sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Guiné 63/74 - P15336: FAP (93): O impacto do Strela na actividade aérea na Guiné - III e última Parte (José Matos, historiador e... astrónomo)


Guiné > Zona Leste > Bafatá > ambadinca > CCAÇ 12 (1969/71) > O célebres e velhinho caça-bomradeiro T6 G, tanbémk conhecido por "ronco", na pista de aviação de Bafatá, Em primeiro plano, o fur mil at nf, da CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71)  Arlindo T.Roda, autor da foto. Os T 6G vão desempemhar um importante papel no final da guerra...


Foto: © Arlindo T. Roda (2010). Todos os direitos reservados. [Edição: LG].




1. Terceira (e última) parte do artigo do nosso grã-tabanqueiro José Matos sobre a "arma que mudou a guerra", o míssil terra-ar Strela, de origem russa, introduzido na Guiné depois da morte de Amílcar Cabral, na sequência da escalada da guerra. 

Recorde-se que o José [Augusto] Matos, formado em astronomia em 2006 na Inglaterra [ University of Central Lancashire, Preston, UK ], é especialista em aviação e exploração espacial desde 1992, e faz parte da Fisua - Associação de Física da Universidade de Aveiro.

Tem-se dedicado, como investigador independente, à história militar, e em particular à história da guerra na Guiné (1961/74). 




SA 7- Grail (designação NATO), 
míssil terra-ar, de origem russa (9k 32 Strela 2), desenhado por volta de 1964 e operacional em 1968. 

Caraterísticas técnicas do SA- 7 «Grail» / 9K32M Strela-2 | Míssil antiaéreo:


Fabricante: KB Machinostroyenia; função principal: defesa antiaérea próxima; alcance: até 4,2 km; velocidade: 1300 km/h; tipo de ogiva : alto Explosivo / pré-fragmentada; peso da ogiva : 15 kg.; peso total: 10 kg; comprimento: 1.47 m; diâmetro: 72 mm; sistema orientação: infravermelhos. O Strela 2 foi concebido e testado por volta de 1964. Foi dado como operacional em 1968. Com um alcance máximo de 3,7 km e problemas com o sistema de orientação, as prestações do míssil não foram consideradas satisfatórias. Rapidamente foi lançada a versão Strela-2M, em 1971. A versão melhorada podia atingir em teoria alvos a distâncias de até 4,2 km. Era eficaz contra alvos a mais de 50 metros de altura e menos de 1500 metros.

Foto: Cortesia de Wikipedia. Imagem do domínio público.



O impacto do Strela na actividade aérea 
na Guiné (III e última parte),
  por José Matos



A evolução da guerra colonial na Guiné tomou um rumo dramático em 1973-74, quando o PAIGC (Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde) adquiriu a última versão do míssil soviético terra-ar SA-7 (Strela-2M). A utilização desta arma pela guerrilha provocou profundas alterações no emprego da aviação e na eficácia das operações aéreas. Aproveitando os efeitos tácticos do míssil, que tiveram reflexos estratégicos, os guerrilheiros lançaram várias operações de grande envergadura e a guerra entrou numa fase muito delicada. Surpreendida, inicialmente, a Força Aérea tomou rapidamente várias contramedidas que reduziram a eficácia do míssil. Que impacto teve, verdadeiramente, na actividade aérea e qual o efeito das contramedidas adoptadas é o que se pretende analisar neste artigo.

(Continuação) (*)


O efeito das contramedidas


É inegável que o aparecimento do míssil na Guiné teve consequências nas operações aéreas e no uso do poder aéreo, mas as várias contramedidas adoptadas, ao longo do ano, surtem efeito, pois mais nenhum avião volta a ser abatido até ao final de 1973, embora as equipas de mísseis continuem activas dando cobertura às acções no terreno. 

Desde finais de abril até dezembro de 1973, são referenciados 15 disparos contra aviões Fiat, mas nenhum avião é atingido [36].  Este indicador mostra que os pilotos da BA12 conseguiram, ao longo do resto do ano, contornar a ameaça antiaérea e recuperar o controlo sobre a generalidade das acções de apoio que prestavam às forças terrestres.

O único abate acontece em 31 de janeiro de 1974, quando o G.91 5437,  pilotado pelo Tenente Castro Gil,  é atingido por um míssil perto da fronteira com o Senegal, numa missão de apoio a Canquelifá. O piloto consegue ejectar-se e escapar à guerrilha, regressando no dia seguinte ao quartel de Piche, à boleia numa bicicleta de um habitante local.

No relatório de análise ao incidente verificou-se que as normas de segurança foram cumpridas, mas que “o adiantado da hora (17h30), dificultando a visibilidade, contribuiu para que não fosse possível ao nº 1 detectar o lançamento do míssil” e que “o avião ainda não tinha sido pintado com tinta de baixa reflexão de infravermelhos" [37].

Nesta altura, a Força Aérea tinha já efectuado contactos em França para comprar uma tinta de baixa reflexão, de tonalidade verde escura capaz de evitar o míssil. Mas só em março de 1974 é que chegam a Bissalanca as primeiras aeronaves pintadas com a nova tinta anti-reflectiva: o Fiat 5401 e o Alouette III 9401 [38].


As acções aéreas de ataque em 1974

A análise da actividade operacional, em 1974, mostra que as acções aéreas de ataque aumentam nos últimos meses da guerra (com excepção de março), como se pode ver no gráfico seguinte.




As acções aéreas de ataque em 1974

 Este incremento deve-se, essencialmente, ao T-6G, que passa a voar com mais frequência neste tipo de missões, nomeadamente, a partir de março, em missões ATIP [39]. Uma análise deste tipo de missões, por aeronave, permite perceber que o T-6 tem um papel importante na fase final da guerra, como se pode ver no gráfico seguinte.





Este desenvolvimento resulta, em parte, da experiência adquirida no C-47. Do famoso “Flecha de Prata”, passou-se para experimentações nos “Roncos”, como eram conhecidos, na época, os T-6G. Num destes aviões, foi aplicado um derivómetro-visor. Houve que conceber e aplicar na “aeronave artilheira”, uma pala, para evitar que o pouco óleo pulverizado, que sempre sai do escape do motor, não ofuscasse o campo de visão e o retículo de pontaria do visor. Preparou-se a indispensável tabela de tiro e executaram-se, durante o dia, alguns bombardeamentos em voo horizontal, com 4 aviões em formação. Desta forma, os “Roncos” começaram a ser usados em bombardeamentos diurnos de área a 10 000 pés, servindo o “avião artilheiro” de guia para os bombardeamentos. Nestas missões, os T-6G eram armados com 6 bombas de 15 kg e voavam em formações de 4 aviões [40].

No entanto, com a excepção de janeiro de 1974, a actividade do GO1201, baixa nos derradeiros meses da guerra, como se pode ver no gráfico 9 [41].


Em busca de sistemas antimíssil

Fiat G-91, camuflado... Hoje é peça de museu...
É também na fase final da guerra, que a FAP procura equipar os Fiat com um sistema antimíssil doflare, a comprar nos EUA. Logo no início de fevereiro de 1974, um grupo de técnicos americanos da firma TRACOR desloca-se às Oficinas Gerais de Material Aeronáutico (OGMA), em Alverca, com o propósito de estudar a possibilidade de instalação de contentores para ejecção de flares nos G.91. Os técnicos americanos concluem que é possível a instalação de 4 contentores do tipo TBC-72, lateralmente, junto ao bordo de fuga dos pylons internos do Fiat e capazes de fornecer uma protecção contínua entre 4,5 a 6 minutos, conforme a cadência de disparo dos flares [42].
tipo

Pouco tempo depois, em meados de fevereiro de 1974, o novo ministro da Defesa, Silva Cunha, dá ordens para que se iniciem rapidamente as diligências conducentes à aquisição do equipamento em causa [43].  Os custos da aquisição ascendem a 19 mil contos  [, equivalente hoje  3.062.558,26 €
(LG)] e prevê-se que esta verba possa ser suportada por conta de um empréstimo de 150 milhões de rands (6 milhões de contos) [967.123.661,80 € a preços de hoje, usando o conversor da Pordata (LG)] que Portugal fez junto da África do Sul [44]. O dinheiro sul-africano destinava-se, principalmente, a reforçar o poder aéreo com a aquisição de novas aeronaves para usar nas três frentes de guerra.

Como o TBC-72 é um equipamento de origem americana e como Portugal está sujeito a um embargo de armas, tanto o Ministério da Defesa como dos Negócios Estrangeiros tentam saber se a aquisição é possível. A 22 de abril, o embaixador português em Washington recebe instruções para apurar qual a melhor forma dos americanos venderem o equipamento, embora não devendo revelar às autoridades americanas que os flares se destinam a equipar aviões em serviço na Guiné [45].  Mas, o diplomata português já não tem tempo de fazer nada, pois, em poucos dias, dá-se o golpe militar de 25 Abril e a situação político-militar em Portugal e nas colónias muda radicalmente.

No entanto, apesar da Revolução de Abril, os responsáveis militares portugueses continuam a manter, durante algum tempo, a intenção de comprar os flares e outros sistemas antimíssil. A 21 de junho de 1974, na primeira reunião do Comité de Assistência África do Sul/Portugal (POSAAC), em Pretória, é decidido incluir na lista do material a financiar por conta do empréstimo sul-africano, 167 kits anti-Strela para os helicópteros Alouette III (kits a fornecer pela África do Sul), além do sistema TRACOR.46.  Os kits para os helicópteros eram constituídos por dois escudos térmicos sobre o motor e um deflector na tubeira do escape para desviar o fluxo de ar quente proveniente do motor. Tanto a África do Sul como a Rodésia usaram estes kits nos seus Alouette III. Nesta altura, porém, a guerra na Guiné já tinha terminado e estas aquisições deixavam de fazer sentido. A guerra do Strela tinha chegado ao fim.

José Matos (2015)

O autor agradece ao Arquivo da Defesa Nacional, ao Arquivo Histórico-Militar e à Torre do Tombo, as facilidades concedidas para esta investigação. Ao General José Lemos Ferreira, ao TGen Fernando de Jesus Vasquez, ao TGen António Martins de Matos, ao MGen António Martins Rodrigues, ao Cor Miguel Pessoa, ao TCor José Pinto Ferreira e ao Ten Jorge Vasco Moura pela leitura e comentários, bem como pelas informações prestadas.

[Fixação de texto, imagens e links: LG. Temos cerca de meia centena de referências, no nosso blogue, aos mísseis Strela]
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Notas do autor:

[36] Correia, José Manuel, Strela: A Ameaça ao Domínio dos céus no Ultramar Português, 2ª parte, Mais Alto n.º 393 Setembro/Outubro 2011, p. 28.

[37] Informação n.º 462 da 2ª Repartição do Estado-Maior da Força Aérea, Assunto: Avião abatido por míssil terra-ar em 31 Jan 74, 7 de Junho de 1974, ADN Fundo Geral Cx. 5074.

[38] Correia, op. cit., p. 31.

[39] Análise dos Sitreps Circunstanciados n.º 1/74 a 17/74 do COMZAVERDEGUINÉ, Bissau, ADN/F2/16/89 e AHM/DIV/2/4/295/3.~

[40] Informação prestada ao autor pelo General Fernando de Jesus Vazquez.

[41] Análise dos Sitreps Circunstanciados n.º 1/74 a 17/74 do COMZAVERDEGUINÉ, Bissau, ADN/F2/16/89 e AHM/DIV/2/4/295/3.

[42] Informação n.º 65-Pº 4.1.5/GAB do Estado-Maior da Força Aérea, Assunto: Medidas anti-míssil Strela (Sistema TRACOR), 6 de Fevereiro de 1974, ADN/F3/7/13/5.

[43] Informação n.º 355 da Secretaria de Estado da Aeronáutica, Assunto: Equipamento antimíssil Strela (TRACOR), 18 de Abril de 1974, ADN/F3/7/13/5.

[44] Memorando de 20 de Maio de 1974 do Gabinete do Chefe do Estado-Maior da Força Aérea, ADN Fundo Geral Cx. 833/9.

[45] Nota secreta do Director Geral do MNE para o Embaixador de Portugal em Washington, Assunto: Aquisição de equipamento antimíssil Strela, 22 de Abril de 1974, ADN /F3/7/13/5.

[46] Acta da 1.ª reunião da Comissão Executiva da POSAAC, Pretória, 21 de Junho de 1974, ADN SGDN/7554.3.
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Nota do editor:

(*) Postes anteriores da série > 6 de novembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15333: FAP (91): O impacto do Strela na actividade aérea na Guiné - Parte I (José Matos, historiador e... astrónomo)

Guiné 63/74 - P15335: FAP (92): O impacto do Strela na actividade aérea na Guiné - Parte II (José Matos, historiador e... astrónomo)

1. Continuação da publicação do artigo do nosso grã-tabanqueiro José Matos sobre a "arma que mudou a guerra", o míssil terra-ar Strela, de origem russa, introduzido na Guiné depois da morte de Amílcar Cabral, na sequência da escalada da guerra.

Recorde-se que o José [Augusto] Matos, de acordo com o portal Linkedin,   é  especialista em aviação e exploração espacial ["instructor, lecturer, and media commentator on Astronomy and Space Exploration since 1994"]. Faz parte da Fisua - Associação de Física da Universidade de Aveiro, tendo-se formado em astronomia em 2006 na University of Central Lancashire, Preston, UK...

Tem-se dedicado, como investigador independente, à história militar, e em particular à história da guerra na Guiné (1961/74).


SA 7- Grail (designação NATO), 
míssil terra-ar, de origem russa (9k 32 Strela 2), desenhado por volta de 1964 e operacional em 1968. 

Caraterísticas técnicas do SA- 7 «Grail» / 9K32M Strela-2 | Míssil antiaéreo:

Fabricante: KB Machinostroyenia; função principal: defesa antiaérea próxima; alcance: até 4,2 km; velocidade: 1300 km/h; tipo de ogiva : alto Explosivo / pré-fragmentada; peso da ogiva : 15 kg.; peso total: 10 kg; comprimento: 1.47 m; diâmetro: 72 mm; sistema orientação: infravermelhos

O Strela 2 foi concebido e testado por volta de 1964. Foi dado como operacional em 1968. Com um alcance máximo de 3,7 km e problemas com o sistema de orientação, as prestações do míssil não foram consideradas satisfatórias. Rapidamente foi lançada a versão Strela-2M, em 1971.  A versão melhorada podia atingir em teoria alvos a distâncias de até 4,2 km. Era eficaz contra alvos a mais de 50 metros de altura e menos de 1500 metros.

Foto: Cortesia de Wikipedia. Imagem do domínio público.


O impacto do Strela na actividade aérea na Guiné (Parte II),
  por José Matos



A evolução da guerra colonial na Guiné tomou um rumo dramático em 1973-74, quando o PAIGC (Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde) adquiriu a última versão do míssil soviético terra-ar SA-7 (Strela-2M).  A utilização desta arma pela guerrilha provocou profundas alterações no emprego da aviação e na eficácia das operações aéreas. Aproveitando os efeitos tácticos do míssil, que tiveram reflexos estratégicos, os guerrilheiros lançaram várias operações de grande envergadura e a guerra entrou numa fase muito delicada. Surpreendida, inicialmente, a Força Aérea tomou rapidamente várias contramedidas que reduziram a eficácia do míssil. Que impacto teve, verdadeiramente, na actividade aérea e qual o efeito das contramedidas adoptadas é o que se pretende analisar neste artigo.



(Continuação) (*)

A redução da actividade aérea 


Além da perda de aviões e de pilotos, o míssil afecta também a actividade aérea da FAP. Através da análise dos SITREPS (relatórios de situação) da época verifica-se que a actividade aérea na Zona Aérea de Cabo Verde e Guiné (ZACVG) sofre uma redução muito acentuada na segunda semana de abril (57% em termos de exploração operacional), embora depois se assista a uma progressiva normalização [26].  Como se pode ver pelo gráfico 1 relativo à exploração operacional, no final do mês de abril, as várias aeronaves da ZACVG atingiram já os níveis de actividade do começo do mês, o que significa que a FAP se adaptou à nova ameaça, embora com uma série de restrições operacionais, como se viu anteriormente. Pelo gráfico podemos ver que a viragem acontece na 3.ª semana de abril, quando as medidas cautelares começam a ser aplicadas.




A Directiva 20/73

As novas normas de voo e as tácticas defensivas adoptadas são então objecto de uma directiva do Comandante-Chefe da Guiné, General António Spínola, que, a 29 de maio, emite a Directiva 20/73, que estabelece definitivamente todos os procedimentos antimíssil a tomar, bem como as normas para os pedidos e acções de apoio aéreo [27].


De uma forma geral, todos os meios aéreos da ZACVG passavam a operar com novos parâmetros de segurança e de voo. Nos procedimentos de voo de carácter geral, todas as aeronaves deviam seguir as seguintes regras:

  • Altitudes de voo – acima de 6 mil pés e abaixo de 200 pés;
  • Entre aquelas altitudes, todas as aeronaves manobram constantemente (mudanças bruscas de rumo e altitude);
  • Todas as subidas e descidas sobre as pistas do interior do TO são executadas em espiral, com inversões frequentes de sentido;
  • As rotas são variadas de modo a que as aeronaves, sempre que possível, não sobrevoem os mesmos pontos, pelo menos dentro de períodos curtos de tempo;
  • Todas as aeronaves actuam, no mínimo, em parelhas.
Heli Alouette II. Bambadinca. c. 1969/71.
Foto de Humberto Reis
Além destas medidas gerais, a directiva estabelecia também medidas de carácter específico, que passavam pelas seguintes restrições:

  • Redução do número de pistas utilizáveis pelos aviões de transporte médio (Noratlas e C-47), além destes terem igualmente limitações na carga transportável;
  • Restrições nas missões de controlo (DCON), com PCV ou PCA (posto de comando volante ou posto de comando aéreo de operações usando DO-27), que ficavam também restringidas tanto pela redução de pistas utilizáveis, como pelo número de descolagens por missão e ainda pela limitação de horas de voo e pela altitude de operação (acima dos 6 mil pés);
  • Alterações nas missões de ataque ao solo, os T-6 deixavam de actuar a este nível ficando estas missões atribuídas apenas aos Fiat G.91, mesmo assim, com limitações nos parâmetros de voo e de ataque;
  • Limitações na utilização de helicópteros, condicionados também nas missões de transporte e evacuação, além de ataque e escolta armada [28].
Em suma, como se admite na própria directiva, a utilização de mísseis terra-ar pela guerrilha tinha provocado profundas alterações no emprego da Força Aérea e na eficácia das operações aéreas.

O impacto do míssil nos diferentes tipos de missões


Através da análise dos SITREPS da ZACVG podemos ver a evolução dos diferentes tipos de missões ao longo de 1973, bem como a actividade operacional da FAP [29]. Para uma melhor compreensão dos gráficos apresentados de seguida e elaborados a partir dos dados disponíveis nos SITREPS, faz-se aqui uma pequena explicação das abreviaturas utilizadas nos mesmos:

  • ATIP – Ataque Independente Preparado;
  • ATIR – Ataque Independente em Reconhecimento;
  • ATAP- Ataque de Apoio Próximo;
  • AESC – Ataque em Escolta;
  • RVIS – Reconhecimento Visual;
  • RFOT – Reconhecimento Fotográfico;
  • TMAN – Transporte de Manobra;
  • TGER – Transportes Gerais;
  • TEVS – Transporte de Evacuação




Começando pelas missões de ataque, podemos observar no gráfico 2 das acções aéreas de ataque, que há alguma quebra em abril e nos três meses seguintes, com excepção de maio, em que se regista um pico de actividade provocado pela crise militar de Guidage e Guileje. De facto, maio é um mês crítico na Guiné com fortes ataques da guerrilha contra estes dois quartéis.

No entanto, como se pode ver pelo gráfico 2, a partir de agosto, as missões de ataque da FAP aumentam de forma visível atingindo níveis superiores aos de Março. Este aumento deve-se, principalmente, ao uso mais intensivo do Fiat G.91 a partir de agosto, que desempenha um papel importante na resposta à guerrilha. De salientar também o pico de actividade em outubro, um mês em que a guerrilha esteve pouco activa.

Convém também referir que, em finais de novembro, o novo Comandante-Chefe da Guiné, General Bettencourt Rodrigues, emite uma nova directiva para o apoio aéreo, que permite algumas excepções às directrizes definidas na Directiva 20/73 de 29 de maio. Nesta nova directiva, os ATAP em G.91 com foguetes e metralhadoras passam a ser possíveis por decisão do Comando da Zona Aérea ou do chefe de formação de voo empenhada, o mesmo acontecendo com as missões ATIR-ATID dos Fiat, o que dá maiores possibilidades de acção aos “Tigres”. De resto, a nova directiva mantém em vigor as orientações definidas em maio [30].

Intetior de um C-47. Foto: cortesia de Wikipedia. Imagem
do domínio público.
Além do Fiat G.91, um C-47 é adaptado para missões de bombardeamento horizontal podendo levar 80 bombas de 15 kg, que são depois atiradas à mão por uma abertura na fuselagem usada habitualmente para instalar máquinas fotográficas. As missões nocturnas do C-47 (conhecido por Flecha de Prata) eram feitas tanto em corredores usados pela guerrilha, como no apoio a aquartelamentos sob flagelação.  Embora fossem missões de bombardeamento de área a 10 000 pés, ou seja, com pouca precisão, tinham um efeito psicológico grande sobre a guerrilha.

No caso das missões de reconhecimento, a quebra é mais significativa e o nível de actividade só recupera de forma manifesta no final do ano, como se pode ver no gráfico seguinte.



As missões RFOT são as mais afectadas, mas, a partir de outubro, o maior empenho de várias aeronaves (G.91, DO-27 e C-47) em RVIS e RFOT faz aumentar o número de missões. No entanto, é evidente a relação causa-efeito entre o míssil e o decréscimo deste tipo de missões. O DO-27 é claramente limitado pelo Strela nas missões RVIS e o C-47 é também desviado para outras missões, embora possa fazer fotografia vertical a 10 mil pés. As missões RFOT a baixa altitude ficam assim, praticamente, só para o Fiat e para objectivos pontuais.



Quanto às missões de transporte no gráfico 4, a quebra é evidente até setembro aumentando a partir daí, embora nunca se alcance o número de acções registado em março. A redução é mais significativa nas missões TGER, importantes no abastecimento das diversas unidades do Exército espalhadas pela colónia. Relativamente às missões TEVS de evacuação de feridos, convém referir que atingem o pico máximo em maio, durante a já referida crise militar que ocorreu nesta altura. Os Alouette III desempenham, neste âmbito, um papel importante com 102 acções TEVS no mês de maio, sendo seguidos pelo DO-27 (87 acções) e pelo Noratlas (26 acções) [31].

No entanto, apesar deste pico de actividade em maio, as unidades mais atacadas pela guerrilha neste período ficam sem evacuação aérea, pois os Alouette III experimentam severas dificuldades em actuar nessas zonas, devido à proximidade entre as forças em confronto, que não permite que as forças portuguesas assegurem pequenas áreas de aterragem para os helicópteros, livres de tiroteio ou da queda de granadas de morteiro. 

Além disso, quando os guerrilheiros detectam a presença dos helicópteros, bombardeiam os quarteis ou as pistas. Os aviões ligeiros como o DO-27 também não podem actuar neste cenário, o que provoca graves dificuldades às unidades atacadas, nomeadamente em Guidage e Guileje, onde a guerrilha efectua ataques de grande magnitude e durante um longo período [32].

O mesmo acontece, em Gadamael Porto, um quartel no sul da Guiné que é fortemente atacado pelo PAIGC, em junho de 1973 e onde os helicópteros ficam impedidos de actuar, devido aos bombardeamentos da artilharia em consequência de, como posteriormente se soube, os guerrilheiros terem montado um posto de regulação de tiro, num local fronteiriço ao aquartelamento, na outra margem do rio Cacine [33]. A utilização de helicópteros é assim interdita na área, obrigando que as evacuações sejam feitas a pé, até ao quartel, e depois de barco, pelo rio Cacine [34].



Desta forma, a Força Aérea vai-se apercebendo de que as missões TEVS, em situações desta natureza, mesmo com a presença de um helicóptero armado, são muito perigosas. A solução passou por aumentar a protecção armada aos helicópteros TEVS que começaram a ter dois Alouette III armados, de escolta (AESC). A análise das missões TEVS e AESC do Alouette III, ao longo de 1973, no gráfico 5, revela que o número de acções de evacuação diminuiu, mas que as acções de escolta aumentaram de forma clara [35].

Por último, podemos analisar a exploração operacional das várias aeronaves da ZACVG, através do gráfico 6. O efeito do míssil é evidente, principalmente, nos aviões de hélice e menos significativo no Alouette III e no Fiat G.91. O caça italiano é mesmo o único meio aéreo que aumenta a sua actividade operacional ao longo do ano em análise. No fundo, a Força Aérea usou mais intensivamente o único meio aéreo que podia representar alguma capacidade de resposta face à ofensiva da guerrilha. No saldo final, todavia, a exploração operacional do GO 1201 ressente-se com o míssil ao longo do ano, ficando sempre abaixo dos níveis de março de 1973.





(Continua)

[Fixação de texto, imagens e links: LG. Temos cerca de meia centena de referências, no nosso blogue, aos mísseis Strela]
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Notas do autor:

[25] Relatório Imediato nº 5641/73/DI/3/SC da DGS sobre o míssil solo-ar Strella-2, 31 de Outubro de 1973, ADN/F3/1/1/1. 

[26] Análise dos SITREPS Circunstanciados n.º 14, 15, 16 e 17/73 do COMZAVERDEGUINÉ, Bissau, ADN/F2/SSR.002/87.

[27] Directiva 20/73 do Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné, Bissau, 29 de Maio de 1973, AHM/DIV/2/4/228/2.

[28]  Directiva 20/73 do Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné, Bissau, 29 de Maio de 1973, AHM/DIV/2/4/228/2.

[29] SITREPS circunstanciados do COMZAVERDEGUINÉ, Bissau, ADN/F2/SSR.002/87 e 88.

[30] Directiva para o Apoio Aéreo do Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné, Bissau, 30 de Novembro de 1973, ADN/SGDN/Cx.1666.

[31] Análise dos Sitreps Circunstanciados n.º 18/73 a 22/73 do COMZAVERDEGUINÉ, Bissau, ADN/F2/16/88.

[32]  Informação prestada ao autor pelo General Fernando de Jesus Vasquez.

[33] Calheiros, op. cit., p. 535.

[34] Ibidem., p. 542.

[35] SITREPS circunstanciados do COMZAVERDEGUINÉ, Bissau, ADN/F2/SSR.002/87 e 88.

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Nota do editor:

Guiné 63/74 - P15334: Notas de leitura (773): “Dois Amigos, Dois Destinos”, por José Alvarez, Âncora Editora e DG Edições, 2014 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Janeiro de 2015:

Queridos amigos,
Não hesito em dizer-vos que é um romance que merece a vossa atenção, uma trama muito bem urdida. Só lamento que lá bem perto do final o autor se tenha cansado e precipitado os acontecimentos deixando-os na orla da inverosimilhança, tudo, nesse final, tem acordes operáticos, isto quando vem numa larga sequência de episódios trabalhados na base de uma certa realidade histórica, condimentados, como é óbvio, pelo poderio da ficção onde se agitam esplendorosos afetos.
Um estreante a merecer o nosso aplauso.

Um abraço do
Mário


Dois amigos, dois destinos, por José Alvarez (2)

Beja Santos

“Dois amigos, dois destinos”, por José Alvarez, Âncora Editora e DG Edições, 2014, é uma obra de sabor autobiográfico, explora com engenho o drama clássico de uma nobre e fortíssima amizade que prometia desabar num confronto de contra guerrilheiro e guerrilheiro. O autor assenta o travejamento do seu romance histórico em várias gerações, tudo começa em Cabo Verde, depois um menino mestiço que medra na Guiné e vem estudar para Portugal e viverá pungentemente a sua adesão militante que o afastará dos amigos e da mulher amada, tudo se irá passar no contexto da crise académica de 1962. De um lado, Tomás, o amigo que estuda no Técnico e Joana, a universitária apaixonada por Eduardo, o militante do PAIGC que foge de Portugal e se torna assessor de Amílcar Cabral. Há mais protagonistas, a mãe de Joana, o pai de Tomás, que um dia mais tarde estreitarão afetos. Tomás está desencantado com os estudos, oferece-se para a Marinha, parte para a Guiné. Joana dá luz o fruto da sua relação com Eduardo, Eduardo Tomás.

Amílcar Cabral confia a Eduardo uma importante missão: “Terás de percorrer todo o cenário de guerra, a fim de elaborares um quadro com os efetivos das tropas portuguesas, respetivos locais de aquartelamento e, se possível, as suas deslocações sistemáticas. Essas informações ser-nos-ão preciosas para que a nossa direção militar atue segundo um plano global”. Eduardo começa por falhar a missão que é incumbido em chão Felupe, mas não desanima. Ainda em Lisboa, começa a dar-se um desenvolvimento afetivo entre Joana e Eduardo.

Estamos na Guiné, em 1969, Tomás foi colocado numa lancha de fiscalização pequena, a F 1151, aqui encontrou com imenso agrado o seu adversário direto da equipa de râguebi da Agronomia, Manuel Lima. Entretanto, Eduardo dá conta da sua missão, cruzou vezes sem conta os trilhos e as picadas da Guiné, atravessou todos os cursos de água em canoas. “Espiara dúzias de aquartelamentos da tropa portuguesa, perdidos na mata, recolhera informações dos movimentos militares, estudara o trânsito fluvial, conhecera as horas de patrulhamento das unidades da Marinha portuguesa”. Eduardo fizera-se homem, cedo se apercebeu da existência de tensões entre cabo-verdianos e guineenses. A lancha portuguesa está sempre em movimento, o autor descreve os contactos dos marinheiros com a tropa na quadrícula, em Empada. O encontro entre Nino Vieira e Eduardo ficou muito longe do cordial. A base do PAIGC fica em Sare Tuto, Eduardo é integrado no pelotão de Salin Bari, uma relação que vem desde a Casa dos Estudantes do Império, há para ali rancores velhos, Salin “rachara” na PIDE. Prepara-se um grande ataque a Buba, a lancha de fiscalização percorre o rio à procura de indícios dos guerrilheiros. O autor pincela a atmosfera de tensão que paira em Buba, sabe capturar o leitor. A professora primária, Lara, informa Nino sobre o que se passa em Buba, este esboça um plano que leva ao rapto de um alferes, destinado a diminuir o moral das tropas portuguesas. Enquanto isto se passa, os fuzileiros detetam uma cambança do IN na foz do rio Sahol, a jusante de Buba, apreendem muito material e uma canoa com o motor fora de bordo, mais um prisioneiro. Como nos dramas clássicos, a aproximação física de Eduardo e Tomás é cada vez maior. O plano para sequestrar o alferes português é bem-sucedido. Os fuzileiros interrogam Lar, ela é suspeita de passar informações, nisto explode o grande ataque a Buba. E os fuzileiros partem à procura do IN, vão a caminho de Sare Tuto, é a vez de Tomás ser capturado, aqui enfrenta Eduardo que prepara um plano para libertar o seu grande amigo. Os acontecimentos precipitam-se, a ação é descrita vertiginosamente, Tomás recupera no Comando de Defesa Marítima da Guiné onde conversa com Alpoim Calvão, conta-lhe a verdade dos acontecimentos. O bi-grupo comandado por Salin Bari fica numa total confusão após aquela estranhíssima fuga de Tomás. Mais furioso fica Nino Vieira, Eduardo é acusado de traição. Enquanto aguarda a sua transferência para prisão em Conacri, Amílcar Cabral vem visitá-lo, e veio a grande confissão: “Pode ter a certeza que nunca o trairia; por isso lhe conto a verdade, ainda que ela me seja fatal. Esse tenente português era o meu melhor amigo. A ele devo a libertação da prisão do Aljube e a fuga do país. É como se se tratasse de um irmão. Quando dei conta que o tinha prisioneiro no grupo de combate, encontrei-me perante o dramático dilema: entregá-lo e não trair a causa ou libertá-lo traindo. Pesei as duas situações e a amizade foi o que mais pesou”.

Chegou a hora da Operação Mar Verde, assim quer o destino que Tomás vá até La Montagne, em Conacri, onde Eduardo se encontra numa situação deplorável e no ponto mais baixo do desalento. Os amigos reencontram-se, Eduardo relembra a Tomás que não tem para onde ir, em Portugal será sempre um terrorista e ali é um prisioneiro de guerra. Fala-lhe no filho que está em Lisboa, Eduardo é transportado, chegara a hora da retirada, mas antes de chegarem à embarcação há uma flagelação em que Eduardo fica moribundo e depois morre. O epílogo da obra decorre no estado universitário, Eduardo Tomás é um vitorioso e há para li dois casais felizes, Tomás e Joana, José e Maria João. Final feliz.

Estamos diante de um romance histórico raro, há muita investigação, preocupação no desenho dos retratos e dos ambientes. Mas fica-se com um sabor de deceção na medida em que o autor a certa altura se cansou do que estava a escrever, começou a acelerar e a fuga de Tomás roça o inverosímil, faltou aqui o expediente alquímico que podia ter transformado este romance numa obra inexpugnável, vencido que fora o desafio de encontrar uma arquitetura que superasse o convencional drama clássico do confronto entre dois grandes amigos. A despeito desta fragilidade, estamos perante um livro que é referencial: pela pesquisa de laboratório, pela força dos sentimentos, pelo pendor luminoso da sua mensagem. Por tudo isso, “Dois amigos, dois destinos” é obra coroada da literatura luso-guineense, um passo seguro para o melhor conhecimento de povos irmãos.
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Nota do editor

Poste anterior de 2 de novembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15315: Notas de leitura (772): “Dois Amigos, Dois Destinos”, por José Alvarez, Âncora Editora e DG Edições, 2014 (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P15333: FAP (91): O impacto do Strela na actividade aérea na Guiné - Parte I (José Matos, historiador e... astrónomo)

1. Divulgamos, com todo o gosto, mais um artigo de investigação do nosso grã-tabanqueiro José Matos. Desta vez o tema é o míssil terra-ar Strela, de origem russa, introduzido na Guiné depois da morte de Amílcar Cabral, na sequência da escalada da guerra. 

O artigo já foi publicado no sítio AFAP - Associação da Força Aérea, em 17/3/2015. Certamente por lapso, o José Matos é aqui apresentado por general... José Matos.  Se ele é militar, desconhecíamos por completo essa condição. Mas parece-nos que não. O nosso José [Augusto] Matos, de acordo com o portal Linkedin,   é  especialista em aviação e exploração espacial ["instructor, lecturer, and media commentator on Astronomy and Space Exploration since 1994"]. Faz parte da Fisua - Associação de Física da Universidade de Aveiro, tendo-se formado em astronomia em 2006 na University of Central Lancashire, Preston, UK...

Enfim, o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande!... Como Deus, Alá e os Irãs do nosso poilão, todos os entes que nos protegem e nos inspiram...

O que importa, no nosso blogue,  é também a sua (dele, José Matos) paixão pela nossa história militar, e em especial pelo que se passou na Guiné, no nosso tempo, durante a guerra de 1961/74. Recorde-se que o José Matos é filho de um camarada nosso, o ex-fur mil José Matos, da CCav 677 (São João, 1964/66), já falecido em 1998. E é seguramente o seu carinho e amor pelo seu pai (e a sua memória) que o faz gastar o seu tempo nestas viagens ao passado de dois pequenos países lusófonos (Guiné-Bissau e Portugal) de que raramente se fala, hoje em dia... Mas, para um astrónomo como ele, são dois ínfimos pontos, na nossa grande galáxia, que lhe servem de referência (e quiçá de ancoragem). Viajantes do tempo e do espaço, todos precisamos de pequenos portos de abrigo... Espero que ele se continue a sentir em casa... na nossa Tabanca Grande!... (E continuo à espera que ele me mande algumas fotos do seu pai e nosso camarada José Matos!).

No final do artigo supracitado, que nos chegou em formato pdf, com 29 pp., e que vamos publicar em três partes, há referências e agradecimentos aos nossos queridos amigos e camaradas, da Tabanca Grande, cor pilav ref Miguel Pessoa e ten gen pilav ref António Martins de Matos, heróis dos céus da Guiné e que sobreviveram, felizmente, ao Strela.

Refira-se, por fim, que o nosso amigo José Matos  foi autor, recentemente, de uma comunicação sobre “O fim da Guerra na Guiné: operações secretas”, no âmbito do  III Colóquio Internacional Colonialismo, Anticolonialismo e Identidades: 1415-2015-Dos Impérios à CPLP. discursos e práticas (Universidade de Coimbra, Coimbra, 28-29 de outubro de 2015).

PS - Há uma outra versão deste artigo, mais curta, do José Matos e de Matthew M. Hurley , cor da Força Aérea dos EUA, na reserva,  "A arma que mudou a guerra", Revista Militar, nº 2554, outubro de 2014, pp. 893-907 disponível aqui. O José Matos mandou-nos essa versão em 6/9/2015, mas optámos por reproduzir a mais extensa, em que ele aparece como único autor. De qualquer modo, estamos gratos aos dois, ao José Matos e ao Matt Hurley, já nosso velho conhecido e amigo.



SA 7- Grail (designação da NATO), míssil terra-ar, de origem russa (9k 32 Strela 2), desenhado por volta de 1964 e operacional em 1968. Fonte: Cortesia de Wikipedia. Imagem do domínio público.


O impacto do Strela na actividade aérea na Guiné (Parte I)  (*)

por José Matos


A evolução da guerra colonial na Guiné tomou um rumo dramático em 1973-74, quando o PAIGC (Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde) adquiriu a última versão do míssil soviético terra-ar SA-7 (Strela-2M). 

A utilização desta arma pela guerrilha provocou profundas alterações no emprego da aviação e na eficácia das operações aéreas. Aproveitando os efeitos tácticos do míssil, que tiveram reflexos estratégicos, os guerrilheiros lançaram várias operações de grande envergadura e a guerra entrou numa fase muito delicada. Surpreendida, inicialmente, a Força Aérea tomou rapidamente várias contramedidas que reduziram a eficácia do míssil. Que impacto teve, verdadeiramente, na actividade aérea e qual o efeito das contramedidas adoptadas é o que se pretende analisar neste artigo. 



Os primeiros indícios da utilização de mísseis terra-ar pela guerrilha do PAIGC, na Guiné, surgem em meados de março de 1973, quando dois caças Fiat G.91 são alvejados no norte do território, perto da fronteira com o Senegal, por uma arma desconhecida. Os aviões atacam o local do disparo e regressam à base de Bissalanca (BA12) sem qualquer dano, não tendo sido atribuída importância de maior ao facto [1]

Pouco tempo depois deste incidente, os guerrilheiros atacam um monomotor a hélice Dornier DO-27, na área de Bigene, perto do Senegal, e também três Fiat chamados a intervir. Nenhum avião é atingido, uma vez que os pilotos dos G.91 se apercebem de que são mísseis, conseguindo manobrar a tempo de os evitar [2].


Porém, a 25 de março, o Tenente [pilav] Miguel Pessoa já não tem a mesma sorte e é abatido na zona de Guileje, no sul da Guiné, muito perto da fronteira com a Guiné-Conakry. O piloto não se apercebe do míssil, mas consegue ejectar-se e é recuperado [3].

Três dias mais tarde, a 28 de março, outro Fiat, desta vez pilotado pelo Tenente-Coronel [pilav] Almeida Brito, também é abatido no sul da Guiné. O avião de Almeida Brito explode no ar provocando a morte do piloto [4].



Caça-bombardeiro, subsónico, Fiat G-91, da FAP. Desenho de Nelson Teixeira (2011).Imagem do domínio público. Cortesia da Wikipedia.



Na semana seguinte, a 6 de abril, a Força Aérea Portuguesa (FAP) perde ainda dois DO-27 e um T-6 G juntamente com os respectivos pilotos, devido à acção desta nova arma [5].  Rapidamente, a
Força Aérea percebe que está perante o míssil terra-ar SA-7 Grail de fabrico soviético, conhecido também por Strela. Todos os ataques acontecem a menos de 3 km das zonas de fronteira, os alvos incluem desde aviões de hélice muito lentos (DO-27 e T-6) até aviões a jacto (Fiat G.91) e a eficácia dos ataques parece ser elevada se atendermos que na documentação histórica da época surgem pelo menos 8 disparos referenciados e 5 aviões abatidos [6].

No entanto, tudo indica que o número de disparos tenha sido superior a 8 no período que vai de 20 de março a 6 de abril. Os pilotos que escaparam aos disparos desta nova arma do PAIGC (Partido Africano da  Independência da Guiné e Cabo Verde), devem, provavelmente, a sua sobrevivência a pontarias inadequadas, a deficiências de funcionamento da própria arma e ao facto de aqueles que avistaram o projéctil em trajectória de colisão com a sua aeronave terem tido o discernimento de entrar em volta de evasão apertada evitando o impacto do míssil. 

No entanto, o desconhecimento das características do míssil e, por conseguinte, o desconhecimento das modalidades de voo e as regras de empenhamento a adoptar para suplantar as suas capacidades, provoca grande incerteza e receio nos pilotos. A gravidade da situação surge bem espelhada numa informação que o Inspector-Adjunto Fragoso Allas, chefe da delegação da Direcção-Geral de Segurança (DGS), na Guiné, envia para Lisboa, a 9 de abril, sobre a perda de vantagem da Força Aérea. Na opinião de Fragoso Allas “não dispomos de meios aéreos que possam constituir uma força de dissuasão ou que nos permitam castigar duramente as bases de apoio, temos que encarar como muito possível que o PAIGC venha num muito curto prazo de tempo a estabelecer novas áreas libertadas, e dificultar ou impedir o tráfego aéreo e até mesmo a aniquilar algumas guarnições que agora passaram a não poder contar com o apoio aéreo para as defender, evacuar os feridos e reabastecer.” E mais à frente acrescentava: “Consideramos muito grave a situação resultante do emprego pelo PAICG de novas armas antiaéreas.” [7].

Na mesma data, a DGS, em Lisboa, tem já informação sobre o míssil obtida através dos Serviços Secretos Alemães (BND), que a envia ao  Secretariado-Geral da Defesa Nacional (SGDN), pedindo extremo cuidado quanto à salvaguarda da fonte daquela informação [8].

No essencial a informação fornecida pelo BND traça a evolução histórica do míssil, assim como as suas características operacionais e as possíveis medidas de defesa. Pouco tempo depois, esta informação é difundida pelas três frentes de guerra. Entretanto, o Comando da Zona Aérea da Guiné (COMZAVERDEGUINE) começa a tomar as primeiras medidas cautelares para minorar a ameaça da nova arma. 

A introdução do míssil na Guiné

Não se sabe com precisão a data em que o míssil chegou à Guiné, mas em dezembro de 1972, a DGS, na colónia, tinha já recolhido informação de que os guerrilheiros haviam recebido novas armas antiaéreas, entre as quais uma designada por “roquetões.” A nova arma tinha uma configuração semelhante à dos RPG, conhecidos na guerrilha por “lança-rockets”, o que deve ter dado origem à designação de “roquetões”[9].

No entanto, as informações da DGS sobre as novas armas eram vagas e, sabe-se hoje, provenientes de fonte duvidosa. Testemunhos de protagonistas do PAIGC envolvidos directamente no processo como Luís Cabral apontam no sentido de que os primeiros mísseis só chegaram à Guiné depois da morte de Amílcar Cabral, que ocorreu a 20  de janeiro de 1973 [10].

No mesmo sentido, aponta uma análise pericial feita pelas autoridades americanas aos fragmentos de um SA-7 recolhidos na Guiné, que refere fevereiro de 1973, como data de fabrico do míssil [11]. Com efeito, uma parte do míssil é encontrada no norte da Guiné a 7 de abril por tropas pára-quedistas [12] e a 14 de abril é enviada para Lisboa para o Secretariado-Geral da Defesa Nacional (SGDN) [13] onde é analisada, a 17 de abril, por técnicos portugueses, que concluem não dispor de “elementos suficientes para proceder a uma identificação categórica do material em causa.”


Na tarde desse dia, o material é entregue na embaixada dos EUA, em Lisboa, para um exame mais minucioso. Na semana seguinte, a 25 de abril, o adido militar da embaixada, o Coronel da USAF Mosier, desloca-se ao SGDN, a fim de saber se aquele organismo já tinha recebido a informação enviada pela embaixada americana a respeito da identificação do míssil (a 23 de abril, Mosier tinha enviado para o SGDN uma informação confidencial identificando os fragmentos como sendo a secção de propulsão do SA-7 Grail) e pede a anuência portuguesa para que, a título devolutivo, o material seja enviado para os EUA de forma a ser estudado mais detalhadamente pelos serviços técnicos das FA americanas [14].


Entretanto, a 24 de abril, o comando militar em Bissau envia também dois fragmentos electrónicos transistorizados supostamente pertencentes ao míssil [15] para serem analisados pelos técnicos americanos que acabam por se deslocar a Lisboa, em meados de maio. 

O exame pericial feito na embaixada americana conclui que os vários fragmentos recolhidos até então correspondem a uma versão aperfeiçoada do SA-7, desconhecida nos países ocidentais e fabricada em fevereiro de 1973. No parecer dos técnicos americanos, “esta nova versão apresenta alterações que denotam um esforço de melhoria dos métodos de fabrico (para mais rápida produção) e que ao mesmo tempo visam tornar o míssil menos susceptível de avarias devido ao seu manuseamento” e concluem dizendo que desconhecem “se este novo modelo do míssil SA-7 tem uma eficácia operacional superior à da versão anterior” [16]. 

 Juntamente com esta peritagem é entregue, a 25 de maio, no SGDN, um manual técnico da Missile Intelligence Agency (MIA) sobre o míssil, que permite finalmente às autoridades portuguesas conhecer a fundo as características e performances das versões conhecidas do SA-7 [17].

Pouco tempo depois, em junho, a secção de propulsão do míssil e um dos conjuntos electrónicos são enviados a título definitivo para os EUA, para uma peritagem mais exaustiva, que originará depois um relatório técnico da Defense Intelligence Agency (DIA). A 11 de setembro, a DIA envia de Washington, para o adido de defesa da embaixada americana em Lisboa, as conclusões da peritagem. A agência informa que estamos perante uma versão do míssil com um sistema de propulsão melhorado, que permite aumentar a velocidade do SA-7 em 20% a 25%, assim como a sua manobrabilidade, o que aumenta a capacidade do míssil dentro do seu envelope de intercepção contra aeronaves de elevada performance [18].

 Tudo indica que o modelo analisado era Strela 2-M ou SA-7B Grail Mod. 1, introduzido na União Soviética em 1971 e desconhecido no Ocidente [19].


O impacto do míssil no GO1201 


As perdas provocadas pela acção do míssil reflectem-se de imediato na capacidade operacional do Grupo Operacional 1201 (GO1201), que tem na sua orgânica a Esquadra 121, onde estão os Fiat, T-6 e DO-27, a Esquadra 122 com o Alouette III e a Esquadra 123 com o Noratlas e C-47. O GO1201 dispunha em março de 1973, em Bissalanca, na BA12, de 53 aeronaves entre aviões e helicópteros [20].  Desta forma, os abates de março e de abril traduziram-se numa perda de 9,4% das aeronaves do GO1201. Mais importante ainda,   8 dos cinco aviões perdidos pela acção do míssil, dois deles eram aviões Fiat, o único jacto de combate que a FAP dispunha na Guiné. A Esquadra 121 tinha, nessa altura, onze G.91 passando, então, a ter nove. 

O impacto destas perdas foi ainda ampliado pela grande dificuldade em comprar novos caças com um maior potencial de combate ou, então, mais exemplares dos modelos já em uso. Embora os dois Fiat abatidos sejam substituídos em meados de julho desse ano, a Esquadra 121 perde, nos meses seguintes, mais dois G.91 por razões desconhecidas, o que leva o Governo em Lisboa a tentar adquirir aviões Fiat G.91 R/3 já usados, junto da Alemanha Ocidental [21].  Só que o Governo de Bona recusa qualquer venda a Portugal para não ser acusado de apoiar a política colonial portuguesa [22].

 Outro impacto directo é sobre os pilotos. O número de pilotos presentes na BA12 era de 50, estando prontos para voar 49 e prontos para operações 42 [23]. As perdas devido ao míssil representam 9,5% dos pilotos aptos a realizar operações. 

As primeiras medidas cautelares 


Ultrapassada a fase de surpresa inicial, realizada a análise das perdas sofridas e deduzindo, ainda que empiricamente, o funcionamento da nova arma, dada a escassez de informação, o Comando da Zona Aérea   introduz uma série de condicionamentos nas missões realizadas pelas diversas aeronaves. As primeiras medidas cautelares são adoptadas em meados do mês de abril e são as seguintes: 

  •  T-6G – Cancelamento das missões de apoio próximo às forças terrestres e de ataque ao solo de natureza independente;
  • Fiat G.91 – Execução apenas de missões de bombardeamento a picar (BOP) e de metralhamento a picar (MAP), com entrada a 10 000 pés (3300 m) e saída a 3000 pés (990 m); 
  • DO-27 – Cancelamento das missões de Reconhecimento Visual (RVIS) e de Posto de Controlo Volante (PCV); redução das missões de TGER e de TEVS (Transportes Gerais e Evacuação);
  •  Noratlas – Execução de missões de transporte limitado a 3000 kg de carga, a fim de assegurar a maior razão de subida das aeronaves dentro da zona de segurança garantida pelas forças terrestres; canceladas as missões de lançamento de cargas aéreas;
  • C-47 Dakota – Execução de missões de transporte aéreo limitado a 1500 kg de carga;
  •  Alouette III – Execução de missões de TGER e TEVS por duas aeronaves, a baixa altitude, uma limpa e a outra armada para protecção do conjunto e de apoio de fogo das tropas e do meio aéreo de TEVS, na zona de operações das forças terrestres; execução de missões de TGER apenas para pistas interditas ao DO-27. 

Paralelamente a estas medidas, o Comando da Zona Aérea e a DGS na Guiné continuam a desenvolver esforços para conhecer melhor as características da nova arma do PAIGC. Em finais de abril, as forças portuguesas conseguem finalmente interrogar um dos membros das equipas de mísseis, um ex-guerrilheiro de etnia fula, chamado Tcheto Candé, que se entregou aos fuzileiros portugueses em Jemberém, a 21 de abril de 1973. 

Candé revela que foi treinado em Simferopol, na União Soviética, onde esteve seis meses, tendo regressado a Conakry, a 10 de abril, seguindo depois para Kandiafara e Botchecol, de onde acabou por fugir. O ex-combatente fornece ainda informações importantes sobre a localização dos vários grupos de mísseis e dos elementos que os comandam e diz também que “cada arma já traz o míssil incorporado, e que só faz um disparo. Depois, tem a arma de ser enviada para a URSS para ser novamente carregada.” Candé refere a presença do míssil em Botchecol, Jemberém e ainda norte da Guiné [24]. 

 Esta informação é complementada, em outubro, pela deserção de um outro operador de mísseis chamado Armando Baldé, que se entregou na guarnição de Tite. Baldé dá várias informações sobre o funcionamento do SA-7 e das tácticas usadas pelos grupos de atiradores contra os aviões da FAP, o que permite que, nesta altura, as autoridades portuguesas tenham já informação detalhada quer sobre as características do míssil quer sobre o modo de actuação dos grupos armados com o SA-7. 

As informações prestadas por Baldé permitem à Força Aérea confirmar que o míssil é ineficaz abaixo dos 50 metros (160 pés) e que, disparando a arma com um ângulo superior a 60º, o atirador é queimado pelos gases de escape. Desta forma, o ângulo de disparo ideal é de 20º a 60º. Descobre-se   também, nessa altura, que os insucessos nos disparos do míssil contra o Fiat se deviam essencialmente a duas razões: por um lado, durante a picada do avião, o míssil não conseguia adquirir convenientemente o alvo;  por outro, após a saída do passe de bombardeamento, o jacto fazia uma volta muito apertada a grande velocidade, que superava as capacidades de manobra do míssil [25].

(Continua)

[Fixação de texto, imagens e links: LG. Temos cerca de meia centena de referências, no nosso blogue, aos mísseis Strela] (**)
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Notas do autor:

[1] Informação n.º 218/73-DSInf2 da Delegação da Guiné da DGS, Assunto: Actividade do PAIGC, 3 de Abril de 1973, Torre do Tombo, Arquivos da PIDE, Processo 641/61 PAIGC, pasta 9, fls. 102/104.
[2]  Ibidem. 

[3]  Ibidem. 

[4]  Ibidem. 

[5]  Relatório sobre a situação no Ultramar nº4/73, CTI Guiné, Anexo A, ADN SGDN/1690. 

[6]  Informação n.º 93/73 da 2.ª Repartição do Secretariado Geral da Defesa Nacional, Assunto: Míssil Terra-Ar, 13 de Abril de 1973, Lisboa, ADN SGDN/5681/7.

[7] Informação n.º 247/73-DSInf2 da Delegação da Guiné da DGS, Assunto: Rep. Guiné – Situação do PAIGC, 9 de Abril de 1973, Torre do Tombo, Arquivos da PIDE, Processo 641/61 PAIGC, pasta 7, fls. 190/192.

[8] Informação Suplementar do Secretariado Geral da Defesa Nacional, Assunto: União Soviética: Míssil Terra-Ar individual GRAIL (SA-7), Fonte: DGS, 9 de Abril de 1973, Lisboa, ADN SGDN/5681/7. 9 Informação n.º 218/73-DSInf2 da Delegação da Guiné da DGS, ibidem. 

[9] Informação n.º 218/73-DSInf2 da Delegação da Guiné da DGS, ibidem.

[10] Cabral, Luís, Crónica da Libertação, Edições o Jornal, Lisboa, 1984, pp. 433-444. 

[11] Informação n.º 1387/RB c/anexo da 2ª Repartição do Secretariado Geral da Defesa Nacional para o Estado-Maior do Exército, Assunto: Míssil Terra-Ar, 4 de Junho de 1973, Lisboa, ADN, Fundo Geral SGDN/5681/7. 

[12] Calheiros, José Moura, A Última Missão, Caminhos Romanos, Lisboa, 2010, p. 387. 

[13] Nota n.º 1148/BM do Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné para o Secretariado Geral da Defesa Nacional (2ª Divisão), Assunto: Material de Guerra para Análise, 14 de Abril de 1973, Bissau, ADN, Fundo Geral SGDN/5681/7. 

[14] Informação n.º 99/RB da 2ª Repartição do Secretariado-Geral da Defesa Nacional, Assunto: Identificação de Material Recolhido no TO da Guiné, 25 de Abril de 1973, Lisboa, ADN, Fundo Geral SGDN/5681/7. 

[15] Nota n.º 1274/BM do Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné para o Secretariado Geral da Defesa Nacional (2ª Divisão), Assunto: Material de Guerra para Análise, 24 de Abril de 1973, Bissau, ADN, Fundo Geral SGDN/5681/7. 

[16] Informação n.º 1387/RB c/anexo da 2ª Repartição do Secretariado Geral da Defesa Nacional para o Estado-Maior do Exército, Assunto: Míssil Terra-Ar, 4 de Junho de 1973, Lisboa, ADN, Fundo Geral SGDN/5681/7. 

[17] Manual ST-CS-14-232-72, Dezembro de 1972, Missile Intelligence Agency (MIA), ADN, Fundo Geral SGDN/5681/7. 

[18] Defense Intelligence Agency, teletype message, 111808Z SEP 73, to Defense Attache Office, Lisbon, 11 de Setembro de 1973, ADN SGDN 5681/7. 

[19] KBM Kolomna Strela-2/-2M (SA-7 'Grail') Man-Portable Anti-Aircraft Missile System in Jane’s Electro-Optic Systems 2011, 

 [20] Sitrep Circunstanciando n.º12/73 do COMZAVERDEGUINÉ, Bissau, ADN/F2/16/87.

 [21] Memorando do Estado-Maior da Força Aérea, 25 de Janeiro de 1974, Serviço de Documentação da Força Aérea/Arquivo Histórico (SDFA/AH), 3ª Divisão/EMFA 71/74, Processo 400.121. 

 [22] Carta de Alberto Maria Bravo & Filhos, Assunto: Aviões G-91, 4 de Dezembro de 1973, Arquivo Histórico Diplomático (AHD) PEA 655. 

 [23] SITREP Circunstanciando n.º12/73 do COMZAVERDEGUINÉ, Bissau, ADN/F2/16/87.

 [24] Relatório de interrogatório nº 41/73 anexo à informação 306/73-DSInf 2 da Delegação da Guiné da DGS, 1 de Maio de 1973, Torre do Tombo, Arquivos da PIDE, Processo 332-CI (2), pasta 5, fls. 58/62.

 [25] Relatório Imediato nº 5641/73/DI/3/SC da DGS sobre o míssil solo-ar Strella-2, 31 de Outubro de 1973, ADN/F3/1/1/1.
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 25 de setembro de 2015 >  Guiné 63/74 - P15153: FAP (90): Para acabar de vez com o mito dos MiG em Conacri: nunca os houve no nosso tempo, garantiu-me o comandante Pombo, no convívio da Tabanca da Linha (António Martins de Matos, ten gen pilav ref)

(**) Do "site" Área Militar - Armamento e Sistemas, com a devida vénia:

SA- 7 «Grail» / 9K32M Strela-2 | Míssil antiaéreo

(...)
Fabricante: KB Machinostroyenia
Função principal: Defesa antiaérea próxima
Alcance: 4.2km 

Velocidade: 1300km/h
Tipo de ogiva : Alto Explosivo / pré-fragmentada 

Peso da ogiva : 15 Kg.
Peso total: 10 Kg 

Comprimento: 1.47 M.
Diâmetro: 72mm 

Sistema orientação: Infravermelhos

(...) O Strela 2 foi concebido em meados dos anos 60, apontando-se o ano de 1964 como altura em que se terá testado pela primeira vez. O seu desenvolvimento demorou algum tempo até que se tornou operacional em 1968.

Com um alcance máximo de 3,7 km e problemas com o sistema de orientação, as prestações do míssil não foram consideradas satisfatórias. Rapidamente foi lançada a versão Strela-2M em 1971. Alcance máximo de 3.7 Km, embora uma versão melhorada «Strela-2M» atingisse em teoria alvos a distâncias de até 4,2km. Eficaz contra alvos a mais de 50 metros de altura e menos de 1500 metros.

O sistema (Komplex em russo) utiliza o míssil 9M32 e a versão modernizada, o míssil 9M32M. (...)

Guiné 63/74 - P15332: Parabéns a você (982): Jorge Cabral, ex-Alf Mil Art, CMDT do Pel Caç Nat 63 (Fá Mandinga e Missirá, 1969/71)

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Nota do editor

Último poste da série > 3 de novembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15318: Parabéns a você (981): António Martins de Matos, Tenente General Pilav Ref, ex-Tenente Pilav da BA 12 (Guiné, 1972/74)

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Guiné 63/74 - P15331: Os nossos seres, saberes e lazeres (125): Obras escultóricas urbanas de Armando Ferreira, ex-Fur Mil da CCAV 8353 (2)

1. Relembrando o que nos dizia a certa altura da sua apresentação ao Blogue o nosso camarada Armando Ferreira (ex-Fur Mil Cav da CCAV 8353, Cumeré, Bula e Pete, 1973/74):  

[...]
Nasci em Alpiarça e aos dez anos parti para Lisboa, aí estudei em escola de artes e trabalhei, e muito mais tarde regresso para ter espaço físico na realização com o meu trabalho.
Tenho dois filhos e dois netos, e estou disposto a fazer seja o que for para que a minha família e as outras, terem direito ao país onde nasceram e receberam a sua própria cultura, TER A VIDA COM FELICIDADE.
Sou escultor de profissão, o meu trabalho está entre o Realismo e Expressionismo e tenho neste Portugal muitas esculturas urbanas, representando: feitos, heróis, individualidades, conjuntos escultóricos de grande dimensão, alegorias etc.
Trabalho em pedra e em bronze. Estou representado em vários países.
[...]


Publicação do segundo grupo de fotos enviadas enviadas ao Blogue*:

Ao Senhor Jesus dos Lavradores


 Homenagem a Passos Manuel


Homenagem Nacional a Maria Lamas



Homenagem à Juventude




José Saramago - Azinhaga


 Marcolino Nobre - Rio Maior

O Oprimido
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Notas do editor

(*) Poste anterior de 3 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15321: Os nossos seres, saberes e lazeres (123): Obras escultóricas urbanas de Armando Ferreira, ex-Fur Mil da CCAV 8353 (1)

Último poste da série de 4 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15324: Os nossos seres, saberes e lazeres (124): Entre Antuérpia e as Ardenas, e algo mais (5) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P15330: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XX Parte): Hospital Militar 241; Mamadú; Fuga? e Só água fria por baixo

1. Parte XX de "Guiné, Ir e Voltar", enviado no dia 5 de Novembro de 2015, pelo nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489, Cuntima e Alf Mil Comando, CMDT do Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67.


GUINÉ, IR E VOLTAR - XX

1 - Hospital Militar 241 

Foi acordando à medida que tomava consciência do que se passava naquele quarto e do local onde estava. 
Lembrava-se vagamente do que se tinha passado, de querer dizer que não era preciso, mas não conseguia falar, só ouvia vozes, o médico do batalhão de Mansoa a dizer que o iam levar, o Furriel Valente de Sousa a dizer que talvez não fosse necessário e a voz do Tenente-Coronel Lemos a dizer que o médico é que sabia. A seguir, deve ter adormecido, a ideia de ir numa maca, de o terem metido numa cama, de acordar encharcado em suor, de mudança de lençóis, de tiritar de frio, mas nem tinha a certeza de que tivesse sido assim, que é que interessava também agora! 
Passou o dia agitado, inquieto. Barulhos de motores, vozes altas no corredor. Dormia, acordava com as vozes e os motores, adormecia outra vez, motores e vozes de novo acordavam-no. De vez em quando, um enfermeiro perguntava-lhe qualquer coisa, enquanto lhe dava uma injecção ou mexia num frasco dependurado ao lado da cama. 

Bissau, Hospital Militar. Imagem da net. 

Dois companheiros no quarto, um capitão e um alferes. O capitão apanhou com estilhaços de uma granada de morteiro no braço esquerdo, já tinha sido operado duas vezes e ouviu-o dizer que ia ser evacuado para a metrópole. O alferes tinha pisado uma mina, amputaram-lhe uma perna acima do joelho e cortaram-lhe mais qualquer coisa, segundo depreendeu da conversa entre o enfermeiro e o capitão. 

Está muito melhor, o sargento enfermeiro virado para ele. Sem febre desde ontem. Agora é comer e beber uns uísques. Se tivesse bebido alguns talvez não tivesse apanhado paludismo. Para ele, não deve ter sido por falta de uísque, foi a picada do mosquito e o Dar-a-Prim1 que já não tomava desde que saíra de Cuntima.
O médico não tinha vindo de manhã, apareceu para fazer a visita a seguir ao almoço com o sargento enfermeiro atrás. 
Entrou por ali dentro bem-disposto. Olhou-o de relance, trocou algumas palavras com o enfermeiro, perguntou-lhe se já se tinha posto a pé. Claro, como é que havia de ir aos lavabos? Acha que pode ter alta hoje? 
Parabéns senhor capitão, isto está a evoluir muito melhor do que pensávamos, talvez já nem seja necessário evacuá-lo, não sei, amanhã vamos tirar-lhe umas radiografias e depois tomamos a decisão. 
Veja lá, doutor, eu tenho que ficar completamente bom. Em Lisboa há outros recursos, é melhor tratarem da minha evacuação. Não estou a duvidar da competência do doutor, claro, mas em Lisboa há outras possibilidades. 
Vamos ver, amanhã vamos radiografar esse braço e depois decidimos. 
E depois, para o alferes da ponta, então, este artista tem cantado muito? 
O alferes não lhe respondeu, mantinha-se com um ar ausente, não estava ali. E o major médico a insistir, então, gastou o gás todo a noite passada, não? O alferes tinha passado uma noite como as anteriores, uma noite muito má. As luzes estiveram quase toda a noite acesas, duas ou três vezes, que tenha dado por isso, entrou gente lá dentro, para o picarem, sem perguntarem nada ao desgraçado. 
E, de repente, falou. Você é médico ou palhaço, o alferes desalmado, ouça lá, seu cabrão, se acha que tem graça vá trabalhar para o circo! 
O coitado do médico, a cara desconsolada como se tivesse levado com um balde de chichi velho pela cabeça abaixo, o artista da ponta cheio de gás outra vez, filho da puta, nós no mato a dar os braços, as pernas, o coiro todo e este palhaço a vir para aqui gozar com a malta. Respeitinho, seu cabrão! 
O médico virou costas, a murmurar qualquer coisa que ninguém ouviu. 

Ao olhar para a janela, deu-lhe a vontade de sair porta fora. Pôs o pé no chão, a cabeça rodou-lhe lá dentro, frio pelo corpo abaixo, manchas esbranquiçadas a subirem pelas paredes, a cabeça outra vez na almofada, o coração disparado, suor a correr. O vizinho do lado, não se sente bem? 
Enfermeiro à beira da cama, mão na testa, deixe-se estar quieto, deve ser tensão. Alguém lhe meteu um termómetro enquanto o sargento lhe via as tensões. É, estão baixas. Umas punhetas de bacalhau agora é que lhe faziam bem, levantam-lhe tudo. 
Por volta das 6, hora de jantar, entraram carrinhos a deitarem fumo pelos pratos. O da cama da ponta não conseguia, aos arrancos, aguadilha a escorrer-lhe da boca, engasgava-se, tossia-se todo. 
Quando chegou a sua vez, empurrou o carrinho do prato para o lado, uma massa com carne picada no meio, tudo muito branco. 
E a minha punheta? Quê, a jovem guineense, solas brancas dos pés maiores que ela. 

Sentou-se a desenrolar o pacote de cartas que o Valente de Sousa lhe tinha trazido de Mansoa. Separou-as, as dos pais para cima da cama que os bons conselhos têm tempo, as outras em cima dos joelhos. Abriu-as, ordenou-as por datas, como de costume, o perfume dela a entrar-lhe pelo nariz afinado. 
A olhar pela janela fora, não a via, mas desenhava-lhe as bochechas redondas na cara, os gestos dela, o andar alegre, despachada. Começou a ler devagar como gostava, a ver-lhe as letras apressadas, desenhadas em redondo, até as riscadas, o capitão a interrompê-lo, a querer ler a Bola. 

O alferes a esta hora já está a caminho da metrópole. Para onde? Agora deve ir para a Estrela, para o anexo dos oficiais, um edifício novo junto à Basílica, depois deve fazer o itinerário do costume, Alcoitão, Alemanha, é conforme. Põem-lhe as próteses onde puderem, que há outras que ainda não se fazem, não é? Depois? Depois, se o comandante da companhia dele fez as coisas como devia, o louvor já deve vir a caminho, a seguir dão-lhe uma Cruz de Guerra, 2.ª Classe, talvez, e até podem promovê-lo a tenente. Para onde vai? 
Sair, sair daqui, é o que vou fazer depois de arrumar esta tralha.
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Nota
1 - Anti-palúdico
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2 - Mamadú

Os turras também têm os seus problemas, tal como nós, até mais agudos, espero. Uma organização como a deles, muito jovem ainda, a crescer uns por cima dos outros, claro que alguns que ficam por baixo, mais corajosos ou imprevidentes, tomam o freio nos dentes, ultrapassam as directivas do Partido, põem-se a fazer coisas. Se resultam, se nos causam mossa, são louvados e às vezes, como aconteceu com o Nino no Sul, ficam outra vez em cima, são promovidos e tal. Se o custo da imprevidência for pesada, ou que os comissários considerem demasiado alta, pagam-na cara, claro! Parece, parece que estamos num caso desses. 

Acampamento do PAIGC. 
Fonte: Nordic Documentation on the Liberation Struggle on Southern Africa. Com a devida vénia. 

Um tal Mamadú Injai, não, não deve ser esse em que estão a pensar, Mamadús há-os às centenas aqui, Injais nem tantos, mas muitos também. Adiante, para atalhar caminho, o tal Mamadú Injai que, até este momento, só eu e o nosso major aqui conhecemos, apresentou-se há dois dias na tabanca aqui atrás, a um parente dele. 
Estes Mamadús como todos sabemos têm parentes no Oio, no Gabú, no Cantanhez, têm primos e sobrinhos, em toda a Guiné Portuguesa, Senegal, Gâmbia, Guiné-Conacri, Mauritânia, por aí fora. 
Bom, em conversa com o tal parente manifestou o desejo de falar com o chefe da tabanca, apresentar-lhe uma questão, sem avançar mais nada. Este Mamadú já há muito que sabia que o chefe da tabanca é um tipo da nossa confiança, total não digo, mas enfim, até agora tem dado provas de ser um aliado da nossa maneira de estar na Guiné. Temos tratado de algumas necessidades da tabanca, consegui, inclusive, que o Governo-Geral aprovasse uma espécie de tença anual. 
O homem grande da tabanca sabia com quem estava a falar, recebeu-o com prudência, que só queria o bem-estar da população, que mantinha com as nossas tropas relações amistosas, que eram bem tratados, que tinham médico à disposição para o que fosse preciso, que ainda há tempos tinha sido incansável na assistência aos nascimentos, dois partos numa noite, que elas resolvem parir quase todas ao mesmo tempo, não sei bem como combinam, se têm algumas regras entre eles e elas, se calhar até têm. 

Parto na Guiné. 
Fonte: Nordic Documentation on the Liberation Struggle on Southern Africa. Com a devida vénia. 

Bem o nosso homem grande lá lhe foi dizendo que compreendia as razões do Partido, os esforços gigantescos que faziam contra a tropa, com aviação, marinha e tudo, mas o partido também tinha de compreender, que ele como chefe da tabanca, tinha a obrigação de entender as necessidades da população, ir ao encontro delas, etc, etc, etc. 
Para grande surpresa dele, o Mamadú, começou a dizer que alguns do Partido, principalmente os cabo-verdianos, não gostavam do entendimento dele com a nossa tropa, mas o Injai estava de acordo, o Partido sim, mas só depois das necessidades do povo. Que, assim, não só via com bons olhos o trabalho que o homem grande estava a fazer, como tomava a liberdade de lhe dizer que se todos fossem como o homem que estava à sua frente, muitos problemas nem sequer existiam. 
E mais, que o Partido estava a passar por grandes dificuldades, tão grandes que até o Abel Djassi, nome de guerra do Amílcar Cabral, como sabem, tinha tido alguns problemas com camaradas que não viam com bons olhos tanto cabo-verdiano na cúpula e tanto balanta, tanto manjaco, tanto mandinga, tanto fula até, tanto guineense afinal, na frente armada. 
Muito problema, homem grande, para tão pouco guerrilheiro e tanta tropa, esta luta vai durar anos e anos, no nosso tempo não vai acabar de certeza. 
Pelos vistos, no essencial, os dois estavam de acordo. 
Qual então a razão da visita de Mamadú, para além de partir mantenhas? Bom, ele Mamadú, bem gostaria de prestar apoio ao homem grande da tabanca, mas este desconfiado, disse que tudo estava a correr bem com a nossa tropa. 
Continuando, dizia eu que o homem grande da tabanca agradecia muito a visita, que dissesse ao Partido que, afinal, ambos deveriam querer o bem da Guiné, e que se estavam a dar muito bem com a tropa de Mansoa. 
Mamadú não despegava e o chefe da tabanca estava cada vez mais desconfiado, mas seguro dos dois homens seus da tabanca, cá fora para o que desse e viesse. Então o Mamadú, de repente, disse-lhe que se vinha entregar a ele, para fazer dele o que quisesse, entregá-lo à tropa até. 
Os senhores estão a ver a cara do homem grande, não é difícil de imaginar, não é? Pois, nosso alferes, tem à sua disposição um homem que o vai levar a Morés.

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3 - Fuga? 

Um turra, apresentado ainda por cima, sem ninguém pedir, nem apanhado foi, a querer agora levar-nos a Morés? Qual Morés, já conheci três ou quatro, acho que isto traz água no bico, o meu alferes é que sabe, mas isto cheira mais a uma armadilha montada para nós cairmos, interroga-se alto o Valente de Sousa. Ele também tem a perder se as coisas correrem para o torto, não é, o furriel Ázera a contrapor. 
Bom, temos nas mãos um guerrilheiro que até há pouco esteve do lado deles, e que agora se oferece para nos levar a Morés. Algo deve ter corrido mal com ele, o que foi não sabemos. Ele conhece os cantos à casa, os trilhos da zona, os acampamentos maiores e as barracas à volta, ninguém o obrigou, oferece-se para nos guiar até à arrecadação das armas, material pesado e tudo. E nós não acabámos de chegar, já temos uns meses disto, já vimos muito, até guias a fugir. Se nos apercebermos que as coisas estão a fugir do nosso controlo lá estaremos para decidir o que fazer. O que temos a perder? 
A esta hora já mudaram as bases todas! Acho a história mal contada, não sei, não me cheira, se calhar estou a pensar mal, a deitar areia na engrenagem, não sei, insiste o furriel. 
A ideia é irmos na coluna de reabastecimentos para Mansabá, saltamos das viaturas na zona de Cutia, aqui por estes lados e um pouco antes deste trilho metemos para dentro, a apontar o dedo para o mapa da zona. Amanhã, ao anoitecer convocam o pessoal, material conferido, metem-no nas três últimas Mercedes, lonas corridas até baixo, quando houver ordem para sair, temos um minuto para o fazer, as viaturas nem abrandam sequer, rádios sempre ligados. 
A tarde de Mansoa devagar, civis nas calmas pelas ruas, crianças a correr atrás de um aro de bicicleta, um grupo pequeno de soldados numa esplanada, uma tarde igual a outras, um pouco escura, calor sem sol, fardas colada à pele, sovacos encharcados, grandes rodas molhadas nas costas, um peso vindo do céu, em cima de todos, a empurrá-los para o chão, o costume nesta época. 
Ainda não estava completamente refeito das febres, as pernas parece que bamboleavam em vez de andar, manchas claras às vezes. 

Amanhã como vai ser, vais ter força para andar, vais-te aguentar nas canetas? Ora, quando as coisas aquecem, as forças vêm de todo o lado, poupa-te no início, reserva-te para a hora, depois deixa as coisas acontecerem. 

Com o Ázera ao lado, a fazerem horas, sentados a uma mesa da esplanada, o Valente de Sousa apareceu-lhes por trás. O Tenente Coronel Lemos quer falar consigo. 

Como foi não sei, apenas que o homem grande me apareceu muito constrangido, a contar o que tinha acontecido e que você já sabe, agora como foi não sei, não sei mais nada. A olhar para ele, a cara desolada do tenente-coronel. 
Custava-lhe a acreditar no que o velho negro de barba branca estava a dizer, a voz aguda, aos solavancos, os olhos com manchas vermelhas. 
Mamadú desapareceu na tabanca, foi Fatma quem chamou, ninguém sabe nada, juntei pessoal, perguntei quem sabia, ninguém viu, ninguém sabe, eu também não, nosso alfero! A túnica a arrastar-se pelo chão, as sandálias de plástico, pó fino a levantar-se, como posso saber como fugiu, nosso alfero, mas fica descansado, vou saber quem sabe. 
Fácil, não é, homem grande? 
Eu não dizia? Era uma história mal contada, meu alferes! Ainda por cima, deixaram-no andar por aí, a falar com este e aquele, a visitar as instalações como se fosse um convidado. 

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4 - Só água fria por baixo 

A Teresa fora um simples conhecimento, no início só para passar o tempo. Engraçou com dela, os olhos, primeiro que tudo, atraíram-no, meteram-lhe medo, quis espreitar, e ela mostrou-lhe outras coisas que tinha. Uma moça diferente das que conhecera aqui, estas sim só para passar as mãos pelas redondezas delas e depois parágrafo. 
Com a Matilde nem conseguiu viver debaixo do mesmo tecto. Adiantou-lhe um mês de renda para a casa, a caminho do Cupilom, equipada com tudo, apenas para os intervalos das guerras, tomar uma chuveirada com ela, levá-la ainda molhada nos braços para o quarto, um banho outra vez, vou dar uma volta, hoje não posso ficar, tardes e noites seguidas, sempre assim. Nem conseguiu dormir com ela uma noite inteira que fosse, no início ainda disse que tinha compromissos no quartel, um serviço qualquer para fazer, ela a desconfiar que fosse outro motivo, mas não. 

Estou habituado à minha almofada, trá-la então, à minha cama, trá-la também, traz tudo contigo. Ainda não percebeste, quero homem que viva comigo! 
E deixou-a sempre. Teve pena muitas vezes de a deixar, custava-lhe suportar os olhos dela. Chatices que arranjou e arrumou sempre, melhor ou pior. Porquê? Matilde, gosto de ti, do teu rosto, do cabelo negro que te fica tão bem assim, do teu peito pequeno e tão bem feito, da tua barriga lisa, das tuas coxas redondas, das pernas como nunca vi, da tua cor. A tua figura toda, mas acho que tu e eu queremos outras coisas que os dois não temos. Mais nada, Matilde. É melhor seguirmos cada um o seu destino, amigos para sempre. 
Sacana, porquê? Matilde, não posso ficar mais tempo, tenho que me ir embora! Fica aqui um mês de renda para te arranjares. Não queres, deita-o pela janela fora, faz o que quiseres dele, esse dinheiro é teu, um beijo, Matilde, não dás? 
Os outros casos foram entretimento para dois, sem dinheiros nem nada. 

A Teresa já não é só Teresa como se apresentou da primeira vez, foi muito mais do que aquilo que esperavas. 
Os olhos, o sorriso, a figura, o andar dela, foi o que te interessou, de início, não? Depois viste outras coisas nela, de que não estavas à espera e muito menos aqui? O gosto pela leitura, de assuntos em que nem tu próprio estavas sensibilizado, nem estás, a solidariedade, o interesse pelo povo guineense. A cultura geral, invulgar para a idade dela. 
E a disposição para te afrontar, para lutar contra ti, contigo, puxar por ti, lutar pelos ideais dela. Para te dizer na cara, com aqueles olhos magníficos, aquilo que ela achava no seu direito de dizer. Os teus olhos a fugirem, os ouvidos que não queriam ouvir, tu a disfarçares, com a mão nela, como quem diz, vamos mas é ao que interessa. 
Um merdas, um merdas como aquele que viste em Bigene, nem sempre com cheiro a uísque azedo, mas um merdas na mesma. A aproveitares-te da sensibilidade dela, a fazeres-te caro, de um momento para o outro, a invadi-la com as tuas mãos, ela a acreditar em ti. 
Nem tanto assim? O que fizeste com ela este tempo todo, o que fizeram os dois juntos, afinal? 
Nada do outro mundo, brincadeiras, uma vez ou outras mais ousadas, mas nada mais do que isso, sempre travaste as tuas incursões e as dela também, e bem te custou às vezes, nem o céu imagina. De resto, das tuas mãos está inteira, ou quase, não te lembras de lhe deixar marcas irreparáveis, fisicamente falando, claro. Então porquê esta atrapalhação toda, porque não vais falar com ela, directa nos olhos, assim, Teresa, já não há razões para continuar, vamos dar por terminado o nosso conhecimento, começámos porque achámos graça um ao outro e, pelos vistos, este tempo passado diz-nos que é melhor acabarmos, e pronto. Já agora, continua merdas até ao fim! 

Os olhos dela não queriam acreditar, insistentes, as mãos amarradas aos braços dele, depois largou-os de uma vez, um passo para trás a tomar balanço. 
Como quiseres! Não me vou perder a chorar por aí, não penses. Fui ingénua, enganei-me, pensei que eras verdadeiro, que tinhas sentimento. É melhor assim. Olha, há tempos, quando estava a ler um livro ali, algo me fez pensar em ti, de uma forma diferente do costume. Pensei que fosse só impressão minha, mas não, agora já sei porque me lembrei de ti naquele momento. Afinal, és exactamente o que pareces, dentro de ti não há calor nenhum. Como o gelo, quando se quebra é só água fria por baixo. Só tens água fria por baixo. 

(Continua)
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Nota do editor

Poste anterior da série de 29 de outubro de 2015 Guiné 63/74 - P15303: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XIX Parte): Chegou a 3.ª Companhia de Comandos e Pesadelo