quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15588: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XXVII Parte): Uns continuaram nessas guerras, outros noutras - 3 e Anexos (Fim)

1. Parte XXVII de "Guiné, Ir e Voltar", série do nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489, Cuntima e Alf Mil Comando, CMDT do Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67.


GUINÉ, IR E VOLTAR - XXVII

Uns continuaram nessas guerras, outros noutras (III) e Anexos

O Passos, alferes da 4.ª Rep/QG e um dos últimos companheiros de Bissau, antes de ter sido mobilizado trabalhara no Parque Mayer, fora electricista e contra-regra, convivera com actores e coristas. Quando regressou foi visitá-los, andou por lá uns tempos, enquanto acabava o curso. Depois, foi para a CP, mais um engenheiro, pois claro. A última vez que se viram, já lá vão quase duas décadas, onde havia de ser, foi num alfa pendular do Porto para Lisboa. 

O Amândio César, um poço de energia, continuou a escrever e a publicar, até à maré baixar para ele e para quem pensasse como ele. 

No dia 28 de Setembro de 1974, com o interior vestido de luto pela morte da sua Pátria, escapou por um triz de ser linchado em Coimbra. Conseguiu safar-se, refugiou-se no seu Minho natal, passou a fronteira para Espanha e foi para o Brasil até os tempos de fúria acalmarem. Morreu desgostoso com o rumo que o país tinha tomado num dia de Agosto de 1987. 

Mário Dias enveredou pela carreira militar. Ainda fez mais três comissões, uma em Moçambique e duas em Angola. O 25/4 apanhou-o em Cabinda. 

Regressado a Lisboa foi colocado no Regimento de Comandos na Amadora. Foi testemunha e interveniente do processo que envolveu os Comandos no verão de 1975. Macau foi o destino seguinte como instrutor das forças de segurança. 

Na reserva já há alguns anos, ainda recorda os tempos dos Comandos da Guiné como os que mais o marcaram. 

Ainda muito jovem fora com os pais viver para a Guiné. Estudou no liceu de Bissau onde foi colega de vários guineenses que mais tarde se tornaram conhecidos na luta de libertação.

Como se previa, o Piçarra1, o alferes companheiro de quarto do Hospital Militar de Bissau, esteve largos meses na Estrela, no Hospital Militar Principal. Depois de várias cirurgias, foi para Alcoitão fazer fisioterapia e aprender a utilizar as próteses. Por influência do Movimento Nacional Feminino, segundo disseram, arranjaram-lhe um emprego numa grande empresa, na outra margem do Tejo. 

O Capitão Viegas, um dos companheiros da viagem de regresso, entre as comissões foi estudando Direito até se licenciar. Estagiou num gabinete de advogados, muito conhecido em Lisboa, enquanto foi andando por ali acima até General. Foi nomeado Chefe do Estado-Maior do Exército, com a aprovação do Presidente da República, seu ex-colega do escritório de advocacia. O outro militar, apontado por outras esferas como tendo uma folha de serviços mais brilhante para o cargo de chefe máximo do Exército, foi o General Leandro, veja-se a coincidência. 
O Ministro da Defesa Paulo Portas, mão na porta à saída de um Conselho de Ministros, considerou publicamente que o General Viegas tinha um perfil mais adequado que o General Garcia Leandro. Tão adequado que tempos depois recebeu uma carta a dizer que o nomeado se demitia das funções por ter perdido a confiança no Ministro. É isso, foi mesmo assim. 

O Brigadeiro Reymão Nogueira, acabada a comissão foi colocado como Governador Militar de Lisboa e permaneceu no cargo ainda uns anos, até passar à reserva. 

Poucos anos depois de regresso, nos princípios da década de 70, numa tarde de inverno em Guimarães, o Albino, o soldado da MG-42, passinho miúdo, lesto como um carteirista, esgueirava-se por aquelas ruas estreitas, cheias de gente. Teve que apressar o passo para o apanhar. Albino, que é que tens feito? Sentaram-se num café, falaram da vida, o Albino ainda à procura de um rumo. Saí ontem de Paços de Ferreira, do estabelecimento prisional. Vidas, meu alferes! Morreu cedo, poucos anos depois deste reencontro. 

O Furriel Ázera ainda ficou na Guiné até Agosto de 67, administrativamente ligado à nova Companhia de Comandos. Foi colocado num gabinete pacato, a tratar de papelada. O local é que não era o melhor, ficava junto ao cemitério. 

Quase todos os dias ouvia as descargas da praxe, que se usam nos enterros militares. Não aguentou mais. Um dia foi ter com o Capitão Alves Cardoso, o Comandante da 3.ª Companhia de Comandoss, pediu-lhe que o incorporasse num dos grupos. 

Voltou assim à guerra até acabar o tempo. Depois regressou aos Açores e à sua bela cidade, Praia da Vitória. Mas nunca mais recuperou a alegria de viver. Sem paz há tantos anos, conhece os antidepressivos e os tranquilizantes melhor que muitos médicos. 

O Vítor Caldeira, o alferes que substituiu o Vilaça nos "Vampiros", também passou ao Quadro Permanente. Fez uma comissão nos Comandos em Moçambique e, já depois do 25 de Abril, encontrou no Casão Militar o então Coronel Garcia Leandro, que tinha sido nomeado Governador de Macau. Por onde anda Caldeira? Quer vir para meu Ajudante de Campo, para Macau? E foi. 

Na tarde de um domingo de Agosto, a TV da Sala de Sargentos da Escola Prática de Infantaria de Mafra estava a passar um filme para um único espectador, o Sargento Tudela, o antigo Cabo Tudela dos “Vampiros”. 

Entrou um tipo, sentou-se quase em frente ao sargento. Boa tarde, respondeu o Tudela sem despegar os olhos do filme. Passaram a ser dois espectadores. Num momento olharam-se nos olhos e, num lampejo o velho Tudela deve ter dito lá para ele, donde é que eu conheço este gajo? Os dois pares de olhos concentraram-se de novo no filme. 

Então, que tal o filme, perguntou o recém-chegado? Que dava para entreter, não havia mais nada para fazer naquela tarde de domingo. Passaram-se mais uns minutos e a coisa não atava nem desatava. Até que o intruso se voltou para o Tudela, eu conheço-o, não sei é donde. 
A sua cara não me é estranha também, respondeu meio desinteressado. 

De onde será, de onde não será, o visitante a insistir, mas sem grande entusiasmo da parte do velho sargento. 

Não me está a conhecer, Tudela? Não pode ser, o meu comandante da Guiné! 

Depois esqueceram-se do tempo a ouvirem-se um ao outro. Que tinha 77 feitos. Que depois da Guiné, tinha ido para Angola, depois para Moçambique, depois para Mafra e por lá tem estado estes anos todos. Que é diabético, já não tem um dedo do pé. E que nunca viveu uma vida tão apaixonante como aquela que passou nos Comandos da Guiné. Que ia passar uns dias a casa dele a Cantanhede, uma casa pintada de amarelo, junto ao restaurante Marquês de Marialva e que depois regressava a Mafra, a sua verdadeira casa. 

Não se queriam deixar nem por nada. Depois ainda se encontraram mais duas vezes, até um dia receber uma chamada de um camarada. O Tudela morreu, escorregou nas escadas do convento. 
Generais, sargentos, cabos, capitães, coronéis, civis, Comandos velhos da campanha da Guiné, assistiram à saída do velho Tudela do convento, rumo à última viagem até Cantanhede. 

A Lurdes, a paixão do Luís, continuou em Bissau e segundo alguns conhecidos, já nos finais da década de 60 continuava a namorar Comandos, desta vez um furriel. Chegado o 25 de Abril e com todo o movimento que se seguiu foi viver para uma das ilhas de Cabo Verde. Casou com um conhecido comandante do PAIGC. 

O Marques de Matos, Chefe de Equipa dos “Diabólicos”, tantos anos sem saberem uns dos outros, um dia deu sinal de vida. O que é feito de mim? 

Ora, andei para a frente, comecei por vender máquinas Rank Xerox, daquelas grandes. Um dia, o meu padrinho de casamento encontrou-me acidentalmente na rua. Fernando, queres vir para os seguros? 

Fui, comecei quase como paquete, subi e desci na carreira profissional, quando desci, tome-se nota, foi porque sempre me recusei a vergar a espinha. Igual a mim próprio, sempre recto nos procedimentos e nas relações, lembro-me assim desde pequeno. E quando caí, preferi que fosse eu a dar o sinal de queda. Sem ninguém se aperceber, deixar-me cair em sentido, sabe do que estou a falar? 

Um dia fiz a queda facial tão a preceito que ia quebrando o nariz. 

Devem ter visto que tinha algo que se devia preservar, promoveram-me a director da companhia. Esgalhei, dei tudo o que tinha, até o meu coração me avisar que lhe estava a pedir demasiado. Tive que meter travões, antecipei a retirada. 

Mas mantenho-me activo, visito famílias onde há carências, estou a falar da fome. Levo-lhes comida e também companhia. Ah! E confesso, sempre tive um norte na minha vida, Deus! Deu-me sinal que existe, mais que uma vez. Tenho dois filhos adultos, netos, uma casa à beira do mar onde faço uns grelhados de peixe de fazer inveja ao “Índio” de Vila Nova da Cacela e até aprendi a ler a vida nas mãos das pessoas. 

E um imenso orgulho de ter feito parte dos Comandos. Não, não cobro nada por dizer isto. Muitas coisas que aconteceram já não existem na minha memória. Outras persistem, não me deixam, como algumas que ocorreram numa estadia do nosso grupo em Barro. A imagem da bajuda mortalmente atingida, ainda quente, um qualquer a aproximar-se dela, a baixar as calças e eu a ver e a mostrar-me igual a mim próprio. Parece que foi ontem! 

O Azevedo, outro furriel do grupo, deu sinais de vida. Continua a viver em Ovar. Do outro lado da linha ouvia-se algazarra de miúdos. Netos, Azevedo? Seis, comandante! Uma ou duas semanas depois, passava na A1 perto do desvio para Aveiro. Lembrou-se do Azevedo, aquele magnífico furriel dos “Diabólicos”. Azevedo, está a trabalhar? Eu estou sempre a trabalhar, comandante! Estou próximo do desvio para Aveiro, de regresso a Lisboa, mas para o ver vou para a frente ou para trás, o que for preciso, Azevedo, quero é dar-lhe um abraço! Sai no desvio para a Vila da Feira, passa a portagem, uma rotunda a seguir, corta na segunda à direita, nova rotunda, outra vez na 2.ª à direita, estou lá à sua espera para lhe dar um abraço, comandante. Assim fez, parou o carro, e agora onde pára o Azevedo? Sai-lhe de um Mercedes azul, ainda novo, um tipo gordo, careca, de bigode à Pancho Villa. Era o Azevedo, mas a melena farta desapareceu e o peso quase tinha duplicado. Pois o Azevedo, depois de regressar, empregou-se numa conhecida empresa de Ovar. 

Em 1979 foi convidado para ir para Luanda, pôr a filial a funcionar, ainda no tempo do Agostinho Neto, as coisas não estavam nada fáceis. Cumpriu a missão e regressou à sede. Viu os filhos a crescerem, os netos a seguir. Sempre optimista, entusiasta, o futuro começa agora, que porreiro! Ainda deu tempo para engatar uma conversa, pegar nela para outra. Do tipo da história do relógio suíço, quando deram por ela já estavam a falar da aldeia onde se fabrica o relógio. Marcaram a continuação da conversa para outro dia que já estava a fazer-se tarde. 

Mais de quarenta anos decorridos, na procura dos camaradas do grupo, calhou cair-lhe nas mãos a direcção do "Angola". O "Angola" chamava-se Fernando de Bessa Afonso. Nunca soube porquê, chamavam-lhe Angola e ele chamou-o sempre por "Angola". E ele respondia presente. Mais preocupado com outras coisas, nunca procurou saber o porquê do cognome. Imaginou sempre que o Angola era assim chamado porque devia ter alguma relação com Angola. Logo que soube que o "Angola" morava em Viana do Castelo, telefonou-lhe. 

Quem fala? “Angola”, é você? A resposta do outro lado demorou. Era ele, o magnífico soldado "Angola", no nome e no registo militar Soldado Fernando de Bessa Afonso. 

E 42 anos depois retomavam o contacto. Um ou dois meses depois teve que deslocar-se ao Porto. É hoje que vou rever o "Angola". Combinaram encontrar-se naquela linda cidade, junto ao "Gil Eanes", pousado no Lima, cansado das largas viagens que fez como navio-hospital da frota bacalhoeira. 

O "Angola" apareceu-lhe, bem apresentado, como se fosse para uma formatura. Cabelo farto, barba cuidada, da cor que os anos fazem, tudo branco. Da emoção do reencontro, ficou um abraço que nunca mais acabava. 

Na esplanada de um café da Av. dos Combatentes, aquela linda avenida de Viana, deixou-o discorrer. 

O meu alferes nunca soube, se calhar, mas eu tenho uma história comprida.  Nasci em Angola. Quando chegou o tempo da tropa ofereci-me para os Páras. Fiz o curso e, no fim, tive direito a umas férias. Não me apresentei na data que estava indicada. Fui expulso e mobilizado para a Guiné. Fui para o BCav 490, em rendição individual, para Cuntima. Sim, para Cuntima, junto à fronteira com o Senegal. E o meu alferes chegou lá um ou dois meses depois. Depois fui para os Comandos, para o seu Grupo. 

E depois da comissão na Guiné, fui convidado pelo Capitão Saraiva e, olhe, fui com ele para Moçambique, integrado na 9.ª CCmds. Infelizmente, o Cap. Saraiva pisou uma anti-pessoal e ficou gravemente ferido. Se eu estava lá com ele? Claro, foi na serra do Mapé, eu próprio fui um dos que o assistiu. Quem o substituiu foi o Cap. Júlio Oliveira, hoje general, se não estou em erro. 
Coisas do arco-da-velha, meu alferes! Um dia, emboscados, apanhámos uma pequena coluna da FRELIMO. Limpámos aquilo e, não quer saber, que o único sobrevivente foi um miúdo de meses. Pegámos nele e levámo-lo para Montepuez. O que é feito dele? Está cá, tirou um curso superior, olhe, vive em Lisboa. Depois... 

Duas horas, que o tempo não dava para mais. “Angola”, quantos anos tem? 66, faço pára-pente, sou instrutor, ainda ontem em Cerveira... 

O João Parreira ingressou, muito jovem ainda, no Ministério dos Negócios Estrangeiros, em Dezembro 1961. Depois veio a tropa e a Guiné. Partiu com a CArt 730 do BArt 733 em Outubro de 1964. Em 9 Janeiro de 1965 foi ferido, numa operação à base de Bafantandem, na zona de Cancongo. Depois entrou para os Comandos, para o Grupo dos “Fantasmas” do então Tenente Saraiva. Foi outra vez ferido em Abril 1965 na operação “Açor”, nas tabancas de Portugal, na zona do Incassol. E como não há duas sem três, voltou a ser novamente atingido por estilhaços do rebentamento de uma granada de um RPG em 6 Maio 1965 na operação “Ciao” em Catungo, Cacine, mesmo ao lado do Morais, que morreu logo ali, com o Parreira a olhar para ele, sem nada poder fazer. 

Em Setembro de 1966 regressou a Lisboa e ao MNE. Com saudades de África, daqueles calores, deve ter sido por isso, foi para o Consulado Geral de Portugal em Salisbúria, para a Rodésia, em Dezembro, onde geriu o Consulado, de 1 Janeiro 1978 a Fevereiro 1980. Ainda passou pelo Malawi entre Abril e Maio de 79 e regressou de novo a Salisbúria. Ia todos os meses a Blantyre, Malawi, fazer a gestão dos consulados. Por lá andou até Março de 80. 

Depois colocaram-no na Embaixada em Lusaka, Zâmbia, onde ajudou a preparar a visita presidencial e a dar apoio consular à nossa comunidade. 

Voltou a Lisboa e ao MNE em Dezembro 1981. Em Setembro de 1982 partiu para Londres, depois Harare, Zimbabwe em Janeiro de 1989. Em Agosto de 1994, regressou outra vez à base, Lisboa, MNE. 

‘Medalhas? Sim, ganhei três na Guiné, tenho-as aqui, no corpo.’ 

O Presidente da República gostou do trabalho do João Parreira, condecorou-o com a Ordem do Infante D. Henrique. 

A vida profissional começou-a, por uma coincidência, com o Tenente-Coronel Cavaleiro, o Comandante do Batalhão de Cavalaria 490, estacionado em Farim. Foi através das suas referências que começou logo a trabalhar e soube mais tarde que o Coronel, de vez em quando, perguntava ao cunhado, administrador da empresa, então como é que anda o tipo? 

Os primeiros tempos não foram nada fáceis, problemas de saúde arrastaram-se durante anos. Só dez anos depois do regresso é que se veio a descobrir que tinha trazido da Guiné um parasita intestinal que lhe provocava, para além de outros problemas, úlceras nas córneas. 

Naqueles anos, finais de 60 até meados de 70, quando se lembrava daqueles tempos ficava com insónias e, quando dormia, voltava a sonhar com aquelas Guinés. Demorou anos a encontrar-se, a ajuda da mulher, sempre presente, e os nascimentos dos filhos ajudaram-no a estabilizar. 

Década e meia mais tarde, em Lisboa, já na direcção comercial de uma multinacional suiça, voltou a ter notícias do seu antigo comandante de batalhão. A secretária do administrador tinha o apelido Cavaleiro. A senhora é alguma coisa ao Coronel Cavaleiro? Sou sobrinha, conhece o meu tio? ´

Ao longo de mais de 40 anos a Guiné foi-se enterrando cada vez mais na memória até se esquecer que por lá alguma vez tivesse passado. Em conversas a que por vezes assistia sobre o que se passava ou se tinha passado naquela guerra, a Guiné era um assunto que se tornou alheio. Os cheiros da terra, os linguarejares das pessoas, o sibilar das balas e dos rebentamentos, o Cacheu, o Geba e o Corubal, os pássaros, os macacos cães, o HM 241, a base aérea, os cantares ritmados, os batuques, as cores das roupas, eram imagens que há muito o tinham deixado. Nem tinha a consciência que tudo isso estava à mão, logo ali, tão perto que bastava destapar a caixa e que uma imagem traria outra e outra e a Guiné viria outra vez à tona. 

Foi o que aconteceu quando começou a escrever esta história. À medida que ia lendo os apontamentos amarelecidos dos fins dos anos 60, as imagens e os sons iam surgindo, voltou a sentir os cheiros do capim, o calor das lalas de Faquina Mandinga, os tarrafos de Buba, as humidades frescas das madrugadas das matas do Oio. Sem nunca se ter apercebido, aquela terra tinha vivido sempre com ele. “Nunca mais foste o mesmo, raras são as fotos em que apareces com um sorriso”, disse-lhe alguém meia dúzia de anos depois do regresso. A inquietação absurda, sem razão aparente para a sentir, acompanhou-o a vida toda, as horas do sono nunca mais foram as que eram antes, nem com a ajuda dos lorenins. 

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A luta armada teve início, oficialmente, em 23 de Janeiro de 1963 com o flagelamento ao aquartelamento de Tite. Tanto quanto sabemos foi Arafan Mané quem tomou a iniciativa do ataque, sem o conhecimento prévio de Amílcar Cabral, que terá sabido do facto através de uma estação de rádio. 

Tite, o Como, a zona do Oio, a mata do Cantanhez, Madina e Guileje, foram pasto de um fogo que se expandiu durante esses anos por quase todo o território. Os ventos ajudavam, eram fortes e de feição. Emboscadas, ataques aos aquartelamentos e povoações, minas e armadilhas foram deixando marcas na população e nos combatentes dos dois lados. 

Bissau era o descanso dos guerreiros. Nos intervalos da guerra, combatentes do Exército, da Marinha e da Força Aérea paravam em Bissau, a maioria para virem a Lisboa de férias. Outros estacionavam nas enfermarias do HM 241, tentando prolongar as vidas. 

Alguns guerrilheiros aproveitavam as idas a Bissau para visitar as famílias e conhecidos e espiar os movimentos das tropas portuguesas, informações que depressa transmitiam por um tam-tam qualquer aos Comissários do Partido. 

A luta foi decorrendo assim, de início de fraca intensidade e endurecendo à medida dos anos. No princípio eram Seskas, Simonovs e Mausers, meses depois, poucos, a PPSH e a Kalash cuspiam metralha. E a guerrilha foi avisando que, em breve, novas armas mais mortíferas estavam a chegar. 

Do lado das Forças Portuguesas a G-3, a bazooka e os morteiros de 60, os Dorniers 27, os T-6 preparados para bombardeamentos (em breve período os F-86 da Nato, estacionados na Ilha do Sal), os Alouettes-2, no início, e depois os ALL-3, os jactos Fiats G-91 a partir dos finais da década de 60, as LDMs, LDGs e os Navios Patrulhas aguentaram-se até ao fim. 

Em poucos anos, a guerrilha estreou os morteiros pesados, os RPGs, o canhão sem recuo, os foguetões e os mísseis Strella, estes em 1973. 

Estava-se perto do fim. A manobra do PAIGC, de sair de Bissau e das povoações maiores para se infiltrar e disseminar pelas tabancas, tinha-se revelado de enorme importância.  Os Fiats G-91 entraram, as operações com recurso aos Alouettes-3 tornaram-se correntes, mas o ânimo das nossas tropas já não era o mesmo. 

Na metrópole, quem queria e podia punha-se na alheta. Em qualquer canto, em França, Alemanha, Inglaterra, Bélgica, Holanda, Suécia ouvia-se falar a língua de Camões. 

Uma Guerra que nunca devia ter sido feita. Uma Guerra que não devia ter terminado. Uma Guerra perdida nas bolanhas e nas matas. Uma Guerra perdida em Lisboa. 

A Guerra começou oficialmente em Janeiro de 1963 e terminou em 9 de Setembro de 1974. Os últimos soldados portugueses regressaram a Lisboa em 15 de Outubro. 

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Anexos : Breve apontamento sobre a História dos Comandos do CTIG2

I. Cronologia 

˗ Partida, em 29 de Outubro de 1963, para Angola dos Oficiais, Sargento e Praças, do CTIG, a fim de frequentarem um curso de Comandos, no CI 16 na Quibala - Norte: 

Maj. Inf.ª Correia Diniz 
Alf. Mil. Maurício Saraiva 
Alf. Mil. Justino Godinho 
2.º Sarg. Inf.ª Gil Roseira Dias 
Fur. Inf.ª Mário Roseira Dias 
Fur. Mil. Cav. Artur Pereira Pires 
Fur. Mil. Cav. António Vassalo Miranda 
1.º Cabo At. Inf.ª Abdulai Queta Jamanca 
Sold. At. Inf.ª Adulai Jaló 

˗ Regressaram a Bissau em 6 de Dezembro de 1963, e, formaram um Grupo que participou na Operação "Tridente" (Ilha do Como), de 15 de Janeiro a 22 de Março de 1964. 

˗ Em 3 de Agosto de 1964, início das actividades do CIC/Brá, com a Escola de Quadros para dar instrução ao 1.° Curso de Comandos da Guiné, que decorreu entre 24 de Agosto e 17 de Outubro de 1964. Deste curso saíram os três primeiros Grupos de Comandos, que desenvolveram a sua actividade na Guiné até Julho de 1965: 

"Camaleões": Alf. Mil. Cmd Justino Godinho (Cmdt) 
"Fantasmas": Alf. Mil. Cmd Maurício Saraiva (Cmdt) 
"Panteras": Alf. Mil. Cmd Pombo dos Santos (Cmdt) 

˗ O CIC/Brá, sob o comando do Maj. Inf.ª Cmd Correia Diniz, recebeu do CIC de Angola, para a formação de quadros, os seguintes militares: 

Ten. Mil. Cmd Abreu Cardoso 
Alf. Mil. Cmd Luís Câmara Pina 
2.º Sarg. Infª. Cmd Ferreira Gaspar 
Fur. Mil. Cmd Pompílio Gato 
1.º Cabo Cmd Pires Júnior (Pegacho) 
1.º Gr. Cmds "GATOS" / BART 400, comandado pelo Alf. Mil. Cmd Martins Valente. 

Estes elementos participaram nas primeiras acções conjuntas com os Grupos acima referidos. 

˗ O CIC/Brá foi extinto em 01 Julho de 1965 

˗ Para dar continuidade à formação de Grupos de Comandos, foi criada a Companhia de Comandos do CTIG (CCmds/CTIG), tendo sido nomeado seu comandante o Cap. Artª. Nuno Rubim, substituído em 20 de Fevereiro de 1966 pelo Cap. Art. Garcia Leandro. 

˗ O 2.º Curso de Comandos teve início em 07 de Julho de 1965, terminando em 04 de Setembro do mesmo ano, com a formação de 4 Grupos de Comandos, que tomaram os nomes: 

"Apaches": Alf. Mil. Cmd Neves da Silva (Cmdt) 
"Centuriões": Alf. Mil. Cmd Almeida Rainha (Cmdt) 
"Diabólicos": Alf. Mil. Cmd Silva Briote (Cmdt) 
"Vampiros": Alf. Mil. Cmd Pereira Vilaça (Cmdt) 

˗ O 3.º Curso de Comandos, realizado pela CCmds/CTIG, aquartelada em Brá, decorreu de 9 de Março de 1966 a 28 de Abril de 1966, e foi constituído por militares voluntários pertencentes a Unidades sediadas na Guiné e que se destinaram a recompletamento dos Grupos de Comandos, tendo sido, cerca de um mês depois, englobados no Gr Cmds "Diabólicos". 

˗ Com a chegada à Guiné da 3.ª Companhia de Comandos, vinda do CIOE - Lamego, a CCmds/CTIG foi extinta em 30 de Junho de 1966, mantendo-se em actividade o Grupo de Comandos "Diabólicos", até finais de Setembro de 1966, data em que a maioria dos militares que o integravam terminaram a sua comissão de serviço. 


II. Resultados da Companhia de Comandos da Guiné (23/08/64 a 31/08/66) 

˗ Efectivos envolvidos: 211 
˗ Mortos em combate: 12 
˗ Feridos em combate: 19 
˗ Acções realizadas: 1133 
- Gr. “Fantasmas”: 21 operações 
- Gr. “Camaleões”: 9
- Gr. “Panteras”: 11 
- Gr. “Apaches”: 14 
- Gr. "Centuriões":12 
- Gr. “Diabólicos”: 24 
- Gr. “Vampiros”: 14 
˗ Armas apreendidas: 71 
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Notas:

1 - Nome fictício
2 - In Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961/1974); 14.º Volume - "Comandos"
3 - Total de operações, incluindo acções executadas apenas por oficiais e sargentos

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(FIM)
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Nota do editor

Todos os postes da série de:

28 de Junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14803: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (I Parte): Introdução, Dedicatória e A Caminho

30 de Junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14814: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (IIa Parte) Em Cuntima, na fronteira Norte com o Senegal (1)

30 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14817: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (IIb Parte) Em Cuntima, na fronteira Norte com o Senegal (2)

2 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14827: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (III Parte): Morreu-me um gajo ontem

7 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14845: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (IV Parte): Comandos do CTIG

9 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14857: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (V Parte): Brá, SPM 0418

14 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14876: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (VI Parte): A nossa causa é uma causa justa

23 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14922: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (VII Parte): Clara; Apanhado à mão e Entre eles

30 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14951: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (VIII Parte): "Hotel Portugal"; "Um guia" e "Artigo 4.º do RDM"

6 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14975: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (IX Parte): Mais dois lugares è mesa; Bomba em Farim e Rumo a Barro

13 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14998: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (X Parte): Barro, Bigene; Bigene, Barro

20 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15024: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XI Parte): Mornas e Segundo Encontro com o RDM num mês

27 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15044: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XII Parte): Guia em fuga; Um descapotável em Bissau e Entram os Alouettes

10 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15098: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XIII Parte): Conversa em Brá e Nunca digas adeus a Cuntima

24 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15149: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XIV Parte): Fuzileiros, Páras e Felupes; O que se terá passado em Catió; Casamento com data marcada e Ponto da situação em Brá

1 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15186: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XV Parte): ME-14-04; Partir mantenhas; Buba, outra vez e Vamos ser independentes

8 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15221: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XVI Parte): Cabral no Oio; Uma carta e Galinha à cafriela

15 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15254: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XVII Parte): Fima, enfermeira do Partido; Cassaprica e Correspondência

22 de outubro de 2015> Guiné 63/74 - P15280: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XVIII Parte): Extinção da Companhia de Comandos do CTIG; Mansoa e Valium

29 de outubro de 2015 Guiné 63/74 - P15303: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XIX Parte): Chegou a 3.ª Companhia de Comandos e Pesadelo

5 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15330: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XX Parte): Hospital Militar 241; Mamadú; Fuga? e Só água fria por baixo

12 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15357: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XXI Parte): Grande Hotel; Água IN; E agora para onde? e CCS, QG

19 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15385: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XXII Parte): Outros horários; Contas com os fornecedores; Um mês e meio para o fim; Um Folgado no QG e VAT 69

27 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15417: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XXIII Parte): Lifna Cumba, o "Joaquim"; Um longo Dezembro e Os Últimos Dias

3 de dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15439: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XXIV Parte): "Regresso, dois anos depois" e "Tantos anos depois: por quê recordar?"

10 de dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15473: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XXV Parte): Uns continuaram nessas guerras, outros noutras - 1
e
17 de dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15498: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XXVI Parte): Uns continuaram nessas guerras, outros noutras - 2

Guiné 63/74 - P15587: Parabéns a você (1014): Mário Lourenço, ex-1.º Cabo Radiotelegrafista da CCAV 2639 (Guiné, 1969/71)

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Nota do editor

Último poste da série de 6 de Janeiro de 2016 Guiné 63/74 - P15584: Parabéns a você (1013): Paulo Santiago, ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 53 (Guiné, 1970/72)

quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15586: Inquérito 'on line' (25): Num total de 73 respondentes, há 31 (42,5%) que garante que o "fiel amigo", o bacalhau nunca faltou no Natal, no tempo da guerra"... Mas 1 em casa 4 não sabe ou não se lembra, o que é natural, depois de tantos Natais passados e de tantos fardos de bacalhau comidos...

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[Postal de Natal' 73. Foto de Agostinho Gaspar, o primeiro da esquerda, ex-1.º cabo mec auto rodas, 3.ª CCAÇ/BCAÇ 4612/72, Mansoa, 1972/74]


INQUÉRITO DE OPINIÃO: "NA GUINÉ, NO NATAL, NUNCA FALTOU O 'FIEL AMIGO', O BACALHAU"



1. Sim, nunca faltou, no Natal > 31 (42,5%)

2. Não sei / não me lembro > 19 (26,0%)

3. Faltou pelo menos uma vez > 3 (4,1%)

4. Faltou sempre > 18 (24,7%)

5. Não aplicável, nunca liguei ao bacalhau > 2 (2,7%)

Votos apurados: 73 (100,0%)


Sondagem fechada 30/12/2015  | 14h10

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Nota do editor:

Último poste da série > 28 de dezembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15549: Inquérito 'on line' (24): Num total de 35 respostas, 15 dos nossos camaradas (c. 43%) diz que o bacalhau nunca faltou na mesa de Natal, no CTIG... A inquirição acaba no dia 30, 4ª feira, às 14h10

Guiné 63/74 - P15585: Os nossos seres, saberes e lazeres (133): Bruxelas sempre muito amada, e a pensar na Anatólia (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Novembro de 2015:

Queridos amigos,
Não perco uma oportunidade para farejar esta terra que me é familiar. Tudo por obra de ter aqui bons amigos a que vejo uma vincada sinceridade no acolhimento.
Tive sorte em apanhar o Outono ainda com intensa folhagem, alguém me observou que mais uns dias e apanharia só a ramagem nua, o anúncio dos tempos rigorosos do frio, neve e invernia inclemente.
Terei depois um dia só por minha conta, na Feira da Ladra encontrarei um álbum primorosamente conservado onde se escreve Lisbonne - Fatima - St. Sébastien, Octobre 1956, deu para reviver o Rossio daquele tempo, a Baixa e até as ruínas expectantes de Santa Engrácia, 10 anos depois teríamos o edifício renovado, no âmbito dos 40 anos da Revolução Nacional. E mergulhei numa extraordinária exposição dedicada à Anatólia, qualquer coisa como a Turquia no território da Ásia Menor, frente à Europa, 200 peças deslumbrantes de milénios de encruzilhadas de culturas.
Eu depois conto.

Um abraço do
Mário


Bruxelas sempre muito amada, e a pensar na Anatólia (1)

Beja Santos

O pretexto era uma conferência sobre envelhecimento e multimorbilidade, ajeitou-se a ida e vinda de modo a dispor de um tempo apreciável de lazer. Parte-se e chega-se cedo à capital da Bélgica, e o meu amigo André Cornerotte apanha-me em Zavatem, por acaso no Brabante Flamengo, é o princípio da tarde e ele sugere um passeio a uma vila próxima, Diegem, refere que há uma linda igreja do tardo-gótico. Nada contra, o que eu quero é foliar, mais a mais está um dia de sol.





Diegem, imagine-se, pertence à municipalidade de Malines, uma linda cidade recheada de história de onde saíram deslumbrantes tapeçarias flamengas, não muito longe de Antuérpia. Esta igreja distingue-se pela sua elegante agulha que se sobrepõe a uma massa calcária bem lavrada. A igreja está fechada, haverá próxima visita. Antes, porém, deu-se com um belo castelo encastrado numa correnteza de edifícios, e que belo castelo, pequeno mas muito elegante. Cirandei à volta da igreja, chamou-me à atenção o pórtico e a sua sóbria escultura.




O Outono, nos países do Norte, é muito mais extenso do que no Sul e reserva-nos estes cromatismos prodigiosos, ruas inteiras com as árvores engalanadas, contrastando muitas vezes com os céus plúmbeos, assisti ao final da festa naqueles últimos dias de Outubro, máquinas e varredores iam limpando as ruas de tanta folha caída. Nunca ninguém me explicou este fenómeno para que o arvoredo viceje com tal intensidade e subitamente chega um Outono de árvores despidas, a chamar o Inverno, o longo Inverno do Norte. O que mais gosto são as cerejeiras japonesas, e encontramos glicínias e buganvílias a tomar conta das paredes das casas, disputando espaço com a vinha virgem. Não conheço mais espampanante encenação do arvoredo.







A noite do primeiro dia acabou em Anderlecht, um dos bairros mais populosos da capital, após uma visita familiar, a Ika, o André e eu fomos jantar num restaurante grego, valeu a pena e como me tinha levantado as seis da manhã atirei-me para a cama, no dia seguinte é dia de trabalho. É evidente que não vos vou falar do envelhecimento e muito menos da multimorbilidade. À saída de casa, nos alvores de uma manhã pardacenta, apanhei pela frente um chalé dos antigos, recentemente restaurado para receber uma família daquelas que têm posses. E segui caminho até ao centro nervoso de Bruxelas, aquela constelação de ruas por onde se espalham os serviços da Comissão Europeia, do Parlamento Europeu, de milhares de escritórios dos lóbis, embaixadas e, claro está, os hotéis que acolhem os múltiplos visitantes que vêm para reuniões, seminários e conferências. O que para o caso interessa é que devorei umas sandes e após o consolo de umas frutas e uma taça de café aproveitei o intervalo para arejar. No arejo encontrei um belo jardim, não muito longe da antiga gare ferroviária que ligava Bruxelas ao Luxemburgo. Apanhei estas estátuas, seguramente de gente ilustre, mas folhagem que parece pintada e antes de me encerrar no que falta discutir e validar sobre envelhecimento e multimorbilidade deixo-vos esta imagem da Rue de la Loi, uma das artérias principais que liga a zona de Schuman ao Parque Real, esperei um momentâneo desafogo do trânsito para vos mostrar como se destruíram belíssimos edifícios para construir estes albergues onde se postulam diferentes políticas europeias. Assim findou o dia de trabalho. Amanhã é dia de turista, com repetições, improvisações e assombrações, como irão ver.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 16 de dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15496: Os nossos seres, saberes e lazeres (132): o casal João e Vilma Crisóstomo recebem em sua casa, em Nova Iorque, o ex-comandante do Navio Escola Sagres, Malhão Pereira, o embaixador Mendonça e Moura, e mais três dezenas de membros de comunidades portuguesas da área metropolitana nova-iorquina

Guiné 63/74 - P15584: Parabéns a você (1013): Paulo Santiago, ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 53 (Guiné, 1970/72)

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Nota do editor

Último poste da série de 5 de Janeiro de 2016 Guiné 63/74 - P15579: Parabéns a você (1012): João Meneses, ex-2.º Tenente FZE do DFE 21 (Guiné, 1972); Ricardo Figueiredo, ex- Fur Mil Art do BART 6523 (Guiné, 1973/74) e Valentim Oliveira, ex-Soldado Condutor Auto da CCAV 489 (Guiné, 1963/65)

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15583: Excertos de "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (1): O meu irmão Álvaro

1. Excertos de "Memórias da Guiné" da autoria do nosso camarada Fernando Valente (Magro) (ex-Cap Mil Art.ª do BENG 447, Bissau, 1970/72), que foram publicadas em livro com o mesmo título, Edições Polvo, 2005:


EXCERTOS DE MEMÓRIAS DA GUINÉ

Fernando de Pinho Valente (Magro)
Ex-Cap Mil de Artilharia*

1 - O Meu Irmão Álvaro

O esforço humano (e material) dos portugueses para responder às guerras de África, nas três frentes (Angola, Guiné e Moçambique) era enorme no final da década de sessenta e nos primeiros anos da década de setenta.

No caso da minha família nós éramos (e somos) oito irmãos, seis dos quais homens.

Todos os seis foram chamados a prestar serviço militar obrigatório e todos foram mobilizados: um para Moçambique, como alferes miliciano, dois para Angola sendo um deles no posto de furriel e o outro como cabo especialista da Força Aérea e três para a Guiné, sendo eu o mais velho, como capitão, o mais novo como furriel e o imediatamente a seguir ao mais novo como primeiro-cabo auxiliar de enfermeiro.

A vida militar deste último cruzou-se mesmo com a minha, pois fazendo parte da Companhia de Artilharia 3493, foi mobilizado para a Guiné e colocado em Mansambo, na região de Bafatá, quando eu me encontrava ao serviço do Batalhão de Engenharia 447.

Fui esperá-lo, subindo ao barco que o trouxe e fundeou ao largo de Bissau, nos primeiros dias de Dezembro de 1971.

Pedi ao seu Comandante que, logo que possível, o deixasse passar comigo alguns dias em Bissau, o que aconteceu em princípios de Janeiro de 1972.
Ele, nessa altura, queixou-se muito da vida difícil e perigosa que levava no mato e eu, depois de ele regressar à sua Companhia, comecei a congeminar um processo de o trazer para o Hospital Militar de Bissau.

O que determinou a minha diligência nesse sentido foram as notícias que dele recebi em Fevereiro de 1972. Nelas me dizia que tinha entrado numa operação militar de um dia e duas noites e que, a certa altura, no meio do mato, foi dada ordem pelo Alferes, Comandante do seu pelotão, para que o pessoal descansasse por algum tempo.

Como havia perdido a noite anterior, acabou por adormecer, protegido pela vegetação.
Quando acordou foi grande o seu espanto ao se encontrar completamente só no meio do mato, numa região que sabia ser frequentada por “terroristas”.

No aerograma que me enviou relatava, desta maneira, o sucedido:

"Não imaginas o meu estado de espírito ao ver-me só e perdido dentro daquela mata densa. Andei cerca de uma hora perdido, cheio de medo. Cheguei a pensar que seria apanhado pelos terroristas e que nunca mais voltaria a ver a família. 
Procurei encobrir-me com a vegetação, mas se porventura tinha de atravessar uma clareira, fazia-o rastejando.
Por fim encontrei um trilho por onde segui algum tempo, encharcado em suor.
Finalmente vi, ao longe, um pequeno grupo de militares.
Aproximei-me deles correndo o mais que pude e quando me pareceu que a minha voz poderia por eles ser ouvida, gritei com quanta força tinha.
Era tropa da minha Companhia, embora não fosse do meu pelotão. 
Contei o que havia acontecido, quase sem poder falar, por estar muito cansado.
Não tive nenhuma culpa do sucedido."

Eu conhecia o Director do Hospital, embora não tivesse com ele grandes relações.
Conhecia-o dum jantar festivo a que ele compareceu, como convidado, no Batalhão de Engenharia.
Lembrei-me de o procurar.
Relatei-lhe que tinha um irmão como cabo enfermeiro no mato, irmão que tinha tido, quando adolescente, problemas de saúde e mesmo uma paralisia facial.

Contei-lhe o que havia sucedido por dele se terem esquecido, quando adormeceu de cansaço no meio da vegetação.
Perguntei-lhe, depois, quantos cabos enfermeiros faziam serviço no seu Hospital e se todos mereciam estar lá colocados.
Referiu-me que tinha algumas dezenas de cabos enfermeiros e que, pelo menos um deles, teria de o castigar severamente e de o mandar para o mato porque tinha roubado alguns militares feridos ou doentes.

Estes militares, como de resto acontecia com todos, quando chegaram ao Hospital Militar receberam um pijama próprio e as suas fardas e haveres foram guardados em armários metálicos individuais.
Esse cabo enfermeiro conseguiu ter acesso a alguns desses armários e havia roubado dinheiro e outros pertences dos doentes.

"- E, ainda por cima, ontem embriagou-se e fez por aí uma série de disparates.
Vai com certeza apanhar alguns dias de prisão e, por via disso, terá de ser colocado numa companhia destacada no mato"
, referiu o meu interlocutor.

Perante este relato do Director do hospital perguntei-lhe se não seria possível que o cabo enfermeiro, cujo comportamento merecia uma punição exemplar, fosse colocado por troca na companhia do meu irmão. Evitar-se-ia, continuei eu, que na caderneta militar do rapaz fosse averbado um castigo que, naturalmente, lhe poderia trazer prejuízo na sua vida futura. Com a sua ida para uma unidade de combate, sofreria de qualquer forma uma pesada punição e essa situação talvez o obrigasse a reflectir no sentido de melhorar o seu comportamento.

Assegurei ao Director, por outro lado, que a conduta do meu irmão Álvaro seria irrepreensível no caso de vir a ser colocado naquele Hospital Militar. Por isso responsabilizar-me-ia eu próprio. O Coronel-médico reflectiu e depois ditou-me os termos de uma declaração, em que o meu irmão teria de assinar em como concordava ser transferido para o Hospital Militar de Bissau em troca com o tal 1.º cabo auxiliar de enfermagem mal comportado.

Disse-me o Director que iria chamar o rapaz à sua presença e que o aconselharia a requerer a sua transferência para a Companhia de Artilharia 3493 de Mansambo por troca com o meu irmão Álvaro.
No caso de ele concordar, a minha pretensão seria bem sucedida e eu estava convicto que ele iria dar o seu acordo porque não poderia continuar mais tempo ali, tendo inevitavelmente de ser castigado e enviado para o mato.

Despedi-me do Coronel-médico com a continência regulamentar e aguardei os acontecimentos. A 20 de Fevereiro de 1972 foi publicada uma nota da 1.ª Repartição do Quartel-general do Comando Territorial Independente da Guiné que continha a oficialização da referida transferência.

Dois dias depois, quando entrei em casa vindo do quartel, tinha à minha espera o meu irmão Álvaro.
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Nota do editor

(*) Vd. poste de 12 de fevereiro de 2014 Guiné 63/74 - P12710: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (15): Fim da comissão - O regresso

Guiné 63/74 - P15582: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (33): De 14 a 31 de Maio de 1974

1. Em mensagem do dia 26 de Dezembro de 2015,  o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos mais uma Memória, a 33.ª.


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74

33 - De 14 a 31 de Maio de 1974

Aos poucos, a euforia motivada pela revolução do 25 de Abril, vai dando lugar à expectativa e a muita incerteza. Era assim em Nhala e não devia ser diferente no resto do TO. E, se por um lado se sentisse que a actividade do inimigo era quase nula, com o correspondente abrandamento da nossa, por outro lado, continuava a fazer-se a protecção às obras da estrada na frente de Buba, protecção às colunas, patrulhamentos e contra penetrações. E seria assim quase até ao fim oficial das hostilidades. Com menos tensão, é certo, mas sem nunca esquecer que estávamos em território de guerra. Guerra em banho-maria, não ainda a paz declarada. Tanto assim era que, infelizmente, alguns não viriam a ter oportunidade de saborear a paz. Para aumentar a nossa incerteza, já muito depois de ambas as partes terem adoptado o cessar-fogo tácito, o PAIGC atacou a tabanca de Madina em 3 de Junho, como se verá mais adiante. Obviamente, tínhamos também sempre presente que o cessar-fogo tácito, só por si, não desactivaria os milhares de minas espalhados pelo território, que só mais tarde seriam alvo de uma acção concertada e generalizada de levantamento. Tarde de mais para o Comandante de uma secção do GEMIL 406 que, juntamente com o GEMIL 405, no dia 7 de Maio patrulhavam as regiões de Bolola e Nhacobá, tendo pisado uma mina antipessoal que obrigou à evacuação para o HM 241 de Bissau. Antes, tinham feito um patrulhamento semelhante no dia 3, nas regiões de Missirá e margem norte do Rio Cumbijã, sem problemas. No dia 8 de Maio forças da 3.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 procederam ao levantamento de 10 minas na região da ponte do Rio Balana e implantaram 8, na sequência de uma permuta de responsabilidades de oficiais especialistas. Haveria mesmo necessidade de manter esse campo de minas? Certamente que sim. Tinham passado apenas quinze dias após a Revolução e tudo estava em aberto. Se revelo estes detalhes é tão só para se perceber o clima que se respirava. No meu Sector, só no dia 14 de Maio os homens do MFA deram sinal, como relata a História da Unidade e da qual transcreverei quase tudo por se tratar de um documento importante para memória.


Da História da Unidade do BCAÇ 4513:
 
MAI74/14 – Estiveram presentes em A. FORMOSA, Cap. CLEMENTE e Cap. PÁRA PINELA, Oficiais pertencentes ao Movimento das Forças Armadas, que numa reunião com os Oficiais e posteriormente com os Sargentos, esclareceram o programa do Movimento das Forças Armadas.


MAI74/16 – (...). Visitou A. FORMOSA o Encarregado do Governo Ten Cor FABIÃO, acompanhado do Cap. CLEMENTE do MFA.


MAI74/17 – (...). Verificou-se uma diminuição da actividade violenta do IN, correspondida por uma actividade menos intensa das NT, aguardando-se com expectativa as conversações em Londres em 25 de Maio de 1974.

[Da parte da guerrilha surge no Sector o primeiro sinal no dia 23. Percebe-se que é uma abordagem para avaliar o ponto da situação e a nossa disponibilidade para, na prática, terminar a guerra. A verdade é que também o inimigo, como nós, devia estar sujeito a grande ansiedade, devido a esta situação ambígua, de muitas expectativas, mas que não atava nem desatava].


MAI74/23 – (...). Apresentou-se em A. FORMOSA MANGA MANÉ, natural e residente na República da GUINÉ. Este elemento diz ter sido enviado pela Gendarmerie, com a missão de comunicar que:
- Tinham acabado os movimentos de tropa na Rep. GUINÉ.
- Que estavam a levantar todas as minas.
- Pretendiam abrir a fronteira e facilitar o movimento de gilas.
- Saber se do nosso lado também a guerra já acabou e se a população poderá transitar.

[Não sei que resposta foi dada mas, na mesma data, dia 23, o “RESUMO DOS FACTOS E FEITOS / BCAÇ 4513” destacava em maiúsculas: 
“F – Em virtude do Movimento do 25 de Abril e após as conversações travadas com o PAIGC, começou em toda a Província a vigorar um cessar-fogo tácito. Neste período da comissão do Batalhão na Guiné, assiste-se a uma campanha interna de politização das populações pelo PAIGC e a perspectiva do regresso das NT à Metrópole. Para o fim do período, acelera-se o processo da descolonização, com regresso das NT e a entrega dos poderes ao PAIGC. É de salientar que todas estas operações se realizam na melhor harmonia e colaboração com o PAIGC”].


MAI74/25 – Apresentou-se em A. FORMOSA BRAIMA BALDÉ, Comissário Político do PAIGC. Nas suas declarações, disse que tinha por missão mostrar às populações que o PAIGC não tencionava exercer qualquer represália sobre as mesmas. [Sublinhado meu].

Neste mesmo dia chegou a A. FORMOSA, o Alf do PAIGC ABDU SAMBU. Declarou que se deslocou a A. FORMOSA por ordem do seu Comandante Major JULINHO BARROS, Capitães HUMBERTO GOMES e VARJOS PIRES, e tinha por incumbência comunicar que o PAIGC está absolutamente proibido de fazer fogo ou responder a tiros contra a tropa ou população Portuguesa. O seu Comandante teria mostrado interesse em qualquer dia visitar A. FORMOSA.

[Depois de um mês de ambiguidade e impasse – que, bem sei, é pouco tempo para quem a nível superior diligencia com os movimentos de libertação mas que, para nós no terreno, é uma eternidade -, depois de um mês de impasse, dizia, eis que começam os acontecimentos a precipitar-se em catadupa. Começa também a guerra das bandeiras e bandeirinhas... E estava dado o mote, ainda que ao princípio quase imperceptível: os militares africanos, as milícias, parte da população e os seus representantes, não viam com a mesma bonomia que nós, esta reviravolta na guerra. Nem podiam ver. Mais natural era que começassem a questionar-se sobre o futuro, adivinhando já o abandono após a debandada da tropa. E de pouco valeram as acções de tranquilização por parte do PAIGC e dos comandos militares portugueses. Como se sabe, o pior estava para vir, confirmando os anseios e receios principalmente dos militares africanos. É um assunto que merece ser tratado à parte. Segue-se a guerra das bandeirinhas...].


MAI74/26 – Foi do conhecimento deste Comando, que os elementos do PAIGC presentes em Aldeia Formosa tinham feito uma reunião com a população sem terem pedido a necessária autorização, e durante a qual distribuíram várias bandeiras do PAIGC.

Chegando também ao conhecimento deste Comando que o Alf ABDU SAMBU, tinha algumas cartas e algumas lembranças para entregar ao Comando Militar, foi feita uma reunião com os referidos elementos, em que foi criticado o procedimento por eles adoptado em relação à reunião com a população. Assim, ficou assente nova reunião com a população desta vez presidida por este Comando para esclarecimento das nossas intenções e nossas atitudes. No fim desta reunião, os “Homens Grandes” dirigiram-se ao Batalhão, manifestando a sua solidariedade para com os Portugueses.

[Julgo não serem necessários comentários para se perceber como, numa sucessão de episódios quase diários, se foi estabelecendo um clima propício a conflitos. A tensão ganhava espessura].


MAI74/28 – Pelas 16h00 forças da CCAÇ 18 dirigiram-se ao Administrador de Posto, exigindo-lhe a entrega da Bandeira do PAIGC que ele tinha aceitado dos elementos que estão presentes em A. FORMOSA, ao que o mesmo anuiu.

Satisfeitos dirigiram-se ao Comando do Batalhão para fazer a entrega da mesma, dizendo que enquanto houvesse Exército Português na Guiné, só haveria uma Bandeira que seria a Portuguesa. [Sublinhados meus].

Entretanto e enquanto se dirigem ao Quartel, encontraram o Régulo IAIA, a quem também exigiram a entrega no Comando do Batalhão de todas as bandeiras do PAIGC que possuía. Ele anuiu e fez a entrega das mesmas neste Comando. Sucedeu entretanto, que os referidos militares, sabendo que a Brigada da Engenharia também possuía uma Bandeira do PAIGC, quiseram forçar o substituto do encarregado do armazém que a possuía a fazer a entrega da mesma. Esta atitude, originou que o pessoal da Brigada resolvesse não trabalhar no dia 29MAI74.


MAI74/29 – Logo de manhã e com a presença do Comandante de Companhia de Engenharia, vindo de BISSAU, foi levada a efeito por este Comando uma reunião entre os representantes da CCAÇ 18 e da Brigada de Estradas. Após esta reunião a Brigada concordou em prosseguir os trabalhos no dia seguinte.


MAI74/30 – Foram retomados os trabalhos de Engenharia que prosseguem normalmente.

- Comandante e 2.º Comandante deslocaram-se a NHALA, BUBA e CUMBIJÃ.
- Of OP/INF deslocou-se a COLIBUIA e CUMBIJÃ.

[Ao longo de todo este mês, à semelhança do antecedente, são recorrentes na HU estes registos das deslocações do Comandante, 2.º Comandante e Oficial de Operações às Unidades e subunidades de todo o Sector. É justo que se refira esse contacto permanente, quase diário, em que nos eram transmitidas informações e directivas, amenizando, de algum modo, a sensação de impasse e incerteza em que se vivia. E faziam-no para além das deslocações a Bissau numa frequência inusitada].

Junto imagem da 1.ª entrada do PAIGC em Nhala, na pessoa de um Comissário Político, provavelmente Braima Baldé que há dias chegara a A. Formosa, mas não estou certo.

Foto 1: Nhala, fins de Maio ou Junho de 1974. Primeira visita de um Comissário Político do PAIGC, vendo-se da esquerda para a direita: elemento do PAIGC que não recordo; o Comissário Político; Alf Mil António Murta e Alf Mil Campos Pereira.

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História marginal (7): A hiena perneta. 

Nhala, de madrugada. Dormia profundamente quando senti que me batiam levemente no ombro. Ouvi um sussurro tímido a despertar-me: “meu alferes...” - Virei-me e, no escuro, vi uma silhueta curvada sobre mim ainda a sussurrar:
- Meu alferes... Está ali um animal a comer formigas junto ao arame farpado. Podíamos matá-lo e amanhã tínhamos rancho melhorado...

Era a sentinela do posto mesmo ali ao lado da messe. Ele sabia que eu não resistia a uma caçada, mesmo àquela hora da madrugada.

- Que animal? - Perguntei, a bocejar.
- É assim como um cão, mas maior, não dá para ver bem.

Sentei-me na cama ainda zonzo e só então me apercebi do som forte do peso da água a bater no solo lá fora. Parecia que estava sentado junto a uma catarata. Vesti-me e peguei na G-3, ainda a pensar que era preciso ser muito doido para sair numa noite daquelas. Chovia tão copiosamente que a água nos tapava as distâncias, caindo em cordões grossos e verticais, sem uma aragem. A noite estava amena de temperatura. No alpendre o soldado apontou-me a luz do projector junto ao arame farpado do lado da fonte. Metemo-nos à chuva em direcção à luz e, a cerca de vinte metros, acautelámos os passos na aproximação. Só então vi o costado do animal, meio oculto devido à altura do capim e por ter a cabeça mergulhada na base do poste. No ar, à volta da luz, centenas de formigas voadoras redopiavam freneticamente, num ritual nupcial que já não nos era estranho. Sob o peso da chuva, caíam na vertical, como riscos de luz direitos à cabeça do animal, muitas já sem asas e outras que as largariam no solo. E estavam constantemente a chegar mais, atraídas pela luz. E sempre a cair mais.

Aproximámo-nos mais um pouco já sem grandes cautelas, pois o barulho da chuva, tudo abafava, mesmo as nossas vozes. Levei a arma à cara e apontei àquele alvo fácil mas, quando já premia o gatilho, tive um rebate de consciência e suspendi o gesto. Perguntei ao soldado se gostaria de ser ele a dar o tiro.
- Eu gostava... - Retorquiu-me ele, no tom de quem, por instantes, perdera a esperança daquela oportunidade. Caramba! Como é que posso ser tão egoísta, pensei.
- Força! - Disse-lhe, entusiasmado com a minha atitude de última hora.

Soou o tiro e, no mesmíssimo instante, vimos, como uma mola, uma silhueta raiada de vermelho descrever um arco longo para a direita e enterrar-se no capim lá no escuro. Demos uma corrida para o cavalo de frisa ali perto e, já do outro lado do arame farpado, avançámos de arma em riste na direcção da luz, com muitas precauções para evitar surpresas. Batida a zona onde supúnhamos estar o animal, com o capim a dar-nos quase pela cintura e a dificultar-nos a tarefa, chegámos ao poste da luz sem nada ter encontrado. Na base do poste o solo estava tapado de formigas que fervilhavam na ânsia do provável acasalamento promíscuo. Mesmo ao lado, salpicos de sangue no capim. Disse ao soldado: “Rápido! Vamos seguir as marcas de sangue enquanto a chuva não apaga tudo”. Avançámos em zig-zag, quase já sem pistas, até que, por fim, lá vimos o animal denunciado pelo capim abatido. Olhei para a luz atrás de nós e percebi, com surpresa, que estávamos a cerca de seis metros. Como à volta o capim estava intacto, tivemos de concluir que toda aquela distância fora feita de um salto apenas.

Assim de relance, não percebemos que bicho era. Simplesmente, não o reconhecemos. Mas não podíamos perder muito tempo com alvitres porque não tardava era dia. E tínhamos que tirar aquelas desconfortáveis roupas molhadas. Antes de agarrarmos o animal pelas patas dianteiras, dei-lhe um pontapé para me certificar de que não oferecia perigo. Mas foi ao arrastá-lo pelo capim que reparámos que tinha uma das patas traseiras decepadas abaixo da coxa. Era perneta. Ou fora numa armadilha, ou fora vítima de outro predador. Porque há sempre um predador mais forte...

Na manhã seguinte o animal foi entregue aos cozinheiros para ser preparado para o jantar, sem que alguém conseguisse dizer de que se tratava. Não era parecido com nada do que já tínhamos visto. E comido. Hoje admiro-me com tanta ignorância. Como era possível?

À hora aprazada, já entardecia, e toda a rapaziada do grupo se dispunha na longa mesa que havia no alpendre por trás da caserna, assistindo à chegada do grande tabuleiro fumegante. O pão magnífico e ainda quente já estava na mesa, bem como as caixas de cerveja fresquinha que mandara comprar à cantina. Todos estavam muito alegres e ansiosos. E mais ainda a equipa de voluntários que se encarregou de toda a logística. Não era caso para menos, pois os momentos como este eram raríssimos e, embora não se passasse fome, já ninguém suportava as salsichas e o fiambre feito de todas as maneiras incluindo grelhado como bife, receita herdada da anterior Companhia de Nhala, que ao princípio se revelara um pitéu, mas que ao longo do tempo se tornou execrável. Também os caçadores nativos pareciam estar combinados com o nosso infortúnio, passando-se meses sem aparecerem com nada. Mas, por mais de uma vez, aconteceu aparecer um com uma vaca e logo outro com um búfalo e outro ainda com mais não sei o quê... Mas isto nunca resultava em grande fartura, porque assim que se esgotava a capacidade das arcas frigoríficas a petróleo, parte da caça tinha de ser recusada.

Foi um festim, o nosso jantar. E quando já nada restava do manjar delicioso, ainda continuámos a molhar pão no molho dourado e picante do tabuleiro, acompanhando com cerveja e muita animação. Os saberes dos cozinheiros surpreendiam-nos e deliciavam-nos. Se ao longo dos meses o rancho nos enfastiava diariamente, só podia ser porque os ingredientes eram dos piores, porque os cozinheiros eram dos melhores. Honra lhes seja feita, e não perco a oportunidade de lhes fazer este elogio: qualquer que fosse a peça de caça que se lhes apresentasse, mesmo tão só uma galinha-do-mato ou meia dúzia de rolas, o resultado era sempre um manjar dos deuses. Sendo certo que não se punha a hipótese absurda de fazerem rolas todos os dias, caso em que voltaríamos à situação enjoativa do fiambre grelhado. Também os padeiros coziam o melhor pão que já comi, estaladiço, bem temperado e a cheirar a pão... Por vezes interrogava-me: será que tivemos sorte com estes “profissionais”, ou serão todos assim? Ou também ajuda a fome que temos?

Uns dias depois, alguém se chega a mim com evidente gozo e diz:
- Aquilo que vocês comeram há dias era uma hiena.
- Como é que sabes? - Perguntei eu, esperançado de que ele não tivesse a certeza.
- Porque um cozinheiro mostrou-me a cabeça e eu reconheci-a.
- O quê?! Eu comi um necrófago?!... - Perguntei, sentindo uma náusea que não percebi se era simulada... - E por que não disseste logo?
- Porque se dissesse tu já não a comias e era uma pena. Não gostaste?
- Tens razão. Se soubesse, não comia. Ou talvez comesse na mesma, mas já não era a mesma coisa.

Fiquei na dúvida se ele não estaria agastado por não ter sido convidado para o banquete.

(continua)
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 Nota do editor

 Último poste da série de 8 de dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15458: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (32): De 25 de Abril a 5 de Maio de 1974

Guiné 63/74 - P15581: Agenda cultural (451): Junta de freguesia de Vila Franca de Xira, dias 13 e 20 deste mês, às 21h30, exibição dos filmes "O mal amado" e "Acto dos Feitos da Guiné", respetivamente, de Fernando Matos Silva (que foi fotocine na Guiné em 1969 e em Angola, 1970)




O Mal-Amado (1973) é um filme português, com realização de Fernando Matos Silva, e produção do Centro Português de Cinema, cooperativa que agrupava então uma boa parte dos jovens cineastas do "Novo Cinema". A obra foi proibido na época, e o seu negativo apreendido. O filme só foi estreado em 3 de maio de 1974. A preto e branco, em 35 mm, tem a duração de 97 minutos. Argumento e diálogos: Álvaro Guerra, J. Matos Silva e F. Matos Silva.

O filme é protagonizado por grandes senhores do teatro português, aliás um senhor, João Mota, ator e encenador (que esteve na guerra colonial três anos, em Angola, nos Dembos de 1966 a 1968, como fur mil) e uma senhora, Maria do Céu Guerra...

E o filme tem,  como pano de fundo,  justamente a guerra colonial e as dilacerações provocadas pela guerra na sociedade portuguesa: Com 25 anos, João, o "mal amado", decide abandonar os estudos, pouco antes de ir para a tropa. O pai, Soares, é um  funcionário público zeloso, que sabe mexer os seus cordelinhos no Portugal de então, arranjando ao filho um emprego temporário. Vai trabalhar num escritório, rodeado de  mulheres. A chefe Inês, percebendo que  o João se move num círculo de poder, vais transferir para ele uma paixão frustrada pelo irmão, morto na guerra colonial. Apesar do estatuto social e da sofisticação de Inês, o João tem olhos é para Leonor,  uma colega, uma mulher de perfil mais tradicionalista, com quem começa a namorar. Num acesso de ciúme, Inês acaba por matar João com um tiro de pistola. O filme está classificado como "drama social".  Ver aqui o genérico.



O documentário "Acto dos Feitos da Guiné" É parte de material filmado na Guiné em 1969 e 1970 para um retrato da relação histórica da colonização portuguesa com a compreensão de África. O filme de Fernando Matos Silva tem marcas autobiográficas e conjuga imagens documentais – imagens de guerra, cruas e extremas, a preto e branco – e de ficção – sequências a cor que encenam um “Acto” onde os “feitos” são contados por personagens que representam diretamente voltadas para a câmara. (*)


1. A pedido da  Associação Promotora do Museu do Neo-Realismo,  com sede em Vila Franca de Xira, junto divulgamos este evento cultural à volta do cinema como arte, com a marca de dois homens que passaram pelo TO da Guiné, o realizador (e antigo "fotocine), alentejano, Fernando Matos Silva,  e o escritor, vilafranquense, Álvaro Guerra (Vila Franca de Xira, 1936 - Vila Franca de Xira, 2002):

Junta de Freguesia de Vila Franca de Xira, às 21h30:

13/1/2015 - Exibição do filme de ficção "O Mal Amado" (Portugal, 1973,  97 min) (argumento e diálogos: Álvaro Guerra, J, Matos Silva e F. Matos Silva)

20/1/2015 - Exibição do documentário "Acto dos Feitos da Guiné"  (Portugal, 1988, 85 min) (argumento: Margarida Gouveia Fernandes e Fernando Matos Silva)

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Nota do editor:

(*) Vd. último poste da série > 4 de janeiro de 2016 > Guiné 63/74 - P15574: Agenda cultural (450): "Acto dos Feitos da Guiné", filme de Fernando Matos Silva (Portugal, 1980, 85 min): exibição na Cinemateca, Lisboa, 3ª feira, dia 5, às 18h30. Sessão apresentada por Catarina Laranjeiro, seguida de debate com o autor (que foi realizador militar, Guiné, 1969, e Angola, 1970)

Guiné 63/74 - P15580: Memórias de Gabú (José Saúde) (59): Memórias que o tempo jamais ousará apagar



1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.


Memórias que o tempo jamais ousará apagar

Recordando

Sou melancólico, confesso! Aliás, seremos eternos antigos combatentes cujas imagens jamais se diluirão num cosmos de todo extensíssimo e onde as memórias se cruzam com um tempo de guerra em território guineense.

Dessas imagens que teimam em trazermos à liça, surgem pequenos relatos que todos porventura conhecemos numa Guiné que marcou uma passagem da nossa juventude.

Enviados para as frentes de combate, o militar deparou-se com inevitáveis reproduções que ainda hoje teimam em fazer parte do seu puzzle onde a guerra se apresentou então como inevitável, não obstante o cunho da obrigatoriedade imposta a um jovem que sonhava com uma vida quiçá bélica.

Quem não se lembra daquelas crianças que transportavam os seus irmãos às costas e já com uma perfeita arte originária da sua tribo? Um pedaço de pano atado ao corpo e o pequenito, ou pequenita, lé seguia viagem num berço que ditava um inevitável conforto.

Ou dos célebres Unimog utilizados para diversas situações para que eram chamados? Recordando esses velhos tempos as lembranças teimam em permanecer intactas em egos que não se apagarão das nossas vidas como antigos combatentes de uma Guiné que marcará o nosso passado.

A foto que reproduzo é comum, julgo, a todos os camaradas que conheceram essa inquestionável verdade. Eu, antigo ranger, mas um tropa igual a tantos outros camaradas que ao meu lado palmilharam caminhos ínvios, alguns complicados, utilizo um momento de puro lazer para debitar uma pequena conversa com uma criança que na altura ter-me-á solicitado um pequeno pedido, admito.

Sendo eu uma pessoa onde o mundo das crianças sempre me cativou, aqueles ingénuos seres de uma Guiné em guerra transmitiam-me esperanças num futuro melhor para um território cujo cenário era de facto turbulento. 

Aguardar por um amanhã substancialmente melhor onde o sublime horizonte parecia ditar cenários indubitavelmente aceitáveis, ou seja, o fim da guerra para que essas crianças vivessem num universo de liberdade e onde o barulho do clamor das armas se calasse de vez, era, creio, o objetivo imediato.

O Unimog, essa velha máquina utilizada amiúde para transportar tropas que viviam debaixo de um clima que não dava tréguas, era um veículo versátil nos seus diversos estilos num terreno porventura adverso.

O ronco da imagem é tão-só uma pequena lembrança que teima em fazer parte integrante do meu baú como antigo combatente de uma Guiné onde a foto nos encaminha para reviver camaradas que jamais tive a oportunidade em contactar.

Aquela manhã ter-se-á tratado de uma visita à tabanca para uma compra, admito, de uma possível galinha, ou galinhas, ou de leitões que mais tarde fariam parte de uma refeição na messe de sargentos.

O guineense, homem que fará também parte das minhas memórias de Gabu e que “confortavelmente” se sentava no banco em madeira da “velha máquina” de guerra, é perfeitamente lógico que a minha recordação registe, apenas, a sua imagem.

Recordando nacos de uma comissão militar que me enviou para a guerra colonial, sendo o meu destino, tal como o teu camarada, o solo da Guiné. 



Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em: 

Guiné 63/74 - P15579: Parabéns a você (1012): João Meneses, ex-2.º Tenente FZE do DFE 21 (Guiné, 1972); Ricardo Figueiredo, ex- Fur Mil Art do BART 6523 (Guiné, 1973/74) e Valentim Oliveira, ex-Soldado Condutor Auto da CCAV 489 (Guiné, 1963/65)



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Nota do editor

Último poste da série de 2 de janeiro de 2016 Guiné 63/74 - P15565: Parabéns a você (1011): Carlos Marques Santos, ex-Fur Mil Art da CART 2339 (Guiné, 1968/69)

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15578: Recortes de imprensa (78): Vicente Batalha, de alf mil cav, CCAV 1483 (CTIG, 1965/67) a cap mil, cmdt do Departamento de Fotografia e Cinema )DFC) nº 3011 (Angola, 1972/74)

Vicente Batalha, foto de
"O Mirante" (2010)
 (com a devida
vénia)
1.  Vicente Batalha, nascido em Pernes, Santarém, em 1941, ex-autarca, actor, promotor cultural, encenador e presidente do Instituto Bernardo Santareno (IBS), foi nosso camarada no CTIG, em 1965/67, na CCAV 1483, e curiosamente é o primeiro comandante de um Destacamento de Fotografia e Cinema, de que ouço falar.

Julgo, de resto, que não temos nenhum "foto-cine",  ou "operador de fotocine", entre os membros da nossa Tabanca Grande. E são escassas, na Net, as referências a estes camaradas que também andaram nas guerras de África...

Depois da Guiné, o Vicente Batalha continuou na tropa e, como tenente a trabalhar nos serviços mecanográfticos do exército, é chamado a fazer o curso de capitães milicianos. A frequência do Curso de Foto-Cine, nos Serviços Cartográficos do Exército, dá-lhe a possibilidade de ir comandar o Destacamento de Fotografia e Cinema 3011, na Região Militar de Angola.

Destaca, entre os seus instrutores, os nomes de Jorge Botelho Moniz, Lauro António e  Fernando Matos Silva (este último o realizador de "Acto dos Feitos da Guiné", 1980).

Em Angola, diz que comandou um  "excelente grupo, com grandes profissionais de fotografia, cinema [e] rádio" que desenvolveu "um notável trabalho de reportagens". Além disso, "tinha furriéis colocados no mato, e todos os meses visitava unidades e levava cinema, percorrendo grande parte de Angola".

A minha dúvida é a de saber se os destacamentos de foto-cine se limitaram a levar cinema aos quartéis do mato e a produzir programas de rádio ou a gravar as famosas mensagens de Natal e Ano Novo... ou se também "fizeram cinema" (atualidades de guerra, documentários, etc.), para além da "cobertura" de acontecimentos protocolares e propagandísticos... E, se sim, por onde para hoje esse material... que ninguém lhe põe a vista em cima, à parte os (poucos) documentários produzidos pela RTP no longo período em que decorreu a guerra colonial (1961-75) ?

Em 2014, e a propósito dos 40 anos do 25 de Abril, o semanário regional "Correio do Ribatejo" (, fundado em 1891, e com sede em Santarém,)  ouviu o "testemunho geracional" do ribatejano Vicente Batalha. Desses quatro artigos, retirámos alguns excertos, com a devida vénia. (LG).



(…) Arrancado aos bancos da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, a 11 de setembro de 1964, assentei praça, na Escola Prática de Cavalaria de Santarém (EPC), como cadete, para frequentar a instrução básica do Curso de Oficiais Milicianos (COM).

A 17 de dezembro, jurei bandeira, e continuei na EPC, para a instrução especial, de atirador de cavalaria. Em abril de 1965, fui promovido a aspirante-a-oficial miliciano, e mandado apresentar, no Centro de Instrução de Operações Especiais de Lamego (CIOE), onde fui selecionado, para a frequência Curso de Operações Especiais, vulgo, “Ranger”.

Findo o curso, fui mandado apresentar, no Regimento de Cavalaria nº 7, na Calçada da Ajuda, em Lisboa. Ia fazer parte da Companhia de Cavalaria 1483 (CCAV), mobilizada para o Comando Territorial Independente da Guiné (CTIG). Comandante, capitão José Olímpio Caiado da Costa Gomes, e os quatro alferes eram o retrato do país em guerra: 1º Pelotão, Azevedo, do Porto, 2º, Batalha, de Pernes-Santarém, 3º, Diogo, de Tavira, e 4º, Garcia, da Serra da Estrela; e, os, 1º Sargento, Dias Jorge, e 2ºs Sargentos, Tibério e Arvana. Com a CCAV 1483, iam para a Guiné mais três companhias: comandadas por, CCAV 1482, Capitão Alves Ribeiro, CCAV 1484, Capitão Pessoa de Amorim, e CCAV 1485, Capitão Lemos Alves.

Fizemos a Instrução de Aperfeiçoamento Operacional, no RI 13 de Vila Real, e, a 19 de outubro, desfilamos, até à estação da cidade, e partimos de comboio, via Porto, para Lisboa, tendo feito a viagem durante a noite. A 20 de outubro de 1965, perante uma multidão, choros e gritos, amigos que me chamavam, daqui e dali, que quiseram estar na despedida, ao som de marchas militares, com “Angola é nossa” a martelar os ouvidos, desfilamos. Aguentei, comovido, sem uma lágrima. Submersos num mar de lenços e adeuses, embarcamos, no “Niassa”, do Cais da Fundição, Santa Apolónia, rumo à Guiné. (…)




(…) Cinco dias depois, a 26 de outubro 1965, estávamos a atracar, no cais de Bissau, em ebulição. As viaturas militares esperavam no cais. Foi em breves minutos, que desembarcamos com as nossas bagagens, saltamos para as viaturas, e lá fomos, com rumo desconhecido… por entre a pequena cidade de Bissau, que olhamos de soslaio, chegamos à jangada (a jangada de João Landim, que está sempre avariada, como diz o “cancioneiro da malta”), que nos levou à outra margem, e continuamos até Bula, a sede do Batalhão de Cavalaria 790, sob o comando do tenente-coronel Henrique Calado, ilustre cavaleiro hípico, dono do célebre “Caramulo”, que nos representou nos Jogos Olímpicos de Tóquio, 1964. Entre escassas palavras, trocávamos olhares, tristes e surpreendidos, perdidos naquele mundo estranho…

Em fase de adaptação, ainda, a 9 de novembro [de 1965], o aquartelamento foi alvo de flagelação, e, na noite seguinte, véspera de S. Martinho, perante informações seguras de novo ataque, recebi a missão de ir montar uma emboscada, para impedir, que o inimigo voltasse a atacar… às tantas, montado o dispositivo, o tiroteio infernal iniciou-se, vindo de todos os lados… foi esse o nosso baptismo de fogo. Regressado ao quartel, recebi ordens, para voltar a sair, para ir buscar o 2º comandante, major Laranjeira, que estava na povoação, que distava algumas centenas de metros do quartel, por entre novo tiroteio, a fechar aquela noite de todos perigos, uma entre tantas, que se iam suceder…

O dispositivo tinha uma companhia, em Có, e Pelundo, outra, em Teixeira Pinto e Cacheu; e do outro lado, a terceira, em Ingoré e Ingorezinho. O meu irmão, tinha embarcado, em rendição individual, a 10 de Janeiro, para a Guiné, onde passamos juntos o Natal de 1965, o primeiro Natal, em pleno teatro de operações. É difícil explicar a saudade, que vivemos nesse Natal, a ler os inúmeros cartões, cartas, a desembrulhar as prendas, que nos chegaram, foi tocante… os meus pais, sobretudo, o meu pai, nunca recuperaram das aflições, desassossego e tristeza, por ter dois filhos num complexo cenário de guerra.

Regressamos, com vida e saúde, mas a amargura de meus pais é uma fatura, que nunca lhes foi paga. Dado o agravamento da situação de guerra, no setor Oeste, e após ter passado três meses, como companhia operacional do BCAV 790, a nossa unidade foi colocada em quadrícula, em São Domingos, terra de felupes e baiotes, mais a norte, a 3 quilómetros da fronteira com o Senegal, com o 3º pelotão, em Susana, e o 4º pelotão, em Varela. 

O ano 1966, foi de guerra intensa: a 14 de fevereiro, sofremos o maior ataque ao aquartelamento, da uma às cinco da manhã, onde foram usados pela 1ª vez canhões sem recuo, gerou-se o pânico; a 4 de dezembro, sofremos a primeira mina, na estrada para Nhambalã. Isolados, com pontões queimados, de um lado, no acesso a Susana, e, do outro, no acesso a Poilão de Leão e Ingoré, o cerco fechava-se e remetia-nos cada vez para o interior do arame farpado. Os ataques sucediam-se, e o setor Oeste foi desdobrado em 1 e 2, pelo que, para São Domingos, foi deslocado o Batalhão de Caçadores 1894, comandado pelo tenente-coronel Fausto Laginha Ramos, e a CCAV 1483 voltou a ser companhia operacional. (…)

O meu irmão regressou, em abril, eu regressei, em agosto de 1967. (…)




(…) Surgiu  [, entretanto,] o convite, para continuar na tropa, num serviço, que permitia conciliar estudo e trabalho, e aceitei. Fui colocado nos Serviços Mecanográficos do Exército, onde, como tenente, num ambiente descontraído, com a presença de senhoras, os militares trajavam à civil, no horário, 13h30-19h00. Ao meu cargo, as especialidades, que vinham do Centro de Estudos Psicotécnicos do Exército, e as consequentes mobilizações do contingente geral. O Largo da Graça, de que gostava muito, passou a fazer parte da minha nova rotina.

Em 1971, fui chamado para o Curso de Capitães, na EPI, em Mafra, com um escol de gente das mais variadas profissões, chefes de família, regressados à tropa, a par dos chamados capitães-proveta… apesar da condenação da guerra, muitas críticas, e incomodidades, foi um curso diferente, familiar, com grande formação política, criei amigos para toda a vida.

Estágio no CIOE, o regresso a Lamego. Como 2º classificado do curso, podia escolher, e decidi frequentar o Curso de Foto-Cine, nos Serviços Cartográficos do Exército, para ir comandar o Destacamento de Fotografia e Cinema da Região Militar de Angola.

Tive instrutores essenciais, Jorge Botelho Moniz, Lauro António, Fernando Matos Silva. 

No Regimento de Transmissões, formei o DFC 3011, excelente grupo, com grandes profissionais de fotografia, cinema, rádio (o meu abraço, Sansão Coelho), desenvolvemos um notável trabalho de reportagens. 



A 9 de janeiro de 1972, embarquei para Angola, no paquete, “Vera Cruz”, a sua última viagem como transporte de tropas. A, 16 de janeiro, desembarquei em Luanda (no cais, os meus compadres e família), e, no dia seguinte, assumi o comando do Destacamento [de Foto Cine 3011], instalado numa aprazível vivenda, entre o Comando da Região Militar, de que dependia administrativamente, e o Comando-Chefe das Forças Armadas, sediado na Fortaleza, de que dependia operacionalmente, a meio caminho, ficava o Palácio do Governo-Geral de Angola.

Capa da revista Fotocine [Angola, 1973-74]...
Cortesia da Hemeroteca da Biblioteca do Exército
Criei a revista “FotoCine”, onde se falava sobre Salvador Allende, e o cinema de Buñuel, e o último número acabou por ser suspenso, mas foi distribuído…  lancei um inédito Concurso de Fotografia, a preto e branco e a cores.

Adorei a cidade, a vida agitada da cidade, com uma vida cultural em ascensão. Convivia com toda a estrutura militar, e seus comandos, espalhados pelo vasto território. O mal-estar era evidente, trocavam-se opiniões, discutia-se a situação política, e, aqui e ali, caíam notícias, sobre o alastrar dos protestos e movimentações. Tinha furriéis colocados no mato, e todos os meses visitava unidades e levava cinema, percorrendo grande parte de Angola.

As minhas funções giravam entre a área cultural e a comunicação social, pois no DFC dirigia um programa, “A Hora do Soldado”, emitido todos os dias, das 11 às 12 horas e das 24 às 01 horas, a partir da Emissora Oficial de Angola. O director da Emissora proibiu a Norberto de Castro um programa sobre o pacifista Bertrand Russel, pedi-lhe a bobina e transmitia-a em “A Hora do Soldado”, o que criou uma situação delicada…mas, já não havia força para me punir. (…)
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Fonte:  Excertos,  com a devida vénia ao autor, Vicente Batalha, e ao semanário "Correio do Ribatejo"

Vicente Batalha – Testemunho geracional (1962-1965),  nos 40 anos do 25 de Abril. [Em linha] Correio do Ribatejo. 11 de abril de 2014. [Consult em 4/1/2016]. Disponível em  
http://correiodoribatejo.com/opiniao-vicente-batalha-testemunho-geracional-1962-1965-nos-40-anos-
do-25-de-abril/

Vicente Batalha – Testemunho Geracional (1965-1974), nos 40 Anos do 25 de Abril. [Em linha]. Correio do Ribatejo, 18 de abril de 2014. [Consult em 4/1/2016]. Disponível em
http://correiodoribatejo.com/opiniao-vicente-batalha-testemunho-geracional-1965-1974-nos-40-anos-do-25-de-abril/

Vicente Batalha – Testemunho Geracional (1974-1975), nos 40 Anos do 25 de Abril. [Em linha]. Correio do Ribatejo, 25 de abril de 2014. [Consult em 4/1/2016]. Disponível em
http://correiodoribatejo.com/opiniao-vicente-batalha-testemunho-geracional-1974-1975-nos-40-anos-do-25-de-abril/
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Nota do editor:

Último poste da série > 13 de novembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15361: Recortes de imprensa (77): Recensão ao livro "Nacionalismo, Regionalismo e Autoritarismo nos Açores Durante a I República", da autoria do Professor Carlos Cordeiro, por Santos Narciso, incluída em Leituras do Atlântico, no Jornal Atlântico Expresso

Guiné 63/74 - P15577: Blogpoesia (432): O Meu Agradecimento, poema de Francisco Santos, ex-1.º Cabo TRMS da CCAÇ 557

1. Por intermédio do nosso camarada José Colaço (ex-Soldado TRMS da CCAÇ 557, Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65), chegou até nós, no dia 29 de Dezembro passado, um poema de agradecimento do outro nosso camarada Francisco Santos, ex-1.º Cabo TRMS, também da CCAÇ 557, a propósito do seu aniversário ocorrido no passado dia 15 de Dezembro.


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Nota do editor

Último poste da série de 3 de janeiro de 2016 Guiné 63/74 - P15571: Blogpoesia (431): Como se... (Joaquim Luís Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728)

Guiné 63/74 - P15576: Notas de leitura (793): "Testemunhos de Guerra, Angola, Guiné e Moçambique, 1961-1974", publicação que acompanhou uma exposição que se realizou no Museu Militar do Porto entre Abril de 2000 e Março de 2001 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Março de 2015:

Queridos amigos,
Temos os muitos livros, artigos em jornais e outras publicações, as conferências, as sessões solenes, os debates evocativos.
Com esta extensão e detalhe, não conhecia uma exposição tão abrangente das três frentes na nossa guerra. O Eduardo Magalhães Ribeiro forneceu material alusivo sobre a Guiné, entre outros. Já lá vão quase 15 anos, os estudos evoluíram muito e é questão para perguntar se essas exposições não deviam continuar, pensadas sobretudo na população geral que vive arredada de um conflito de que não se fala em casa e de que não se tem eco na comunicação social, com honrosas exceções.

Um abraço do
Mário


Testemunhos de Guerra, Angola, Guiné e Moçambique, 1961-1974

Beja Santos

“Testemunhos de Guerra” foi o título da publicação que acompanhou uma exposição que se realizou no Museu Militar do Porto entre Abril de 2000 e Março de 2001. A publicação continua à venda no Museu e custa 20 euros. Inclui: tábua cronológica com os momentos mais marcantes dos treze anos da guerra, questionamento do Colonial e do Ultramar e das atividades do respetivo ministério; apresenta diferentes protagonistas, como Kaúlza de Arriga, Marcello Caetano, Costa Gomes, Adriano Moreira, Bethencourt Rodrigues, Oliveira Salazar e António de Spínola; o Coronel David Martelo escreve sobre os antecedentes da guerra colonial, seguem-se imagens das três colónias onde houve conflito; destaca-se o massacre de 15 de Março, em Angola; o Coronel José Santa Clara Gomes apresenta as nossas tropas e os nossos meios, reproduzem-se os guiões das unidades; seguem-se testemunhos sobre a vida em aquartelamento, reproduzem-se imagens de Fulacunda; apresentam-se os movimentos de libertação e os líderes, temos um conjunto avultado de imagens com os seus equipamentos e dispositivos.

O Coronel Arnaldo Costeira escreve a anteceder o capítulo dedicado aos combates um texto sobre o exército português e o seu comportamento na guerra, reproduzem-se alguns parágrafos:
“Talvez se escamoteie sistematicamente a verdade sobre a responsabilidade dessa intervenção e se atribuam culpas a quem as não tem, de facto. E o que é ainda mais grave é que se esqueçam as centenas de milhares de homens que, no cumprimento constitucional do dever, marcharam para a frente onde viveram sacrifícios inauditos, privilegiando-se a heroicidade de escassas centenas de cidadãos que fugiram aos seus deveres, entre as quais se contavam sem dúvida alguns resistentes políticos, e que mais tarde se misturariam com os verdadeiros resistentes.
Nenhum país até então conseguira quaisquer resultados numa guerra subversiva. Nem franceses nem norte-americanos deixaram de ser derrotados na Indochina, com potencial de combate poderosíssimo, embora com forças apoiadas por países importantes como eram a União Soviética e a China. Portugal, num território vastíssimo, com meios limitados pelo bloqueio dos países amigos, superou as dificuldades pela grandeza dos seus homens, pela dedicação e espírito de sacrifício que o português sempre patenteou em toda a sua história.
Foram anos de sofrimento e luta sem quartel. Os militares do Exército estabeleceram uma quadrícula invejável, erguendo desde os alicerces as parcas estruturas onde viveriam durante meses que pareciam não ter mais fim. Viveram como toupeiras durante meses a fio, uns após outros, passando meses sem conta, nos primeiros aos de guerra, apenas com o petromax aguardando que o escuro das noites os não surpreendessem. Passaram sede e contactaram com esse tipo de alimentação desidratada que deveria fazer inveja aos milhões que nem sequer sabem que isso existe porque morrem de fome diariamente”.

Temos depois uma sucessão de imagens com viaturas em progressão em bolanhas, em picadas, colunas de jipes, reações em emboscadas, levantamento de minas, imagem de armas. As tropas especiais mereceram destaque nesta exposição: rangers, fuzileiros e paraquedistas.

Igualmente se destacam as condecorações, as cerimónias de homenagem aos mortos, telegramas a informar a família da morte de militares, a criação da ADFA e a lista daqueles que tombaram pela pátria.


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Nota do editor

Último poste da série de 30 de dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15554: Notas de leitura (792): "A Rua Suspensa dos Olhos", de Ábio de Lápara (pseudónimo literário de José A. Paradela): reprodução do capítulo 7 com a descrição da viagem de seis meses, aos 17 anos, em 1955, aos bancos de pesca do bacalhau: III (e última) parte