segunda-feira, 15 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25392: Consultório Militar do José Martins (79): Dia 16 de Março de 1974 - Parte IV - O dia


Parte IV de "Dia 16 de Março de 1974", um trabalho da autoria do nosso camarada José Martins (ex-Fur Mil TRMS, CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), enviado ao Blog em 10 de Abril de 2024. Neste dia ensaiou-se a primeira tentativa de derrube do regime vigente, conhecida por Levantamento ou Golpe das Caldas, por ter sido protagonizada por militares do antigo RI 5 das Caldas da Rainha.


Dia 16 de Março de 1974 - Parte IV

Porta de Armas do extinto RI5
Foto com a devida vénia a heportugal

O dia

06:00
● Óscar Cardoso, inspector da PIDE/DGS, revista a casa do Major Manuel Soares Monge, às 6 horas, durante a ausência deste. [JM]

● O Comandante do Regimento de Infantaria n.º 7 transmite ao Major que ia constituir o Posto de Comando Avançado RI 7, ao Capitão Comandante da Companhia de Caçadores e a todos os oficiais da mesma, que a missão era o cerco ao aquartelamento do Regimento de Infantaria n.º 5 e, disse, que deveriam fazer todos os esforços para se não disparar contra os insurrectos. O tiro só seria desencadeado à ordem, sendo absolutamente proibido abrir fogo sem ordem, mesmo como resposta a tiros vindos do aquartelamento. Eventuais tiros de aviso seriam disparados apenas por graduados. Não existiam no Regimento de Infantaria n.º 7 rações de combate, por estarem armazenadas na Delegação da Manutenção Militar. Para não atrasar a saída da coluna, foi distribuído a todo o pessoal pão do rancho geral, sendo as rações distribuídas mais tarde. A coluna saiu e a Unidade ficou em dispositivo de alarme, com todo o pessoal bem mentalizado e decidido. [RI7]

● No relatório do Batalhão n.º 2 da GNR, consta que lhe foi transmitido pelo Comandante da GNR de Caldas da Rainha, ter encontrado o Capitão Novo acompanhado de dois Aspirantes de cor, quando este regressava do Regimento de Infantaria n.º 5, ou para ali se dirigia, cerca da meia-noite. Igualmente, uma praça, daquele Posto, contactou com um Cabo do Regimento de Infantaria n.º 5, que lhe disse não o terem deixado entrar naquela Unidade, quando ali regressava à 01:00 e, posteriormente, às 05H30. Soube ainda, por um seu amigo da guarda de policia àquele quartel, que dali saíra uma Companhia, às 01:30 e que em todo o perímetro se encontravam colocadas metralhadoras. [B2g]

● No relatório do Comando-Geral da GNR, consta que o Serviço de Saúde, em viatura civil, equipada com emissor/receptor reconhece a coluna do Regimento de Infantaria n.º 5 na Auto-Estrada do Norte. Informa que a mesma é constituída por 12/14 viaturas e que está parada seis quilómetros a Sul de Vila Franca de Xira. A Companhia do Batalhão n.º 1 da GNR, que com se ela se cruzou, estava parada à entrada de Vila Franca de Xira. [CGg]

● Como não se sabia qual seria o itinerário seguido pelas forças sublevadas, as subunidades que cada regimento dispunha, às ordens do Comandante da Região Militar de Lisboa, receberam as missões de:
► As forças estavam sob comando do Chefe do Estado-Maior do Exército, General João Paiva Brandão.
► Na zona Oeste: patrulhamento, pelas forças da Escola Prática de Infantaria (Mafra), das vias que davam acesso a Lisboa; colocação no acesso a Lisboa, na zona de Ponte de Frielas, Loures, de forças da Escola Prática de Administração Militar (Lumiar).
► Zona de Sacavém (final do lanço da auto-estrada A1): foram colocadas forças do exército: Policia Militar e Regimento de Cavalaria n.º 7 (Ajuda), Batalhão de Caçadores n.º 5 (Campolide), Regimento de Infantaria n.º 1 (Amadora), Regimento de Artilharia Ligeira n.º 1 (Moscavide) e Escola Prática do Serviço de Material (Sacavém).
► Força da Policia de Segurança Pública e Guarda Nacional Republicana (Infantaria e Esquadrão de Reconhecimento), além de elementos, à civil, da Direcção Geral de Segurança (Pide) e da Legião Portuguesa. [JM]

● Como no Relatório consultado não tem hora de saída, regista-se à hora referida para o arranque de todas as unidades, à ordem do Quartel-General da Região Militar de Lisboa: O Comandante da Escola Prática de Administração Militar Coronel do SAM Francisco Aníbal das Caldas Fidalgo, mandou marchar uma companhia com o objectivo de ocupar a Ponte de Frielas, e deter a Unidade proveniente das Caldas da Rainha, caso esta por ali progredisse. Esta Companhia foi comandada pelo Capitão do SAM Teófilo da Silva Bento, o qual antes de marchar, para o lugar indicado, combinou com o Capitão do SAM Carlos Joaquim Gaspar, que no caso da Unidade proveniente das Caldas da Rainha viesse a circular por aquele eixo de aproximação, estas forças juntar-se-lhe-iam. [AdM]

● O Relatório, do Batalhão de Caçadores n.º 5, não tem “Fita do Tempo”, mas deve ter avançado à hora das outras unidades. O comandante interino mandou avançar a Companhia do Batalhão de Caçadores n.º 5, sob o Comando do Capitão Beatriz mas o Major Vinhas iria acompanhar esta força, a pedido do mesmo. Como não sabiam a posição desse major sobre o Movimento das Forças Armadas, poderia vir a não permitir a adesão à força sublevada, caso se confirmasse uma movimentação mais generalizada. No entanto manter-se-ia em comunicação rádio, com o quartel, onde outros oficiais aguardariam. [BC5]

06:15
● O Comandante do Regimento de Infantaria n.º 5 informa que o Oficial de Transmissões da Escola Prática de Cavalaria quis contactar com o Oficial de Transmissões do Regimento de Infantaria n.º 5 mas não conseguiu. Mais informou mais que continuava preso no gabinete com o 2º Comandante, Major Vages e Tenente Lourenço, Oficial de Segurança. [RMT]

● De Leiria sai a Companhia de Caçadores do Regimento de Infantaria n.º 7, na direcção a Caldas da Rainha, com a missão de cercar o Regimento de Infantaria n.º 5 não permitindo que, seja quem for, entre ou saia do Quartel. [RI7a]

06:20
● Foi recebida, no Posto da GNR de Caldas da Rainha, a comunicação da vinda para esta cidade de uma Companhia do Regimento de Infantaria n.º 7. Foi determinado que fosse fornecida uma patrulha para conduzi-la, o mais perto possível, da Unidade sublevada. [PCR]

06:25
● Que os Majores Monroy e Serrano quiseram entrar no quartel, mas não deixaram e que só podiam entrar às 07:30. Um dos Capitães, dos que ficou no aquartelamento, disse que tinha sido enviado mensagem para a coluna regressar mas até agora tal não aconteceu. [RMT]

06:30
● O Ministro (do Exército?), contactou o Quartel-General da Região Militar de Tomar, dizendo que a GNR o informara não haver movimentações militares para Sul, e queria saber o que, de facto, se passava. [RMT]

● O Comandante da Região Militar de Tomar propõe, ao Chefe do Estado-Maior do Exército que, o Brigadeiro Serrano com o apoio de Esquadrão de Reconhecimento da Escola Prática de Cavalaria, fosse fazer um reconhecimento junto do quartel do Regimento de Infantaria n.º 5, para avaliar a situação. [RMT]

● Do Posto da GNR de Caldas da Rainha sai uma patrulha com destino à EN 8, para contactar a coluna que saiu de Leiria, para a conduzir ao objectivo. [PCR]

06:35
● O relatório do Quartel-General da Região Militar de Tomar refere que, o Capitão Batista da Silva da GNR de Santarém recebeu informação do Comandante do Batalhão n.º 1 da GNR, que recebeu noticias doutra fonte, que tinham passado na Ota, pelas 06H05, várias viaturas militares, em direcção a Sul. [RMT]

● O Batalhão n.º 2 da GNR, refere a saída da Escola Prática de Infantaria, de uma viatura Unimog, com pessoal armado e equipado. [B2g]

06:50
● No Relatório, a Região Militar de Tomar reporta que, o General Pinto Bessa, Director da Arma de Cavalaria, telefonou para aquele Quartel-General, dizendo que no Regimento de Cavalaria n.º 8 (Castelo Branco), foi recebido um telefonema de alguém que se intitulou ser da ANI (Agência Nacional de Informação), para saber o que se estava a passar, uma vez que, as agências estrangeiras, estavam dando notícias alarmantes. Foi aconselhado a contactar a Repartição do Gabinete do Ministro do Exército. [RMT]

● O Comandante-Geral da GNR indica que, a coluna sublevada, se encontra parada a 3 quilómetros da Portagem de Sacavém. Por outro lado, uma viatura militar foi avistada a circular no sentido do Cacém para Sintra. [CGg]

07:00
● O Quartel-General da Região Militar de Tomar reporta que a Companhia de Caçadores do Regimento de Infantaria n.º 7, já se encontra a caminho do objectivo. [RMT]

07:10
● No Posto da GNR de Caldas da Rainha, foi recebida e transmitida ao Chefe do Estado-Maior da GNR a informação de que, na parada do Comando do Regimento de Infantaria n.º 5, se encontravam cerca de 40 a 50 homens armados. Seguidamente foi indicado, ao soldado 139, que se deslocasse para junto da patrulha de intercepção à coluna do Regimento de Infantaria n.º 7, para informar o seu Comandante da situação no Regimento de Infantaria n.º 5. [PCR]

07:15
● Junto ao rio Trancão, os Majores Luís Casanova Ferreira e Manuel Soares Monge, que se deslocavam para as Caldas da Rainha, avisaram que a coluna tinha de regressar à base, por ser a única unidade que tinha saído, e que se encontrava um dispositivo militar preparado, para a defrontar, à entrada de Lisboa. [JM]

07:15
● Em Lisboa, dois pelotões do Batalhão n.º 1 da GNR (Santa Bárbara) seguem pela Avenida do Brasil, para Encarnação, enquanto um pelotão do 2.º Esquadrão de Reconhecimento da GNR (Cabeço de Bola) se desloca para o mesmo local, pela Avenida Gago Coutinho para Encarnação. [CGg]

● O Batalhão n.º 2 da GNR reporta que, dois jeeps da Escola Prática de Infantaria, foram localizados na estrada que liga a localidade de Paz a Torres Vedras. [B2g]

07:20
● O Comando-Geral da GNR, reporta que foi efectuado o levantamento do cerco à Academia Militar. [CGg]

● O Batalhão n.º 2 da GNR recebe a informação, da Companhia da GNR de Leiria, de ter saído uma coluna auto do Regimento de Infantaria n.º 7, sob o comando de um oficial superior, com destino a Caldas da Rainha. [B2g]

07:30
● O Comandante do Regimento de Infantaria n.º 7, contacta telefonicamente o Comandante Militar de Leiria e o Comandante do Regimento de Artilharia Ligeira n.º 4, para os inteirar da situação e do empenhamento da Companhia de Caçadores do Regimento de Infantaria n.º 7. Constatou que nada sabiam deste facto. [RI7]

07:40
● O Posto da GNR de Óbidos informou o Posto da GNR de Caldas da Rainha que, uma praça do Regimento de Infantaria n.º 5, tinha dito à praça da GNR que se encontrava de vigilância à EN 8 que, ao pretender entrar na sua Unidade, pouco tempo antes, foi informado por uma sentinela à Porta de Armas que ali a situação era muito má, pois já tinham sido presos o Comandante e o 2.º Comandante e que a Companhia de Caçadores saíra às 01:30. Esta informação foi transmitida ao Chefe do Estado-Maior da GNR. [PCR]

● O Batalhão n.º 2 da GNR reporta que, num dos jeeps, mencionados em 07:15 da Escola Prática de Infantaria, transportava o Coronel Freitas, seguindo na direcção de Ramalhal. [B2g]

07:45
● O Comando-Geral da GNR reporta a passagem, em Alcobaça, da coluna auto do Regimento de Infantaria n.º 7. [CGg]

● O Batalhão n.º 2 da GNR reporta que, a patrulha de vigilância do Posto da GNR de Alcobaça, informou a passagem do Regimento de Infantaria n.º 7 com seis viaturas, seguindo um Capitão na primeira e um Furriel na segunda, levando um morteiro e pessoal com espingardas automáticas G3. Informa que forças da Região Militar de Lisboa, seguiram pela Auto-Estrada do Norte. [B2g]

07:50
● O Quartel-General da Região Militar de Tomar recebeu ordem, do Ministro (do Exército?), para neutralizar a coluna do Regimento de Infantaria n.º 5 sublevada. A coluna chegou à portagem e retrocedeu. [RMT]

● O Comando-Geral da GNR reporta que a Companhia do Batalhão n.º 1 da GNR chegou à portagem e informou não ter encontrado a força IN (inimiga). No mesmo relato informa, também que, o pelotão do 2.º Esquadrão de Reconhecimento da GNR, contactou com forças amigas. [CGg]

07:55
● O Comandante do Quartel-General da Região Militar de Tomar recebeu a informação, pelo Ministro do Exercito, do recuo da coluna sublevada dos oficiais das Caldas da Rainha. [RMT]

● O Quartel-General da Região Militar de Tomar dá instruções ao Comandante do Regimento de Infantaria n.º 15 (Tomar), para aprontar a sua Companhia de Caçadores, e aguardar ordens. [RMT]
A coluna do RI 5 em movimento
Foto: Com a devida vénia ao DN

08:00
● O Comandante do Regimento de Infantaria n.º 7 é contactado pelo Tenente-Coronel Piloto Aviador Velhinho, 2.º Comandante da Base Aérea 5 (Monte Real), que procurava inteirar-se do que se passava. Foi sugerido que se deslocasse para a sua unidade e contactasse a Secretaria de Estado da Aeronáutica. [RI7]

● O Comandante da Região Militar de Tomar dá ordem, à Escola Prática de Cavalaria, para fazer sair o Esquadrão Auto e o Pelotão de Reconhecimento, para Rio Maior e, aí, aguardar a chegada do 2.º Comandante da Região Militar de Tomar, Brigadeiro Serrano. [RMT]

08:05
● O Comandante da Região Militar de Tomar dá instruções ao Comandante de Regimento de Cavalaria n.º 4 (Santa Margarida) para colocar em estado de prontidão um Esquadrão Auto e um Pelotão de Reconhecimento. [RMT]

● O Comando-Geral da GNR confirma a marcha de forças de Tomar em direcção a Rio Maior. Por outro lado, informa que foi localizada a viatura MG-63-23, da Região Militar de Lisboa, com pessoal armado, é localizada em Tercena deslocando-se de Sintra para Cacém. [CGg] Seria o regresso da mesma viatura referida pelo Comando-Geral da GNR às 06:50? [JM]

08:15
● A “Fita do Tempo”, anexa ao Relatório do Regimento de Infantaria n.º 7, reporta a chegada da Companhia de Caçadores à Tornada, a 5 quilómetros de Caldas da Rainha. Reunião do oficial superior que acompanha a força, com os oficiais, para decidir a atitude a tomar e para ser confirmada ao Comandante de Companhia a missão que lhes foi atribuída. Tentativa de contacto rádio com o Regimento de Infantaria n.º 7, que resultou infrutífera. [RI7a]

● O relatório do Comando-Geral da GNR, reporta a passagem de uma viatura no sentido Lisboa para Vila Franca de Xira, transportando o Oficial da Marinha (Vicente Manuel de Moura Coutinho de) Almeida d'Eça, Comandante do Grupo N.º 1 de Escolas da Armada. [CGg]

08:20
● A Companhia de Caçadores do Regimento de Infantaria n.º 7 contacta, em Tornada, com dois militares do Posto da GNR de Caldas da Rainha, que informaram que uma Companhia de Caçadores do Regimento de Infantaria n.º 5 tinha saído em direcção a Lisboa, auto transportada cerca das 01:30. Dentro do Quartel tudo se mantinha calmo, parecendo que os postos de defesa eram os normais. O Major Guimarães resolveu enviar o Aspirante Seca, vestido com um fato de macaco civil, que lhe foi fornecido por um dos guardas que trajava também civilmente, para fazer o reconhecimento do Quartel do Regimento de Infantaria n.º 5, aproveitando o disfarce. [RI7a]

● O Quartel-General de Tomar, reporta a saída das forças Escola Prática de Cavalaria, para Rio Maior. [RMT]

● O Comandante da GNR de Caldas da Rainha informado da chegada, a Tornada, da coluna do Regimento de Infantaria n.º 7, transmite superiormente essa informação. [PCR]

08:30
● O relatório do Quartel-General da GNR reporta que a coluna do Regimento de Infantaria n.º 5, quando já tinha invertido a marcha, foi interceptada em Vila Franca de Xira por um efectivo da GNR, comandado por um tenente que, ao dirigir-se ao comandante que exibia galões de Major, este lhe disse "tenho uma missão a cumprir e do Norte vem uma unidade de cavalaria com o General Spínola". De uma das viaturas foi feito um disparo, que pareceu inopinado e sem consequências. [CGg]

● Foi reportado no relatório do Regimento de Infantaria n.º 7 que, o Capitão Garcia, do Regimento de Infantaria n.º 5, telefonou para o Oficial de Dia procurando saber se os Capitães do Regimento estavam revoltados, e o que estava ou iria fazer a coluna auto que tinha saído daquela unidade. Nada foi respondido pelo Oficial de Dia, que só informou o seu comandante, posteriormente. [RI7] 

● O Quartel-General da Região Militar de Tomar, reporta a saída do 2.º Comandante, o Brigadeiro Pedro Serrano, o Tenente Couto (Oficial de Transmissões) e o Alferes Martinho (Ajudante de Campo do 2.º Comandante da RMT), em direcção a Rio Maior. Que, por sua solicitação, foram cortadas, ao Regimento de Infantaria n.º 5, as comunicações telefónicas. [RMT] 

● A Escola Prática de Cavalaria, informa a saída da sua força, em direcção a Rio Maior, de acordo com as ordens recebidas. [EPC] 08:35

● O Batalhão n.º 2 da GNR refere que o Comandante do Forte de Peniche informou ter tomado todas as disposições aconselháveis e que naquele estabelecimento, tudo ali decorria normalmente. [B2g] 08:40

● A Companhia do Batalhão n.º 1 da GNR reporta que se encontra parada, em Alverca, com uma viatura avariada. [CGg] 

08:45
● No Comando do Regimento de Infantaria n.º 7, é recebido um telefonema, do Tenente-Coronel Velhinho, informando que a Base Aérea n.º 5 se encontra sem comunicações, pelo que não conseguia contactar a Secretaria de Estado da Aeronáutica, sendo esta informação passada para o Quartel-General da Região Militar de Tomar para, desta situação, ser dado conhecimento a Lisboa. [RI7] 

● O Comandante do Posto da GNR de Caldas da Rainha, informa que ainda não chegou a coluna militar vinda de Leiria. [CGg] 

● O Batalhão n.º 2 da GNR, refere que o Coronel Freitas passou novamente em Torres Vedras, regressando à Escola Prática de Infantaria, comunicando o levantamento do "Destacamento de Cadetes do Curso de Oficiais Milicianos" instalado numa quinta em Pai-Correia, Ramalhal, e que, devido a carência de viaturas o retorno se processaria por fases e a partir das 10H30. Mais solicitou que o informassem de quaisquer outros movimentos de tropas, naquela área, que se não relacionassem com aquela Escola. [B2g] 

08:55
● O Comando-Geral da GNR reporta que o “IN”, coluna sublevada, passou por Alenquer, em direcção à localidade da Ota. [CGg]

09:00
 
● O Comandante da Região Militar de Tomar informa o Comandante do Regimento de Infantaria n.º 7, que a coluna do Regimento de Infantaria n.º 5, que saíra em direcção a Lisboa, retrocedia para Caldas da Rainha seguida, à distância, por uma força da GNR. O Comandante do Regimento de Infantaria n.º 7, já informado pelo Oficial de Dia do telefonema recebido do quartel do Regimento de Infantaria n.º 5, sugere o corte das comunicações telefónicas do Regimento sublevado, para evitar a recolha de notícias ou acções de aliciamento do tipo da verificada minutos antes. [RI7] 

● O Batalhão n.º 2 da GNR, refere que das entidades que se reuniram no Comando da 1.ª Região Aérea, em Monsanto/Lisboa, se retirou o Presidente do Concelho. Pouco tempo depois, chegaria o Ministro do Exército. [B2g] 

09:10
● O Comando da Região Militar de Tomar reporta que, da coluna da Escola Prática de Cavalaria, confirmam que a coluna do Regimento de Infantaria n.º 5, passou em Alenquer. [RMT] 

09:15
● Apresentou-se, ao Major Guimarães do Regimento de Infantaria n.º 7, o Tenente José Augusto Pascoal Pires, Comandante da GNR de Caldas da Rainha, que se colocou à disposição deste Oficial, para o que fosse necessário. Informado da missão da Companhia de Caçadores do Regimento de Infantaria n.º 7, disse que esta missão, no que diz respeito à vigilância da Porta de Armas, seria muito difícil de cumprir, dado o domínio de toda a estrada de Lisboa - Caldas, por parte do pessoal do Regimento de Infantaria n.º 5, que facilmente bateria com os seus fogos as imediações da referida Porta de Armas. Em face da inoperância do posto de rádio foi solicitado, ao Comandante da GNR de Caldas da Rainha, que fosse permitido utilizar o seu gabinete e os seus telefones para contactos com o exterior. Imediatamente foi acedido o pedido, seguindo no seu próprio carro para Caldas da Rainha, sendo dando ordem à Companhia de Caçadores do Regimento de Infantaria n.º 7 para iniciar a montagem do cerco pelo lado Sul e Oeste do Quartel. Entretanto tinha regressado do seu reconhecimento o Aspirante Seca que confirmou as informações dadas pela GNR, quanto ao estado do pessoal dentro do Quartel. [RI7a] 

● O Comando-Geral da GNR refere que IN, coluna sublevada, se encontra a 8 quilómetros de Espinheira, na bifurcação para Caldas da Rainha, a 36 Quilómetros. A 3 Quilómetros a Sul de Vila Franca de Xira, está abandonada uma viatura do Regimento de Infantaria n.º 5, com dois pneus furados. [CGg] 

09:20
● O Comandante, da Região Militar de Tomar, mantém a missão inicial da Companhia de Caçadores do Regimento de Infantaria n.º 7, ordena, no entretanto, que esta adoptasse as disposições convenientes face ao regresso ao quartel da coluna revoltada. Informou o Comandante do Regimento de Infantaria n.º 7, de que o Brigadeiro Pedro Serrano, 2.º Comandante da Quartel-General da Região Militar de Tomar, marchava para as Caldas da Rainha com as forças da Escola Prática de Cavalaria (EPC - Santarém), para dirigir localmente a acção. [RI7] 

● Por determinação do Chefe do Estado-Maior da GNR, o Comandante da GNR de Caldas da Rainha contactou com o Comandante da coluna Regimento de Infantaria n.º 7, Major Guimarães, e informou-o da situação no local. O Major acompanhou o Tenente Pires para, via telefone, entrar em contacto com a sua Unidade. Esta informação foi transmitida ao Chefe do Estado-Maior da GNR. [PCR] 

09:25
● O Comando-Geral da GNR regista que, o Comandante da GNR Caldas da Rainha informou que a chegada da coluna do Regimento de Infantaria n.º 7, foi às 09:10, e que o Major Guimarães, solicitou a utilização do telefone do posto, para contactar o seu comandante em Leiria. [CGg] 

09:30
● O Relatório, do Comandante do Regimento de Infantaria n.º 7, reporta que conseguiu contacto telefónico com o Major Guimarães que, depois de dar ordens para montagem do cerco ao quartel do Regimento de Infantaria n.º 5, instalou o seu Posto de Comando Avançado/RI 7 no edifício do Posto da GNR, onde dispunha de comunicações rápidas com o Comando do Regimento de Infantaria n.º 7 e onde podia colher notícias, não só deste posto, como da Direcção Geral de Segurança e da Legião Portuguesa. O Comando do Regimento de Infantaria n.º 7 concorda com a decisão de utilizar o Posto da GNR como Posto de Comando Avançado/RI 7 e informa que não deve abandonar esse local, pois teria de receber ordens enquanto não chegasse, às Caldas da Rainha, o Brigadeiro Pedro Serrano, 2.º Comandante do Quartel-General da Região Militar de Tomar que iria tomar o comando local de todas as forças. [RI7] 

● Com o Posto de Comando Avançado/RI 7, instalado no Posto da GNR de Caldas da Rainha, e estabelecido contacto com o Comandante do Regimento de Infantaria n.º 7, confirmando a saída das tropas do Regimento de Infantaria n.º 5, em direcção a Lisboa, cerca das 01h30 e informando-o que era muito difícil à Companhia de Caçadores do Regimento de Infantaria n.º 7 estabelecer a barragem na entrada principal do quartel. O Comandante do Regimento de Infantaria n.º 7 mandou aguardar. [RI7a] 

● O Chefe do Estado-Maior da GNR informa o Comandante da GNR de Caldas da Rainha, de que a coluna sublevada tinha voltado para trás e que se devia encontrar a cerca de 26 quilómetros da cidade. Esta informação foi divulgada ao Major Guimarães e Comandante PSP da Caldas da Rainha. [PCR] 

● O Comando-Geral da GNR reporta que, na zona Oeste foi detectada uma coluna de viaturas militares, passando em frente ao Posto da GNR da Malveira, em direcção a Loures. [CGg] 

● Entretanto chegou às instalações da 1.ª Região Aérea o Ministro do Exército. O Posto da GNR da Malveira informou da passagem, naquela localidade, de uma coluna militar composta de 6 viaturas pesadas e 2 jeeps, transportando pessoal armado sob o comando de um oficial superior. O Comandante da GNR das Caldas da Rainha, comunicou ter contactado, localmente, com Major Guimarães, comandante da coluna do Regimento de Infantaria n.º 7. [B2g] 

09:40
● O Comandante da Região Militar de Tomar ordenou que, a Companhia de Caçadores do Regimento de Infantaria n.º 7, barrasse a entrada no quartel das forças revoltosas que regressavam às Caldas da Rainha, ordem esta transmitida ao Major Guimarães. O Comandante do Regimento de Infantaria n.º 7 reporta que, dada a dificuldade de obter contacto telefónico com o Posto de Comando Avançado/RI 7 falou com um seu antigo colega de Liceu, e agora responsável pelo serviço telefónico nos Correios, Telegrafo e Telefones, de Leiria, que conseguiu prioridade para a transmissão desta ordem. [RI7] 

● A Companhia de Caçadores, do Regimento de Infantaria n.º 7, já chegou a Caldas da Rainha. Verifica que o efectivo é insuficiente para cercar o quartel do Regimento de Infantaria n.º 5. Foi-lhe ordenado que devia concentrar a sua atenção à fachada e entrada principal e a parte Sul, para impedir a coluna de entrar. [RMT] 

● O General Paiva Brandão comunica ter sido nomeado Comandante-Geral da Segurança Interna (CGSI), substituindo o General Costa Gomes, exonerado do cargo no dia 14, transacto. O Comandante Brigada de Transito da GNR informa que a coluna, do Regimento de Infantaria n.º 5, foi sobrevoada por um avião militar. [CGg] 09:45

● A ordem para a Companhia de Caçadores, do Regimento de Infantaria n.º 7, era que vigiasse as saídas e entradas do Regimento de Infantaria n.º 5, onde já se encontrava, mantendo a vigilância da estrada principal. No entanto devia cortar a estrada evitando, a todo o custo, a possibilidade da coluna sublevada entrar no Quartel. Esta ordem foi imediatamente transmitida ao Capitão Crespo. Foi informada a chegada do Brigadeiro Pedro Serrano, 2.º Comandante da Região Militar de Tomar. [RI7a] 

● O Quartel-General da Região Militar de Tomar, informa a saída da Companhia de Caçadores, do Regimento de Infantaria n.º 15, em direcção a Caldas da Rainha. [RMT] 

● O Comando-Geral da GNR recebe informação do Comandante do Batalhão n.º 4 da GNR, aquartelado no Porto, de que a situação é normal em toda a cidade. [CGg] 

09:50
● O Batalhão n.º 2 da GNR informa que passou, no lugar de Palhoça, a coluna rebelde com 12 viaturas pesadas e um Jeep, seguindo na direcção de Caldas da Rainha, tendo este movimento sido comunicado ao Major Guimarães do Regimento de Infantaria n.º 7. Pousou, nas instalações da 1.ª Região Aérea em Monsanto/Lisboa, um helicóptero, que ali estacionou. Ali continuaram reunidas as entidades anteriormente reportadas. [B2g] 

09:56
● O Comando-Geral da GNR reporta que, de acordo com informação dada pelo Comandante Batalhão n.º 2 da GNR que, às 09:50, 12 viaturas pesadas e um jeep passaram em Palhoças (Cercal), em direcção a Caldas da Rainha. [CGg]

10:00
● No Posto de Comando Avançado/RI 7, apresentou-se um senhor que disse ser Comandante de Lança do Quartel-General da Legião Portuguesa que, depois de identificado e em virtude do seu oferecimento, e com a possibilidade de, facilmente poder circular em qualquer parte visto se encontrar à paisana, foi-lhe solicitado que fosse informando o que se passava na zona em que se encontra o quartel militar. [RI7a] 

● A Escola Prática de Cavalaria reporta a sua chegada a Rio Maior e que, devido ao mau funcionamento de viaturas, a deslocação levou mais tempo. [EPC] 

● Pelo Comandante/GNR de Caldas da Rainha, foi recebida e transmitida ao Chefe do Estado-Maior da GNR, a informação de que a coluna sublevada regressou à sua Unidade, tendo, à sua entrada, sido ouvidas 2 ou 3 detonações. A PSP, no local, confirma a entrada de 6 ou 7 viaturas, incluindo uma cozinha rodada. [PCR] 

● O Comandante do Batalhão n.º 1/GNR, informa que a sua companhia passou em Alenquer, às 09:50. O Ministro do Exército é informado da situação. O Comandante da Brigada de Transito/GNR informa que, 15 a 20 viaturas da Escola Prática de Cavalaria (EPC - Santarém) passaram em direcção a Rio Maior. [CGg] 

10:10 ●
Saiu, do Regimento de Infantaria n.º 7, uma viatura pesada transportando rações de combate para a Companhia de Caçadores do Regimento de Infantaria n.º 7, comandada pelo Tenente Lapão, Chefe da Contabilidade do Conselho Administrativo do Regimento, oficial muito desembaraçado, escolhido para este transporte, que poderia vir a ter problemas, dada a fluidez da situação. [RI7] 

● Em telefonema para o Quartel-General da Região Militar de Tomar, o Ministro (do Exército?), dá nota de que a unidade rebelde tem de ser neutralizada e, que se não chegam as forças no terreno, avançará a Aviação. [RMT] 

10:12
● O Quartel-General da Região Militar de Tomar reporta que, as forças da Escola Prática de Cavalaria chegaram, às 10:00, ao ponto de encontro em Rio Maior. [RMT] 

10:15
● Ao oficial da Legião Portuguesa, que se apresentou no Posto de Comando Avançado/RI 7, foi solicitado que tentasse obter informações, pela estrada Caldas da Rainha - Lisboa, informando em primeiro lugar o Capitão Crespo, e depois o Posto de Comando Avançado/RI 7. Este informador foi portador de salvo-conduto, para ser presente ao Capitão Crespo, para que não houvesse dúvida quanto à sua identidade. [RI7a] 

● O Quartel-General da Região Militar de Tomar pediu, ao Comandante da Força da Escola Prática de Cavalaria que informe Brigadeiro Serrano da nova missão da Companhia de Caçadores do Regimento de Infantaria n.º 7, que era a de barrar a entrada da coluna do Regimento de Infantaria n.º 5. A Coluna da Escola Prática de Cavalaria deveria seguir pela Estrada Velha. [RMT] 

● O Comandante da Brigada de Trânsito da GNR comunica, ao Comandante-Geral da GNR que, a coluna da Escola Prática de Cavalaria é constituída por 4 jeeps, 6 a 7 viaturas pesadas abertas e 5 a 6 auto metralhadoras. Pessoal está armado e equipado. [CGg] 

10:17
● O Comandante do Batalhão n.º 2 da GNR informa o seu Comando-Geral que, a coluna militar da Escola Prática de Infantaria (EPI – Mafra) chegou a Venda do Pinheiro e tomou a direcção Bucelas/Loures. [CGg] 

10:20
● O Comando-Geral da GNR pergunta ao Comandante-Geral da Segurança Interna (CGSI), quem comanda o dispositivo na Encarnação. Este informa que o dispositivo é da competência da Quartel-General da Região Militar de Lisboa (QG da RML). [CGg] 

10:22
● O Comando-Geral da GNR pergunta, ao Quartel-General da Região Militar de Lisboa, se mantêm as forças e o dispositivo na Rotunda da Encarnação. Informam que a força do Batalhão de Caçadores n.º 5 (BC 5) já retiraram e mantêm-se as forças do Regimento de Artilharia Ligeira n.º 1 (RAL 1). [CGg] 

10:25
● O Comandante da Região Militar de Tomar transmite ordem, ao Comandante do Regimento de Cavalaria n.º 4 (Castelo Branco), para fazer seguir para Leiria, onde aguardará novas ordens, o Esquadrão Auto mandado aprontar. [RMT] 

● O Chefe do Estado-Maior da GNR informa Comandante do Regimento de Cavalaria da GNR, que deve mandar recolher as forças que tem na Encarnação, devendo Comandante do Pelotão informar o Coronel Frazão. De seguida, às 10:27, ordem idêntica é transmitida ao Comandante do Batalhão n.º 1 da GNR. [CGg] 

10:29
● O Comandante da Brigada de Trânsito da GNR informa estar um Brigadeiro a falar com o Comandante da coluna da Escola Prática de Cavalaria, em Rio Maior. O Chefe do Estado-Maior da GNR dá instruções para que a patrulha da GNR, da Espinheira, entre em contacto com a Companhia do Batalhão n.º 1 da GNR, e informe o Comando-Geral da GNR da sua posição. [CGg] 

10:30
● O Comandante da GNR de Caldas da Rainha informa o Chefe do Estado-Maior da GNR de que tinha sido avistada uma avioneta - tipo Dornier - que sobrevoou o quartel e a cidade. [PCR] 

● O Batalhão n.º 2 da GNR informa que começaram a abandonar as instalações da 1.ª Região Aérea, em Monsanto/Lisboa, as entidades que ali se tinham recolhido, permanecendo o Secretário de Estado da Aeronáutica. [B2g] 

10:35
● O Comandante da GNR de Caldas da Rainha informa o Comando-Geral da GNR que entraram no quartel do Regimento de Infantaria n.º 5, seis viaturas com uma cozinha rodada. Foi-lhe pedido para averiguar a origem das viaturas. Pelas 10:43, informa que as viaturas são as da coluna que saiu daquele quartel. Mais informa que a força vinda de Leiria, já se encontra junto ao quartel militar da cidade. [CGg] 

10:45
● O Major Guimarães, do Posto de Comando Avançado/RI 7, no Posto da GNR local, informa que a coluna revoltada, aproveitando a remodelação em curso do dispositivo da Companhia de Caçadores do Regimento de Infantaria n.º 7, conseguira entrar no quartel. [RI7] 

● O Comandante da GNR de Caldas da Rainha, recebeu informações de um observador, colocado nas imediações do Quartel, que tinha entrado naquele momento um jeep e 6 a 7 viaturas, incluindo uma cozinha rodada, da Companhia que tinha saído de madrugada do Quartel. [RI7a] 

● O Quartel-General da Região Militar de Tomar dá instruções ao Comandante do Regimento de Infantaria n.º 2 (Abrantes), para mandar aprontar a sua Companhia de Caçadores, ficando a aguardar instruções. De seguida é solicitado, telefonicamente, ao Presidente da Câmara Municipal de Caldas da Rainha, o corte de água e electricidade, ao quartel do Regimento de Infantaria n.º 5. Foi recebido no Quartel-General da Região Militar de Tomar um telefonema do Alferes Martinho, que o Brigadeiro Pedro Serrano já tinha seguido. [RMT] 

10:48
● O Comando-Geral da GNR informa o Ministério do Interior de que o Comandante da 1.ª Região Aérea, lhe comunicou terem sido retirados das instalações de Monsanto/Lisboa, as entidades ali recolhidas. [CGg] 

10:50
● O Comando-Geral da GNR reporta que a coluna da Escola Prática de Cavalaria saiu de Rio Maior, dirigindo-se para Caldas da Rainha. E, de seguida, informa o Comando-Geral de Segurança Interna (CGSI)), de que já entraram no quartel, 5 a 6 viaturas da coluna sublevada. [CGg] 

10:53
● O Comandante Batalhão 3 da GNR, instalado em Évora, é informado da situação pelo Chefe do Estado-Maior da GNR. [CGg] 

10:54
● O Comandante do Batalhão n.º 2 da GNR informa que, às 10:30, aterrou um helicóptero em Monsanto/Lisboa para recolha das entidades. [CGg] 

10:55
● Um informador da GNR, telefonicamente, diz que a Companhia de Caçadores do Regimento de Infantaria n.º 7 está instalada fazendo barragem na estrada Lisboa - Caldas e que esta instalação ficou pronta cerca das 10h45. [RI7a] 

10:58
● O Comando-Geral da GNR reporta que a Companhia Batalhão n.º 1 da GNR está a 8 km da Espinheira, na bifurcação para Caldas da Rainha. [CGg]

11:00
● Apresentou-se um Chefe de Brigada da DGS, que ficou à disposição do Posto de Comando Avançado/RI 7, como informador. Contactado, telefonicamente, o Subdirector da DGS em Lisboa, pediu para ser informado sobre o desenrolar dos acontecimentos. [RI7a] 

● O Major que acompanha a Companhia de Caçadores do Regimento de Infantaria n.º 15, veio ao Quartel-General buscar o megafone. Marcou o ponto de encontro em Paialvo. Veio a notícia de que o Major não encontrou a Companhia de Caçadores do Regimento de Infantaria n.º 15. Actuou-se para saber o seu paradeiro nos itinerários. [RMT] 

11:05
● Contactado, telefonicamente, o 2.º Comandante da Legião Portuguesa, em Lisboa, deu todo o apoio do seu elemento, que se encontrava junto do Posto de Comando Avançado/RI 7. [RI7a] 

11:09
● Comando-Geral da GNR pergunta ao Comandante da Região Aérea se, a Companhia da GNR pode regressar de Monsanto/Lisboa. A Secretaria de Estado da Aeronáutica informa que é de manter, enquanto durar situação de prevenção rigorosa. [CGg] 

11:10
● Um dos observadores da GNR informou que a coluna, da Companhia de Caçadores do Regimento de Infantaria n.º 5, é constituída por um jeep e 11 viaturas pesadas, o que nunca foi confirmado. Foram confirmados, sim, 1 jeep e 5 a 6 viaturas. [RI7a] 

● Telefonou o Presidente da Câmara de Caldas da Rainha dizendo que dera ordem para cortar a água e luz ao quartel do Regimento de Infantaria n.º 5. Ficou de confirmar quando fosse efectuada. [RMT] 

11:11
● O Comandante Batalhão n.º 2 da GNR informa que o Comandante da Força, do Regimento de Infantaria n.º 7, pede à GNR que corte o trânsito junto ao quartel Regimento de Infantaria n.º 5. [CGg] 

11:15
● O Quartel-General, da Região Militar de Tomar, deu instruções à Sucursal da Manutenção Militar, para ir buscar o pão à estação dos Caminhos de Ferro da Caldas da Rainha, destinado ao Regimento de Infantaria n.º 5, e que cancelasse o fornecimento de pão para a 2.ª feira seguinte. [RMT] 

11:17
● Comunicado, do Quartel-General da Região Militar de Tomar, ao Quartel-General de Coimbra, para suspender a ida do Director do Hospital Militar Regional n.º 3, para o teatro de operações. [RMT] 

11:18
● Em telefonema ao Quartel-General, da Região Militar de Tomar, o Presidente da Câmara de Caldas da Rainha, a perguntar se o corte da água e luz era ao Quartel do Regimento de Infantaria n.º 5, ou na cidade toda. Foi comunicado que era só ao quartel. [RMT] 

11:20
● O Comandante da GNR de Caldas da Rainha informou o Chefe do Estado-Maior da GNR de que foi ouvida uma detonação, quando a avioneta acima referida sobrevoava o quartel. [PCR] 

11:24
● O Major, da Sucursal da Manutenção Militar do Entroncamento, informa o Quartel-General da Região Militar de Tomar, de que as instruções sobre o fornecimento de pão ao quartel do Regimento de Infantaria n.º 5, deve ser feito directamente à Manutenção Militar de Lisboa, quer o retorno do pão já enviado quer o cancelamento de fornecimento de pão. [RMT] 

11:25
● O Quartel-General, da Região Militar de Lisboa, informa já terem entrado, no quartel do Regimento de Infantaria n.º 5, todas as viaturas da coluna revoltada, segundo informação do Comandante do Regimento. Pede confirmação da notícia. [CGg] 

11:28
● Comandante do Batalhão n.º 2 da GNR informa que se ouviram 3 tiros de dentro do quartel do Regimento de Infantaria n.º 5, quando era sobrevoado por uma DO. Posteriormente foi feito mais um tiro. [CGg] 

11:30
● O Chefe do Estado-Maior da GNR transmite, ao Quartel-General da Região Militar de Lisboa, os disparos ouvidos e as circunstancias em que se verificaram. [CGg] 

● Quando a coluna de Santarém, chegou ao entroncamento da estrada Lisboa - Porto, já se encontrava, junto do quartel, a Companhia de Caçadores do Regimento de Infantaria n.º 7, que informou que a coluna do Regimento de Infantaria n.º 5, já tinha recolhido ao Quartel, não se sabendo se tinha sido a totalidade da mesma. [EPC] 

● O Batalhão n.º 2 da GNR informa que, dentro do quartel do Regimento de Infantaria n.º 5 foram ouvidos 4 tiros, sendo os 3 primeiros na ocasião em que ali reentrou a coluna rebelde, e o último, quando a mesma unidade foi sobrevoada por uma avioneta. [B2g] 

11:35
● Um avião ligeiro não identificado sobrevoou o Quartel do Regimento de Infantaria n.º 5. Foram ouvidos dentro do Quartel 4 tiros, desconhecendo-se o motivo. Estes factos foram comunicados ao Comandante do Regimento de Infantaria n.º 7. [RI7a] 

11:40
● O Ministro (do Exército?) comunica ao Quartel-General da Região Militar de Tomar que a coluna do Regimento de Infantaria n.º 5 já tinha entrado no Quartel do Regimento de Infantaria n.º 5, e que a Companhia de Caçadores, do Regimento de Infantaria n.º 7, estava emboscada nas árvores. [RMT] 

● Um Brigadeiro contactou com uma coluna auto da Escola Prática de Cavalaria a cerca de 3 km de Caldas da Rainha. [B2g] 

11:43
● O Comandante, da Região Militar de Tomar, pede ao Posto da GNR de Caldas da Rainha, para mandar alguém contactar o Brigadeiro Serrano para poder receber algumas indicações, pelo que devia entrar em contacto com o Comandante. [RMT] 

● O Presidente da Câmara de Caldas da Rainha informa o Quartel-General da Região Militar de Tomar que a água está cortada ao Quartel, mas que estes dispõem, nos depósitos interiores, de 150 m³. [RMT] 

11:46
● O Tenente-Coronel Soares do Regimento de Infantaria n.º 15, informa, o Quartel-General da RML, que coluna seguiu integrada e comandada pelo Major Correia. [RMT] 

11:50
● A Companhia de Caçadores do Regimento de Infantaria n.º 7 informa, o Quartel-General de Tomar, que entrarem 6 viaturas e em seguida ouviram-se 4 tiros. Não se sabe das restantes viaturas. [RMT] 

● A Coluna da Escola Prática de Cavalaria toma posição a 3 quilómetros de Caldas da Rainha. O Brigadeiro Pedro Serrano e 2 Oficiais dessa coluna, dirigem-se para o quartel do Regimento de Infantaria n.º 5. A Companhia Batalhão n.º 1 da GNR está a 5 quilómetros de Caldas da Rainha. [CGg] 

● Reportado, pelo Batalhão n.º 2 da GNR, que a coluna auto referenciada às 09:30 na Malveira, foi vista a um quilómetro da Venda do Pinheiro, prosseguindo na direcção de Bucelas/Loures. [B2g] 

11:54
● Em comunicação, do Quartel-General da Região Militar de Tomar com o Presidente Câmara de Caldas da Rainha, foi pedido o corte de luz só dentro do Quartel do Regimento de Infantaria n.º 5, o qual disse ir tentar. [RMT]

(continua)

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Nota do editor

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Guiné 61/74 - P25391: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (25): Um país de gente porreira - Parte I


Palácio Nacional de Mafra: uma visão romãntica, em litografia de 1853, da autoria de João MacPhail (que morreu em 1856). Fonte: Biblioteca Nacional de Portugal: http://purl.pt/12043

Imagem do domínio público, Cortesia de Wikimedia Common


Mafra > Escola Prática de Infantaria (EPI) > 1968 > Cerimónia do Juramento de Bandeira > Desfile dos novos militares, onde se integrava o Paulo Raposo, frente ao Convento de Mafra. O Paulo Enes Lage Raposo, que nada tem a ver com a história que a seguir se conta (os nomes são ficcionados, mas onde os factos são verdadeiros),  foi alf mil inf, MA, CAÇ 2405 / BCAÇ 2852 ( Mansoa, Galomaro e Dulombi, Guiné,1968/70), e o organizador  do histórico  I Encontro Nacional da Tabanca Grande (Ameira,  2006). A sua companhia perdeu 17 militares na travessia do Rio Corubal, na sequência da retirada de Madina do Boé, em 6 de fevereiro de 1969 (Op Mabecos Bravios). 


Foto (e legenda): © Paulo Raposo (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Contos com mural ao fundo (25) >  Um país de gente porreira (Parte I)


 por Luís Graça



1A. Conheceste o Bacelar em Mafra.
Em finais de novembro de 1972. 
Iam tomar posse na repartição de finanças.
Um mês antes do Natal.
Numa tarde fria e chuvosa...
E logo em Mafra. Logo ali, na ”Máfrica”,
como tu e outros que por lá passaram na tropa,
chamavam àquela terra desgraçada.
Tudo por causa da EPI,
a Escola Prática de Infantaria,
que se tornara a principal fábrica
de oficiais milicianos, alferes e capitães,
comandantes operacionais
com destino à guerra de África.

Ainda te soava aos ouvidos a frase  de uma canção de protesto, de um gajo de Coimbra, estudante de medicina, que deve ter chumbado a meio do curso, e que era do “reviralho”, cantava bem e tocava viola sofrivelmente : 

− Muita chuva, muito vento, muita merda… e um convento! − cantarolava ele na caserna, enlameado e estafado, depois do crosse semanal... Completamente "passado dos carretos"!

Por aqui passaras tu, cerca de quatro anos antes, como “feijão-verde”.  Tu, o teu antigo capitão miliciano e outros camaradas de que já havias perdido o rastro.  Para ti,  "criminoso" contra a a tua vontade, era como voltar ao “local do crime”. Foi dos regressos ao passado mais penosos da tua vida. Ao sítio onde não foras feliz, nem nunca o poderias ter sido. 

Afinal, foi aqui que recebeste a trágica notícia da morte do teu pai.  Prematura, sem ter completado os sessenta anos. Não te autorizaram sequer a ir despedir-te dele. Morrera na véspera do teu juramento de bandeira. Mandaram-te, da agência funerária, um telegrama em cima da hora. O tenente da tua companhia de instrução chamou-te ao gabinete e disse-te, seco e perentório, em resposta ao teu pedido para ir a Mértola, ao funeral:

 − O nosso soldado-cadete pode ir, o pai é seu, mas perde o juramento de bandeira, chumba no COM, vai parar ao CSM, a Tavira, às Caldas ou a Santarém, atrasa o seu embarque para o Ultramar em mais alguns meses… Enfim, a escolha é sua!”…

Sim, o pai era teu, mas a pátria era deles... Ficaste com um pó ao tenente... Enfrentaste,  nesse fim de tarde, um terrível dilema, dividido entre o teu amor filial, o teu dever de ir prestar a última homenagem ao teu pai, e a tomada de consciência,  naquele preciso momento, de que passavas a estar, doravante, na “linha a frente” e, ao mesmo tempo, a ser o sustento da tua família, da tua mãe e da tua irmã, mais pequena. 

Por outro lado,  davas-te conta da impossível escapatória  daquele sistema concentracionário, que era a “Máfrica”, representado pela nudez e a crueza daquelas paredes que te encarceravam. Mas, se não ficaras em França, não ías agora fugir do teu país...

Confessarás, mais tarde,  que choraste lágrimas de sangue no dia seguinte, enquanto juravas bandeira, na praça frente ao palácio, com a arraia-miúda,  muda e calada,  ao largo… Não tinhas ninguém a acenar-te, e muito menos a mostrar-se solidário na tua dor. 

Trágica ironia, juravas defender a tua Pátria (se necessário, até "à última gota do teu sangue”), no preciso momento que descia à terra o corpo do homem que te dera o ser. Lá longe, em Mértola, que o tenente nem sequer sabia onde ficava, a muitas léguas dali.

Passado pouco tempo estavas em Vendas Novas, na Escola Prática de Artilharia, a meio caminho de casa, e mais perto também da tua irmã mais velha, que vivia em Almada e cujo marido, soldador,  trabalhava na Lisnave. Foste lá fazer a instrução de especialidade. Atirador de artilharia: não sabias o que era... 

Aproveitaste uma licença de alguns dias  para dar um salto à tua terra e depor um ramo de flores silvestres  na campa, rasa, do teu velhote, morto pela silicose que lhe destruira os pulmões.

Mas o Bacelar não tinha nada a ver com isto, com o teu passado recente e muito menos com os teus dramas de consciência. Ele era apenas mais um “companheiro de infortúnio”  que tu tiveras o azar de encontrar em Mafra, desta vez no mesmo emprego. Claro que tu não o conhecias de lado nenhum. E, muito provavelmente, não  irias voltar mais a vê-lo,  a partir do dia em que cada um  fosse à sua vida, uma vez colocados noutros sítios, lá onde onde o fisco muito bem entendesse.  

Por estranha coincidência (ou supersticioso  como tu eras,  seriam mesmo coisas do destino ?!), tinham chegado, tu e o Bacelar, no mesmo dia, ao fim da tarde, com uma hora de diferença. Numa tarde fria e chuvosa, anotaras  na tua agenda. Ainda a tempo, contudo, de poderem “tomar posse” (era assim que se dizia na época) do lugar do quadro do pessoal  da repartição de finanças local. Como se o lugar fosse teu, "de pedra e cal", e para o resto da vida...

Mas tu devias estar, se não feliz, pelo menos aliviado por arranjar um emprego na função pública, com as habilitações literárias que tinhas, o 7º ano do seminário que só dava equivalência para a tropa e o funcionalismo público.  Mas não!... Logo por azar teu, as finanças estavam instaladas naquele pavoroso convento, o mesmo onde funcionava, nas traseiras,  a “Máfrica”, de triste memória para ti.

Tu tinhas chegado em cima da hora. O chefe da repartição, que te pareceu, à primeira vista, boa pessoa, afável, educado, com um típico sotaque açoriano, foi quem vos apresentou um ao outro, e ao restante funcionalismo.

Mas, dado o adiantado da hora, com a repartição a fechar, fez questão de deixar a cerimónia da tomada de posse para a manhã do dia seguinte, com a promessa de, no respetivo termo, constar a data da véspera. Ele era a amabilidade e a calma em pessoa. E fez questão de dizer a ambos, no seu sotaque de ilhéu, que não  queria, em caso algum, prejudicar-vos a “antiguidade”. E carregava na penúltima sílaba com evidente deleite.

Percebeste logo que também aqui, tal como na tropa, a “antiguidade” era um posto. Bem te tinhas lixado com essa da "antiguidade", tiveste de substituir o teu  capitão, na Guiné,  depois de ele ter sido evacuado para a “metrópole”, por motivo de doença,  que, toda a gente sabia, mas não dizia em voz alta,  era do “foro mental”.  

Nunca foram chegados, tu e o teu capitão, falavam apenas das coisas estritamente indispensáveis de serviço. Ele também não era de grandes falas.  Nunca te falou do seu passado. Devia ter mulher, filhos, um emprego, aos trinta e poucos anos.  Sabias  que tomava algumas drogas para o sistema nervoso, almoçavam  juntos na messe de oficiais. Tínham uma messe só para os oficiais,  o capitão e os quatro alferes milicianos. 

Na prática, a messe era igual, para oficiais e sargentos, mas havia uma divisória, uma espécie de biombo, a separar as duas classes. O resto da maralha, comia à parte, no refeitório geral. "Nobreza, clero e povo, / Cada um para seu lado; /  Na Guiné, nada de novo, / Saia um bife bem passado "..., ironizava o "baladeiro" da companhia, no "Fado do Vagomestre".

Alguém da companhia ainda o encontrou, ao capitão,  em Bissau, no HM 241, na “psiquiatria”. Era um verdadeiro  labéu para a reputação de um militar,  uma baixa psiquiátrica. Um tipo podia ser “apanhado do clima”, que se lhe desculpava tudo (ou quase tudo). Um gajo podia apanhar uma "borracheira", daquelas de caixão à cova, que logo lhe acrescentavam mais uns pontos no currículo de macho. Um gajo podia até ser "cornudo", coitado, que isso não acontecia só aos outros. Um gajo podia ser “maluco”, mas nunca podia dar “parte de fraco”, "dar baixa", neste caso ir parar à “psiquiatria”… Muito menos sendo um comandante operacional.

Antes de saírem para o conforto dos seus lares, os novos colegas das finanças, solícitos, se não mesmo afáveis mas algo premonitoriamente distantes, deram, aos recém-chegados, indicações sobre onde  jantar e pernoitar.... Que no dia seguinte logo se arranjaria melhor sítio para se ficar por uns tempos, já que quartos para alugar não faltavam naquela terra,  "saloia, dizem, mas acolhedora e hospitaleira" (sic). 

Não gostaste logo da cara de alguns, que pareciam os verdadeiros “donos da baiuca”.



1B. Conheceste hoje o Ravasco. 
“Ravasco, que raio de nome!”,
pensaste tu quando ele te estendeu a mão,
rugosa, de cavador de enxada…
”Será nome ou alcunha ?”,
tiveste a indelicadeza de lhe perguntar.
”Apelido, de família”, respondeu-te,
secamente, com cara de poucos amigos.
Ravasco, na tua terra, dizia-se 
de um homem libertino, "putanheiro"...


Dormiste, nessa noite, tu e o Ravasco, numa pensão, rasca, a condizer, numa daquelas  ruas que atravessavam o casario frente ao canvento,  e que o teu novo colega logo reconheceu do seu tempo de soldado-cadete. E que cheirava a grelhados, a serradura e a mijo de gato.  Ele fizera aqui a tropa há quatro anos atrás, em 1968, segundo te confidenciou. E ficara, desde então,  com um asco a Mafra.

Em conversa com ele, ao jantar, descobriste que ambos tínham regressado, ainda relativamente há pouco tempo, da guerra do Ultramar. Tu de Angola, ele da Guiné. Eram da mesma colheita, 1947, embora ele fosse mais novo uns meses.  Mas cada um, afinal, com diferentes memórias, experiências e até expectativas. As recordações que tu trazias eram até boas, as dele nem por isso.

Evitaste, deliberadamente, falar em demasia desse passado recente que vos aproximava. Talvez por pudor. E também porque não conhecias o Ravasco, ou melhor, tinhas acabado de o conhecer  há umas escassas horas. E, em boa verdade, não tinhas a certeza de poder confiar nele. Tiveste até o pressentimento que muitas coisas vos podiam separar. 

Nunca foste pessoa de fazer amizades logo à primeira vista. Sempre fora uma das recomendações da tua  mãezinha que era uma mulher sábia e com um formidável sexto sentido: nunca se enganava no primeiro juízo que fazia dos estranhos. Tirava-lhes logo a "pinta", pelas primeiras frases e gestos...

Para começar, o Ravasco era, seguramente, de famílias modestas ou humildes, como se diz na tua terra. Em contrapartida, era um antigo camarada de armas, se bem que tu, na época,  ainda não valorizasses muito essa condição. Agora era teu colega de trabalho. Mas tu, ao princípio,  atrapalhavas-te, tratavas o Ravasco ora por colega ora por camarada. Com alguma cerimónia, talvez nortenha.

E apercebeste-te logo que ele não gostava de tocar na tecla da Guiné. Tu puseste-te então a imaginar que ele teria passado um tempo pior, na Guiné, do que o teu, em Angola. Talvez tivesse até apanhado uma "porrada", ou coisa parecida.

 Toda a gente sabia que a Guiné era um duro osso de roer. Mas os gajos da Guiné também gostavam de cantar o "fado da desgraçadinha", como se em Angola (e até certo ponto em Moçambique, dependendo dos sítios) a malta tivesse só andado a brincar aos índios e cobóis. 

Percebeste logo, também, ti e ele eram diferentes, se calhar irredutivelmente diferentes, oriundos de diferentes regiões do País, e até de meios sociais  distintos. Tu, do Norte, ele, do Sul.

O Ravasco era alentejano de Mértola, e tu minhoto de Ponte de Lima. Do Alentejo tu só conhecias meia dúzia de anedotas, estúpidas, dirias hoje. E nenhum dos dois  conhecia a terra um do outro. O que não admirava: naquele tempo,  há meio século atrás, ainda era fraca a mobilidade espacial dos portugueses, viajava-se pouco, dentro (e, pior ainda,  fora) do País, embora tu já tivesses carro. Mas o mais longe aonde já tinhas ido, a Sul,  era até Lisboa, quando prestaste serviço no RI 5, nas Caldas da Rainha.

O Ravasco confessava que o mais a Norte aonde já tinha ido fora a Aveiro. Fora lá, de comboio, com uns camaradas, mobilizados para a Guiné, comer um ensopado de enguias. Um deles era da Murtosa ou coisa parecida.

Estivera menos de dois meses no Campo Militar de Santa Margarida, a formar companhia. Fora mobilizado para a Guiné pelo RI 2, o Regimento de Infantaria 2, em Abrantes. E não teve pejo em dizer-te que não sabia exatamente onde ficava Ponte de Lima, “lá no mapa do Minho”. O que para ti era  imperdoável, quase um insulto, não conhecer a geografia do país...

De facto, para ti, o Minho era a “joia da coroa” deste país à beira-mar plantado, o teu país. Era no Minho que começava Portugal, o Portugal do Minho a Timor, como havias aprendido na escola. Sempre tiveste  muito orgulho do teu Minho e, claro, do teu torrão natal, Ponte de Lima, que, segundo te ensinaram os teus avoengos maternos,  era a terra, a vila,  mais antiga de Portugal.



2A.Viste logo que o Bacelar era mais viajado do que tu.
Viera de Mini, de Viana do Castelo até Mafra,
um dia inteiro a conduzir.
Tinha um Mini Morris 850,com jantes especiais.
Mas também não fazia a mínima ideia
onde ficava Mértola, a tua terra natal.
Disseste-lhe que ficava na margem direita do rio Guadiana,
e que já vinha do tempo de fenícios, romanos, visigodos e mouros.
Não mostrou curiosidade em saber mais.


Na primeira noite, em que ambos se  conheceram, por sinal  uma noite desagradável por causa do frio e da chuva, falaram sobretudo do tempo. Falar do tempo é sempre uma solução airosa quando um gajo  não  tem assunto para conversa, ou não está afim de conversar, ou não quer mostrar logo o jogo, a sua maneira de ser e de estar, a sua história de vida, os seus pontos fortes e fracos… Falaram pouco das terras e das  andanças de ambos pelo país.

Simpático, o Bacelar mandou vir duas aguardentes velhas de vinho verde, "duas amarelinhas", que fez questão de ser ele a pagar. E estiveram ali os dois a falar, afinal amenamente, evitando, todavia,  tocar  em assuntos da tropa  e da guerra. O que era difícil, disseste para ti mesmo...

Na realidade, era como se estivessem ainda em África, a resguardarem-se da picada do mosquito  e a contar as noites e os dias que lhes faltavam para a “peluda”. Em geral, tu eras mais reservado, nunca ou raramente falavas da tropa e, muito menos, da Guiné. Por outro lado, tratavam-se por você (e assim continuaram até pelo menos ao 25 de Abril de 1974). Ele também era cerimonioso, mais do que tu, e talvez mais por educação do quer por feitio. 

Todavia,  já mais para o final da conversa, ficaste  com a ideia de  que ele tinha o "bichinho de África" e que hoje ainda estaria arrependido de não ter aceite uma boa oferta de trabalho em Luanda. No Banco de Angola, gabava-se ele.  De resto, não terão faltado outras propostas de emprego, menos aliciantes,  como por exemplo a de guarda-livros numa fazenda de café, a norte de Luanda. 

Não te explicou as razões por que voltara para a santa terrinha, ele que se gabava de ter alguns “grandes africanistas” na sua ascendência, do lado materno, um dos quais, militar, da Armada,  ainda conhecera o Zé do Telhado no desterro,   em Luanda, a caminho de Malanje. 

Mas as saudades, às vezes, falam bem mais alto do que a razão. E já que puxara a conversa, disseste-lhe que fizera bem, que haveria de continuar a fazer a sua vida na sua terra, que era Portugal, e que o futuro de Angola era incerto, tal como o de toda a África Austral, último reduto dos brancos, o mesmo era dizer, do colonialismo. E não te enganaste, o velho “apartheid” branco haveria de ruir em 1994, tal como já tinha antes ruído o muro de Berlim  e tudo o que ele representava, "dividindo o mundo em duas partes como uma maçã, mas de cores diferentes por fora.

Ouviu calado as tuas divagações. Foram-se  deitar cedo, estavam ambos cansados, o Bacelar tinha vindo a conduzir desde Viana do Castelo. Tu vieras de mais perto, de Almada, onde pernoitaras na casa da tua mana mais velha. (Era casada, ainda de fresco,  com um operário da Lisnave, estavam a montar a casa, viviam com dignidade mas com muito aperto, como as famílias operárias da época.) Vieste de cacilheiro para Lisboa para depois apanhar, na Rua da Palma, uma camioneta da Mafrense.

Tínhas guia de marcha para te apresentar até às cinco horas da tarde desse dia, para a “tomada de posse”. E o Bacelar também. Reparaste no olho azul dele. Soubeste, mais tarde,  que era oriundo de uma família de senhorios, donos de terras de um antigo morgadio com direito a brasão. 

Sempre invejaste, diga-se de passagem, quem tinha algo de seu, casas, montes,  terras. O teu pai construíra uma casinha de paredes de tabique no couto mineiro. Nada a que ele pudesse chamar seu. Os gajos do Sul, como tu, não tínham raízes telúricas e muito menos “pedigree”, brasão, árvore genealógica, antepassados, memórias,  referências, valores, ... E quem não tinha raízes na terra nem árvore genealógica para mostrar aos outros, era mais propenso às depressões, ouviste essa teoria da anomia ao alferes miliciano médico do teu batalhão, que deve ter seguido psiquiatria, era mais “apanhado do clima” do que os operacionais.

O primeiro emprego que o Bacelar arranjara, depois do regresso de Angola, fora numa repartição de finanças do distrito de Viana do Castelo. Um tio (ou tio-avô, materno) tinha (ou tivera) um cargo importante na Direção Distrital de Finanças do Porto. Teria sido, ao que parece, condiscípulo de diretor-geral das contribuições e impostos, o dr. Vitor Duarte Faveiro, natural de Ansião. Por isso, no gozo, tu chamavas-lhe  “filho de Ansião”… E o apodo ficou, quando os outros sacanas dos colegas mafrenses descobriram… “Dor de corno!”, pensaste tu. Quem tinha “cunhas” para entrar na DGCI, nas contribuições e impostos, era logo apodado de “filho de Ansião”, a terra do director-geral que toda a gente reverenciava e temia, sendo tido como uma referência  enquanto fiscalista. 

Tu não lhe disseste, por vergonha,  que também tiveras uma cunha, essa eclesiástica. De um cónego do cabido da sé-catedral de Beja. Teu antigo professor. De qualquer modo, tanto tu como o Bacelar, haviam feito, com sucesso, um concurso de provas públicas, como era norma no Estado Novo.  Eram já “concursados”… Consolava-te a ideia de teres entrado, por mérito, para a função pública,  não tendo roubado o lugar a ninguém.  

O Bacelar tinha a secreta esperança de ainda poder ser chamado para o Banco Nacional Ultramarino ou para o Banco de Portugal, se bem percebeste. Ou de vir a ficar mais perto de casa, no caso de  continuar nas finanças.

Se ele tinha defeitos que saltassem logo à vista, era essa de se gabar do seu “capital de relações sociais”, como se diz hoje…. A matriz  da sociedade portuguesa era ainda na época muito clientelar, nada se conseguia (empregos, negócios, casamentos, tropa, etc., ou um simples internamento no Hospital de Santa Maria ou de São João…) sem “conhecimentos”, o mesmo era dizer, sem “cunhas”. 

Mas não precisava de ser “cunha” de gente muito importante, às vezes até parecia que quem mandava mais neste país era a criada,o contínuo,  o motorista, a amante, a secretária, o sargento, o sacristão, o caseiro, o feitor, o maioral, enfim o chefe do pessoal menor… Nas zonas rurais, o feitor era um tipo poderoso, tal como o sargento na tropa… Tu vias por Mértola e Beja, onde os latifundiários, a viver na capital, raramente lá punham os pés, a não ser na época  das colheitas e da caça.

Ambos arranjaram, entretanto,  um quarto, amplo, com duas camas, numa casa sita no centro da vila de Mafra. Vivia-se, naquele tempo, do aluguer de quartos a professores primários, funcionários públicos e militares da Escola Prática de Infantaria, incluindo soldados-cadetes que tinham algum poder de compra. Era simpática, a velhota, a dona da casa, viúva de um sargento.

Os quartos já não eram baratos na época e tu, tanto como o Bacelar, se haviam convencido, estupidamente, que estavam ali de passagem. Mais ele do que tu. A  ideia de ambos era, logo depois da tomada de posse do lugar do quadro, pedir  de imediato transferência. Tu, para Beja ou para Almada (estavas indeciso), o Bacelar para Braga ou Viana do Castelo. Acabariam por ficar em Mafra mais de 21 meses naquela "vida de ciganos".

Detestava a "Máfrica", como tu chamavas  àquela terra, tomando a parte pelo todo. Estavas farto da tropa. E se calhar as pessoas  de Mafra também estavam, tirando as viúvas de militares, simpáticas mas empobrecidas, que viviam do aluguer de quartos aos desgraçados que lá iam parar. 

 O teu tenente-coronel, comandante do teu batalhão,  na Guiné, ainda te fez a cabeça para meteres o "chico". Deu-te inclusive um louvor, imagina! 

−  E se tu tivesses metido o "chico" ? − perguntavas-te hoje a ti mesmo. 

Bom, não te livrarias de voltar à Guiné, agora como capitão. Secretamente, a ideia não te desagradava de todo, terias  hoje um melhor pé de meia ou conta bancária. Mas também lá podias ter deixado a meia, o pé ou até a vida. 

Os galões dourados de capitão não te deixavam indiferente, a ti que, não passando de um simples alferes miliciano,  experimentaras, por breves meses, a secreta  volúpia do poder, que tinha como contrapartida o angustiante desafio de comandar 150 homens num teatro de guerra, e o risco de perder alguns. Tu que antes nunca estiveras à frente de nada, nunca foras ninguém, nem sequer chefe de turma ou capitão de equipa de futebol!...

Tínham apenas um reposteiro a separar as duas camas, como nos quartos de hospital. A tua  cama tinha um colchão de palha (!) onde te afundavas com os teus 90 quilos. (Engordaste, estupidamente, depois que passaras à "peluda"!.)



2B. Para o teu gosto, feitio e educação,
o Ravasco tinha um tipo de humor um pouco brusco e mordaz.
Não sabias se era um humor tipicamente alentejano.
Afinal ele era o primeiro alentejano com quem tu ias trabalhar.
E não te lembrava de ter lidado na tropa
com alentejanos ou algarvios.
A malta do Norte, já na altura os tratava por “mouros”.
Por sorte, a tua companhia em Angola
só tinha angolanos, minhotos e durienses.
E deram-se todos bem.


Não te importaste de partilhar um quarto, com o Ravasco, afinal ainda estavam habituados, tanto um como o outro,  ao ambiente de caserna, aos seus maus cheiros, à sua bagunça, ao seu ar opressivo, à sua promiscuidade... O teu quartel no leste de Angola também era uma espelunca, dormiam com cobras e ratos....Sempre poupavam algum dinheiro e, dentro em breve,  estariam de volta a casa. Ou, pelo menos, era essa a tua  secreta esperança. 

Viste que o Ravasco era poupado, se não mesmo forreta. Usava roupa fora de moda. O seu único luxo eram os jornais e um ou outro livro. Percebeste que andava a preparar-se para fazer o exame do 7º ano do  liceu. O 7º ano do seminário não lhe valia de nada. Queria seguir letras, e tirar o curso de direito. Tinha uma obsessão pelo direito. Se calhar, era-lhe mais fácil por causa do latinório. Queria aproximar-se de Lisboa para poder entrar na universidade.

Acabaram também por tornar-se, se não íntimos, pelo menos mais próximos, por força das circunstâncias, como os prisioneiros que estão na mesma cela e estão condenados a, minimamente, entenderem-se. Ficaste a saber que ele tinha deixado noiva em Beja. Ora tu, nesse aspecto, estavas mais à vontade, eras "livre como um passarinho".

Foste conhecendo-o, a pouco e pouco. Foram-se conhecendo. Deste conta de que, debaixo da sua aparente bonomia, e do seu verbo fácil, fluente, alegre e até folgazão, havia um homem reservado, subtilmente amargo e revoltado com a vida e com a sorte que lhe coubera a ele e à sua família e à gente da sua terra. Não esquecia a injustiça da doença e da morte do pai. E tivera uma infância difícil.

− Criado a migas, a toucinho de porco e a ervas do campo que agora vão à mesa do rico  rosnava ele, mal humorado.

Tanto quanto pudeste apurar das  conversas com ele em Mafra, onde ambos estavam “desterrados” (a expressão era dele),  o Ravasco era neto de ganhões, e filho de mineiro. Tirara o 7º ano do seminário, graças a uma bolsa de estudo da diocese de Beja. Por detrás dessa obra benemérita haveria uma senhora devota, de uma família de grandes proprietários agrícolas, muito conceituados na região. Foi o que ele te deu a entender, sem entrar em pormenores. Era uma bolsa para estudantes pobres, oriundos do Baixo Alentejo. 

Quiseram-no encaminhar para o sacerdócio, mas ele terá percebido, quando acabou filosofia, o 7º ano, que “não tinha vocação”. Ou talvez pior, para um cristão: terá perdido a fé ao lidar (mal) com as injustiças de que o pai fora  vítima, ainda em vida, nunca lhe tendo ocorrido que Deus poderia estar a  pô-lo à prova. Como te pôs á prova a ti, quando deixaste pai e mãe e foste para Angola, não para o “bem-bom de Luanda”, mas para a guerra no Norte e depois no Leste.

No verão, quando ainda andava a estudar, o Ravasco ia sempre para França, para a região de Bordéus, fazer a campanha  das vindimas e ganhar uns francos. Entretanto dera  o nome para a tropa, mas beneficiava de uma licença militar para se poder ausentar temporariamente do país. Nunca lhe passara pela cabeça não voltar a casa e ficar em França, tornando-se refratário.  Sempre se considerou um homem de palavra. E patriota. 

E aí a tua consideração por ele aumentou, apesar de tu o continuares a chamar de “mouro”. Não levava a mal. Tal como tu, também não, quando no gozo te chamava “morgadinho” e, depois do 25 de Abril, "pequeno-burguês". 

Ainda chegou a ser “aliciado” por um comité luso-francês, católico, contra a “guerra colonial” que dava apoio a desertores e refratários portugueses na região de Bordéus. Mas ele nessa altura não queria saber nada de “política”. E era agarrado à família. E, em boa verdade, temia represálias contra o pai, já doente, se ele  não regressasse de França. (Sabendo o que se sabe hoje, não houve represálias contra as famílias de exilados, desertores e refratários; a PIDE podia ter um braço comprido, mas não chegava felizmente a todo o lado.)

Segundo ele te contará, mais tarde, o pai tinha sido mineiro nas minas de São Domingos, entretanto definitivamente encerradas  em meados dos anos 60. Vem a morrer quando ele estava aqui, em Mafra, a fazer o COM. De silicose, ao que parece, uma doença  de evolução prolongada, então muito comum entre os mineiros. Mas só tardiamente fora diagnosticada e reconhecida, ao pai, essa doença profissional, com direito a reparação médico-legal, segundo ele te explicou.  De pouco lhe terá valido a “miserável pensão de invalidez” que lhe fora atribuída, a expressão era do Ravasco.

Tu ainda comentaste que no Norte era bem pior, os pequenos lavradores, rendeiros ou não,  ao fim de um vida dura de trabalho, morriam de miséria num catre, numa cabana de madeira,  só com a ajuda da família, quando a tinham.  E chamavam o médico só na hora da morte. 

Ele endureceu a expressão do rosto e respondei-te com veemência: 

− É porque você não sabe o que é um ganhão nem nunca engoliu o pó de uma mina!… 

E tu aí tiveste que reconhecer que ele tinha razão, tu sabias lá o que era um ganhão e muito menos uma mina ou um mineiro e essa coisa da silicose que destruía os pulmões lentamente.  Nalgumas coisas tu tinhas sido um privilegiado da sorte, embora nunca tendo sido rico, como fizeste questão de lhe frisar. 

O Ravasco tinha ajudado a família com o vencimento de alferes miliciano de artilharia, enquanto estivera na Guiné. Era frugal, não se metia em tainadas. Bebia  de vez em quando o seu uísque. Não fumava. Nem sequer veio de férias para poupar o dinheiro da passagem. Saberás mais tarde, quando ganharem mais confiança, que terá optado por ir uma semana a Bubaque, nos Bijagós.  Tencionava arranjar um pé de meia para se poder casar. Mostrara-te, ao fim de uns meses,  uma fotografia da rapariga que lá deixara em Beja. Não fixaste o nome. Só reparaste que não era lá muito bonita: era trigueira, de olhos de cor de azeitona, não fazendo o teu género. 

Sentiste, isso sim, que a morte prematura do pai, antes dos sessenta  anos, deixara-o muito abalado e revoltado. Adivinhaste  logo que ele era do “contra”, como diria o senhor teu pai. Não gostava de Salazar nem de Caetano. E referia-se à guerra do Ultramar como “guerra colonial”, expressão que era então proibida nos jornais. E que tu também não usavas. E, pior,  também não frequentava a igreja. Fazia-te confusão, sendo ele um antigo seminarista. Enfim, um "herege".

Depois de vir da guerra, começou a interessar-se pela política. Lia o “Diário de Lisboa”, além do “Comércio do Funchal”, de que tu nunca tinhas ouvido falar antes. Era um jornal cor de rosa. Chegaste  a dar uma vista de olhos, mas não te despertou a curiosidade.

Em suma, as afinidades entre os dois eram puramente acidentais ou circunstanciais. Foram parar àquela terra que, tal como a conhecemos hoje,  não existiria se o Dom João V, para ti de boa memória,  não mandasse ali construir aquele monumental palácio e convento, um dos mais grandiosos da Europa,  que o Ravasco teimava em qualificar de “monstruoso”. 

A repartição de finanças estava lá instalada, tal como a EPI, e outras repartições públicas como as comservatórias, já não te lembras ao certo, até por que convivias com pouca gente da terra (e, sempre que podias,  davas uma escapadela pelos arredores, sobretudo ao fim de semana).  

No inverno rapava-se frio de rachar. Tu, que vinhas do Norte, onde também fazia frio a sério, lembras-te de ter de usar ceroulas no inverno e grossas camisolas de lã em Mafra. Tu e o Ravasco davam-se mal com aquela humidade marítima que chegava do Atlântico e se entranhava nos ossos. Não havia aquecimento central, nem uns simples aquecedores a gás.  

Mas Mafra tinha belas praias, com destaque para a Ericeira. Começaste a gostar da Ericeira, e da Foz do Lisandro, e sobretudo das miúdas estrangeiras que começavam a parar por lá.



3A. Bom, lá foste tomar posse no dia seguinte, logo de manhã.
No gabinete do chefe, que mandou chamar o resto do pessoal
para assistir à cerimónia.
Ficou só um funcionário, ao balcão.
Para o caso de chegar algum contribuinte por causa da “décima”
ou do "cadastro"...
Mas nessa manhã estava tudo muito calmo.

O termo de posse já estava pré-preenchido, com os dados de cada um,   era só precisa a  assinatura dos empossados, no final,  depois de lido o famigerado juramento de lealdade ao Estado Novo.

Repetiste mecanicamente a fórmula, como quem rezava o Padre Nosso, no último ano do seminário, depois de teres perdido a fé e a vocação. Olhaste, com um misto de temor e de desdém, para os retratos,  pendurados na parede, dos três mais altos magistrados da Nação (os vivos, Américo Tomaz e Marcelo Caetano; e o morto, Salazar, o “pai da Pátria”, ou o “refundador da Nação”, que ainda ninguém tivera a coragem de mandar retirar) e disseste, firme e em voz bem alta:

 Declaro por minha honra que estou integrado na ordem social estabelecida pela constituição de 1933, com ativo repúdio do comunismo e de todas as ideias subversivas....

O juramento dos funcionários públicos fora  aprovado pelo decreto-lei nº 27 033, de 14 de Setembro de 1936, mas tu nunca chegaras a ler esse diploma, tal como nunca leras a Constituição de 1933.

E, de repente, lembraste-te do teu juramento de bandeira na “Máfrica”  e indignaste-te por, na altura, nem sequer teres questionado as palavras que, mesmo em voz baixa, atabalhoadamente e a medo, proferiste na parada… 

Regressado de uma guerra, repugnava-te ter aceite, no passado,  o dever absurdo de jurar “obedecer cegamente aos teus chefes”. Afinal, eles poderiam ser todos cegos, conduzindo todo um povo, também de cegos,  à beira de um precipício… 

Tiveras um pesadelo nessa noite. Voltarias a tê-lo quatro anos depois...



3B. Ganhava-se mal na função pública,
mas era um emprego certo,
com cheque da Caixa Greal de Depósitos ao fim do mês 
e algumas pequenas regalias.
Nas finanças, havia os “emolumentos”,
que representavam mais uns tostões ao fim do mês.
Tu terias preferido entrar para a banca,
nessa altura tinha mais prestígio.
Os bancos, privados, pagavam melhor 
e tinham melhores instalações.
E havia já uma ou outra rapariga ao balcão…

 

Naquele tempo, com a economia a crescer a dois dígitos (como se diz hoje),a sangria da guerra e da emigração,  e a máquina do Estado a expandir-se e modernizar-se,  não era difícil entrar para função pública, a banca, os seguros, as caixas de previdência, os escritórios,  as fábricas… 

Não, não era o teu sonho seguir as peugadas do teu pai, um obscuro funcionário corporativo num Grémio da Lavoura minhoto. Bem, nunca o disseste em público, mas,  infelizmente, o teu pai era um fraco exemplo de ambição e liderança. De resto, lá em casa vigorava o matriarcado, a tua mãe era mestre-escola, tinha o curso do Magistério Primário, a primeira mulher da família  a ir estudar. E sobretudo era minhota. Em pequenino contava-te a lenda da Deu-la-deu Martins. Os homens da casa e a criada chamavam-na a “generala”, com o devido respeito… E integrava a comissão local do Movimento Nacional Feminino. Sem favor, achavas que fazia um bom papel, ajudando muitas famílias pobres da região, com filhos no Ultramar.

Quando tu saiste da tropa, apetecia-te era “correr mundo”, como alguns dos teus amigos do colégio dos jesuítas. E que, mais finos e expeditos do que tu, se safaram melhor, alguns, da tropa ou até do ultramar: um ficara em Luanda, outro  no Hospital da Estrela em Lisboa, e um terceiro fora parar à Bélgica...

Sempre fizeste questão de esclarecer que não meteste nenhuma cunha para te livrar da guerra do Ultramar. O teu pai, que era da União Nacional ( tinha que ser, era funcionário corporativo), ainda esteve tentado a “mexer os seus pauzinhos”, como ele te confessou.  Mas a tua mãe fuzilou-o com um olhar de reprovação. Era (ainda é) uma mulher de grande verticalidade. Uma senhora de grandes princípios, com um educação esmerada. E, ela, sim, de origem fidalga. O teu pai era um plebeu, um pobretanas, um manga de alpaca que nunca passaria da cepa torta. Claro que o Ravasco não acreditaria nesta história, se tu  caísses na patetice de lha contar.

Enfim, foste colocado, sem honra nem glória,  na repartição de finanças de Mafra, num lugar do quadro de pessoal, como aspirante de finanças. Entravas numa carreira técnica. Passavas a ser liquidador de impostos, como na Roma Antiga, como fantasiava o teu pai. 

No passado, era um lugar de prestígio, de nomeação régia. Na época ainda não havia computadores, liquidava-se os impostos à mão, de lápis na orelha. Quando muito havia já umas pesadas maquinetas, electromecânicas, que funcionavam como “calculadoras”. O mais importante era saber fazer contas de cabeça. Nisso tu eras bom, melhor que o teu irmão que foi para o magistério primário, seguindo o exemplo da mãe (enquanto o teu pai queria que ele fosse para regente agrícola).

Já não te lembras das categorias, nem das letras de vencimento, mas estavas cá para o fundo da tabela salarial: começava-se como aspirante de finanças estagiário, depois aspirante concursado, depois aspirante do 2º grau e depois do 1º…

O Ravasco gozava contigo e perguntava-te com que idade é que tu te  imaginarias chegar,  se não a diretor de finanças como o meu tio-avô, pelo menos a adjunto… Mas do que  tu mais gostavas era do teu cartão da DGCI, com uma barra na diagonal, a verde e a vermelho, as cores da República, que te davam acesso a quase tudo, com destaque para as casas de… “diversão noturna”. 

Passaste a ser um gajo respeitado pelos “gorilas” que estavam à porta das “boîtes”, como então se dizia, “à francesa”...Quantas vezes não entraste no “Ouriço”, na Ericeira, que, ao que te dizem, ainda hoje existe… (Nunca mais lá voltaste à Ericeira, depois de teres sido transferido para Braga e, mais tarde, reformado.)


4A. Vê-se que o Bacelar não nascera para isto,
“manga de alpaca”, como ele dizia, com desdém, do pai.
Tu chamavas-lhe o “morgadinho”, com ironia.
Tinha a mania que era de “sangue azul”.
Mas a verdade é que ele tinha de fazer pela vida, tal como tu.
Via-se que tinha “bons princípios”,
tendo nascido, se não em berço de ouro,
pelo menos em cama com lençóis de linho.
Pois fora coisa que tu nunca tiveras.
E a tua mãe, coitada, era analfabeta.
E o teu pai, mineiro. E o teu avô, ganhão.
E acima de avô já não conheceste mais ninguém.


Procuraste consolá-lo, foram petiscar, “jaquinzinhos fritos” com arroz de tomate, ainda te recordas, numa tasca saloia, de um fulano da Malveira,  que ainda lá existia, quatro anos depois. Já estava mais “modernaça”, para o teu gosto, com mesas envernizadas, tampos de vidro e paredes espelhadas… (Passaria, mais tarde, a ser uma espécie de tertúlia, da malta do 'reviralho' da terra, que foste conhecendo, pelos jornais que liam, frequentada também por alguns cadetes.)

Depois procuraste mentalizar o teu colega de “desterro”  (mas, no fundo estavas a tentar arranjar algum consolo para o teu próprio infortúnio): um gajo, na vida,  tem de começar por qualquer coisa, “estagiário” ou “aspirante” a qualquer merda. A menos que se tenha um pai rico… 

Começavam ambos como “aspirantes estagiários”, muito bem… E um dia, se o convento não desabasse, haveriam de subir mais um ou dois degraus… Pensavas nisso quase todos os dias quando subias aquela maldita escadaria, de manhã, para chegar à repartição. Foi o que o “chefe” disse a ambos, incentivando-os a estudar, como ele tinha feito… 

 É uma carreira bonita mas dura… 

E, aí, de repente, tiveste a intuição de que ele, o teu "chefe",  só poderia ter sido padre, há uns vinte e tal anos atrás… Os padres são marrões, conhecia-os de ginjeira.

Salazar, também ele seminarista (chegara quase a padre), esse, já tinha morrido, uns tempos antes, mas o seu regime sobrevivera, aparentemente incólume, reproduzindo-se o “mandarinato chinês”, como tu dizias depreciativamente. Era o que se estava  a viver, na época, a “mudança na continuidade”, com o Marcelo. O regime estava a chegar ao fim, mas tu não conseguias predizer quando nem como…  E os “mandarins” começavam a andar nervosos. Não sabias nada do que se passava por detrás dos muros da “Máfrica”, naquela época, em finais de 1973, longe de imaginar que, mesmo com RDM em vigor e a PIDE a vigiar, pudesse haver  conspirações, traições, concluios, alianças, vinganças, etc.

Tudo isto para dizer que foste completamente apanhado de surpresa pelo 25 de Abril de 1974. Nessa manhã tu estavas na repartição, quando alguém, de confiança, da tua tertúlia (a dos "jaquinzinhos"), te veio dar a notícia, alvoraçado, ao balcão.  Mas ainda a medo, segredando-a ao teu ouvido. 

Tu próprio pensaste logo que era um golpe da extrema-direita, orquestrado pelo Américo Tomás e o Kaulza de Arriaga. Mas de tarde já andava tudo nervoso, lá na repartição, a começar pelo "açoriano", que se trancou no gabinete.

Pessoalmente não tinhas grandes ideias para o teu futuro pessoal. Querias poder equacioná-lo numa perspetiva de futuro… coletivo. Precisavas de sentir que o teu país tinha futuro. Era uma dos chavões da época... Querias continuar a estudar, mas não tinhas grande cabeça para o fazer. Faltava-te a disciplina mental. Ainda estavas a fazer o “luto”: não já da morte do teu pai, mas da tua participação na guerra… Estranhamente, só depois de teres regressado, é que começaste a sentir “asco” por ter feito aquela guerra…

Não é que tu fosses muito “informado” quando partiste para a Guiné… E, confessas até, não tinhas “consciência política” na altura… Nem grande nem pequena… Não tens hoje vergonha de o dizer, depois de passar à “peluda”… 

Quando foste mobilizado, não questionaste sequer a "legitimidade da guerra"… Aceitaste a “canga” que te puseram em cima, como o burro que puxava a nora, lá no quintal de um dos vizinhos dos teus avós de São João dos Caldeireiros, em Mértola… 

Mas depois viste coisas, na tropa e na guerra, de que não gostaste. E isso terá enviesado a maneira de ver o que se passava em Portugal, a partir de 1972. De resto, tinhas tido uma educação, no mínimo, “religiosa e conservadora”, propícia à aceitação resignada da "ordem estabelecida", como então se dizia… O Vaticano II, o Concílio,  levara tempo a chegar a Portugal, mas começava a “fazer estragos”, e um deles foi o progressivo despovoamento dos seminários...

 

4B. Uns meses antes do 25 de Abril, 
tiveste um impulso, foste, num domingo, à missa.
Gostaste de conhecer o padre lá da paróquia.
Pela idade, devia ser o coadjutor, 
mas irradiava simpatia e inspirava confiança. 
E rodeiava-se de gente nova. 
Parecia ser um padre “arejado de ideias”, 
como então se diz. 
Ficaste com vontade  de o apresentar ao "herege" do Ravasco.


Suspeitavas que  era um daqueles padres “progressistas”, que nem sempre sabiam distinguir as coisas de Deus e os negócios dos homens. A linha de fronteira era ténue. E tu próprio às vezes ficavas confuso sobre o teor dos sermões que ouvias nas homilias. 

Era um tipo que se aproximava das preocupações dos mais novos e, sem abordar diretamente as questões mais quentes da sexualidade, por exemplo, retirava a carga de pecado que os padres mais tradicionalistas associavam aos  “pensamentos, palavras e obras" dos cristãos... Falava também de liberdade e justiça, citando amiúde o João XXIII...

Antes de ir, no Natal de 1973,  a casa, pediste-lhe, ao padre, para te ouvir em confissão. Há quase um ano que não te confessavas nem comungavas. Não saberias o que haverias dizer à tua mãezinha se ela, na Missa do Galo, visse que tu  já não comungavas… 

Bem, tu  achavas que já não eras mais o mesmo, também não vieste o mesmo de Angola onde a descristianização era já muito maior do que aqui. As pessoas estavam instaladas, viviam bem, os brancos, e tinham-se tornado cínicas… E sobretudo demasiado confiantes em relação ao futuro… Arrogantes, dirias mesmo… Pertenciam a outro mundo, em acelerado desenvolvimento, e no fundo sentiam alguma sobranceiria  em relação à tropa e   às demais  gentes  do "Puto"... que nem todos conheciam.   Uma parte já tinha nascido em Angola. Portugal era um  país que já lhes era estranho, e não tinha as riquezas fabulosas (o petróleo, os diamantes) que iriam tornar aquela terra num eldorado, num novo Brasil do séc. XVIII.

Em Luanda não havia guerra nem se falava da guerra, se não fora a presença de tropa fardada e o movimento de viaturas e aviões militares… Mas tu tinhas saudades, de Luanda, onde ainda passaste os últimos meses da tua comissão... Da ilha e da baía de Luanda, do Mussulo, da vida noturna… Ah, aquelas noites tropicais, com os pés dentro de água, e, na mão, um gin tónico com uma rodela de lima… 


5A. Achavas um ridículo e atroz o Bacelar usar,
no anelar esquerdo, um cachucho com brazão!...
Não escondia as suas simpatias monárquicas
e era católico de ir à missa.
Fazia questão de te dizer que não se interessava
pela “política politiqueira”.
Onde é que tu já ouviras isso ?
Nas “conversas em família”…
do senhor professor doutor Marcello (com dois eles) Caetano

Gostava de gabar-se de que ainda tinha algumas boas relações, que vinham do tempo em que um dos antepassados, do lado do ramo materno, fora juiz-conselheiro e par do reino no tempo do senhor Dom Carlos. Não quiseste humilhá-lo perguntando-lhe o que era isso de ser “par do Reino”… e lembrando-lhe que em 1910, há mais de 70 anos, tinha caído a monarquia em Portugal… 

Para desgosto da mãe, que devia ser  uma pessoa intelectual e moralmente exigente, ele nunca fora bom aluno, tirara o quinto ano dos liceus, se calhar à rasquinha, pelo que tu deduziste.  O que não era normal nos filhos dos professores primários, formatados para serem os primeiros da turma. Mas tinha jeito para línguas, mais do que tu, que eras um cepo. Vá lá, tu safavas-te no latinório, que era uma língua morta, e desenrascava-te no francês de praia…

O Bacelar era o que se podia dizer um sedutor nato, tinha sorte, garantia ele, junto do “sexo fraco”. Mas também fazia facilmente amigos de ocasião. Tinha olho azul e inha uma bela cabeleira, alourada. Enfim, era bem “apessoado” e caprichava no vestir.  Mas tu não lhe davas grande trela, não tinhas pachorra para lhe ouvir as aventuras amorosas desde o tempo do colégio dos jesuítas… Secretamente, invejavas-lhe a sorte de ter tido, nessas matérias,  melhores professores do que os teus…

Ao Bacelar não era  totalmente estranha a “região saloia” (como ele abusivamente dizia, confundindo-a com a Estremadura), já que tinha passado dois ou três meses, mais a norte, nas Caldas da Rainha como 1º cabo miliciano, monitor no Curso de Sargentos Milicianos, antes de ser mobilizado para Angola. 

Explicaste-lhe que a “região saloia” ia das muralhas de Lisboa até Mafra… O Dom Afonso Henriques poupara os mouros, não os passando pelo fio de espada, como era norma, bárbara,  em tempos de cruzadas,  mas mandara-os cultivar alfaces fora das muralhas. Enfim, esta era a historieta que te contaram um dos teus instrutores, na “Máfrica", se calhar ele próprio ainda com sangue mouro  nas veias...

Quis o destino que fossem os dois parar àquele antro de públicas virtudes e vícios privados, desde o tempo do senhor Dom João V… O "cubículo" da repartição de finanças era, só por si, um casarão, com um pé direito muito alto. Mas falava-se baixo. O chefe impunha o seu tom de voz, mavioso, de ilhéu terceirense. Era da terra do Vitorino Nemésio, Praia da Vitória. Raramente aparecia em público. Passava a maior parte do dia, no seu gabinete, com um enorme  estante, de madeira exótica,  pau-preto, forrada de códigos e diários do governo encadernados, a preparar-se para o “próximo concurso” que nunca mais chegava...

Ah!, também não gostavas de ver o Bacelar a puxar do  “cartão da PIDE”, como tu lhe chamavas com sarcasmo,  quando  ambos  iam ao “Ouriço” ou até ao bar do hotel da Ericeira!... Ele tinha cá uma lata!... Tu, pelo contrário, recusavas-te a fazer uso do cartão da DGCI.  Fizeste gala de dizer que nunca puxaste por ele para te impores a alguém ou entrar num estabelecimento da vida nortuna, que de resto só frequentavas para fazer companhia ao Bacelar.

 

5B. Na divisão de serviço, o Ravasco teve mais sorte do que tu:
atribuíram-lhe o imposto de compensação e transações….
Fazia o mapa das empresas rodoviárias,
de transportes de passageiros e mercadorias,
a Mafrense, a Isidoro Duarte e outras…

 

A ti, pelo contrário, deram-te o trabalho de um reles escriturário: expediente, correio, diário do Governo, atendimento ao público, e pouco mais… Foi o sacana do adjunto que distribuiu o serviço, em nome do chefe “que nunca podia ser incomodado, a não ser por força maior”…

Desde o início que o gajo não simpatizara contigo, o adjunto, por alegadamente seres “filho de Ansião”. O homem devia ter tido algum conflito com o diretor-geral, no passado. E quem pagava, por tabela, eram os “afilhados”… 

Inconsolável, foste pôr o caso ao chefe da repartição e puxaste pelos teus pergaminhos, falando-lhe do teu tio-avô, diretor de finanças…. Enfim, para não se chatear com o seu adjunto, alargou a tua área de competência com a  do cadastro e a contribuição predial que era “muito trabalhosa”, e retirou-te o correio e o expediente, que era coisa de reles escriturário…

Em jeito de protesto, tu no dia seguinte pediste logo transferência para Viana do Castelo ou Braga, conforme as vagas…

O “serviço melhor” já tinha dono, três ou quatro funcionários do “grupinho do adjunto” controlavam as “principais áreas de poder”: contencioso, fiscalização externa, imposto sucessório, imposto profissional, imposto complementar, contribuição industrial… Eram todos da terra, quer dizer “saloios”, com exceção de um de fora, mas já com raízes familiares em Mafra.

Acabaste por descobrir, por portas e travessas, que este era também o “grupinho das meninas”: uma vez por mês iam a Lisboa, a uma casa de passe clandestina, controlada por uma “madama” com muito boas relações com a hierarquia da DGCI,  ali no Terreiro do Paço (e se calhar com outra gente do poder)… Era à sexta-feira da última semana de cada mês… Percebia-se pelos sorrisos,piadas e  conversinhas, entre eles, na segunda-feira de manhã, seguinte, que a noitada de sexta tinha sido em grande, acabando numa conhecida marisqueira das Portas de Santo Antão… 

Contaste tudo isto ao Ravasco, que ficou indignado e mostrou-se solidário contigo. Afinal, quem pagava tudo isso ?, interpelava-te ele.  

A tua consideração pelo teu colega alentejano aumentou mais um ponto ou dois. Mas não alterou nada da tua situação ali dentro. Sentis-te deslocado, infeliz, com saudades da tua gente e da tua terra.



6A. Não podias jurar que havia ali corrupção.
Corrupção ?!... Não se falava disso na época.
Discutia-se o regime como um todo.
E esperava-se, à boa maneira sebastiânica,
que acabasse por cair um dia. De podre.

 

Tu tinhas chegado há pouco e tencionavas não demorar muito por lá, pela repartição de finanças de Mafra. Mas não punhas as mãos no fogo pelo adjunto e o seu “grupinho das meninas”, como lhe chamava o Bacelar. Quiseram ser simpáticos com os dois e, no feriado do 1º de Dezembro, que calhava a um sábado, convidaram ambos para beber um copo, a seguir ao jantar e ver um "filme pornográfico sueco" (na realidade, dinamarquês), em 8 mm, na quinta de uns amigalhaços, ali para os lados do Gradil.

O Bacelar levou o carro dele, tu foste num outro, não querias ser votado ao ostracismo logo nos primeiros dias. Percebia-se que cultivavam boas relações com alguns dos maiores contribuintes, empresários e proprietários ruaus, ricaços da terra. Era costume, por exemplo, um deles, muito conhecido, ligado à indústria de alimentação e bebidas, oferecer, pelo Natal, uma lauta ceia aos funcionários da repartição de finanças. Era uma tradição já arreigada, não só nas contribuições e impostos,  como no restante funcionalismo da província, incluindo os tribunais. Noutras ocasiões  ia-se a uma marisqueira de Ribamar da Ericeira.

Nesse final de ano de 1972, tu e o Bacelar também foram convidados. Parecia mal não alinhar, logo no “primeiro ano”. Sabias que os "novatos" estavam “à prova”, debaixo de escrutínio… O chefe, esse,  delegou no adjunto. Parecia-te um homem decente, mas fraco em termos de autoridade… Chamavam-lhe, nas costas e no gozo,  o “achou...riano”…

Nessa “ceia de Natal do fisco”, entre “charutos cubanos” e “conhaques franceses”, ouviste a história do fundador da empresa que, no tempo da guerra de Espanha, aprendera a fazer contrabando de “essência de laranja”, e acabara por abrir uma fabriqueta de “pirolitos”…O segredo do negócio ? A água, o acesso a água, “muita e de boa qualidade”… Percebeste depois que, com a “guerra de África”, as exportações haviam aumentado em flecha…Era um dos fornecedores da Intendência Militar. Lembras-te de ter visto a marca, na Guiné, por todo o lado… Mas tu não bebias refrigerantes, com carradas de acúcar, que só faziam aumentar a sede…

A tua santa ingenuidade, a tua crença, parva, na honestidade e bondade intrínsecas do ser humano, sofreu mais um duro golpe. Tu tinhas idade para ficar de pé atrás contra certa gente. Afinal, aquilo da "respublica", da administração pública tinha pouco. O tal adjunto era apenas a ponta do iceberg. Entristecias-te ter colegas daqueles a trabalhar a teu lado. Infelizmente tinhas que lhes sorrir e apertar a mão direita enquanto, com a mão esquerda, eles enfiavam no bolso o “santo antoninho”, a nota de vinte paus, que o pobre do contribuinte saloio lhes deixava debaixo da capa do “processo"... O  "processo”, o terror de qualquer pequeno contribuinte !!!...

Mas, adiante. O acontecimento mais marcante que viveste em Mafra ,   no tempo em que lá estiveste, enquanto trabalhador dos impostos, foi o 25 de Abril de 1974. Não por nenhum acontecimento local, digno de especial nota: não viste movimentação de tropas, alvoroço de tropas,  viaturas,  chaimites, tiros para o ar, nada disso… 

Tudo se decidiu alguns quilómetros mais a sul, a 40 km, na capital. Mas antes tens de recordar aqui uma cena, das tuas memórias de Mafra desse tempo,  que nunca mais esquecerás, enquanto pelo menos não apanhares o Alzheimer.

(Continua)


© Luís Graça (2021). Revisto em 15 de abril de 2024

Nota do autor: Neste conto, os nomes (de pessoas e lugares) podem ser fictícios, mas os factos são verdadeiros. Acontece que este país é demasiado pequeno.

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Nota do editor:


Último poste da série > 1 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25324: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (24): O tio Ortiz (1906-1944), um herói trágico