quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15644: Os nossos seres, saberes e lazeres (136): O ventre de Tomar (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Novembro de 2015:

Queridos Amigos,
Uma coisa é o comprazimento estético, olhar e ver com agrado, sentir intimidade, conivência com uma determinada peça do património, na sua aceção mais larga, sem quaisquer obrigações com moradores ou quem ali labuta, registar a imagem; outra coisa é estender o diálogo com quem ocupa este ou aquele espaço ou lugar, pedir para intervir, dar explicações, abrir portas a outra vertente da compreensão. Assim procurei proceder, entrando para pedir informações, simulando comprar; lá dentro, autorizado, zás, aquilo que olhei e passou a visto e passa agora ao público, é um mundo de proscénio e bastidores que constitui a fruição a que vos convido.

Um abraço do
Mário


O ventre de Tomar (1)

Beja Santos

Os lugares, os espaços, têm uma pele que é lida pelos nossos sentidos: a harmonia das formas, a riqueza dos materiais, a dimensão estética que pode ser ditada pela graciosidade das portas, das janelas, das varandas, o que é concêntrico ou retilíneo, azulejos, envidraçados, rebocos, por exemplo. Para além da pele, há um organismo interior, seja loja, residência, serviço público. Calcorreando Tomar, vou ajuntado elementos sobre o seu ventre (não confundir com o romance de Zola, “O ventre de Paris”, o grande escritor aqui abalançou-se na narrativa de dramas humanos, o meu ventre de Tomar são lojas que ressoam a um passado distante ou menos remoto, desta vez andei por estabelecimentos, pedi licença para fazer alguns disparos, aqui dou satisfação a um roteiro de viagem. E estou a juntar elementos sobre a pele, interessa-me muito essa Tomar inusitada, os tais lugares e espaços que estavam destinados a funcionar como fábricas, solares, moradas de família, estão fora dos roteiros ou são escombros, testemunhos silenciosos desse progresso galopante que deixa para trás vestígios do nosso impúdico esbanjamento. E vamos às imagens de um ventre que me é apetecível.



É um espaço amoroso, trata-se de um equipamento que provocou frémito na época, ainda bem que não o estragaram, se bem que a atividade comercial não seja a mesma. Aquela máquina registadora deve ter calculado muita compra, tilintou muitas vezes. Por esta porta é bem possível que tenha entrado e saído muita mercadoria, gente a fazer provas de roupa, dá para especular tudo o que se vendia a dinheiro. É impossível passar pela Corredoura e não embasbacar com esta nesga do passado, e o esforço adaptativa do presente, sem estragar o que merece ser preservado.



Entrei aqui e dei como pretexto que vinha à procura de um tecido para uma cortina e que precisava de algumas linhas. A proprietária mostrou estranheza quando lhe disse que gostava de todas aquelas coisas intensas nos fechos, novelos e tecidos para múltiplas aplicações e pedia licença para as fixar. “Ó senhor, esteja à vontade, tire as fotografias que quiser”. Tirei várias, ficam só estas duas, têm a paleta de cores que consolam todos os humanos, falam do engenho, da aplicação das nossas mãos, da vida que damos às máquinas de costura, ao conforto que depositamos em reposteiros e coisas parecidas. “Volte quando quiser”, e agradeci. É claro que hei de voltar.


Atravessei os Estaus e aqui dei como pretexto que andava à procura de um desenho ou gravura para meter uma moldura. O que eu meti foi conversa neste estabelecimento de curiosidades e velharias. Segundo o anúncio da porta, o proprietário diz o preço e o presumível cliente pode contrapor, ou seja entre a venda e a compra nada é definitivo até haver concordância a dois. É claro que também hei de voltar aqui, gosto imenso do prato que se reflete no espelho e gosto de conversar com gente que não está ali só para vender.



A senhora que me recebeu é açoriana de gema, enganei-me na ilha, a senhora vem das Flores, há mesmo quem diga que é a mais bela ilha do arquipélago, falámos de cascatas e daquele pedregulho que assinala o fim da Europa insular. Apanhei este cantinho multicolorido, imaginei a roupinha quente que aqueles novelos irão dar à luz. E segui caminho.


Aqui restaura-se mas também se faz de raiz, camas, móveis, armários, cadeiras, tudo o que é concebível em artes de marcenaria. Deram-me licença para ali andar a cirandar e fiquei embasbacado com esta linda solução dentro de um edifício muito antigo, aproveitou-se com engenho e arte aquele belo nicho para arrumar disciplinadamente as ferramentas do ofício. E meditei na grande distância que vai entre ver na superfície, ficar com a primeira impressão que os olhos registam e olhar onde as coisas se distinguem e passam a ser imagens nossas mesmo que muitos outros ali se tenham quedado a dizer: olha, mas que grande surpresa! E ficamos por aqui, temos que ter paciência com este ventre inesgotável que Tomar tem para nos oferecer.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de janeiro de 2016 Guiné 63/74 - P15615: Os nossos seres, saberes e lazeres (135): Horácio Dantas, artesão oleiro de Barcelos, autor da réplica do Farol de Leça, oferecida aos presentes no Convívio dos Panteras da CART 1742, levado a efeito em Maio de 2014, em Leça da Palmeira (Abel Santos)

Guiné 63/74 - P15643: Inquérito 'on line' (32): "A tropa fez de mim um homem"?... A tropa acrescentou a decisão e a determinação na acção, atitudes muitas vezes necessárias para o vencimento de inércias, e o alcance de objectivos (José Manuel Matos Dinis, "homem grande" da Magnífica Tabanca da Linha)

A Tropa Fez de Mim Um Homem ? (*)

 por José Manuel Matos Dinis


[ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71; um dos "homens grandes" da Magnífica Tabanca da Linha que tem amanhã mais um dos convívios regulares, desta vez em Carcavelos]


Mais um repto dos nossos editores. De facto, a tropa mexeu muito connosco, com as gerações da guerra de África. A guerra que a certa altura das nossas vidas já se revelava um obstáculo inevitável, e que cada um encarava de forma particular, com reserva, ou com a descontracção possível, já que a todos os ajuizados havia de causar alguma ponderação, quiçá preocupação.

Com excepção da morte da minha mãe aos 8 anos, situação que o meu pai compensou o melhor possível, fui um puto muito feliz, e tive a sorte de ter sido criado num local ocupado por muitas famílias da mesma geração, de portas abertas para os amigos dos filhos, pelo que os putos acompanhavam-se com grande alegria, imaginação, rebeldia e solidariedade. Era a malta do bairro, que alinhava em alcateia, que jogava futebol, ou guerreava os putos de outros azimutes de Cascais. 

Na praia da Duquesa tínhamos os nossos lugares cativos. E as nossas amizades alargavam-se com a entrada para o secundário, onde passámos a conviver com a juventude estudantil do concelho.
Claro que vivi em casa do meu pai até frequentar os estabelecimentos militares do Exército Português. 

A certa altura comecei a imaginar que em África teria grandes possibilidades de levar um tiro na córnea, e quando chegava a casa com negativas, desculpava-me com essa possibilidade, do que resultava a seguinte questão: estudar para quê, se estava destinado a uma medalha a título póstumo. E o bom coração do meu pai cedia. Passei por baixo durante alguns anos.

Quando acabei o 5.º ano, já contava 18 de idade. O meu pai colocou-me perante uma escolha. Segundo ele, eu não dava para tirar um curso superior, logo, não valia a pena continuar a arrastar o corpinho nos corredores do colégio, e propôs-me tirar um curso técnico que me habilitasse para a vida. Um familiar tinha outra proposta para mim, e assim inscrevi-me na escola de hotelaria de Lisboa, enquanto de tarde estava autorizado a estagiar num hotel. Maravilha! 

As aulas eram bacanas, com um grupo de raparigas e rapazes bastante animado. De tarde, quando sentia necessidade de dinheiro para a estroina, duas a três vezes semanais, ia "trabalhar" na recepção (outro lugar que rapidamente degenerou num ambiente de reguilice), e acompanhava aos quartos os clientes recém-chegados com ar de deixar uma nota na mão. As moedas ficavam para um "groom" que não perdia pitada quando me via a alinhar. 

Foi um tempo também magnífico, divertido, e com dinheiro no bolso, ao contrário da minha vida anterior, que até me envergonhava de pedir 5 c'roas ao meu pai. Deixei de recorrer ao argumento da tropa, porque deixei de apresentar negativas.

Em Outubro de 68 fui diagnosticado de pleuresia, e o saudoso Canas da Mota recomendou uma mesinha e, sobretudo, muito descanso e boa alimentação, que tinha doença para uns 2 ou 3 meses. Foi o que fiz. Passadas duas semanas pedi-lhe licença para sair. Confirmou que tinha acontecido um milagre, e deixou-me sair por muito pouco tempo diariamente. Não o contrariei. Saía à noite. Já estava com o destino traçado para as Caldas. 

Numa dessas noites no bar do Chico (um primeiro andar fronteiro ao Largo Camões, onde morou o Américo Tomás), com um prodigioso amigo fui co-inventor de um jogo de setas denominado "Angola é Nossa". Consistia no uso das setas lançadas sobre um alvo circular, com espaços alternados de branco e preto. O melhor resultado de uns quantos jogos valia uma cervejola, um Porto, um Drambuie, um Constantino, qualquer coisa. Sabíamos quem ganhava conforme os pontos de cada espetadela no alvo. Acertando numa faixa preta, conquistava-se um ponto; acertando numa branca, descontavam-se 2 pontos. Estão a ver como comecei a exercitar-me com denodo, e a dominar a geometria no espaço, numa precoce preparação para a maldita guerra.

Em Dezembro apresentei-me para trabalhar, pedi o salário de um conto, e um horário com cartão de ponto. Foi um mês porreiro, pois a minha actividade era muito agradável, e punha-me em contacto com muitos ilustres e interessantes personagens. Segundo um dos ascensoristas, a Mylène Demongeot dava-me bola, talvez porque me fartei de esperar por ela, que deva entrevista à Maria Leonor; Jorge Amado foi de uma grande simpatia numa breve conversa que mantivemos; o capitão Warton, um veterano americano da 2.ª GG, que fazia transportes para o Biafra, convidou-me para seu representante em África, que recusei liminarmente; enfim, muitas outras personagens da política e do empresariado nacional davam alguma réplica ao meu atrevimento. Mas a Beatriz Costa era a mais simpática e gaiata, sempre a irradiar alegria, foi a primeira pessoa a falar-me das "delicias" de Torre de Molinos.

No final de Dezembro o director veio ter comigo e perguntou-me se queria receber a Gigliola Cinquetti no dia 9 de Janeiro. Respondi-lhe que não, que nesse dia teria que me apresentar nas Caldas para iniciar o serviço militar. Foi assim que se soube da minha incorporação.

Estava de chuva, e a malta em fila para recebermos fardamentos e armas, com os sacos civis ao lado de cada um. Um furriel de Operações Especiais, acompanhado de 4 ou 5 mamantes, fazia revista e sacava dos sacos as melhores iguarias. Eu tinha o saco cheio delas, e apresentava-me com os meus 70 kgs e 1,78 mts. Ao meu lado, o Zé Tito com o corpo ginasticado e os ombros largos da formação no INEF aguardávamos em cavaqueira, achando graça a tudo quanto víamos. Quando o furriel se me dirigiu, respondi-lhe que levava bolos de bacalhau, pastéis de carne, presunto, paio, salame de chocolate, e uma garrafa de qualquer coisa, mas que era tudo para mim, que era de bom alimento. Surpresa geral: o furriel declarou ao séquito que já tinham o suficiente, e eu granjeei alguma admiração. 

Na primeira semana o tempo persistia chuvoso, e os pelotões recolhiam-se nas salas de aulas regimentais, uma espécie de regresso ao liceu. Da última cadeira de uma fila, levantei o braço. O tenente Clemente ordenou: 
- .Diga lá, ó nosso instruendo! 
- Meu tenente, nós estamos aqui para ganharmos preparação para a guerra nos climas inóspitos, e agora porque está a chover, refugiamo-nos como uma turma de meninas.

Não cheguei a dizer mais nada, pois aquele tenente exclamou surpreendido: hhhaaannn!? E logo acrescentou: 
- Está tudo a formar lá fora!

E acompanhou-nos numa sucessão de ordens que incluíram rastejar na lama. Quando o pelotão chegou à caserna, outros elementos de outros pelotões comentavam que o tenente era um... (nome feio)... Não, (nome feio) é o Dinis, respondiam os meus camaradas. Tal episódio constituiu uma espécie de pacto entre nós, o tenente, e os cabos milicianos, onde o Mourinho pontificava. 

Depois de várias estórias fui colocado em Tavira, e também o Zé Tito, meu amigo da juventude, com quem fiz a tropa do primeiro ao último dia. E foram muitas as aventuras também em Tavira, onde só fomos penalizados durante um fim-de-semana. Custou-me muito. Nesse dia de manhã, enquanto a malta iniciava as tarefas (ida ao mercado e padaria, compra e preparação do almoço), só me levantei para comer, se não erro, uma posta de pescada cosida com batatas e legumes. Depois, os sacanas lá de casa abalaram para o mundo livre e deixaram-me a loiça para lavar. Velhacos!

Férias! E o curso de "mines and bloody tracks". Éramos 5 que constituíamos um grupo reguila. Na primeira noite, já bem avinhados, seriam umas duas da manhã, quando arribámos ao Casal do Pote. No gabinete do oficial de dia, um aspirante porreirinho desfez-se em gentilezas na recepção. Sacou de uma garrafa de whisky e encheu os cálices. Cada um tinha uma estória para desfiar, enquanto outro voltava a atestar. Quando a garrafa vazou, bazámos para dormir. Na caserna, a luz vermelha de presença inspirou uma sessão de streep, pois o pessoal não ia dormir com fardas. Alinhámos os caixotes em modo de desfile de modas, e o Ruas, um jeitoso de quase 2 metros oriundo da PM, começou a despir-se, enquanto a malta improvisava sons sobre a "pantera cor-de-rosa", uma música que se adaptou muitíssimo bem. Os que acordavam mal-dispostos levavam um aviso para não interromperem a "performance", e com isso ganhámos o nosso espaço e individualidade. Durante a primeira aula, o alferes-engenheiro ensinou-me o essencial: nunca se armem em parvos. 

Férias novamente, a que se seguiu uma viajem turística para o Funchal, a bordo do Funchal. Por altura da passagem da barra o Zé Tito fez-me uma declaração: estou quase teso; e eu respondi-lhe nos mesmos termos. O que fazer? Vamos p'rá batota. Por junto tínhamos cerca de um conto e trezentos. O Zé pediu para ficar com os 300 escudos e deu-me o conto de reis para o póquer. Rondámos as mesas para estudos dos potenciais adversários, e pedi licença na mesa onde jogavam uma família de três e um vendedor de artigos fotográficos, que me lembre. Estudei-os muito bem, até que o Zé Tito se aproximou e questionou; como vai nisso? Estou a ficar teso. Toma, respondeu, ganhámos nos jogos de tombadilho, deu-me agora o comissário. Era outro conto de reis, Em cerca de meia hora ganhei 6 contos. Era fim-de-semana, e de táxi fomos para o Hotel. Na 2.ª feira batemos a pala ao nosso Comandante, e pedimos um abono para nos instalarmos, porque já não tínhamos dinheiro

A estadia na Madeira pode merecer um episódio autónomo. Quero no entanto referir, que até esta altura nunca me escusei ao que fosse, de bom e de mau, embora considere que tenha vivido muito feliz, coisa que o serviço militar só ocasionalmente interrompeu. Nunca me fui abaixo com problemas, e adoptei a divisa de que o que não tem solução (para mim) solucionado está. 

Até essa idade também nunca deixei de encarar os problemas impossíveis de não enfrentar, e com maior ou menor sucesso consegui ultrapassá-los. Também concluí desde novo que a união faz a força, e sempre me preocupei em valorizar a solidariedade e o espírito de grupo. Sobre os princípios gerais de educação consignados nos deveres gerais de respeito, desde muito cedo que mos transmitiram, e de um modo geral estive atento a eles. Mas a tropa acrescentou a decisão e determinação na acção, atitudes muitas vezes necessárias para o vencimento de inercias, e o alcance de objectivos. Só a partir deste período é que fui confrontando com verdadeiras hipocrisias... e comecei a engolir alguns sapos. Muitas vezes por falta de solidariedade, causada pelo medo que impende sobre subordinados, conforme mecanismos psicológicos e sociais que limitam a liberdade de espírito e o sentido crítico, atitudes fundamentais para se atingir o bem comum.

José Manuel Matos Dinis
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Guiné 63/74 - P15642: Agenda cultural (458): Conferência, sábado, 23, às 16h, na Universidade Lusófona, Campo Grande, em Lisboa, sob o tema "Quem mandou matar Amílcar Cabral?: Da investigação à atualidade dos factos". Oradores: José Pedro Castanheira, jornalista; Julião de Sousa, historiador; José Luís Hoppfer de Almada, analista político; moderação: Mário Beja Santos; organização: Embaixada da República da Guiné-Bissau; apoio: RDP África



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Guiné 63/74 - P15641: Por Graça de Deus, Rei de Portugal e dos Algarves, d'Aquém e d'Além-mar em África, etc.: legislação régia (1603-1910) (5): crime & castigo, degredo para as praças de Cacheu e Bissau (1801), e para a Índia e Moçambique (1803)... E amnistia real a "todos os portugueses que se acharem presos, processados, desterrados, ou perseguidos por opiniões políticas", além de "todos os crimes de deserção simples, e agravadas, bem como todos os réus sentenciados por três anos a galés, degredo ou prisão dentro do reino ou fora dele" (Rio de Janeiro, 1826)



Portugal > Assembleia da República > Legislação Régia > DECRETO, 09 DE JANEIRO DE 1801
Decreto mandando destinar para Cacheu, e Bissáo todos os Reos que se acharem incursos em degredo para Africa
› D. JOÃO, REGENTE DO REINO (1792-1816), Livro 1791-1801




Portugal > Assembleia da República > Legislação Régia > DECRETO, 17 DE OUTUBRO DE 1803
Decreto para se commutar a pena de certos Réos em degredo para a India , e Moçambique
› D. JOÃO, REGENTE DO REINO (1792-1816), Livro 1802-1810





Portugal > Assembleia da República > Legislação Régia > DECRETO, 27 DE ABRIL DE 1826
Decreto concedendo Amnistia a todos os que se acharem prezos, processados, desterrados, ou perseguidos por opiniões politicas até á data deste Decreto, perdoando todos os crimes de deserção simples, e aggravada assim como a todos os Réos sentenceados por tres annos a galés, degredo, ou prizão dentro, ou fora do Reino, e aquelles, que estiverem nestas circumstancias , e que para cumprirem suas Sentenças lhes faltarem tres annos, quaesquer que forem os seus crimes.
› D. PEDRO IV (1826), Livro 1826 - 2º Sem




O último retrato Dom Pedro I do Brasil (e  depois IV de Portugal) (Queluz, 1798 . Queluz, 1834), c. 1830, da autoria do  pintor Simplício  Rodrigues de Sá (São Nicolau, Cabo Verde, 1785-Rio de Janeiro, 1839). O original está no Museu Imperial de Petrópolis, no Rio de Janeiro. Imagem do domínio público. Cortesia de Wikimedia Commons.

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Nota do editor:

Último poste da série > 16 de novembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15374: Por Graça de Deus, Rei de Portugal e dos Algarves, d'Aquém e d'Além-mar em África, etc.: legislação régia (1603-1910) (4): aberto um crédito especial de 250 contos, em 27/2/1908 (escassas semanas depois do regicídio), para fazer face às despesaas com operações militares na "província da Guiné", ao tempo do governador Oliveira Muzanty, 1º tenente da armada

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15640: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (34): De 1 a 10 de Junho de 1974

1. Em mensagem do dia 10 de Janeiro de 2016,  o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos mais uma Memória, a 34.ª.


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74

34 - De 1 a 10 de Junho de 1974

Almoçando com o inimigo

Prosseguem os encontros com os guerrilheiros do PAIGC e os contactos “diplomáticos” e de cortesia dos seus responsáveis com as autoridades militares de Aldeia Formosa e um pouco por todos os aquartelamentos do Sector. Estas e outras iniciativas do PAIGC geram momentos de regozijo nuns casos e focos de tensão noutros, criando uma atmosfera cada vez mais incerta à medida que se vão riscando os dias do calendário. Nota-se da parte da nossa tropa um certo distanciamento desconfiado, às vezes só uma aproximação pela curiosidade e, não raro, até algum desagrado por atitudes ou iniciativas demasiado ousadas, para não dizer mais, tendo em conta a nossa ainda legitimada presença no terreno. Esperava-se mais contenção da parte deles nesta fase crítica e ainda pouco clara do processo, e que até à entrega do território imperassem regras pré-determinadas e o bom senso, mesmo considerando que ninguém estava preparado para a presente situação. Devo referir, em abono do rigor, que não estou absolutamente seguro de, com isto, transmitir o sentimento geral naquele período concreto. Baseio-me na memória que me resta e em notas que transcreverei adiante. Todavia, não andarei longe da verdade tendo em conta o meu próprio sentimento e porque, mais importante, me podia assumir como um dos poucos que sempre estivera com a causa deles e com os seus ideais, embora me mantendo fiel e firme na função que me tinha ali. Ora, se até eu por vezes os achava demasiado ousados nas suas incursões, imagina-se facilmente o sentimento geral. Também é certo que nem todos manifestavam aquela quase insolência, e houve bons momentos de confraternização e genuína satisfação pelo encontro amistoso dos inimigos de antanho. Ainda assim, eu, o idealista com mau feitio, ainda gerei um incidente (por distracção ou indiferença) com um alferes de um bigrupo, relacionado com o arrear da bandeira do PAIGC junto à escola primária de Nhala, por não ter mandado pôr em sentido os nossos soldados ali presentes. E, noutra situação, ia gerando um conflito “diplomático” com um comissário Político, não fora a sensibilidade e diplomacia do nosso capitão de Nhala que o convidara para almoçar connosco, o qual, aceitando o convite, se sentou à mesa de pistola à cintura. O assunto ficou entre mim e o capitão, que não acedeu a fazer uma chamada de atenção ao convidado, convencendo-me de que eu sobrevalorizara a importância do caso. Convenhamos que tinha razão.

Transcrevo a sucinta mas fundamental informação da HU, intercalada das minhas notas e comentários. Começa com o registo banal da rotina diária (que nas datas seguintes me dispensarei de transcrever), mas dá bem a ideia da situação no terreno: as armas não estavam depostas e tudo estava em aberto.


Da História da Unidade do BCAÇ 4513: 

JUN74/01 – Forças do Batalhão e das Subunidades de reforço continuam, além dos patrulhamentos de defesa próxima dos aquartelamentos, a fazer a segurança dos trabalhos de Engenharia na estrada A. FORMOSA-BUBA e A. FORMOSA-R. CORUBAL.

- Realizou-se uma coluna a BUBA para transporte de víveres nomeadamente arroz para a população e militares.
- Esteve presente em A. FORMOSA o Exmo. Major ORNELAS MONTEIRO.
- O Comissário Político do PAIGC, BRAIMA BALDÉ, que tem permanecido em A. FORMOSA, deslocou-se a KANDIAFARA.


JUN74/03 – Regressou de KANDIAFARA, BRAIMA BALDÉ. Afirmou que de acordo com instruções recebidas do seu Comandante, não vai haver mais guerra, e que as NT poderão circular à vontade, e as populações poderão deslocar-se das localidades para cultivarem as suas lavras. Neste mesmo dia fez uma reunião com alguns elementos da população a quem distribuiu galhardetes e emblemas do PAIGC, assim como o livro “HISTÓRIA DA GUINÉ e ILHAS DE CABO VERDE”.

- Na direcção do SALTINHO, foram ouvidas pelas 16h30 alguns rebentamentos. Posteriormente veio-se a saber que a Tabanca de MADINA tinha sido atacada pelo PAIGC. [Sublinhado meu].


JUN74/04 – (...)

- Realizou-se uma reunião deste Comando com o Comissário Político BRAIMA BALDÉ, em que o mesmo deu uma panorâmica da distribuição dos diferentes Comissários Políticos por algumas zonas do TO, assim como tinha sido incumbido de confirmar a continuação do cessar-fogo tácito e alertar a população civil para não provocar nem arranjar problemas com os militares. Mostrou-se absolutamente sincero e extraordinariamente seguro de que tudo se virá a processar com a independência da Guiné.


JUN74/05 – Pelas 10h00 aproximou-se de A. FORMOSA, instalando-se a 100 metros do arame farpado, um bigrupo armado do PAIGC. Aproximaram-se do arame três elementos desse bigrupo, o Comandante HONÓRIO SILVA, e dois alferes. Imediatamente foram transportados ao Posto da Polícia de Informação Militar, onde posteriormente se reuniram com este Comando.

Durante a reunião os elementos do PAIGC declararam que vinham contactar com a tropa europeia, o que não foram autorizados e, além disso, apresentavam os cumprimentos do Comandante da Frente Sul. Após esta reunião, em que lhes foi dito que o seu procedimento não era correcto, pelo facto de se aproximarem de A. FORMOSA com um bigrupo armado, os mesmos retiraram novamente para KANSABEL.

(...)

JUN74/10 – Em A. FORMOSA realizaram-se as comemorações do 10 de Junho, que constaram de uma formatura geral das forças disponíveis e sediadas em A. FORMOSA, e uma alocução sobre CAMÕES. Estiveram também presentes delegações das várias Companhias destacadas do Sector. Após esta cerimónia e, com a presença das Autoridades Militares, Administrativas, Tradicionais e muita população, procedeu-se à inauguração do Reordenamento de COLIBUIA constituído por 40 casas, uma mesquita e uma escola.


Das minhas memórias: 

10 de Junho de 1974 (segunda-feira): Dia Camões

Desta efeméride, celebrada pela última vez (e certamente pela primeira vez também) pelo meu Batalhão em Aldeia Formosa, mostro a seguir algumas fotografias assim como do Reordenamento de Colibuia, inaugurado no seguimento daquelas celebrações.

Foto 1: Aldeia Formosa, 10 de Junho de 1974. Chegada das autoridades locais à porta-de-armas do quartel, para assistirem à celebração do Dia de Camões.

Foto 2: Aldeia Formosa, 10 de Junho de 1974. O Major Dias Marques, 2.º Comandante do BCAÇ 4513, dá as boas vindas às autoridades locais.

Foto 3: Aldeia Formosa, 10 de Junho de 1974. Formatura e alocução alusiva ao Dia de Camões.

Foto 4: Aldeia Formosa, 10 de Junho de 1974. No final da cerimónia, momentos de descontracção com uma beldade local a apresentar cumprimentos ao Comando do Batalhão e outros oficiais. Da esquerda para a direita: Ten Toscano (salvo erro); Cap. Mil Luís Marcelino (de óculos); Cap. Mil Brás Dias; Ten Cor Carlos Ramalheira, Comandante do Batalhão; Major Dias Marques; Cap. Jorge Cerveira e um capitão que não recordo.

Foto 5: Aldeia Formosa, 10 de Junho de 1974. Da esquerda para a direita: Alf Mil Mota (3.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 – A. Formosa), com a sua sempre bem-disposta irreverência, - repare-se nas botas por engraxar; Cap. Mil Brás Dias (1.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 – Buba); Cap. Mil Luís Marcelino (CART 6250 – Mampatá); Cap. Mil Guerreiro Dias, já falecido, (3.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 – A. Formosa).

Foto 6: COLIBUIA, 10 de Junho de 1974. Inauguração do Reordenamento de Colibuia. Na imagem, um dignitário que não sei identificar, faz uma pose para o fotógrafo no decorrer de um diálogo com o Comandante do Batalhão, à esquerda do enquadramento.

Foto 7: COLIBUIA, 10 de Junho de 1974. Outras individualidades assistem ao diálogo com o Comandante do Batalhão.

Foto 8: COLIBUIA, 10 de Junho de 1974. À direita na fotografia, de óculos escuros, o Cap. Mil Vasco da Gama, Comandante dos Tigres de Cumbijã, CCAV 8351.

Foto 9: COLIBUIA, 10 de Junho de 1974. Corte da fotografia anterior

Foto 10: COLIBUIA, 10 de Junho de 1974. Animação musical após a cerimónia.

Foto 11: COLIBUIA, 10 de Junho de 1974. Animação musical após a cerimónia.

Foto 12: COLIBUIA, 10 de Junho de 1974. A imagem da simplicidade, humildade e desamparo: mãe e filha, duas belezas agora “reordenadas” em Colibuia. A criança põe a mão no ventre: será fome ou será dor? Se precisar, quem vai ser o “fermero” a acudir-lhe após o regresso das tropas a casa?

Foto 13: COLIBUIA, 10 de Junho de 1974. Aspecto parcial do reordenamento.

Foto 14: COLIBUIA, 10 de Junho de 1974. A escola recém-inaugurada.

Foto 15: COLIBUIA, 10 de Junho de 1974. Retrato de grupo que julgo ser do pessoal que construiu o reordenamento com o Comandante e 2.º Comandante do Batalhão ao centro.

Foto 16: COLIBUIA, 10 de Junho de 1974. Provavelmente já de saída, da esquerda para a direita: Cap. Mil Brás Dias, Cap. Mil Guerreiro Dias, Ten Toscano (creio), Cap. Mil Luís Marcelino e Alf Mil António Murta.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 5 de janeiro de 2016 Guiné 63/74 - P15582: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (33): De 14 a 31 de Maio de 1974

Guiné 63/74 - P15639: Inquérito 'on line' (31): "A tropa fez de mim um homem" ?... Lembrando o caso dos meus conterrâneos que, tendo emigrado antes, vieram do estrangeiro propositadamente para fazer a tropa (Francisco Baptista, Brunhoso, Mogadouro)

Vista geral de Brunhoso.
Cortesia da página Brunhoso, Mogadouro


1. Comentário de Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72):

Brunhoso, a minha aldeia distava cinco quilómetros de Mogadouro, sede do concelho, por esse motivo os mancebos da terra chamados à inspecção, deslocavam-se a pé, pois estavam habituados a calcorrear muitos quilómetros no dia a dia de trabalhadores agrícolas. Arranjar transportes também não seria fácil. Bicicletas ninguém tinha, muito menos motorizadas. Os burros ou mulas, já que cavalos praticamente não havia, ninguém se atrevia a pedir aos pais, que iam considerar pouco másculo, para um rapaz de 20 anos fazer uma distância tão pequena.

No meu ano, fomos quatro, porque outros quatro do mesmo ano, já tinham emigrado para longes terras, Brasil e Angola.

Nesse tempo, em que os praças do meu ano e outros de anos anteriores, se dispersavam já pelo mundo europeu, americano ou africano à procura de melhores condições de sobrevivência, a velha máxima " de que a tropa vai fazer de ti um homem" estava a perder actualidade, já que eles,  pelas andanças pelo mundo, iam adquirindo os mesmos conhecimentos e experiências que a tropa lhes poderia dar. Experiência da vida e do mundo, que de certeza terá dado, a alguns dos seus antepassados, que na vida inteira só por essa causa, saíram para lá dos limites onde os levavam as pernas deles ou as dos animais de carga.

Por outro lado a tropa não os iria fazer homens mais obedientes e disciplinados do que já eram, a eles filhos de uma sociedade rural antiga e afastada de tudo, onde não tinham entrado ideias libertárias da revolução liberal do século dezanove, nem da revolução republicana dos inícios do século vinte e continuavam debaixo do poder absoluto das várias autoridades, a começar na Igreja e a acabar nos pais, que Salazar abençoou quando tomou o poder. 

O livro "Das Trincheiras com Saudade" sobre a participação do Corpo Expedicionário Português,
numa passagem fala sobre a coragem e disciplina do batalhão dos transmontanos. As duras condições de trabalho que tinham de suportar e as imposições seculares que lhes condicionavam a personalidade terão provavelmente contribuído para isso. 

Não quero deixar de salientar a atitude, destes meus "praças" que na nossa velha escola primária tinham aprendido a História de Portugal, à custa de muitos gritos, reguadas e vergastadas da professora, que patriotas, como poucos, vieram de França, para "dar a tropa" na linguagem deles. Seria patriotismo ou medo da Pátria, essa avó rabujenta´, que nunca lhes tinha dado algum amor, mas que se podia vingar deles e condená-los ao ostracismo?

Há dias ouvi,  na apresentação de um livro sobre a guerra, que mais do que desertores houve muitos que vieram do estrangeiro propositadamente para fazer a tropa. Estes meus conterrâneos devem fazer parte dessa contabilidade desse nosso camarada.

O ilustre intelectual e camarada que fez essas afirmações parece-me que não conhecia muito bem as motivações e a realidade dos nossos jovens emigrantes, na sua maioria futuros soldados, que durante três anos, para começo de vida e estando já alguns casados, iriam receber um vencimento miserável. Os futuros oficiais e sargentos milicianos, apesar da interrupção das suas carreiras profissionais ou escolares, iriam receber um vencimento bastante compensatório, o que não era o caso dos enumeros batalhões formados sobretudo por soldados. Concluindo os três camaradas que vieram de França, para ir às sortes comigo, e dar a tropa, vieram por amor à sua sua terra, terra dos seus pais e antepassados, porque sabiam que se não viessem ficavam condenados, não sabiam até quando, a não poder regressar.

A mim pessoalmente a vida militar, depois da crise mais ontológica da adolescência , relacionada com as razões, causas e justificações das nossas origens e destinos, provocou-me uma crise de consciência política sobre as razões ou sem razões dessa guerra. Um combatente com dúvidas não pode ser um bom combatente, embora um dia tenha sentido subir muito por mim a adrenalina e o desejo de vingança por causa da morte de um camarada.

Francisco Baptista
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Nota do editor:

Vd. postes de 16 de janeiro de 2016 > Guiné 63/74 - P15622: Inquérito 'on line' (28): "A tropa fez de mim um homem"?... Nem sim nem não, metade da malta (12 em 24) responde "nim", "nem verdadeiro nem falso"... Inquérito em curso até 5ª feira...

Guiné 63/74 - P15638: Blogues da nossa blogosfera (73): No Blogue "Portugal e o Passado", A Agonia do Império, de Fernando Valente (Magro)



1. Publicamos hoje mais um texto do nosso camarada Fernando Valente (Magro) (ex-Cap Mil Art.ª do BENG 447, Bissau, 1970/72), intitulado A Agonia do Império, enviado pelo seu irmão Abílio Magro em mensagem de 8 de Dezembro de 2015, que podemos ler, além de outros, no seu Blogue "Portugal e o Passado".


A Agonia do Império

Texto publicado por Fernando Magro no seu blog "Portugal e o Passado"

O Império Colonial Português abrangia em 1960 uma superfície total de 2.031.935 Km2, correspondendo à soma das superfícies dos seguintes países europeus: Portugal Continental, Espanha, França, Bélgica, Holanda, Dinamarca, Suíça, Alemanha e Inglaterra. Em área Portugal ocupava em 1960 o quarto lugar do mundo entre os impérios coloniais nessa altura. Os territórios que estavam sobre o domínio de Portugal eram, além do rectângulo europeu e das ilhas adjacentes da Madeira e dos Açores, o arquipélago de Cabo Verde, a Guiné, São Tomé e Príncipe, São João Baptista de Ajudá, Angola, Moçambique, Estado da Índia (composto por Goa, Damão e Diu), Macau (na China) e Timor (na Indonésia).

A partir porém de 1960 este vasto Império começa a desmoronar-se, devido a movimentos armados dos respectivos povos.
A primeira perda foi a de São João Baptista de Ajudá, uma presença simbólica portuguesa na costa do Daomé, uma vez que era praticamente constituída por uma fortaleza e um pequeno território a envolvê-la.

A 17 de Dezembro de 1961 a União Indiana ocupa militarmente o Estado Português da Índia e anexa Goa, Damão e Diu ao seu território. Nesse mesmo ano, em Angola é iniciada uma guerra de guerrilhas contra a nossa permanência naquela área de África, guerra que se estende rapidamente em 1962 à Guiné e em 1963 a Moçambique.

Essa guerra, em três frentes, tornar-se-á longa obrigando a um grande esforço material e humano, com sacrifício de várias gerações de jovens soldados, enquadrados por sargentos e oficiais do quadro permanente e do quadro de complemento (milicianos).

No caso da minha família (Valente Magro) todos os meus cinco irmãos e eu próprio fomos chamados a prestar serviço militar obrigatório e todos fomos mobilizados: um para Moçambique, como alferes miliciano, dois para Angola sendo um deles no posto de furriel e o outro como cabo especialista da Força Aérea e três para a Guiné, sendo eu, o mais velho, como capitão miliciano, o mais novo como furriel e o imediatamente a seguir ao mais novo como primeiro-cabo auxiliar de enfermeiro.

No meu caso particular fui duas vezes incorporado obrigatoriamente na vida militar. Em 1959 iniciei o cumprimento da minha primeira obrigação militar na escola prática de artilharia em Vendas Novas como cadete, tendo acabado como aspirante oficial miliciano no Grupo de Artilharia Contra Aeronaves n.º 3, em Paramos, Espinho. Somente regressei à vida civil em Fevereiro de 1960 como alferes miliciano, tendo sido promovido mais tarde a tenente miliciano na disponibilidade.

Estive nas fileiras do exército nessa primeira fase durante vinte meses. Depois disso entrei ao serviço do Ministério das Obras Públicas como engenheiro técnico, casei e nasceu o meu filho Fernando Manuel em 1961, precisamente no ano da invasão e anexação pelas tropas da União Indiana das possessões de Goa, Damâo e Diu.

Também em 1961 teve início a guerra colonial de Angola, que se estendeu rapidamente à Guiné e a Moçambique como já referi anteriormente.

Na altura, em 1961, ainda receei ser mobilizado como alferes [tenente], mas tal não se verificou. Mas em 1968, passados sete anos, tive conhecimento que, por haver muita falta de comandantes de companhia (capitães) o governo estava incorporando os tenentes milicianos na disponibilidade a fim de frequentarem obrigatoriamente um curso de promoção a capitães, tendo em vista a sua mobilização, nesse posto, para as guerras coloniais em África.

O aviso para me apresentar em Mafra a fim de frequentar o referido curso de promoção a capitão chegou-me a vinte e oito de Fevereiro de 1969. Em Março desse mesmo ano fui pela segunda vez incorporado no exército e só passei à disponibilidade em trinta de Junho de 1972, isto é, passados quarenta messes. Como na minha primeira incorporação tinha estado vinte meses ao serviço do exército, com esta segunda incorporação perfiz sessenta meses, isto é cinco anos de vida militar obrigatória.

Vida militar que na segunda fase compreendeu uma comissão na Guiné de 10 de Abril de 1970 a 30 de Junho de 1972. Essa comissão que inicialmente estava para a ser cumprida comandando uma companhia operacional no mato, acabou por ser levada a efeito no Batalhão de Engenharia 447, em Bissau por intervenção do Governador e Comandante-Chefe da Guiné, General Spínola, que decidiu colocar-me no referido batalhão de engenharia aproveitando a minha formação civil.

Aí chefiei os Serviços de Reordenamentos Populacionais. Tratava-se de um serviço dirigido por militares que era essencialmente destinado às populações civis. Tinha em vista proceder ao agrupamento de diversas pequenas "tabancas"(*) com o fim de constituir aldeamentos médios onde fosse rentável dotá-los com algumas infraestruturas tais como escolas, postos sanitários, fontanários, tanques de lavar, cercados para o gado, mesquitas ou capelas.
Além disso tinha-se também em vista, com a execução dos reordenamentos, a defesa e o controle das populações.

A minha actividade não estava por isso circunscrita à cidade de Bissau. Tinha por vezes que me deslocar ao interior do território para resolver localmente problemas que surgiam durante as obras dos reordenamentos populacionais. Fiz, por isso, algumas viagens para o interior da Guiné em helicóptero ou em avião militar (Dornier). Essas viagens tinham alguns riscos devido aos independentistas, a certa altura, se terem apetrechado com mísseis terra-ar e devido aos tornados que por vezes se formavam e que eram perigosos principalmente para as pequenas aeronaves.

Durante a minha estadia na Guiné ocorreu um acidente justamente com um helicóptero que transportava cinco deputados da Assembleia Nacional e que um tornado fez despenhar no rio Mansoa tendo morrido todos os seus ocupantes.
Comigo as deslocações ao interior da Guiné correram sempre sem perigo, mas para outros militares não foi sempre assim.

O Batalhão de Engenharia 447 tinha como funções dar apoio às tropas aquarteladas na Guiné no âmbito de garantir o regular funcionamento dos quartéis, promover o fornecimento de geradores eléctricos, orientar e apoiar as obras de reordenamentos populacionais, fornecer material de manutenção, construir estradas, pontes e portos de atracagem, quartéis e abrigos subterrâneos, etc. Muitos elementos do BENG 447 tinham de se deslocar ao mato frequentemente em colunas por via terrestre e alguns correram grandes riscos como podemos constatar pelo relato trágico que o Furriel Miliciano de Engenharia Pedro Manuel Santos fez no livro "A Engenharia Militar na Guiné" (no qual também colaborei) quando descreve uma emboscada que sofreu uma coluna de dez viaturas, em que ele mesmo seguia, da seguinte forma:

"No dia 22 de Março de 1974 quando regressava de Piche para Nova Lamego, em coluna militar, e após termos percorrido cerca de dez quilómetros entre Benten e Cambajá, cerca das 8:30 horas, sofremos uma emboscada de grande violência.

O PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde) tinha colocado à beira da estrada cerca de 110 abrigos e outra grande quantidade de guerrilheiros em cima de mangueiros. O número de guerrilheiros estimou-se entre duzentos e duzentos e cinquenta elementos...

A nossa coluna militar era constituída por dez viaturas, sendo duas chaimites, uma white, três berliets e quatro unimogs.

Quando deflagrou a emboscada as duas chaimites da frente foram as primeiras a ser atacadas com RPGês bem como uma white e um unimog.

A primeira chaimite onde ia o Capitão Luz Afonso passou e saiu da estrada protegendo-se no mato no lado oposto ao dos guerrilheiros tendo sido ainda atingida por um rocket de raspão. A segunda chaimite, onde ia eu, apanhou uma rocketada à frente, bem como no lugar onde ia o condutor e o Furriel Soares que a comandava. Perfurou o blindado e cortou as pernas aos dois referidos camaradas que começaram a gritar por ajuda.

O Cabo Augusto Graça que ia na metralhadora, com uma enorme frieza dispara durante algum tempo até que a velha máquina se encravou. Durante uns minutos, que me pareceram anos, a chaimite começou a arder pela frente e as chamas envolveram os companheiros que tinham sido atingidos pela rocketada e que já estavam sem pernas.

Lembro-me de olhar nos olhos o Furriel Soares, que comandava a chaimite, e que me pediu para o não deixar morrer ali.

Por segundos tentei pegar num deles mas a viatura já se encontrava com um nível de calor muito elevado e o perigo de ficarmos todos lá dentro era iminente.

O Cabo Atirador Augusto Graça apenas teve tempo de abrir metade da escotilha do blindado e gritar para fugirmos. Já não pude fazer mais nada. Tive de abandonar o blindado.

Saí eu, o Capitão Miliciano Fernando e o Cabo Augusto Graça. Corri cerca de cem metros e logo atrás de mim um guerrilheiro do PAIGC tentou agarrar-me à mão. De imediato os depósitos da chaimite rebentaram e deu-se uma enorme explosão.

Ainda me lembro de ouvir as balas e as granadas que estavam dentro do blindado a rebentar e os últimos gritos dos meus dois camaradas!

Nesse momento o guerrilheiro que correu atrás de mim, em volta de um enorme morro de formigas "baga baga", desistiu, presumo que assustado pela enorme explosão da chaimite e consegui despistá-lo fugindo para o mato. A minha G3 tinha ficado no blindado.

Dentro do mato encontrei o Capitão Fernando... ele trazia uma pistola Walter e disse-me: esta pistola é para nos suicidarmos se formos agarrados à mão!

A partir de aí perdi por completo a memória, não sei por onde andei nem durante quanto tempo, mas dizem-me que foi por um dia inteiro. Tenho uma vaga ideia de ir ter sozinho à estrada e encontrar o Furriel Fidalgo que fazia segurança ao material queimado. Senti o cheiro de carne humana queimada que saía da minha chaimite e que até hoje nunca mais me saiu do nariz.

Levaram-me para Piche onde o nosso Capitão Luz Afonso já se encontrava à espera de transporte para Bissau. Segui, depois, para Nova Lamego onde fui tratado a uma perna que ficou ferida ao sair por metade da escotilha da chaimite. Fui depois evacuado para o Hospital Militar de Bissau...

A minha arma foi entregue mais tarde no BENG 447 apenas com a parte de ferro crivada das balas que rebentaram dentro da chaimite.

O Furriel Fidalgo disse-me que quando apareci do mato e o encontrei junto à estrada só gritava para ele: "Foge que vem aí os amarelos!" (referindo-me aos fardamentos do guerrilheiros do PAIGC) e que estava completamente baralhado da cabeça. Chamaram-me o "morto-vivo" por ter sido dado como morto e depois aparecer com vida.

Nesta emboscada tivemos seis mortos, dezasseis feridos muito graves e três feridos ligeiros. Tenho na memória alguns camaradas a respirar pelas costas e já sem vida. Alguns completamente desfeitos. Outros a serem tratados com garrotes.

Quando regressei à metrópole para junto da minha família... senti-me completamente abandonado e entregue a mim próprio. Ninguém me perguntou se estava bem ou mal, se precisava ou não de qualquer tipo de ajuda. Tinha de recomeçar a minha vida...

Hoje, passados quarenta anos, acho imprescindível este desabafo para que alguém com poderes para isso não deixe que a história se repita neste capítulo. Esta é apenas uma história entre outras que em dois anos sucederam e que não gosto de contar mas entendo que a devia escrever. A todos os ex-combatentes ainda vivos deixo uma palavra de coragem para acabarmos os dias que nos falta viver.

As gerações vindouras que não esqueçam a brutalidade a que o Governo de então submeteu os jovens da nossa geração. Quando se fala de ex-combatentes deve tributar-se o respeito que eles merecem pois marcaram e fazem parte de uma página da história que, em nome da Pátria, foram obrigados a cumprir e muitos a darem, inclusive, a sua própria vida."

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Notas do editor

- Sublinhado da responsabilidade do editor

- Nesta emboscada morreram 2 Soldados e 2 Furriéis do Esq Rec Fox 8840, 1 Soldaddo da CCAÇ 21 e 1 Soldado do 12.º Pel Art

Último poste da série de 18 de janeiro de 2016 Guiné 63/74 - P15631: Blogues da nossa blogosfera (72): Uma aventura em África: em 14 de novembro de 1980, eu estava em Bissau... Depois do jantar, no Hotel 24 de Setembro, fui surpreendido pelo golpe de Estado do 'Nino' Vieira (Francisco George, antigo represente da OMS - Organização Mundial da Saúde na Guiné-Bissau)

Guiné 63/74 - P15637: Parabéns a você (1020): José Crisóstomo Lucas, ex-Alf Mil Op Esp da CCAÇ 2617 (Guiné, 1969/71) e Manuel Mata, ex-1.º Cabo Apontador AP do Esq Rec Fox 2640 (Guiné, 1969/71)


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Nota do editor

Último poste da série de Guiné 63/74 - P15629: Parabéns a você (1019): Luís Rainha, ex-Alf Mil CMD, CMDT Grupo Centuriões (Guiné, 1964/66)

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15636: Antropologia (24): Esculturas e objectos decorados da Guiné Portuguesa (João Sacôto)

1. Mensagem do nosso camarada João Sacôto (ex-Alf Mil da CCAÇ 617/BCAÇ 619 (Catió, Ilha do Como e Cachil, 1964/66), com data de 19 de Dezembro de 2015:

Luís,
Ao ler o Post 15503: Esculturas e objectos decorados da Guiné Portuguesa no Museu de Etnologia do Ultramar, (Mário Beja Santos), lembrei-me que seria interessante que os amigos e camaradas da Guiné contribuíssem com fotografias de objectos de artesanato, eventualmente trazidos da Guiné, a fim de serem publicadas no Blog e assim, possa ser criado um acervo que julgo seria de grande valia etnográfica.
Tomo, pois a liberdade de te enviar fotografias de alguns objectos que vieram comigo da Guiné e que acabei agora de fotografar.







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Nota do editor

Último poste da série de 9 de dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15465: Antropologia (23): “Portugal Romântico”, com texto de Frederic P. Marjay, edição de 1955 (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P15635: Inquérito 'on line' (30): "Sim, a Tropa fez de mim um Homem"... (Mário Vitorino Gaspar)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Vitorino Gaspar (ex-Fur Mil At Art e Minas e Armadilhas da CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68), com data de hoje, 18 de Janeiro de 2016, com a sua opinião sobre o tema "A Tropa vai fazer de ti um homem":

Caros Camaradas

A tropa, na minha modesta opinião, também polémica e contestável, foi um desastre na minha vida, isto era já o que pensava quando a PIDE através das Câmaras Municipais de Sintra (onde nasci) e Vila Franca de Xira, devido a habitar em Alhandra. Existe um pedido desta última Câmara à Junta de Freguesia de Alhandra.

Este pedido é formulado devido ir frequentar o Curso de Sargentos Milicianos (CSM).

Isto devia suceder com os Camaradas todos que viessem a frequentar os Cursos de Oficiais e Sargentos Milicianos. Obtive essa informação quando fui à Torre do Tombo consultar o meu Processo. Isto por termos muitos de nós esses Processos. Infelizmente que no meu Processo Civil e Militar, nada consta sobre a carnificina em Ganturé, morreram 10 civis e mais de 20 feridos. Era o primeiro visado.

Abriram um Processo Civil (a cargo da PIDE, isto já em Gadamael) e o Militar sobre a responsabilidade do Comandante da Companhia de Caçadores 1620, o Capitão Miliciano de Infantaria Fernando António de Magalhães Oliveira, Sangonhá e Cacoca. A CCAÇ 1620 foi para Sangonhá a 01AGO67 e foi rendida pela CCAÇ 1621 a 20MAR68.

À partida ir para a tropa prejudicava a minha vida e meus sonhos e ambições.


Velha Vila de Sintra. Ao virar à direita, fundo prédio amarelo estavam os Bombeiros 

© Foto do meu filho Alexandre Miguel Marques Gaspar


A Inspecção na Vila de Sintra a 27 de Julho de 1963 (nos Bombeiros Municipais da terra), onde veio a ser mais tarde o Museu do Brinquedo – parece não ser o local onde se situa este – mas não tenho a certeza e pouco importa.

A Inspecção unanimemente era para quase toda a rapaziada um dia de festa. “Não era homem não era nada se não fosse apurado para o Serviço Militar”.

O meu pai tentou que fosse trabalhar para as Oficinas Gerais do Material Aeronáutico (OGMA). Quem trabalhasse nestas Oficinas fazia  julgo que só a Recruta. Mas não quis por não ser diferente de todos os outros. Reconheço não ter o direito de julgar todos aqueles que ficaram livres de embarcarem para a Guerra quando eram trabalhadores das OGMA. Existiam outros abrangidos – trabalhadores por exemplo da Fábrica de Braço de Pátria (FBP – onde nasceu a nossa Pistola Metralhadora “FBP”) – que também, entre outros ficado livres – ao fim e ao cabo – de partirem para a Guerra. Fui à Inspecção e logo que o “nosso Sargento” gritou “Todos nus”, despi-me e coloquei-me na varanda nu, turistas que passavam riam.

Verifiquei terem ficado satisfeitos e radiantes ao tomarem conhecimento “terem ficado apurados para todo o serviço…”. Combinavam festas, almoços e adquiriram umas fitas que traziam escrito o apuramento para a tropa.

Trata-se de dar a minha opinião quando os meus filhos Carlos Pedro e Alexandre Miguel, também meus netos Raquel e Pedro, me perguntaram ou venham a fazê-lo: "Pai, avô, a tropa fez de ti um homem?".

Nem todos os camaradas possuem esta relíquia. Sempre pendurado no pescoço. 
Denomino Chapas dos Mortos

Pois contrariado e sempre, fui cumprindo. Quanto a “fazer de mim um homem”, não. A primeira resposta: “Não, a tropa não fez de mim um homem”, mas ajudou-me a evoluir noutros aspectos, andei num Curso Superior da Vida – Tropa/Serviço-Militar, antes uma “Pós-Graduação”, principalmente por ser de Especialista de Minas e Armadilhas. Aprendi e muito por vontade própria e defesa pessoal e defesa dos outros, a olhar para o meu interior, tendo adquirido o domínio, e alarguei os “meus sentidos”, conseguindo preencher as lacunas que permitiram tornar-me um perito no controlo de emoções, aumentando a minha biblioteca mental. Aprendi a controlar o tempo e dar uma resposta logo que solicitada.

Também assumo que a “tropa ajudou muito jovens a libertarem-se da enxada ao tomarem conhecimento que o mundo não era a sua aldeia, a sua terra e que existia um outro mundo por descobrir”. Fico imensamente radiante e orgulhoso quando fui professor de analfabetos e levei a passarem no Exame da 3.ª ou 4.ª Classes estes camaradas, mesmo aqueles que nem sequer fizeram esses Exames. Existiam aqueles que sabiam o suficiente para passarem no Exame e outros que não reuniam condições para passarem no Exame. Aqueles que reuniam as condições – segundo a minha opinião, e aqui era somente eu o responsável, só eu – foram a Exame, os outros foram por mim substituídos por camaradas já com a 4.ª Classe feita. Tudo feito unicamente com a minha responsabilidade. O Capitão só viu quando estavam todos sentados a fazerem as Provas, e eram 1.º Cabos os substitutos. Os Alferes Milicianos oriundos de Bissau acompanhavam os Exames. Depois de Aprovados, tiveram os substituídos de saberem assinar os seus nomes. Fiz mal? Se fiz, condenem-me. Fiquei feliz quando encontrei um camarada desses a conduzir um táxi. Tomei conhecimento ter feito depois a 4.ª Classe. Respeito todos aqueles que se libertaram, nesse aspecto a “tropa ajudou”, não a “serem homens” – homens já eram – ajudou a que dessem uma volta na vida. Alguns são proprietários de Empresas, a satisfação para mim.

Eu fui ajudado no dia 24 de Janeiro de 1969 na Entrevista com o Engenheiro Sucena, Administrador da DIAMANG e DIALAP que depois de confessar ser “um estudioso do ser humano e que nada tirara de mim, mas que se respondesse à questão que colocou «que razões tinha eu Mário Vitorino Gaspar para convencer o Engenheiro que veria ser um bom Lapidador de Diamantes, já que o diamante era matéria cara, podia ser muito valiosa e valer milhões”?
Respondi que tinha terminado o Serviço Militar e tinha feito uma Comissão e ter lidado com a morte, especialmente por ser de Minas e Armadilhas, e ter comandado homens. Terminando por dizer que lapidar diamantes seria tarefa mais fácil e com certeza viria a ser um bom Lapidador de Diamantes”. Respondeu o Engenheiro Sucena: “Venha trabalhar no dia 27 de Janeiro para a DIALAP – Sociedade Portuguesa de Lapidação de Diamantes, SA”. E acabei mesmo por ser um bom Lapidador de Diamantes.

Tivera a oportunidade de ver o Mancebo chegar ao RI 14, em Viseu – fui Monitor de Instrução desde 3 de Abril de 1966 a Agosto do mesmo ano e vi chegarem esses jovens (cada Pelotão da Recruta com 77 jovens) e tive na minha presença o Soldado Português com características que faziam com que o nosso papel de Instrutores e Monitores fosse facilitado. A crueldade da vida ao viverem em terras remotas, longe dos grandes centros urbanos e terem como utensílio a enxada e viverem longe e terem de caminhar muitos quilómetros e também viverem isolados. Reunidas estavam as condições para serem os meus Heróis. Ao ministrar a Especialidade, neste caso já à Companhia a que pertencia, a CART 1659 e chamada ZORBA e com o lema “Os Homens não Morrem”, fiquei consciente que teria de partir com eles. Afastei a ideia de desertar e assumi conscientemente esse compromisso, mesmo sendo sempre contrário à Guerra. Defensor acérrimo que o Amor é a solução. E a 100% parti para a Guiné. Nunca na Guerra – para mim foi uma Guerra Colonial – me baldei. Cumpri.

Aceito que a tropa, neste caso a Guerra foi uma oportunidade de mudar de vida. Foi um virar de página para uma grande maioria. Para mim foi um travão e só me libertei com quase 26 anos. Mudei realmente, mas era também essa a minha intenção – MUDAR DE VIDA…

Mário Vitorino Gaspar
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Nota do editor

 Último poste da série > 18 de janeiro de 2016 > Guiné 63/74 - P15633: Inquérito 'on line' (29): "A tropa fez de mim um homem"... Em 100 respostas, 34 dizem Sim, 21 dizem Não, 42 dizem Nim... Comentários de A. Sousa de Castro, António Carvalho [de Mampatá], Leão Varela, Alcides Silva, Juvenal Amado e Hélder Sousa...

Guiné 63/74 - P15634: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (16): “A Tropa vai fazer de Ti um Homem!”

 
1. Em mensagem de hoje, 18 de Janeiro de 2016, o nosso camarada António José Pereira da Costa, Coronel de Art.ª Ref (ex-Alferes de Art.ª na CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69; ex-Capitão de Art.ª e CMDT das CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, e CART 3567, Mansabá, 1972/74), enviou-nos mais um artigo para incluir na sua série "A Minha Guerra a Petróleo", desta vez a propósito do tema em discussão "A Tropa via fazer de ti um homem".
 


A Minha Guerra Petróleo (16)

“A Tropa vai fazer de Ti um Homem!”

Era uma frase feita e, como todas as frases feitas, tinha um fundo de verdade à mistura com uma fraca resistência a uma análise de significado mais cuidadosa. Outros diziam que “a Guerra faz os Homens fortes”. Coisas que se dizem…

Desde logo haveria que esclarecer o que é isso de ser “um Homem”. Toda gente daquele tempo – velhos e novos, homens e mulheres – sabia e lembra ainda hoje o que isso significava, mas, ao tempo, o melhor era não aprofundar o conceito, pois ele esboroava-se e as dúvidas surgidas seriam mais do que muitas…

Tinha de ser um “chefe de família”. Aí todos estávamos de acordo. Tinha algo de positivo e construtivo esta espécie de título nobiliárquico que oficializava a afirmação do Homem (do povo) como chefe, no ambiente familiar, mas, ao mesmo tempo, obrigava-o a ser o sustentáculo do agregado familiar e a não ser “marido de modista”, isto é, um alérgico ao trabalho vivendo à sombra da profissão da mulher. Havia, assim, uma espécie de divisão de tarefas pela qual a mulher era responsável, em primeira linha, pela educação e preparação dos filhos para a vida, e o homem que, com certo brio, normalmente no exterior, arranjava pelo trabalho, os meios para o sustento da casa. Sabemos que as novas gerações acham este padrão absurdo e nem sequer tentam entendê-lo, mas que era assim, salvo excepções, lá isso era.

Esquecem-se apenas de que o trabalho feminino se desenvolveu em consequência de uma guerra e que hoje as mulheres trabalham não por uma questão de “independência e dignidade”, mas muito principalmente porque a família só pôde melhorar os rendimentos familiares somando os salários de ambos os progenitores. Além disso, aos patrões agrada a presença de quem ganhe menos, produza o mesmo e tenha uma capacidade de organização sindical e reivindicativa menor. Mas isto já são “outros caminhos da História”.

Naquele tempo “Tropa” era um acidente previsto na vida dos homens, mas que, ao mesmo tempo, funcionava como uma meta a atingir. Há quem diga que era uma forma de controlo da população e é provável que tivesse sido, mesmo que indirectamente.

Antes de 1961, (antes da guerra do ultramar/colonial) assistia-se a um espectáculo triste, mas que se aceitava na esperança de que caísse nos outros e não em nós. A incorporação do contingente disponível não podia ser muito elevada por ser antieconómica – a vários níveis – e muito mais num país a contar os tostões na sua vida pública. Ir às sortes era uma espécie de totoloto destinado a determinar quem seria incorporado e quem voltaria para “a vida fácil”. No sorteio, a corrupção – por vezes caricatamente baixa – fazia parte dos dados a introduzir e, por consequência, “quem não tinha padrinhos, morria mouro”, a menos que o seu fervor patriótico ou a crença de que a tropa fazia bem o levasse a aceitar ficar apurado. Era o tempo dos “pés chatos” (fosse isso o que fosse e às vezes não era nada) que davam direito a “ficar-se livre à tropa”.

Mas a ida às sortes tinha um aspecto muito positivo. Em muitos casos, era a primeira vez que o jovem ia a uma consulta médica e, se ficasse apurado, sabia que tinha saúde e devidamente autenticada. Os “fraquinhos e os enfezadinhos” ficavam de fora, com as vantagens e inconvenientes que isso comportasse. Depois eram as tais “sortes”, às quais se seguiria um alegre retorno a casa, em liberdade, ou “um não há-de ser nada” para os que seriam incorporados. A incorporação e o serviço militar eram feitos normalmente longe de casa e aí começava um choque na vida do homem que, se tinha aspectos negativos, não podemos negar que abria horizontes – e muito mais naquele tempo – pelo contacto com outros homens, de outras terras e com outros hábitos. É uma realidade que não podemos negar e que hoje procuramos. Porém, feita por obrigação… pelo menos nos primeiros tempos, era uma experiência desagradável para muitos.

Seguia-se o contacto na caserna com outros jovens, de outras terras, com outros hábitos e outras maneiras de pensar, especialmente em relação ao meio em que tinham sido mergulhados. Surgiam os pequenos desenrascanços (sempre maus) e os furtos de caserna (revoltantes e, às vezes significativos) que chegavam a atingir peças de fardamento e equipamento, e a falta de higiene e a deficiência das instalações onde os refeitórios e cozinhas tinham lugar de destaque, pela negativa. E o fardamento que, numa demonstração de miséria nacional, era distribuído já usado com períodos de duração por vezes bastante curtos e que tinha que ser ajustado por troca entre interessados. Instalavam-se as pequenas rivalidades e até invejas de certa monta, às vezes de uma estupidez impressionante: ricos versus pobres, “copinhos de leite” versus “copofónicos”, “pintas de Lisboa” versus “alantejanos”, etc.. Quem não se lembra dos “meninos de Lisboa” que tinham a mania que sabiam tudo ou dos “balentáxos” da “Beira Ialta” que escondiam ao garrafão debaixo da cama e traziam a “churicha” embrulhada num guardanapo gorduroso e cortada com um canivete afiadíssimo, mas com gordura profundamente instalada, da base do cabo à ponta da lâmina?

Era o povo português no seu melhor e no seu mais significativo exemplo…

As mulheres não cumpriam serviço militar e, no fundo, os homens, na sua maior parte, se pudessem deixar de o cumprir, assim fariam. Todavia era algo a que dificilmente podiam fugir. Por isso, acabavam por exibir a sua passagem pelas fileiras como um emblema que os credenciava como homens mais completos. Não era o culto da "ideologia do marialvismo". Poderia ser um "rito de passagem" incentivado pela ideologia política e social do tempo.

Seguia-se a recruta onde o homem era confrontado com uns saberes esquisitos cuja finalidade não entendia. Desde as alocuções sobre o patriotismo, ao funcionamento das armas, o tiro dos diversos calibres, passando por uns exercícios físicos que o cansavam sem que percebesse para que serviam. Mas, a pouco-e-pouco, a integração ia-se dando e estabelecia-se até uma certa rivalidade com “os outros”, os civis, os do outro grupo. E vinha o juramento de bandeira, essencialmente uma festa com rancho melhorado, uns gritos, uma alocução patriótica (que se esquecia no minuto seguinte, mas da qual ficava uma ideia, ou mesmo duas, a juntar ao que se aprendera na Escola Primária) e mais exercícios de ginástica e outros que constituíam uma afirmação. De quê? Isso era outra questão, mas lá que era uma afirmação, disso não havia dúvidas. No final da vida de unidade, monótona e pouco atractiva, vinha a “peluda”. Saíam do quartel “à paisana” com a “consciência do dever cumprido”, dotados da valentia que o grupo sempre dá, impondo à contemplação da sociedade a vitória que acabavam de obter. No dia seguinte iniciavam o processo de esquecimento, confrontados com a vida todos os dias, mas, indiscutivelmente, com uma experiência que os marcava para o resto da vida, mesmo que não dissessem senão mal dela. E, às vezes até diziam bem…

Em muitos casos, o mito de que a tropa "forma homens" tinha confirmação. Os pais e a aldeia, ou seja, a família e a sociedade, notavam uma melhor inserção do homem que acabara de passar por aquela “etapa de desenvolvimento”. Embora durante o serviço militar, o homem tivesse de sobreviver autonomamente e com poucos meios, a emancipação, pelo menos para efeitos legais, chegava aos 21 anos, ou seja durante a sua passagem pelo quartel. Na etapa seguinte, vinha a constituição da família própria e a saída de casa com a correspondente independência garantidas pelo trabalho, mais ou menos afincado. Era um desiderato dos homens jovens daquele tempo.

Tudo ficava por aí e... as coisas iam andando.

E veio a “guerra”. Subitamente, o país, em geral, e os jovens, em especial, foram confrontados com a verdadeira “utilidade” das Forças Armadas. As sortes desapareceram. Agora “aproveitavam tudo”. A breve trecho, os quartéis passaram a turbinar cada vez mais aceleradamente na produção de militares, muitos dos quais não passavam de civis fardados (à pressa) que, depois de terem passado por tudo aquilo que os seus pais e irmãos mais velhos haviam passado, iam “aplicar a sua formação” no jogo de vida ou morte – que não conheciam senão dos filmes – e numa terra de que só tinham ouvido falar. No início, esta opção foi bem aceite por todos. Mais uma vez a “informação disponibilizada” e a História aprendida nos bancos da escola funcionaram como determinantes do comportamento cívico colectivo. Se uns aceitavam, pois a “Pátria estava em perigo”, outros não hesitavam e venderiam a sua parte de Angola (É nossa!) por meia garrafa de branco. Mas muitos partiram, e os que não foram permaneceram nas fileiras, sujeitos às suas regras de funcionamento, durante três anos, solução que, não envolvendo riscos de maior, deixava marcas mais profundas do que no passado.

O embarque era outro momento traumatizante e que marcava todos. Os que iam porque tendo tido a secreta esperança de que “comigo vai ser diferente”, viam que, afinal, tinham mesmo que ir; e os que ficavam porque não saberiam se voltavam a ver os que partiam e, se os voltassem a ver, se não seria com um bocado do corpo ou da mente a menos. Apesar de tudo, os que por cá ficavam engrenavam nos que fazeres diários e prosseguiam na vida. Depois eram as cartas, os aerogramas e o resto de todas as formas de comunicação possíveis ao tempo, mas que não transmitiam a experiência vivida. Tudo acabou por entrar na rotina com uns a irem e outros a virem e o país a habituar-se a este vai-e-vem.

E, para quem ia, chegava a parte mais marcante do serviço militar. Tudo era diferente nas terras onde se desembarcava. Umas mais ricas e progressivas; outras muito pobres e outras que quem chegava nem sequer sabia classificar, como as dos interiores, onde eram procuradas semelhanças com as gravuras dos tais livros escolares. E vinha uma enxurrada de situações vividas a um ritmo alucinante, durante dois anos. É absolutamente indescritível o número de situações e as suas características que viviam. A primeira operação, fosse ela uma coluna ou uma acção no final do IAO; a progressão no mato ou na estrada, à espera que os turras surgissem; o assalto a uma instalação ou a reacção a uma emboscada, uma mina, um ataque ao quartel com armas pesadas ou “ao arame”. E vinha a primeira baixa: um ferido ligeiro ou grave que, em sofrimento, era evacuado, ou um morto, a cujos últimos segundos assistiam ou que os olhava já de olhos fechados. A revolta que sentiam era enorme e a impossibilidade de sair “dali” tornava-a insuportável. Surgia a pergunta: o que é que estamos aqui a fazer?

Hoje pega-se nisto tudo, mete-se dentro do mesmo saco e chama-se-lhe “síndrome pós-traumática”. Não se faz nada, mas o tempo remedeia tudo. Mas naquela altura nem nome científico havia para o fluxo das vicissitudes pelas quais se passava.

Claro que havia coisas “giras”, situações cómicas, mas seria necessário ir para tão longe para nos rirmos uns dos outros? A entreajuda, a confraternização e a amizade fortaleciam-se, como normalmente sucede no meio da desgraça, quando o inimigo é comum. As condições de vida eram as que “podiam ser” e aquelas que se podiam ir granjeando na esperança que o tempo passasse, pois ninguém estava interessado em ir além da defesa da sobrevivência, embora houvesse que manter o inimigo em respeito e evitar que nos surpreendesse.

E as horas de incerteza, antes, durante e depois do que acontecia, fosse o que fosse? Um verdadeiro suplício durante o qual eram levantadas as mais diversas hipóteses.
Era um infinito de coisas que sucediam num dia-a-dia sem que se pudesse fazer algo para controlar o que acontecia.

E, no regresso vinham velhos. Muito velhos, às vezes. Não em idade, pois que essa era a mesma, mas de espírito. Algo desenraizados, aprendiam a questionar qual era efectivamente o seu papel e já não ali, mas na vida e na relação com os outros. Concluíam da relatividade da vida e da facilidade com que ela se ia, sem que pudessem fazer nada para o evitar. Podiam ter momentos de nostalgia ao contemplar a beleza natural, que sempre existe nas Áfricas e contactavam com povos que, vivendo no “mesmo país”, eram tão diferentes. Se estivessem atentos aprenderiam, como sempre acontece, mas, se quisessem aprender, a guerra não fazia falta nenhuma e nem todos tinham em si um antropólogo amador…

A soma, não necessariamente algébrica, de todas as amolgadelas que o destino lhes tinha imposto era o seu principal enriquecimento e é daí que, quer se queira, quer não, tiravam um amadurecimento que fazia dos que passaram por esta experiência mais capazes de, numa rápida apreciação, determinarem o que é mais importante na vida que daí em diante iam levar.

Depois de tanta provação ficavam “mais homens”? Certamente, na medida em que ficavam a conhecer melhor a natureza humana no seu melhor e no seu pior e estavam com maior apetência para a prática do bem, da paz e da solidariedade. Pena que a aprendizagem tivesse sido tão dura. Há quem diga que os maiores pacifistas são os que passaram por uma guerra. Nem sempre será assim, infelizmente, mas creio que no nosso caso será.
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Nota do editor

Último poste da série de 11 de setembro de 2015 Guiné 63/74 - P15104: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (15): Afinal houve mesmo guerra?