por 1 Sargento/Furriel/Cabo, 1 apontador de ML, 1 municiador de ML e 2 atiradores) e 1 Equipa de Apoio (1 Sargento/Furriel/Cabo, 1 apontador de LGF, normalmente o Lança-rockets "Dante Vacci", 1 municiador de LGF e 2 atiradores).
2 - Dante Vacchi, Jornalista e fotógrafo da revista francesa Paris-Match, que dizia ter experiência em conflitos militares, terá estado de alguma forma envolvido no modelo de treino das tropas Comandos, criadas nos princípios dos anos 1960, para combater a guerrilha, inicialmente em Angola. Cesare Dante Vacchi, antigo sargento da Legião Estrangeiro, "afirmava ter uma grande experiência de guerra, porque tinha vivido alguns conflitos. Nunca cheguei a perceber muito bem se todos como jornalista ou alguns como combatente. Ele também não era muito claro nisso", lembra o então tenente Caçorino Dias, instrutor dos dois grupos de operacionais que deram origem (em 1963/64) às tropas Comandos.

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Tambores, cornetas, caixão

A companhia de comandos estava pronta. Tinham vindo de todo o lado, até da banda de música do QG, dos cerca de 200 que começaram terminaram cerca de 100, entre sargentos e praças.
Com elementos dos grupos antigos, já bem experimentados, formaram quatro grupos a que deram os nomes Apaches, Centuriões, Diabólicos e Vampiros.
Os grupos eram constituídos por 5 equipas de 5 elementos, a primeira comandada pelo chefe do grupo, cada uma das outras por um furriel ou sargento, e as equipas eram formadas por duas parelhas, escolhidos entre eles, pelas afinidades. Durante o curso, sempre que um dos elementos da parelha se deslocava fosse para onde fosse, o outro teria que o acompanhar.
A arma que usavam era a G3, num caso ou noutro a FN. Nalgumas operações mais tarde, usaram Kalashs3 capturadas ao IN. Cada grupo levava um lança-rockets “Dante Vachi”4, com 10 rockets, as mesmas munições dos T6 e uma MG-42 de fita, a tal com que o Albino desenhava figuras com os impactos, uma cadência de tiro até aos 1300 por minuto, pena é que as culatras davam o estouro com alguma facilidade. Era a arma mais pesada que levavam, um pouco mais de 10 kg. O camuflado era a farda de trabalho, o uniforme de caqui amarelo esverdeado, pago por eles, reservavam-no para as saídas.

Os grupos a prepararam-se para a cerimónia da imposição dos crachás.


No final do curso, numa cerimónia em Brá, receberam em mão os crachás dos comandos, o escudo nacional sobressaindo com um punhal envolto numa ramo de oliveira e os dizeres “Audaces Fortuna Juvat”5 . No ombro esquerdo, a insígnia do grupo, bordada em pano, encimada por um dístico “comandos”.

Capitão Saraiva apresenta a Companhia de Comandos do CTIG ao Governador-Geral

General Schulz rodeado do Comandante Militar e de Chefes de Repartições do QG.

O único ronco que lhes era permitido era o lenço que usavam ao pescoço, cada grupo com cor diferente. Os Apaches punham lenço amarelo, os Centuriões lenço vermelho, os Diabólicos lenço negro e os Vampiros usavam um azul claro.

O General Arnaldo Schulz, passando revista à Companhia de “Comandos”

Desfile da Companhia Comandos do CTIG finaliza a cerimónia

Todos os grupos tinham chefes de equipa experimentados. Nos Diabólicos, a 2.ª equipa era chefiada pelo Furriel Mil. Azevedo, o Sargento Mil. Valente, casado com uma senhora libanesa da Guiné, e já na segunda comissão, comandava a 3.ª, o Furriel Mil. Marques de Matos a 4.ª e o Cabo Faria, conhecido por “Black”, que no recrutamento declarara a 4.ª classe como habilitações, a 5.ª e última.
Numa manhã apresentaram-se ao General Schulz, Governador e Comandante-Chefe das Forças Armadas da Guiné.

Comandos fazem guarda de honra ao Palácio do Governador

Formaram na Praça do Império, frente ao Palácio. Cerimónia militar, tambores, Hino, bandeiras, populares e o inevitável desfile. Estavam oficialmente prontos os Grupos de Comandos totalmente formados no Centro de Instrução da Guiné, agora sob o comando do Capitão Rubim.
Depois almoçaram bacalhau à Brá6, a quantidade que quiseram, até os panelões ficarem rapados, e vinho tinto a acompanhar, com cheiro a cânfora, uma garrafa para cada parelha.

Durante os últimos dias do curso, os alferes comandantes dos grupos passaram a vida a correr para o QG, às vezes mais que uma vez por dia, para a 2.ª e 3.ª Rep, indagando sobre acampamentos referenciados, localização, número de guerrilheiros previstos, armamento, existência de guia, acessos. Estudaram as indicações da Repartição de Operações, escolheram os objectivos para o golpe de mão, que era o que mais os atraía, ouviram os guias recentemente capturados ao IN e começaram a tratar dos meios de transporte, aéreos nalguns casos, marítimos noutros.

Em Brá, J. Parreira, Cap. Saraiva, V. Briote e Marques de Matos. Setembro de 1965.

Os grupos arrancaram, um em cada semana. O Capitão Saraiva fez questão de participar em todas as saídas. Os Apaches foram para a zona de Bula, encontraram-se com o IN no mesmo trilho, houve ligeiro contacto que não passou disso, a guerrilha perseguida retirou. Na semana seguinte os Centuriões, os Diabólicos na outra.
Os Vampiros fecharam o primeiro mês de operações, com a primeira baixa dos novos Comandos. Um trilho na zona de Cutia, Oio, tinha uma bailarina preparada para dançar com o Soldado Florêncio.
Com a perna arrancada, foi-se em minutos, não sem antes se ter voltado para o Alferes Vilaça, comandante de Grupo que colaborava nos primeiros socorros, e lhe dizer com a voz já muito fraca, não há problemas, meu alferes, prá semana já devo estar operacional.

O Comandante Militar entrega os crachás ao 1.º Cabo Tudela e ao Soldado Florêncio Terêncio

Só tiveste uma oportunidade, Florêncio, disse um.
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Notas:
3 - Espingarda Automática AK 47 usada pela guerrilha.
4 - Nome de um jornalista estrangeiro dado a uma arma, depois desenvolvida pelas forças portuguesas. Leve e causando grande efeito psicológico no inimigo foi fabricada nas OGMA até 1975.
5 - Locução latina que significa "a sorte protege os audazes”. Fonte: Virgílio, Eneida, X, 284.
6 - Bacalhau à Brás

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Iusse, Oio

Final de tarde em Mansoa, o Grupo pronto para a estreia. Dentro das Mercedes tapadas com as lonas, aguardaram que o Capitão Saraiva e o comandante do Grupo acertassem os pormenores com o comandante e o oficial de operações do Batalhão. Para matar a espera, meteram-lhes lá dentro pão, queijo, marmelada e água. As viaturas da coluna para Bissorã já se tinham posto em movimento quando as deles arrancaram rápidas até se chegarem às outras.
Andaram uns quilómetros, poucos, até receberem a indicação para se aprontarem para saltar. Teria que ser muito rápido, as viaturas em que iam abrandariam só, as da frente continuariam no sentido de Bissorã.
Internados no mato esperaram o reagrupamento, a noite a fechar-se não lhes prometia tempo seco. Puseram-se em movimento, como lhes ensinaram.
O capitão, uma vez ou outra, saía do trilho, ficava-se a vê-los passar, surgia-lhes por trás, G3 apontada, era uma vez um comando, assim não vais longe, pá, vai antes para a manutenção. À frente o Marcelino segurava o guia, um guerrilheiro apanhado há mais de um mês, rédea curta nos pés, braços esticados nas costas, bem atados com uma corda preta de nylon, lenço preto entre os dentes, que todos os cuidados eram poucos.
O pelotão de apoio seguiu atrás até o trilho bifurcar, emboscou-se aí a aguardar o desenrolar dos acontecimentos. No caso de lhe ser pedido, veria a melhor maneira de os recolher. O grupo deveria progredir até Biambe, procurar as casas de mato, tentar apanhar uma sentinela, explorar rápido e retirar a seguir.
Noite escura, sempre a chover, progressão lenta, paragens e mais paragens, guia a dizer que é lá, onde, ali já, nunca mais era.

Dois tiros. Detectados num trilho, mesmo junto à tabanca de Iusse.
Responderam à voz do Saraiva, atiraram e atiraram-se lá para dentro. No meio da escuridão esbarraram com 2 barracas, ninguém lá dentro.
O capitão não queria sair da zona, nem a tiro. A primeira operação a seco, nem pensar. Vamos aguentar aqui, dentro da mata, até o dia clarear. Os gajos sabem que nós estamos cá, nós sabemos que eles estão na mata aqui à volta. Vão acabar por se mostrar.

Não foi preciso esperarem que fosse dia. De um momento para o outro, começaram a ser alvejados. Fogo alto, a bater nas copas das árvores.
Uns minutos depois, começaram a ser flagelados com fogo de morteiro, do lado de onde tinham vindo. Das matas em redor, flagelavam-nos com tiros de armas automáticas e, para "compensar", recebiam morteiradas, do lado da bolanha.
Ao AN PRC/107, o Capitão Saraiva queria saber o que era feito do pelotão de apoio, mas este não dava sinal.

Esquadrilha de T6. Imagem da net.

Chegou uma parelha de T68. Um espectáculo seguido com expectativa. Pelo AVF9 ficaram a saber que era verdade o que julgavam. Do pelotão de apoio subiam granadas, viam o fumo atrás, confirmava um dos pilotos, a trajectória delas quase a pique, o estardalhaço a cair-lhes quase em cima, com a chuva. Estavam bem abrigados, dali não sairiam tão cedo a não ser que o morteiro da tropa amiga se calasse. A parelha dos T6 despejava rockets e rajadas de metralhadora sempre que via fumos a sair da mata. O fogo IN abrandou e o morteiro do pelotão calou-se.
O apoio aéreo ajudou-os, pareceu-lhes mais demorado que o que deveria ser, mas, por fim, retiraram em ordem, com o fogo inimigo, disperso mas mais ajustado, a dar-lhes algum trabalho, obrigando-os a percorrer, bem colados à água, as duas centenas de metros da bolanha, largamente distanciados uns dos outros10.
Respiraram fundo quando alcançaram a mata. E depois, nem bom dia nem boa tarde, quando passaram pelo pelotão, deixado para trás como se tivesse lepra, que regressassem sozinhos, connosco não, que temos pressa. A esgalhar, no goss-goss11, como diziam os guineenses, pelas margens do trilho.
A paragem era para descansarem um pouco, recuperavam a respiração, sentados, costas com costas. Ouviram-se palavras em crioulo, ásperas de um, suaves as do guia, que afinal não fora grande camarada para a tropa. Amarrado com cordas a uma árvore, olhos misteriosos, indefinidos, uma frase, duas ou três palavras, sempre baixas e doces.
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Notas:
7 - Rádio normalmente usado para comunicações terra-terra. O AN/PRC-10 estreou-se, em Março de 1951, na guerra da Coreia, ao serviço do Exército Norte-Americano. Fez parte da família de rádios AN/PRC-8 e AN/PRC-9, diferindo apenas na frequência e dos componentes que a determinavam.
8 - Aviões monomotores de hélice utilizados pela FAP no ataque ao solo, dispondo de suportes debaixo das asas para bombas, metralhadoras e ninhos de foguetes.
9 - Rádio para comunicação terra-ar.
10 - Do relatório da acção: "8/09/65, sector O3, Op. 'Flecha', Oio. Objectivo: golpe de mão a um acampamento a oeste de Cambajo Dando, chefiado por Augusto Pequim, segundo informação de um guia capturado. Avistado um elemento IN em fuga. Encontradas 2 barracas. Ataque e reacção do IN com rajadas de armas automáticas. Escuridão completa, retirada do grupo para um local a cerca de 200 metros, aguardando o clarear do dia. Por volta das 5 da manhã, nova entrada no acampamento, com vista à limpeza das barracas. O IN abriu fogo para dentro do acampamento. Encontrado um cunhete com granadas de mão, guias de marcha, documentos e peças de roupa. Destruídas cerca de 15 casas de mato."
11 - Andar rápido, depressa.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 9 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14857: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (V Parte): Brá, SPM 0418

Guiné 63/74 - P14875: Agenda cultural (417): "De Freguês a Consumidor, 70 anos de sociedade de consumo". Venha cavaquear comigo, dia 16 de Julho pelas 19 horas, na Livraria Barata, Av. de Roma, n.º 11, em Lisboa (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), Técnico Superior Aposentado da Direcção Geral do Consumidor, com data de 13 de Julho de 2015:


De freguês a consumidor: venha cavaquear comigo

Mário Beja Santos

Escrevi o meu testamento cívico-profissional em forma de livro, na expetativa de poder debater com amigos, colegas da profissão, associativistas da mais diferente índole, sindicalistas, professores e alunos de muitas instâncias universitárias, e com provável e improvável público curioso sobre as andanças da sociedade de consumo e as inumeráveis questões que me acompanharam ao longo de quatro décadas. E mais não digo.

Tive a maior satisfação em aceitar o repto que me foi feito pela Livraria Barata (Avenida de Roma, 11) para em 16 de Julho, entre as 19 e as 20h, ali comparecer e me expor a quem se interessa por tudo o que aconteceu quando saímos do estatuto de freguês e cliente e nos tornámos consumidores.

São as histórias que escrevi no meu mais recente livro “De Freguês a Consumidor, 70 Anos de Sociedade de Consumo, História da Defesa do Consumidor em Portugal”, publicado pela Nexo Literário.

É igualmente com a maior satisfação que vos venho convidar para um debate franco sobre os termos dessa viagem que já dura há 70 anos, o extenso e penoso trânsito do industrial ao pós-industrial, pontuado pela voragem de paradigmas em que a comunicação e o digital se apresentam hoje como energias motrizes. Cavaquear à volta do triunfo do individualismo, da vertigem das modas, da ficção como segunda realidade, da permanência mitológica da crise, um espantalho devorador e intimidador que serve de chancela para a condução política dos mais variados matizes ideológicos.

Nesse cavaqueio, é bem possível que nos ponhamos de acordo de que as classes médias, tão sujeitas ultimamente ao processo centrifugador, ainda permanecem como o esteio das sociedades democráticas.

Porque é do senso-comum que a sociedade de consumo, em todas as suas vicissitudes, conta com um consumidor como um eleitor. Coisa curiosa, os partidos políticos já nem precisam de afagar os consumidores, têm-nos na mão ao preço de um estranhíssimo conceito de segurança, intimidam com a perspetiva de uma crise maior se o consumidor não aceitar, na plenitude, as regras do jogo que propõem. Não há mesmo salvação fora das beatitudes da austeridade?
Vamos então cavaquear.
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Nota do editor

Último poste da série de 11 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14862: Agenda cultural (414): "Dinossauros de Portugal & Friends", de Simão Mateus...Lançamento, hoje, sábado, dia 11, às 16h00, na Lourinhã... A ciência ao alcance de todos, do neto ao avô, dos oito aos oitenta anos... Uma boa sugestão de leitura para estas férias de verão, completada com a visita ao Museu da Lourinhã, a antiga "terra da loba", hoje a orgulhosa "capital dos dinossauros" (Luís Graça)

Guiné 63/74 - P14874: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (3): Convívio da Tabanca de Porto Dinheiro, 12 de julho de 2015 (Parte II): João Crisóstomo e António Nunes Lopes, do mesmo pelotão, da CCAÇ 1439, encontram-se 50 anos depois e falam, com emoção e dramatismo, da violenta emboscada que uma vez sofreram em Darsalame (Baio), no subsetor do Xime



Vídeo (7' 31''). Alojado em You Tube > Luís Graça 

Lourinhã > Ribamar > Praia de Porto Dinheiro > Convívio da Tabanca de Porto Dinheiro > 12 de julho de 2015 > (*) O João Crisóstomo e o António Nunes Lopes encontram-se ao fim de 50 anos... Pertenceram à mesma companhia e ao mesmo pelotão... E evocam aqui, com uma espantosa precisão de detalhes, e grande emoção,  uma dos mais duros episódios de guerra por que passaram, em 1966, em Darsalame (Baio), na zona de Baio/Buruntoni, no Xime, que o PAIGC sempre "controlou" durante toda a guerra, e onde era inevitável haver "contacto" com as NT... Qual o nome verdadeiro do místico soldado, de alcunha "Penálti", de aqui se fala ? Pode ser que alguém saiba mais sobre este homem, que foi herói e desertor...

João Crisóstomo, que é natural de uma freguesia vizinha, A-dos-Cunhados, do concelho de Torres Vedras, fez-se à vida depois do regresso da guerra. Andou pela Europa e Brasil, até se fixar em 1975, nos EUA, onde hoje vive (em Nova Ioprque) e que é a sua segunda pátria.



Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > Susetor do Xime > Carta do Xime  (1961) > Escala de 1/50 mil > Posição relativa do Xime e Darsalame (Baio) onde o pelotão do João Crisóstomo (alferes) e do António Nunes Lopes (furriel) sofreram uma violenta emboscada, em 1966, e tiveram um comportamento heroico... Na zona de Poindom / Ponta do Inglês, havia população que cultivava as bolanhas, na margem direita do R Corubal e que "apoiava" a guerrilha... Também eu ali conheci o inferno, três ou quatro anos mais tarde, em 1969/71... (LG).

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2015).


Praia de Porto Dinheiro

por Luís Graça (*)


Finisterra,
pórtico do tempo,
és gare, 
és algar,
porto dos portos das Atlântidas perdidas!

Foste estaleiro de vasos de guerra,
galeões, naus e caravelas
por haver ou nunca havidas,
diz o livro antigo do almoxarife.

Hoje não se constroem mais catedrais,
nas tuas fossas submarinas,
nem moinhos de vento,
nos teus corais de recife,
nem traineiras de grosso cavername,
nas rampas das tuas arribas fósseis.

Dóceis
são as ondas do teu mar com que afagas
a pele 
e apagas
a púbis das raparigas.

Praia de  Porto Dinheiro:
o irresistível apelo das algas
que são as hormonas do mar,
espigas, valquírias, ninfas, najas, canibais,
que vêm do fundo dos tempos imemoriais
para seduzir os filhos dos homens,
inebriar as suas almas,
enlear os seus corpos.

Há olhos que perscrutam a linha do horizonte
e rasgam a colina de neblina, 
por detrás das Berlengas.
É de lá que vêm corsários,
monstros e mostrengas,
dinossauros,
loucos menestréis,
contadores de lendas,
mouras encantadas,
mercadores, invasores, conquistadores,
vikings, vírus,
e os bretões com o seu barco a vapor,
o Bateau ivre.

É de lá que vêm os portadores da peste, da fome e da guerra…
Mercator ergo pestiferus,
mercador logo portador da peste,
de que Deus nos livre!

Deste nomes de fêmeas
aos teus barcos
que são machos,
máquinas fálicas
de lavrar e violar
o vento, a água, o ar,
Jessica, Mafalda, Sofia,
Inês, Patrícia, Maria.

Formidáveis muralhas de palavras e moluscos
emparedam vivas as gentes, ribeirinhas,
na canícula desta tarde de verão
em que esperamos em vão
as hordas bárbaras,
ou tanto faz,
os soldadinhos de chumbo do Napoleão,
os mercadores fenícios,
ou as legiões romanas,
devidamente equipadas 
e alinhadinhas,
nas suas galeras feitas de legos.


Não sabemos quem devemos mais esperar,
se Drácula ou Drake, 
disfarçado da pérfida deusa Europa,
o deslizamento das placas tectónicas,
a erupção do teu gigantesco dinossauro,
o cobrador de impostos

em nome das tribos teutónicas, 
Moisés e a tábua dos dez mandamentos,
a bela e frágil deusa Atena,
o profeta Jesus Cristo 
ou o profeta Maomé,
o último guru do Vale da Sílica, 
ou simplesmente o carteiro 
que nos há-de trazer a carta a Garcia,
com a solução alquímica da vida,
o elixir da juventude,
o algoritmo da felicidade,

a chave do Euromilhões
ou a password do sítio
da gruta de Alibabá e os 40 ladrões.

Estou sentado na esplanada da tasca da Ti Augusta,
depois de saborear uma sopa de navalheiras,
e comer uma posta de arraia frita,
recuando ao tempo dos meus avoengos Maçaricos,
arrebanhados em terra 
para a demanda, por mar,  das Índias…
E aqui penso em como o mundo às vezes é tão simples,
se descartado das métricas todas
com que nos lixam a vida 
e nos roubam o sonho e a poesia: 
a econometria,
a sociometria,

a psicometria,
a biometria…

Dizem que aqui reinou o rei Midas,
o mesmo que transformava lagostas e algas
em barras de ouro.

Porto Dinheiro,
dos casais por detrás das tuas colinas,
até ao mar imenso,
por aqui andaram, labutaram, penaram, 
amaram, lutaram e naufragaram 
os nossos antepassados


Um dia há de desaparecer nas Américas
o teu último carpinteiro de naus, caravelas e traineiras.
Não sobreviveu à industrialização da construção naval,
nem à crise dos anos 30.
Morreu longe, na Califórnia,
longe, muito longe do teu porto de abrigo.

Maldita pátria,
mil vezes amada, 
e outras tantas odiada,
querida mátria
que tantos filhos pariste,

cruel frátria
que tantos irmãos rejeitaste!


Luís Graça

Lourinhã, Praia do Porto Dinheiro, 18/8/2011



(...) À memória dos meus antepassados Maçaricos,
marinheiros, mareantes, navegantes,
pescadores, mercadores, construtores navais... desde Quinhentos

Ao António Fernandes (Patas),
contrutor naval que morreu na Califórnia
E ao seu neto, e meu primo e camarada, Horácio Fernandes,
capelão militar em Catió e Bambadinca (1967/69). (...)

segunda-feira, 13 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14873: Notas de leitura (736): “Guerra d’África, 1961-1974, Estava a guerra perdida?”, por Humberto Nuno de Oliveira e João José Brandão Ferreira, Fronteira do Caos, 2015 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Julho de 2015:

Queridos amigos,
O nacionalismo radical trata o fim do Império como um processo de traição, de abandono, o zénite da derrisão dos valores da nação. Neste livreco, feito de um amontoado de considerações sem consistência histórica e de respostas de valor muito desequilibrado, o leitor tem oportunidade de ver como se procura o sensacionalismo publicando textos que vêm em todos os blogues, nunca se consentindo no contraditório, nunca se confrontando o cenário internacional com os ideários do regime deposto.
Há para ali uma enorme saudade do tempo em que Henrique Galvão, a propósito da I Exposição Colonial, se realizou em 1934 no Porto, publicou o mapa "Portugal não é um país pequeno", em que se enchia a Europa com Angola, Moçambique e outros espaços coloniais. Enfim, a "questão fraturante" permanece mas já não se pode esconder o vazio ideológico de quem promove a sustentabilidade da guerra como a suprema nostalgia do império que desapareceu.

Um abraço do
Mário


Mitos e enganos sobre o fim do Império Colonial português (2)

Beja Santos

É preciso ler do princípio ao fim “Guerra d’África, 1961-1974, Estava a guerra perdida?”, com prefácio de Jaime Nogueira Pinto, por Humberto Nuno de Oliveira e João José Brandão Ferreira, Fronteira do Caos, 2015, para se perceber a orfandade ideológica destes expoentes do nacionalismo radical que brandem a argumentação de que a guerra de África estava ali para durar, não havia qualquer inevitabilidade de derrota, o que houve foi um certo desfalecimento de alguns oficiais a que se juntou o envenenamento ideológico trazido pelos oficiais milicianos, daí o desastre do fim do Império e as suas tremendas sequelas.

É um livro mal alinhavado, para dar um ar de seriedade resolveram lançar uma pergunta em mau português a uma série de oficiais e dois civis, nestes termos: “Na sua perspetiva, considera que as operações anti-subversivas e de contraguerrilha desenvolvidas em Angola, Guiné e Moçambique, em defesa da soberania portuguesa sobre aqueles territórios e populações que viviam há seculos debaixo da bandeira das Quinas, estava militarmente perdida?”.

Nas respostas há de tudo, como na botica. Não estava perdida nem estava ganha, o importante era que o poder político encontrasse uma solução política (não se diz qual, aduz-se que servisse para terminar o conflito, sabe-se lá se incorporando todo o corpo de guerrilha nas forças armadas locais…) dizem uns. Há respondentes que não confundiram a nuvem com a floresta, equacionaram a evolução da guerra com o contexto internacional e a mentalidade da sociedade portuguesa. O Coronel Moura Calheiros recorda que também havia um cenário interno e elenca as suas razões: o entusiasmo inicial da população pela defesa do Ultramar foi-se desvanecendo; esta falta de entusiasmo, mesmo de fadiga, teve consequências nos quadros das Forças Armadas; a preparação das tropas que partiam para África era cada vez mais deficiente; o caso mais influente era o que ocorria nas universidades, aqui o ambiente era de intensa e permanente propaganda contra a guerra em África e a favor da “independência para as colónias”. E conclui: “Não vejo como seria possível manter, a partir de 10 a 15 anos da nossa data de referência, a política relativa ao Ultramar seguida pelo governo de então. É que não haveria cidadãos com capacidade para a governação do país que não estivessem afetados e bem doutrinados pelas lutas estudantis. Toda ou, no mínimo, a esmagadora maioria da população portuguesa com formação académica estava doutrinada contra a guerra no Ultramar”.
Nesta mesma linha discorre Adriano Moreira quando diz: “Da minha observação, e não de escutar outros, a guerra, em 74, como tal não estava perdida: mas estava ultrapassado pela população o conhecimento histórico do Ultramar pelo conhecimento adquirido da realidade ultramarina, acrescendo o cansaço da juventude, a fadiga das tropas incluindo a articulação dos estatutos entre profissionais e milicianos; por isso, em relação ao Ultramar, o movimento que assumiu o controlo das forças militares, pôs um ponto final na guerra, porque o ambicionado e prometido tempo para encontrar soluções políticas, que foram desencadeadas e interrompidas, foi por ele dado por esgotado. Não teve programa de descolonização”.

Há respondentes que pretendem trazer originalidades históricas. É o caso do Tenente-General José Vizela Cardoso que nos vem falar das orientações acordadas no Pacto de Paris (subscrito por Álvaro Cunhal e Mário Soares, numa quinta-feira, a 27 de Setembro de 1973, e que não estavam preconizadas no programa do MFA. Fico absolutamente seguro que esta descoberta irá revolucionar toda a investigação sobre as origens do 25 de Abril e o processo de descolonização.
O Coronel Caçorino Dias também traz revelações que poderão levar a estudos edificantes. Por exemplo, quando diz: “A maioria dos cozinheiros das unidades militares eram autóctones, mas nunca se registou um caso de envenenamento; não há memória de um soldado ter sido assassinado, ou de ter ocorrido um rapto de um familiar de um militar. Os militares movimentavam-se por todo o lado, à vontade, mesmo nos bairros tidos por mais problemáticos. Nem lhes passava pela cabeça que se lhes fizessem mal”.
Um outro respondente, o Tenente-General José Francisco Nico, apresenta nas suas conclusões o seguinte: “Não se pode afirmar que a derrota de Portugal, concretizada internamente no 25 de Abril foi uma vitória dos movimentos de libertação como é voz da opinião pouco informada e esclarecida. Os movimentos de libertação sem todo o apoio político, militar, financeiro, de espaço e em material que foram recebendo dos outros subsistemas nunca teriam alcançado o seu objetivo. No entanto, é preciso reconhecer que o sistema adversário necessitava da ação dos movimentos de libertação para conferir dinâmica ao processo e dar-lhe visibilidade na opinião pública”. Branco é, galinha o põe.

O Coronel Raúl Folques, experimentado combatente, e que comandou o Batalhão de Comandos da Guiné, sobretudo na operação “Neve Gelada”, em que se capturou ao PAIGC uma bateria de morteiros 120, afirma o seguinte: “Considero que o PAIGC, em 1973/74, tinha muita dificuldade em recrutar combatentes, sendo certo que muitos dos guerrilheiro capturados ou abatidos eram já veteranos, homens calejados na guerra e muito experientes. Pelas razões apontadas, é minha opinião que a guerra estava longe de se poder considerar, em termos militares, perdida. O fator principal que jogava contra nós e que era significativo era a desmotivação que grassava nalguns quadros e o facto do poder executivo não ter conseguido revitalizar o esforço de guerra”.

Os ultranacionalistas continuam apegados a fórmulas fanatizadas, com especial relevo para a existência de um Império multisecular, para a agressão dos terroristas, etc. Louvam encomiasticamente o comportamento do soldado português como se alguma vez o seu denodo tivesse sido posto em causa. Nunca utilizam o contraditório, citam os seus autores de confiança, promovem a efabulação da sustentabilidade da guerra desviando o olhar de cruéis realidades como a própria crise económica que se instalara em Portugal e que se saldava numa inflação superior a 30% no primeiro trimestre de 1974. É possível que nunca venhamos a saber as motivações de fundo que levaram Caetano à mesa das negociações com o PAIGC e a incitar Santos e Castro e Jorge Jardim a promoverem independências brancas. É dentro desta indigência ideológica que os nacionalistas radicais se comprazem, exultantes, promovendo falsa História com o pretexto de que predomina a historiografia dos vitoriosos do 25 de Abril, o que eles chamam uma historiografia vesga que insiste em glorificar desertores…
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Nota do editor

Último poste da série de 10 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14859: Notas de leitura (735): “Guerra d’África, 1961-1974, Estava a guerra perdida?”, por Humberto Nuno de Oliveira e João José Brandão Ferreira, Fronteira do Caos, 2015 (1) (Mário Beja Santos)