sábado, 24 de fevereiro de 2018

Guiné 61/74 - P18350: (D)o outro lado do combate (20): Os fracassos assumidos pelo PAIGC no ataque a Buba, de 12 de outubro de 1969… E os outros que se seguiram (ao tempo da CCAÇ 2382 e do Pel Mort 2138) - Parte II (Jorge Araújo)


Guiné > Região de Quínara > Buba > Rebentamento de granada no Rio Grande de Buba durante um ataque IN (período 1968/1971 – CCAÇ 2616 / BCAÇ 2892). Foto do ex-alf. Joaquim Rodrigues, in: http://guine6871.blogspot.pt/ (com a devida vénia).

Infografia: Jorge Araújo (2018)



Jorge Alves Araújo, ex-Fur Mil Op Esp/Ranger, CART 3494 
(Xime-Mansambo, 1972/1974)


GUINÉ: (D)O OUTRO LADO DO COMBATE > OS FRACASSOS ASSUMIDOS PELO PAIGC NO ATAQUE A BUBA [12OUT1969]… E OS OUTROS QUE SE SEGUIRAM (AO TEMPO DA CCAÇ 2382 E DO PEL MORT 2138) - Parte II
por Jorge Araújo


1.  INTRODUÇÃO

Este segundo fragmento relacionado com os dois ataques a Buba ocorridos no último trimestre de 1969 - o 1.º em 12 de outubro e o 2.º em 11 de dezembro - reforça o que, no entender dos responsáveis do PAIGC, foram os seus maiores fracassos registados durante o cumprimento do "plano de acções militares", elaborado para a região do Quinara e Tombali, executado com recurso a uma quantidade significativa de equipamentos de artilharia e com mobilização de um numeroso contingente de guerrilheiros de infantaria.

Esse "plano" (ou "programa"), para o qual foi concebido um calendário concreto, contemplava ataques a oito aquartelamentos das NT, que abaixo se identificam, com a primeira acção a iniciar-se em Buba e que, devido aos resultados desfavoráveis deste, foi entendido que se deveria realizar nova acção, com o segundo ataque a ser agendado para o final desta "campanha", a ter lugar no dia 10 de Dezembro de 1969.

Conforme já referido anteriormente (*), a decisão de escrever esta narrativa surge na sequência de uma investigação por nós realizada a propósito de uma foto de um «espaldão de morteiro 81», localizada no Arquivo Amílcar Cabral, existente na Casa Comum – Fundação Mário Soares. Aí tivemos acesso, também, a um relatório dactilografado, formato A/4, com um total de vinte e três páginas, sem capa e sem referência ao seu autor, elaborado no seguimento "das operações militares na Frente Sul" [http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40082 (2018-1-20)], onde se referem os aspectos mais importantes anotados antes, durante e depois de cada missão, nomeadamente: efectivos, equipamento, desenvolvimento da acção e avaliação.


2. OS FRACASSOS ASSUMIDOS PELO PAIGC EM 12OUT1969… E OS SEGUINTES…

Recorda-se que o primeiro ataque a Buba [12 de outubro de 1969] só foi concretizado depois de um longo período de minucioso reconhecimento sobre as melhores condições geográficas para a actuação da artilharia com três posições de fogo distintas. Por outro lado, esse reconhecimento previa também identificar as melhores vias de acesso para a infantaria e locais para a sua disposição, uma vez que iriam estar no terreno um universo superior a três centenas de combatentes, comandados pelo cap  Pedro Peralta [cubano] e por 'Nino' Vieira.

Entretanto, durante esse reconhecimento, um grupo de guerrilheiros foi descoberto pelas NT, em 7 de outubro de 1069, quando o sentinela do Pel Mort 2138, colocado no posto de vigia junto à pista de aviação, detectou elemento IN nas imediações da pista. No dia seguinte (dia 8), na continuação do reconhecimento supra, um grupo IN accionou uma mina A/P reforçada implantada pelas NT junto ao cruzamento das estradas de Nhala e Buba (in: História do Pel Mort 2138, p3).

"Esta operação iniciou-se com um atraso de meia hora, devido a dificuldades na instalação dos canhões. Eram 17h30 quando o ataque se iniciou com fogo dos canhões B-10, que falharam os alvos, tendo apenas dois obuses atingido o quartel. O inimigo [NT] respondeu com um nutrido fogo de morteiros [Pel Mort 2138], canhões [2.º Pelotão/BAC], metralhadoras e armas ligeiras [CCAÇ 2382 (já com as 'malas feitas' para o seu regresso à metrópole) + Pel Milícia]. Além disso, unidades inimigas [NT] de infantaria cruzaram o rio [Grande de Buba], pondo sob a ameaça de liquidação do posto de observação, os canhões, em retirada, e os morteiros.

"Nestas condições, abortou a acção da artilharia, que teve que se retirar, sempre debaixo do fogo das [NT]. Como não actuou a artilharia, tampouco actuou a infantaria. Tivemos duas baixas na operação: dois feridos, um dos quais veio a falecer mais tarde. Além disso, temos a lamentar a morte de um camarada de infantaria, por acidente."


3. O SEGUNDO ATAQUE A BUBA EM 10 EM DEZEMBRO DE 1969… QUE PASSOU PARA O DIA 11 DEVIDO A SUCESSIVAS FALHAS NA SUA ORGANIZAÇÃO,

Desenvolvimento da acção: [conclusão]

Como tivemos a oportunidade de dar conta no texto anterior [Parte I – P18346], o início do ataque deveria começar com o disparo dos foguetões das peças GRAD, seguida dos morteiros 120 para permitir o assalto por parte das forças de infantaria [10 de dezembro de 1969]. Para garantir o cumprimento dos objectivos definidos para esta acção, a comunicação entre o posto de observação e a posição de fogo das peças de artilharia far-se-ia, pela primeira vez, através dos rádios [modelo] "104". Aconteceu, porém, que estes não funcionaram no momento em que devia iniciar-se o ataque pelo que foi decido adiá-lo para o dia seguinte [11 de4 dezembro de 1969], optando-se pela substituição dos rádios por telefones.

No dia seguinte, nova decisão de suspender o ataque devido a uma série de falhas nas instalações telefónicas e, mais tarde desistir da utilização da artilharia, dada a actuação independente da infantaria, com a qual, por falta de meios de comunicação, não foi possível combinar um outro plano em substituição do que estava previsto.

Deste modo, este ataque contou, exclusivamente, com o desempenho da infantaria, que teve o seguinte desenvolvimento:

Actuação da Infantaria

"A infantaria, que não actuou no dia anterior devido à suspensão da operação, seguindo novo itinerário, ocupou as suas posições para a acção do dia 11 [Dez'69]. Duas horas depois da hora estabelecida para a actuação da artilharia (que não actuou), a infantaria atacou com todas as forças de que dispunha: 4 bi-grupos com 6 RPG-7 cada, com 5 obuses cada, tendo o 5.º bi-grupo ficado de reserva. Não obstante a pronta e dura reacção inimiga [NT = CCAÇ 2616/BCAÇ 2892, companhia "piriquita" que havia chegado a Buba em 10NOV69, ou seja, um mês antes + Pel Mort 2138, cujas esquadras eram já muito experientes], com fogo de infantaria, canhões e morteiros, a nossa infantaria permaneceu durante 45 minutos colada ao solo, realizando 5 vagas de ataque durante esse tempo.

"Desconhece-se o número de baixas sofridas pelo inimigo [NT]. Várias casernas foram destruídas. Do nosso lado houve um ferido ligeiro."



Infografia: Jorge Araújo (2018)

4. AVALIAÇÃO (CONCLUSÕES)

Impressões Finais

A páginas 19 e 20 deste "relatório" do PAIGC encontramos uma avaliação ao modo como foram acontecendo os vários ataques previstos no "plano", e os diferentes factores que influenciaram o desenrolar das "operações".

Assim, quanto ao reconhecimento dos quarteis, é referido o seguinte:

1. O reconhecimento aos quarteis inimigos (NT) demorou bastante, já que teve de ser feito completamente novo. Em quase todos os sectores, nunca se tinha levado a cabo um trabalho do género, e portanto não se dispunha de dados concretos sobre as vias de penetração nos campos inimigos (para infiltração da infantaria) e sobre possíveis posições de fogo com as respectivas distâncias (para a artilharia), já que dispomos de poucos mapas.



2. Quanto à questão do equipamento.

Fez-se sentir bastante agudamente a falta de farda e, especialmente, de botas. Para ilustrar bem este caso, basta dizer o seguinte: quando a bataria de artilharia que vinha de Cubucaré, depois do ataque a Cabedu [5.º - 6NOV69], chegou a Tombali, de 72 homens que tinha, só podemos conseguir para o ataque a Empada [7.º - 14NOV69] 5 peças de morteiros 82 (20 homens), porque grande parte dos camaradas estavam com os pés feridos por terem andado descalços e à noite.



3. Quanto à questão da alimentação.

Sujeitos a um grande esforço físico, com pouca alimentação (às vezes nenhuma), os camaradas "adoeciam" muito, dando como resultado uma grande falta de pessoal e enfraquecimento da disciplina.



4. Quanto à questão das comunicações.

Assinalamos as grandes dificuldades e por vezes a total impossibilidade em estabelecer comunicação entre o posto de observação e a posição de fogo e para uma coordenação efectiva entre a artilharia e a infantaria. Em todas as acções em que foram usados telefones ou os rádios de que dispomos actualmente, houve grandes problemas com esses equipamentos.


O "relatório" acrescenta ainda que:

1. O funcionamento do corpo de exército estava melhorando dia-a-dia, quer isoladamente, artilharia dum lado e infantaria doutro lado, quer a coordenação entre as duas armas, e, o que é importante, a infantaria já estava confiando um pouco mais na precisão da artilharia.

2. A actuação da artilharia melhorou sensivelmente. Tanto os canhões sem recuo, morteiros de 82 mm, e particularmente a arma especial (GRAD), demonstraram isso na operação de Cufar [8.º - 24NOV69] (a [pen]última que realizámos).



3. A actuação da infantaria estava melhorando também sensivelmente:

- aproximação rápida e silenciosa dos quarteis inimigos;

- disciplina de fogo;

- grande segurança na ocupação das posições e progressão durante o combate. Basta assinalar que durante todas as operações só tivemos 3 mortos, todos no primeiro ataque a Buba (a nossa primeira operação) – um por mina, durante o reconhecimento, outro por acidente com arma de fogo e o terceiro por estilhaço de morteiro na resposta inimiga [NT] ao ataque de artilharia – e oito feridos ligeiros.

4. Apesar de todas as dificuldades materiais, e do grande esforço físico exigido no transporte dos materiais pesados, o moral dos nossos combatentes esteve sempre elevado.



5. O uso das armas antiaéreas durante as operações, pelo seu peso com a respectiva munição, revelou-se uma carga demasiado pesada para as nossas unidades (para transportar com relativa facilidade uma peça DCK com a sua munição são necessários uns 10 homens). Além disso, à excepção de Cacine [4.º - 4NOV69] (1ª operação iniciada às 16h45) todas as outras operações foram desencadeadas a horas em que a aviação e os helicópteros não podem já agir com eficácia.

Iremos continuar a desenvolver este tema com a apresentação dos principais factos ocorridos em cada um dos restantes ataques.

Com forte abraço de amizade,
Jorge Araújo.
22FEV2018.
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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P18349: Os nossos seres, saberes e lazeres (254): Em Bruxelas, para comemorar 40 anos de uma amizade (4) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 6 de Dezembro de 2017:

Queridos amigos,
Como soe dizer-se no nosso tempo, organizou-se uma viagem de afetos para concelebrar em Bruxelas uma amizade começada há 40 anos, o viandante guarda uma enorme gratidão a quem lhe ensinou o elementar da política dos consumidores na Europa, a saber intervir em conferências e ateliês, a saber dirigir uma reunião de trabalho, a preparar um dossiê sobre questões tão díspares como as benzodiazepinas, o folheto informativo dos medicamentos e as vantagens/desvantagens do código de barras.
Cimentou-se a relação e deu-se naturalmente um intercâmbio de territórios. O anfitrião sabe que o seu hóspede tem uma doidice por andar a pé nas principais comunas de Bruxelas, mas viajam de carro até aos parques, que são belos e frondosos, visitam amigos comuns, talvez em Lovaina, talvez em Namur. Para o hóspede, o país é inesgotável nos seus referenciais flamengos e valões, espera enquanto tiver lucidez e pés para andar que Bruxelas seja roteiro obrigatório, sempre uma viagem de afetos.

Um abraço do
Mário


Em Bruxelas, para comemorar 40 anos de uma amizade (4)

Beja Santos

Com o livro sobre os percursos de Bruxelas debaixo do braço, o viandante saiu de casa, apanhou o metro e saiu na estação de Porte de Hal. A caminhada vai começar no bairro de Marolles, já se disse que o Palácio da Justiça está lá por cima, com a sua omnipotência esmagadora, o que o viandante quer é bisbilhotar o reino do bricabraque num tempo em que Marolles muda de look, há pouquíssimos imigrantes, é bairro popular mas perdeu aquela ambiência proletária, tem a sua feira da ladra que funciona na Place du Jeu de Balle, é o coração do bairro. Quando saiu do metro, o viandante foi ver o que era o prato do dia na taberna do Faucon, ficou agradado com a proposta, há de voltar.



Na Rua Haute há muito para ver. A primeira imagem impressiona sempre o viandante, é a casa de um dos seus mais admirados pintores, Pieter Bruegel, temos felizmente dele um quadro admirável no Museu Nacional de Arte Antiga. A casa exibe uma fachada do século XVI, há a promessa de que um dia haverá aqui um museu e corre mesmo a intenção de mudar o nome de Marolles pelo de Bruegel. Bruegel viveu aqui entre 1562 e 1569, ano da sua morte. A sua fixação no bairro, povoado, então, de tecelões, artesãos e pintores respondeu a um pedido da sua futura mulher, que o queria afastado de Antuérpia. É neste período de vivência em Marolles que criou obras fabulosas que estão expostas no Museu Real de Belas Artes. E mostra-se um velho estabelecimento, abandonado, é uma lembrança dessa rua cheia de atividade daquele que foi o maior gueto proletário de Bruxelas, centro de agitação social, esta rua ficou conhecida pelas suas lojas de têxteis, de móveis e de alimentação.


Não pensem que o viandante mente, aqui está a imponente estatura do Palácio de Justiça, já se disse que ninguém lhe consegue escapar. Marolles é aprazível com as suas ruelas e becos, não questiono as razões que levaram os autores deste guia sobre os percursos de Bruxelas a considerá-la como caótica, seja, mas a verdade é que se pode por aqui cirandar entre o passado e o presente e sentir o peso das diferenças, comparar dois universos, sendo o viandante septuagenário atrai-o as marcas de diferentes séculos e ver edifícios e sobretudo lojas que lhe recordam a infância. E sentar-se num jardim, diante de arquitetura moderna e contemplar, embevecido, o Outono em flor.



Há livros que fazem o inventário destes belíssimos murais que se espalham pelo centro da cidade, os temas são múltiplos, vão desde as imagens históricas até à banda desenhada. O viandante caminha agora em direção às grandes avenidas e não resistiu a reter esta lembrança, são bem sugestivos estes murais, a cidade pode ser caótica não está desfiada por aquelas grafitis que nos magoam o olhar.


Não é um palácio é uma escola, faz parte daqueles tempos em que o ensino, a educação, a formação eram valores que mereciam arquitetura imponente. Imagem tirada numa bonita praça que conflui para a artéria dos bulevares que ligam a Bolsa até à Gare du Midi, onde se tomam os comboios para França, Países Baixos, Alemanha e muito mais.


Há bastante tempo que o viandante não passava pela Praça de Santa Catarina, contígua aos mais importantes restaurantes especializados em peixe. Os reis belgas, que dispunham da fortuna do Congo, procuraram encher a cidade de novos templos religiosos a imitar o antigo, ou a retocar templos barrocos. É assim com a Igreja e Santa Catarina, um edifício construído depois de derrubarem um velho tempo de que só sobra esta lembrança, muito bela, por sinal.


Como esta viagem é de peregrinação, importa explicar o porquê de uma imagem quase anódina, ou desinteressante. Trata-se da Igreja de Santa Madalena encostada a um edifício onde durante anos houve um velho hotel. Quando o viandante aqui desembarcou, 40 anos atrás, na Gare Central, em frente tinha um descampado, restava esta igreja, tinha resistido à terraplanagem, ao longo destas décadas o quarteirão recebeu hotéis e escritórios, resta dizer que a arquitetura respeita algum traçado antigo e não tem escala agressiva. Pois aqui o viandante se albergou num hotel que tinha um nome medieval, Hôtel des Éperonniers, a rua com o mesmo nome referente a fabricantes de esporas, o que faz sentido, ali à volta há a rua das especiarias, a rua do carvão, a rua da manteiga, nomes bem bonitos que os responsáveis pela toponímia tiveram a sensatez de não apagar. E o viandante avança de novo para os grandes bulevares.



Começou-se em Marolles, percorreu-se o Sablon, avançou-se para o centro da cidade. Ainda houve a tentação de visitar uma bela exposição de Magritte, patente no museu do mesmo nome, ou entrar na Biblioteca Real da Bélgica, situada no Monte das Artes. Mas não, o viandante especou-se de costas à fachada do Teatro de La Monnie, frente a uma arquitetura arrojada, é um diálogo que não corre mal naquele eixo dos grandes bulevares que se estendem até à Praça Rogier, não é incomum o viandante, em deambulações nesta área, ir até à Igreja de Nossa Senhora de Finisterra, mas toma a decisão súbita de ir visitar o Palácio das Belas Artes, tem saudades dos tetos da Galeria Ravenstein. Atenda-se ao que se escreve no livro dos percursos de Bruxelas: “Demore-se por esta fascinante galeria comercial englobada num vasto edifício de escritórios concebido em 1954 pelos arquitetos Alexis e Phillipe Dumont. Siga por esta passagem de luz celestial para desembocar na impressionante cúpula em betão, ornamentada por tijolos de vidros dispostos em círculos concêntricos; visão vertiginosa de uma composição magistral que não nos cansamos de contemplar. Volte de novo para trás e dê consigo em Bruxelas central”. Foi exatamente o que o viandante fez, acusa cansaço, regressa a casa, em Watermael-Boisfort, amanhã é dia de grande azáfama, com o seu anfitrião vão até Namur, visitar uma amiga e depois calcorrear a cidade.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 17 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18327: Os nossos seres, saberes e lazeres (253): Em Bruxelas, para comemorar 40 anos de uma amizade (3) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P18348: Parabéns a você (1394): António Cunha, ex-1.º Cabo At Inf da CCAÇ 763 (Guiné, 1965/66) e Manuel Henrique Quintas de Pinho, ex-Marinheiro Radiotelegrafista das LDMs 301 e 107 (Guiné, 1971/73)


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Nota do editor

Último poste da série de > Guiné 61/74 - P18343: Parabéns a você (1393): José Carlos Pimentel, ex-Soldado TRMS da CCAÇ 2401 (Guiné, 1968/70); José Ferreira da Silva, ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689 (Guiné, 1967/69) e José Maria Claro (DFA), ex-Soldaddo Radiotelegrafista da CCAÇ 2464 (Guiné, 1969)

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Guiné 61/74 - P18347: Fotos à procura de... uma legenda (101): a "turpeça" do Jorge Araújo (ex-fur mil op esp/ranger, CART 3494 (Xime-Mansambo, 1972/1974)


Guiné > Região de Bafatá > Xime > Tabanca >  c. agosto / setembro de 1972 > O nosso camarada Jorge Araújo sentado na sua "turpeça"..

Foto (e legenda): © Jorge Araújo (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Jufunco ou Djufunco > 9 de maio de 2013 >  Os dois régulos locais  com as suas "turpeças" que nunca largam por nada deste mundo... Dois tipos agarrados ao poder, deve ter pensado o régulo da Tabanca de Matosinhos, Zé Teixeira... Sentar-se no banquinho do régulo é punível com a pena capital... Os felupes não fazem a coisa por menos...

Foto (e legenda): © José Teixeira (2013). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem, enviada hoje, às 19:22, pelo nosso colaborador permanente (e próximo editor), Jorge Araújo, ex-fur mil op esp/ranger, CART 3494  (Xime-Mansambo, 1972/1974):

Caro Luís,

Será que pode-se considerar uma "turpeça", onde me encontro sentado? A ser verdade, deve ser uma muito antiga, ou um modelo diferente das que vimos nas fotos do camarada  Zé Teixeira. (*).

Ab. Jorge Araújo.


2. Comentário do editor LG:

Jorge, é surpreendente a capacidade de resposta dos nossos grã-tabanqueiros, a qualquer hora do dia, da noite ou da semana... Há sempre uma história, uma foto, um episódio, uma expressão, uma palavra... a propósito de tudo ou quase tudo o que aqui  abordamos, relativamente à nossa querida Guiné, às suas gentes, à sua cultura, à  sua história e à nossa relação com aquela terra, aquele povo...

Obrigado pela tua foto, enviada carinhosamente, "just in time"... Pois, claro, que é uma "turvela" o banquinho em que estás sentado, com uma criança ao colo e com uma catana na mão direita... Deve ser no Xime, por volta de 1972, mas também podia ser no Enxalé ou em Mansambo (aqui menos provável, já que a população era reduzida, pelo menos no meu tempo, aos guias das NT e suas famílias).

É uma "turvela", sim, senhor, embora mais tosca do que as dos "colegas" do nosso  Zé Teixeira, os régulos de Djufunco, no chão felupe... As "turpeças" deles são  mais artísticas e mais leves, e curioso, têm uma reentrância que facilita o seu transporte manual...

Mais curioso ainda, e não vá o irã tecê-las, têm uma cordel atado à mão do régulo que é o único (e cioso) proprietário do "banquinho"... Não sei o que é que aconteceria  Zé Teixeira (ou a esposa) se se sentasse, inadvertidamente, na "turpeça" do régulo... No mínimo, teríamos um grave incidente diplomático... Ainda bem que o Zé Teixeira é um profundo conhecedor das idiossincrasias guineenses... e sobretudo é um homem sábio.

A tua "turvela", meu caro Jorge, parece ser fula e,  nesse caso, diz-se um "cirã"... Em mandinga, não sei como se diz... Oferecer uma "turvela" a um convidado, estrangeiro como nós, era um ato de grande hospitalidade e de deferência... Claro que não era pelos nossos lindos olhos mas pelo que representávamos, aos olhos dos régulos, das milícias e da população...

Recordo-me de, em Saré Ganá (**), com dois meses e meio de Guiné, ainda "periquito" com todas   as penas verdes no corpo, me terem "oferecido" (sic) uma  morança, uma enxerga de palha de capim, uma "turpeça" e... uma jovem trintona  (uma das mulheres do comandante da milícia),  quando fui, com uma secção, reforçar o frágil sistema de autodefesa da tabanca, no desgraçado regulado de Joladu, no subsetor do Geba... 

Meio embaraçado com a hospitalidade local  (fula ou mandinga?), foi lá que me apercebi do profundo significado socioantropológico de ter ou não ter uma "turpeça"... Os meus soldados, fulas, dormiam numa esteira, quer dizer, no chão... e comiam à volta de um alguidar de arroz, acocorados no chão... Só ontem, ao fim de quase 50 anos, é que eu ouvi ou li, pela primeira vez, a palavra "turpeça"... e apercebi-me da importância de se ter ou não uma "turpeça" naquelas paragens, ontem e hoje...
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 23 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18345: Fotos à procura de...uma legenda (100): quem não tem "turpeça", senta-se no chão... e quem "turpeça" também cai...

(**) Vd. poste de 17 de fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - P535: Fátima, a furtiva gazela de Sare Ganá (Luís Graça)

Guiné 61/ 74 - P18346: (D)o outro lado do combate (19): Os fracassos assumidos pelo PAIGC no ataque a Buba, de 12 de outubro de 1969 … E os outros que se seguiram (ao tempo da CCAÇ 2382 e do Pel Mort 2138) - Parte I (Jorge Araújo)



Guiné > Região de Quínara > Buba  > Material capturado ao PAIGC em 23 de novembro de 1968: granadas, minas, cunhetes de munições, medicamentos, géneros alimentícios enlatados, material diverso, incluindo um "poster" (ou retrato em tamanho médio, tipo 18'' x 24'')  de 'Che' Guevara, seguramente trazido pelos cubanos...

Foto do camarada Francisco Gomes, 1.º cabo escriturário da CCS/BCAÇ 2834 (Buba, Aldeia Formosa, Guileje, Cacine, Gadamael (1968/1969). In: https://guine6869.wordpress.com/album/  (com a devida vénia.


Jorge Alves Araújo, ex-Fur Mil Op Esp/Ranger, CART 3494 
(Xime-Mansambo, 1972/1974)


GUINÉ: (D)O OUTRO LADO DO COMBATE  > OS FRACASSOS ASSUMIDOS PELO PAIGC NO ATAQUE A BUBA [12OUT1969] … E OS OUTROS QUE SE SEGUIRAM  (AO TEMPO DA CCAÇ 2382 E DO PEL MORT 2138 - Parte I


por Jorge Araújo


1. INTRODUÇÃO

Nas últimas três narrativas estivemos focalizados na região de Buba, ao tempo da CCAÇ 2382 e Pel Mort 2138, com a primeira visita a acontecer por acaso, quando encontrámos uma foto de um «espaldão de morteiros 81» no Arquivo Amílcar Cabral, localizada na Casa Comum – Fundação Mário Soares, e que, após identificado o local, nos permitiu chegar ao episódio de um ataque a esse Aquartelamento ocorrido em 12 de Outubro de 1969, domingo. Desse ataque foi produzido um “Relatório do Ataque”, como procedimento habitual, redigido pelo CMDT da CCAÇ 2382, ex-Cap Mil Carlos Nery Gomes de Araújo [vidé P18223].

Por efeito da pesquisa com ela [foto] relacionada, na qual se adicionou o contributo escrito das NT, tivemos acesso, «do outro lado do combate», a um relatório, sem referência ao seu autor, elaborado a propósito “das operações militares na Frente Sul”, realizadas pelo PAIGC no último trimestre de 1969, onde se incluía a análise crítica a um primeiro ataque a Buba efectuado naquele dia 12 de Outubro, com se indica acima [http://hdl.handle.net/ 11002/fms_dc_40082 (2018-1-20).

Aí são apresentadas as principais razões para os fracassos contabilizados nessa acção [P18244].

Finalmente, e para concluir a investigação sobre os Pelotões de Morteiros que passaram pelo Aquartelamento de Buba, foi elaborado um cronograma com essas Unidades, tendente a identificar os períodos das suas respectivas comissões, no quadro temporal iniciado em 1964 até 1974 [P18283].


Por todas estas razões, o presente trabalho procura dar sequência ao modo como os responsáveis do PAIGC (re) agiram aos fracassos anteriores e o que preconizaram fazer depois disso, e com que resultados.


2. OS FRACASSOS ASSUMIDOS PELO PAIGC EM 12OUT1969… E OS SEGUINTES…

Recorda-se que este primeiro ataque só foi concretizado depois de um longo período de minucioso reconhecimento sobre as melhores condições geográficas para a actuação da artilharia com três posições de fogo distintas. Por outro lado, esse reconhecimento previa também identificar as melhores vias de acesso para a infantaria e locais para a sua disposição, uma vez que iriam estar no terreno um universo superior a três centenas de combatentes, comandados pelo capitão cubano Pedro Peralta e por Nino Vieira.

Entretanto, durante esse reconhecimento, um grupo de guerrilheiros foi descoberto pelas NT, no dia 7 de Outubro, quando o sentinela do Pel Mort 2138, colocado no posto de vigia junto à Pista de aviação, detectou um guerrilheiro nas imediações da Pista. No dia seguinte (dia 8), na continuação do reconhecimento supra, um grupo IN accionou uma mina A/P reforçada implantada pelas NT junto ao cruzamento das estradas de Nhala e Buba (in: História do Pel Mort 2138, p3, recorte abaixo). 


Pelo acima exposto, confirma-se, então, o que é descrito no relatório da acção do PAIGC; “no cumprimento desta última missão de reconhecimento temos a lamentar a morte de um camarada e o ferimento de outros dois, entre os quais o camarada CAETANO SEMEDO, em consequência da detonação duma mina antipessoal” [P18244].

"Esta operação, que deveria ter início pelas 17 horas, só se iniciou meia hora mais tarde devido a atrasos na instalação dos canhões. O ataque iniciou-se com fogo dos canhões B-10, que falharam os alvos, tendo apenas dois obuses atingido o quartel. O inimigo [NT] respondeu com um nutrido fogo de morteiros [Pel Mort 2138], canhões [2.º Pelotão/BAC], metrelhadoras e armas ligeiras [CCAÇ 2382 + Pel Milícia]. Além disso, unidades inimigas [NT] de infantaria cruzaram o rio [de Buba], pondo sob a ameaça de liquidação do posto de observação, os canhões, em retirada, e os morteiros".


Citação: (1963-1973), "Irénio Nascimento Lopes; ensinando os combatentes do PAIGC a manobrar um canhão sem recuo [B-10] de origem soviética", [será que se trata do actual presidente da Federação de Futebol da Guiné-Bissau - Manuel Irénio Nascimento Lopes “Manelito”?] CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/ fms_dc_43809 (2018-2-2).

"Nestas condições, abortou a acção da artilharia, que teve que se retirar, sempre debaixo do fogo das armas pesadas do inimigo [NT]. Como não actuou a artilharia, tampouco actuou a infantaria. Tivemos duas baixas na operação: dois feridos, um dos quais veio a falecer mais tarde. Além disso, temos a lamentar a morte de um camarada de infantaria, por acidente."


Infogravura adaptada do livro «Guerra Colonial», do Diário de Notícias, p. 295. 

As setas a amarelo servem para referenciar a zona onde se iniciou o ataque. 

Em função do desempenho das NT, que certamente teria provocado uma “louca correria” [digo eu] dos diferentes grupos em direcção a terrenos mais protegidos e estáveis, o que não é de estranhar neste contexto, não houve tempo para utilizar a totalidade do material de guerra transportado para o local do ataque e que, em princípio, seria todo para “queimar”. Assim sendo, e porque era mais cómodo e mais fácil correr sem pesos nas mãos ou noutros locais, grande parte desse material ficou no terreno, sendo recolhido no dia seguinte pelas NT. Disso dá-nos conta a “História do Pel Mort 2138, p.90”.

Como curiosidade, uma outra situação de captura de material ao PAIGC já se tinha verificado um ano antes, mais concretamente em 23 de Novembro de 1968, sábado, pelas 15h30, quando elementos da mesma Unidade - CCAÇ 2382/BCAÇ 2834 (1968/1969) -, que se encontravam perto do cruzamento de Buba, contactaram com uma coluna de reabastecimento IN, causando a estes baixas prováveis. 

Foram apreendidas [, vd. foto acima]: 
 - 74 granadas RPG; 
- 16 granadas de Morteiros 82;
- 3 minas anticarro;
- 11 minas antipessoais;
- 20 cunhetes 7,9 mm;
- muitos medicamentos e géneros enlatados, incluindo um "poster" do 'Che' Guevara [in; História da Unidade, da qual retirámos a citação que abaixo se reproduz].



Como consequência dos sucessivos fracassos observados nas suas acções contra o contingente sedeado em Buba [NT], foi aprovado pelos comandantes da Frente Sul [que desconhecemos] a realização de um segundo ataque a esse aquartelamento, com a inclusão de alterações estratégicas e de outros procedimentos operacionais.

Como elemento histórico, seguidamente daremos conta do seu conteúdo, dividido em pequenos fragmentos, ficando a sua conclusão para a Parte II, a publicar oportunamente.


3. O SEGUNDO ATAQUE A BUBA EM 10DEZ1969)… QUE PASSOU PARA 11DEZ1969 DEVIDO A SUCESSIVAS FALHAS NA SUA ORGANIZAÇÃO

"Dado o fracasso da primeira operação contra Buba, tentada no dia 12 de Outubro [1969], foi decidido cumprir a missão de atacar Buba na fase final da campanha [último trimestre]. Para isso levámos a cabo novos reconhecimentos: novas vias de acesso para a infantaria e escolha de novo posto de observação.

As nossas forças deviam actuar no dia 10 de Dezembro [1969], quarta-feira, com os seguintes efectivos [indicam-se no quadro abaixo, como elemento de comparação logística, as quantidades utilizadas no 1.º ataque]:


Desenvolvimento da acção: 

"Deviam actuar primeiro as peças do GRAD, em seguida os morteiros 120 da mesma posição de fogo que as peças do GRAD e, por último, a infantaria devia assaltar o quartel."



"Utilizávamos, pela primeira vez, os “rádios 104” para garantir a comunicação entre o posto de observação e a posição de fogo. Infelizmente, estes não funcionaram no momento em que se devia iniciar a operação, forçando-nos a adiá-la para o dia seguinte, com a substituição dos rádios por telefones."


Citação: (1963-1973), "Operador de rádio da guerrilha", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43758 (2018-2-2) 

"De novo tivemos de suspender a operação que devia ter lugar no dia 11 [Dez’69], devido a uma série de falhas nas instalações telefónicas e, mais tarde desistir da utilização da artilharia, dada a actuação independente da infantaria, com a qual, por falta de meios de comunicação, não foi possível combinar um outro plano em substituição do que estava previsto."


Final da Parte I.

Na Parte II deste tema, serão abordados os seguintes pontos:

1 – Conclusão do desenvolvimento da acção e respectivos resultados.

2 – Análise crítica sobre os aspectos que influenciaram a marcha das operações, como sejam: o reconhecimento dos quartéis; equipamento (fardamento); alimentação; comunicações e funcionamento do corpo de exército.

Obrigado pela atenção.

Com forte abraço de amizade,

Jorge Araújo.

05FEV2018.
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Nota do editor::

Último poste da série > 23 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18244: (D)o outro lado do combate (17): ataque a Buba em 12 de outubro de 1969, ao tempo da CCAÇ 2382 e Pel Mort 2138: os fracassos assumidos pelo PAIGC (Jorge Araújo)

Guiné 61/74 - P18345: Fotos à procura de... uma legenda (100): quem não tem "turpeça", senta-se no chão... e quem "turpeça" também cai...



Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Jufunco ou Djufunco > 9 de maio de 2013 > Os régulos da Tabanca, Alberto Sambú (o mais novo) e o Necolá Djata, com os seus "banquinhos"  [, em crioulo, "turpeças") que os acompanham sempre.


Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Jufunco ou Djufunco > 9 de maio de 2013 > O local sagrado das reuniões da comunidade, que neste dia se abriu pela primeira vez para reunir com a comunidade de brancos que visitou a tabanca, vendo-se os régulos no lugar que ocupam habitualmente, sentados nas suas "turpeças".

Fotos (e legendas): © José Teixeira (2013). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Na sua visita a Jufunco, no chão felupe, em maio de 2013, o José Teixeira, régulo da Tabanca de  Matosinhos, fez as seguintes observações sobre os seus "pares", os régulos locais, e os seus símbolos do poder:

(...) O régulo faz-se acompanhar de um pequeno banco em madeira, onde só ele se pode sentar, sob pena de perda de vida. Mesmo quando nos acompanharam pela tabanca, levavam o banco debaixo do braço e, quando parávamos, sentavam-se nele. Cada terra tem seus usos e costumes, mas este é, com o devido respeito, deveras estranho.

Pudemos visitar o chão sagrado debaixo do poilão onde o povo simples vai encontrar-se com o Irã, o espírito superior, para implorar proteção e cura dos seus males, bem como o local sagrado onde os homens grandes se reúnem para decidir sobre as grandes questões que afetam o seu povo.

Neste local sagrado, os dois régulos sentados no seu banco tradicional explicaram como se desenvolvem as reuniões da comunidade, cujas decisões são seladas com um jantar bem regado com vinho de palma e aguardente de cana. Do animal morto para o repasto ficam ali guardados a cabeça ou parte da dentuça como sinal de que houve acordo e o mesmo deve ser posto em prática. Isto fez-me lembrar os meus tempos de criança quando os homens de negócios nesse interior de Portugal selavam os seus acordos com uma caneca de saboroso vinho".(...)


2. Em crioulo, este "banquinho" (que é mais do que um adereço da casa que serve para a pessoa se sentar-se) chama-se "turpeça"... Em fula, é "ciran" ou "cirange" (no plural). Alguns de nós, como o António J. Pereira da Costa ou eu próprio, temos em casa objetos destes, feitos em madeira, com função de adorno ou peça de artesanato "guineense"...

O termo apareceu-nos no subtítulo de um livro, da autoria de Santos Fernandes, recenseado pelo Beja Santos: "Lideranças na Guiné-Bissau: avanços e recuos". Na capa vem um destes banquinhos tradicionais, de que todos estamos lembrados: com a seguinte legenda: "a imagem de 'turpeça',  símbolo de poder na Guiné-Bissau" (**).

O nosso querido amigo e grã-tabanqueiro Cherno Baldé, contou-nos, a propósito, a seguinte históira: "O caso mais insólito que observei com este fenómeno das 'Turpeças', aconteceu em 2004 quando o Ministério das Obras Públicas, onde trabalhava, convidou as autoridades locais das ilhas dos Bijagós para uma reunião de concertação em Bissau. Estranhamente, todos traziam consigo uma 'turpeça', a sua 'turpeça',  porque na sua tradição estava consignado que deveriam utilizar sempre aquela e não outra qualquer. Fiquei estupefacto, mas é a realidade. Não conhecia e nunca tinha visto" (**).

3. O vocábulo ainda não vem nos dicionários da língua portuguesa, e nomeadamente no Houaiss. Mas acho que o temos de grafar. Não era, que me lembre, usado no tempo colonial... Mas hoje é usado, pelos guinenses, urbanizados. Ou faz parte do "calão político":  tenho-o encontrado com significado  equivalente à nossa "cadeira do poder"... Fala-se por exemplo dos dirigentes partidários instalados nas suas "turpeças", de costas viradas para o povo... 

E é nesse sentido que temos de entender as argustas observações etnográficas registadas pelo "régulo" Zé Teixeira, quando foi em 2013 a Jufunco em visiat aos seus colegas... O tal "banquinho" é, antes de mais, um símbolo de poder... Quem tem poder, tem "turpeça"... Quem não tem, senta-se no chão... O chão é o plano da igualdade... O chefe, nas línguas latinas, vem do "caput" (cabeça): chefe é aquele cuja cabeça sobressai da multidão de cabeças, o povo, o grupo, os outros... Daí o "banquinho", o "cirã", a "turpeça", a "cadeira", o "trono", o "penacho", o "chapéu", a "coroa", as "divisas", os "galões", as "dragonas", enfim, todos os símbolos de status que conferem poder, autoridade... (Mas há uma diferença semântica e conceptual entre líder e chefe: liderança é uma relação, chefia um atributo).

O grande músico guineense Binham tem uma canção chamada "Turpeça de mortu"... Tenho pena de não "apanhar" a letra... Julgo que ele vem da melhor tradição da grande música guineense, de crítica social e de intervenção cívica e política (Zé Carlos Schwarz, etc.)... Talvez aqui o Cherno Baldé nos possa, mais uma vez, dar uma ajudinha a perceber a letra... Há um videoclipe disponível no You Tube...

O crioulo é fascinante. A(s) língua(s) humana(s) é(são) fascinante(s). Infelizmente não podemos dominá-las todas... Mas acho que o termo "turpeça" deve ser grafado e enriquecer a nossa lusofonia. Mas pergunto, na minha "santa ingorância": o vocábuo "turpeça" (em crioulo) não será uma corruptela do português "tripeça", assento, também baixinho, composto de 3 pés, e sem encosto ? 

Aqui fica mais uma pista para os nossos leitores, amigos e camaradas da Guiné. (***)

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tripeça | s. f.

tri·pe·ça |é|
(tri- + peça)
substantivo feminino
1. Assento de três pés e sem encosto. = TRIPÉ

2. [Figurado] Ofício de sapateiro.

3. [Burlesco] Grupo de três pessoas que andam sempre juntas.

cair da tripeça
• Ter idade avançada e indícios de senilidade.

"tripeça", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://www.priberam.pt/dlpo/tripe%C3%A7a [consultado em 22-02-2018].


(***) Último poste da série > 29 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18267: Fotos à procura de... uma legenda (99): Porque é que este(s) barco(s) nunca poderia(m) chamar-se Luís Graça? Ou Virgílio Teixeira? Ou Carlos Vinhal? Ou outro nome de grã-tabanqueiro, macho?

Guiné 61/74 - P18344: Notas de leitura (1043): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (23) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Outubro de 2017:

Queridos amigos,
Tudo quanto se escreve neste documento é de uma extrema gravidade. A Guiné Portuguesa, nas vésperas da II Guerra Mundial, tem à frente um governador indigno cercado de uma alcateia de corruptos. O que aqui se afirma sobre a pacificação de Canhabaque põe às avessas o que consta na historiografia oficial. E no seu todo o documento do gerente Virgolino Teixeira revela o lado mais funesto de um colonialismo quase sem regras. Bom, os governadores que se seguem continuam a gozar de uma imagem de rigor e integridade, felizmente.

Um abraço do
Mário


Carta da Guiné de 1933


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (23)

Beja Santos

O documento chancelado como “Absolutamente Confidencial”, que o gerente Virgolino Teixeira enviou dirigido ao Presidente do Conselho Administrativo do BNU, em 10 de Outubro de 1938, é uma peça irrecusável para o estudo da Guiné no período que precede a II Guerra Mundial. É devastador na carga denunciante, começa nas imoralidades que atribui ao Governador Carvalho Viegas, não deixa pedra sobre pedra o estado das instituições, desentranha o mau funcionamento de toda a economia, como se procurou exemplificar nos dois textos anteriores.

Agora vai falar de uma coisa que lhe interessa particularmente, que tem a ver com o seu múnus:
“Um dos pontos mais interessantes ligado à economia da colónia é a questão das transferências. A respectiva comissão reguladora funciona em Bolama pela razão do senhor Governador Viegas querer pôr e dispor das disponibilidades para fazer figura de grande financeiro e provar ao senhor ministro que a colónia paga tudo, no exterior, e até antecipadamente. Para isto, fica a parte do leão, mas que leão, para o Estado, e fica… quase nada para as transferências comerciais do banco e dos particulares. Mas isto não interessa ao senhor governador que só pensa no fortalecimento da sua posição pessoal. E para atingir os cumes dos altos problemas financeiros, entra a acumular milhares de contos na metrópole – à custa do sacrifício das disponibilidades da colónia – e paga, de uma só vez, a dívida da colónia que podia pagar em dezenas de anos. É certo que o orçamento da colónia deixa de ter o peso do encargo da amortização anual. Mas o comércio e os particulares, principalmente, ficam arrasados porque, como se esperava e se fez sentir ao senhor governador, a colónia entraria, por força, no desgraçado regime de falta de transferências. Sabia o senhor governador Viegas que a desgraçada situação que ia criar à colónia. Nada o deteve porque, acima de tudo estava o interesse pessoal e, diga-se com desassombro, criminoso.

A todas as razões respondia, tanto a mim como a outros: não tenho dó do comércio ou dos particulares, eles que comprem frangos para transferir ou que vão transferir à Casa Gouveia. Há tanto de imoralidade neste estribilho como há de ilegalidade. É o chefe supremo da colónia a incitar ao desrespeito à lei. É o chefe supremo da colónia a canalizar as transferências da colónia para a Casa Gouveia que chega a cobrar – com conhecimento dele – 13 a 15% de prémio, metendo-lhe nos cofres milhares de contos e criando ao comércio e aos particulares situações desgraçadíssimas. O particular não tem defesa. Tem que dar pão a filhos e pais que têm na metrópole. A Casa Gouveia, com o beneplácito do senhor governador, tira-lhe a pele na transferência. O comerciante, cuja pele vai também para a Casa Gouveia, sustenta preços na relação do que Gouveia lhe leva. A vida encarece, os géneros escasseiam e a colónia desacredita-se no exterior, porque não cumpre pontualmente os seus compromissos. É este o quadro criado conscientemente, criminosamente, pelo senhor governador Viegas. Mas agora que o vê, quer desfazer-se da responsabilidade que tem. Agora que vê a colónia a braços com a desgraçadíssima que lhe criou, usa e abusa daquela formidável falta de carátcer que Nosso Senhor lhe deu e despede, sem inteligência mas com a mais solerte velhacaria, na culpa para o actual Encarregado de Governo – pessoa moral que não pode ser atingida sob aspecto nenhum – e para o gerente do banco, a pessoa que menos tem a ver com o estado de coisas que o senhor governador Viegas criou.
Não há que recear as suas investidas. Usa do embuste e da mentira. É fácil desmascará-lo com dois números e três considerações”.


O gerente também procura pôr em pratos limpos o timbre político do governador. Atribui-lhe a responsabilidade de ter demorado a criar a União Nacional na Guiné. Sem grande fé nacionalista, escolheu para vítima o Dr. Severiano de Pina, advogado que ele pusera em juiz interino, por um lado elogiava-o e por outro denunciava-o como perigosíssimo elemento político contra a Ditadura. O ministro das colónias demitiu o Dr. Pina, o governador Viegas chamou-o para lhe dizer que tinha acabado de saber que ele era vítima de manejos políticos dos nacionalistas, pedia-lhe para aceitar a demissão dos cargos que exercia. E quando vai a Lisboa, o governador Viegas acusa o Encarregado de Governo de ser o perseguidor político do Dr. Pina.

Um dos libelos mais pesados deste documento recai sobre a campanha levada a efeito pelo governador Viegas contra os Canhabaques, ele procura esclarecer a situação:
“Os Canhabaques estão absolutamente insubmissos à nossa soberania. O senhor governador Viegas fez-lhe guerra mas guerra sem plano, sem método e sem finalidade de antemão marcada. Os Canhabaques, fornecidos de pólvora pelo Pinho Brandão, matavam à farta os nossos soldados. Na oficialidade, seguia magoado mas cumprindo ordens o Chefe do Estado-Maior, Capitão Rodrigues. Os Canhabaques mataram e a certa altura o senhor governador Viegas resolveu considerá-los pacíficos e retirou… vencido. É a verdade. Fez alarde de vitória. Distribuiu louvores. Propôs condecorações aos heróis e sentou-se à secretária para escrever então os planos de combate que se ele se descuida mais em fazê-los seriam talvez um trabalho póstumo. Pelo menos o foram, em relação à acção. Em Lisboa, como é natural, pois um governador da colónia deve ser uma pessoa leal e honrada, que não mente, acreditaram e os Canhabaques ficaram então… submissos de todo.

O governador vai a Lisboa; os Canhabaques continuam a fazer das suas e o então Encarregado de Governo – nulidade moral e intelectual – vê uma ocasião de ser também herói e pede material de guerra e guerreiros de terra, mar e ar. Coisa de arromba. O seu telegrama devia ter sido bomba que caiu no ministério. Chamado o senhor governador Viegas, este deve ter desmentido tudo e dito que voltava já para a colónia para provar que tudo era falso. E veio e chamou o traidor que vendia pólvora aos Canhabaques e disse-lhe: ou você me traz aqui Canhabaques a prestar vassalagem ou meto-o a ferros. O Victor Hugo chamou-o e disse-lhe: ou me dás já uns 17 contos para eu tapar um roubo que fiz e está na iminência de ser descoberto, ou vais já a ferros. O homem e dinheiro lá seguiram. Lembrou-se talvez de Egas Moniz. Como tem por amante uma Canhabaque, apresentou-se ao chefe com mulher, filho, tabaco e aguardante e jurou-lhes que podiam vir a Bolama, prestar vassalagem ao governo que ele jurava que lhes não faziam mal. Os chefes beberam, fumaram, exigiram que o Pinho Brandão deixasse filhos e mulher como reféns e vieram a Bolama onde foram recebidos no Palácio do Governo, como hóspedes ilustres. E para que a farsa seja mais completa, o senhor governador gritou logo na TSF a submissão absoluta dos Canhabaques à sua pessoa. Enfim, os Canhabaques eram amigos. Mas ele é que lá não vai pagar-lhes a visita, sob pena da cabeça lhe rolar dos ombros se se internar na ilha.

Tudo o que ele tiver dito para Lisboa sobre Canhabaque é mentira pura, e sabe-se que é por o Encarregado de Governo – ferido por ele – nesta questão, contou a quem quis tudo que de confidencial o senhor governador Viegas oficiara sobre o caso. Tudo mentira.
Depois, o senhor governador Viegas, tendo terminado os planos póstumos da sua guerra, publicou um livro sobre ela, que distribuiu. Deu-me um mas veio depois pedir-me que o escondesse porque o senhor ministro não consentia que tal documento circulasse.
Como V. Exa. vê, tudo, absolutamente tudo, que este homem faz e diz é embustice, é mentira, é imoralidade.

Veja V. Exa. este ridículo, esta trapalhice. Para ter a popularidade dos negros, chama um pintor de fancaria, dá-lhe uns poucos de contos e manda-o fazer uma tela, corpo inteiro, do governador preto Honório Barreto. E o modelo? Pergunta o pintor. E um retrato do homem, ao menos, para me guiar. Não há, deixe-se disso, pinte lá um governador preto. Ele já morreu há tantos anos que não há quem se lembre da cara dele. E, que diabo, as pessoas mudam. E o pintor pintou um mamarracho com que o senhor governador Viegas encheu a parede do seu gabinete de trabalho, mas tendo o cuidado de escolher a parede atrás das costas, como se tivesse remorsos do que fez e receio de olhar de frente para o governador Honório Barreto, mesmo não sendo ele pintado. Mentira, em tudo desonestidade de processos. Em tudo vilania”.

Já na fase final do seu libelo acusatório, Virgolino Teixeira dá remédio para pôr termo a estas chusmas de imoralidades:
“Não são precisas violências. É preciso apenas o governo central conhecer com verdade esta montanha de mentiras que tem sido o governo do governador Viegas. Todos têm certeza que é tão alta a honestidade do governo da nação que ele acabará como tão desgraçado e infame estado de coisas, logo que haja quem, honesta e desassombradamente sem paixões, grite contra quem comete o crime que está fazendo o governador da Guiné.
É esta a única e suficiente esperança que as gentes honradas da Guiné têm. É tempo de se terminar com a bacanal tremenda de trapalhices de tal homem cuja fibra moral nem se torceu ante o cometimento da mentira de lesa-Pátria que é a história de Canhabaque. É preciso que nesse governo seja colocado uma figura moral que conheça a Guiné e que não tenha medo de enfrentar a quadrilha que a infesta. É grave o que aqui escrevo. Mas empenho junto de V. Exa. a minha honra de que tudo é absolutamente verdade. E nenhuma paixão pessoal me move contra o senhor governador Viegas, com quem tenho mantido todas as boas relações que me são obrigadas pelo cargo. Individualmente, repugna-me; porque sou português daqueles que não admitem actos infames em quem deve dar altos exemplos morais que não desonrem o nome da pátria. Perdoe tê-lo importunado com tanto que escrevi. Fico bem escrevendo a V. Exa. o que escrevi, porque tenho a esperança que V. Exa. poderá contribuir, junto de quem direito, para que acabe esta tristíssima desgraça que assolou e assola a Guiné, na pessoa do senhor governador Viegas”.

Reitero que nada de semelhante lera em tais tipos de libelos. Tratar-se-ia de uma época em que a administração em Lisboa facilitava as línguas soltas, os termos desbragados, pretendia-se a verdade das coisas.

Coisa curiosa, já que me foi dado ler os relatórios que transitam da década de 1960 para 1970, doravante a linguagem será mais comedida como se tivesse consolidado esse princípio do Estado Novo em que “cada um deve estar no seu lugar”.

(Continua)
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Notas do editor:

Poste anterior de 16 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18324: Notas de leitura (1041): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (22) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 19 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18331: Notas de leitura (1042): História do Dia do Combatente Limiano”, por Mário Leitão (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P18343: Parabéns a você (1393): José Carlos Pimentel, ex-Soldado TRMS da CCAÇ 2401 (Guiné, 1968/70); José Ferreira da Silva, ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689 (Guiné, 1967/69) e José Maria Claro (DFA), ex-Soldaddo Radiotelegrafista da CCAÇ 2464 (Guiné, 1969)



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Nota do editor

Último poste da série de 21 de Fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18336: Parabéns a você (1392): Veríssimo Ferreira, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 1422 (Guiné, 1965/67)