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quarta-feira, 27 de abril de 2016

Guiné 63/74 - P16025: Álbum fotográfico do Fernando Andrade Sousa, ex-1º cabo aux enf, CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, 1969/71) - Parte II: O meu amigo Abibo Jau, o "bom gigante" da CCAÇ 12, fuzilado pelo PAIGC, ainda em 1974


Foto nº 1 > O Fernando Andrade Sousa, junto ao memorial dos mortos de Bambadinca, em plena parada, frente à escola primária. [O sold com auto Manuel Guerreiro Jorge, da CCS/BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70, morreu na 16/10/1969, numa  mina A/C, seguida de emboscada, quando uma força do Pel Caç Nat 52, comandandada pelo alf mil Mário Beja Santos, regressava a Missirá, ao fim da tarde, com coluna de reabastecimento.



Foto nº 2 > O Abibo Jau e o Fernando Sousa no quartel de Bambadinca, sobranceiro à grande bolanha que se estendia a sul... É a primeira que aparece do Abibo ao fim destes anos todos!


Fotos: © Fernando Andrade Sousa (2016). Todos os direitos reservados.


1. Mais duas fotos que nos mostrou, em Monte Real, no passado dia 16, por ocasião do XI Encontro Nacional da Tabanca Grande, o Fernando Andrade Sousa, o último camarada sentar-se sob o nosso sagradado e mítico poilão, com  o nº 714.

Foi 1º cabo aux enf, CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, entre maio de 1969 e março de 1971), e mora na Trofa.   Era seu superior hieráquico o fur mil enf João Carreiro Martins, membro, também ele, da nossa Tabanca Grande.

Na foto nº 2 vê-se, de perfil,  o Abibo Jau (, o gigante do 1º Gr Comb da CCAÇ 12, fuzilado pelo PAIGC, ainda em 1974, em Madina Colhido, juntamente com o Abdulai Jamanca, cmdt da CCAÇ 21, oriundo da 1ª CCmds Africanos.

2. Comentário do editor LG:

Meu caro Fernando: mais outra foto que me emociona: tu com o Abibo Jau, fula, soldado arvorado nº mec. 82 107 469 Abibo Jau, da 1ª secção, 1º Grupo de Combate, CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71), grupo de combate de que era comandante o alf mil op esp Francisco Magalhães Moreira, teu vizinho de Santo Tirso, e que eu não vejo desde 1994, desde o nosso primeiro encontro em Fão, Ermesinde.

O Abibo era o nosso bom gigante, um poço de energia!... Era ele que transportava às costas os restos dos nossos mortos ou até os nossos feridos... Estou ainda vê-lo a levar  às costas o cadáver do malogrado Cunha, do meu amigo furriel Cunha. da CART 2715,  cuja seção  foi massacrada no decurso da emboscada que apanhámos, a CCAÇ 12 e a CART 2715,  no decurso da  Op Abencerragem Candente...  Tu estavas lá e eu também, andei a juntar os restos, macabros, dos nossos mortos, alguns dos quais cabiam numa improvisada trouxa que fizemos com os nossos impermeáveis. É uma daquelas cenas da Guiné que ainda me consegue tirar o sono...

Mas o Abibo também era o "nosso torcionário":  ele fazia por nós o "trabalho sujo" de obter informações dos prisioneiros, sob tortura... Nós fomos embora da Guiné, em março de 1971, repressámos a casa e dormimos, hoje, tranquilos (?), em camas com lençóis lavados, e com ar condicionado para climatizar os nossos pesadelos...

É certo que, pelo menos no nosso tempo, travámos alguns dos impulsos de morte do Abibo... Mas, que sei eu ? Ele interrogava os nossos prisioneiros (o Malan Mané, o Jomel Nanquitande, o Festa Na Lona...), e a essas cenas eu poupei-me, nunca assisti (ou não quis assistir) ... Eu e todos (ou quase todos) nós, os milicianos, os "gajos decentes" da CCAÇ 12 e das outras unidades estacionadas em Bambadinca...

Depois de passarem pelo "espremedor" da tropa, os prisioneiros eram entregues à PIDE/DGS de Bafatá... Imagino o pó que os gajos do PAIGC  tinham a militares como o Abibo Jau... O Abibo há muito que apodrece em Madina Colhido. Mas não podemos ignorar ou escamotear que o Abibo foi uma "criatura nossa", uma peça da nossa máquina de repressão... Hoje ele teria ficado livre da tropa: sofria de epilepsia e de elefantíase, tanto quanto me lembro... Tinha ataques frequentes. Era preciso meia dúzia de homens possantes para o segurar. Um dia vi o diagnóstico da doença dele numa ficha médica, no nosso posto clínico, e fiquei indignado; como foi possível dá-lo como apurado para o serviço militar ?

A sua generosidade e a sua bravura mas também o seu  mau génio e o seu corpo de gigante foram postos ao serviço do exército português. Nunca houve um cabrão de um miliciano (médico, alferes, furriel...) ou de um oficial do quadro do exército (civilizado) do meu país (civilizado) que dissesse: "este homem é um doente, não pode ser soldado!"... Eu sabia que algo estava errado no comportamento, bipolar, do Abibo Jau... Simplesmente, também eu me calei... Todos nós gostávamos do lado bom do Abibo, do bom gigante do Abibo...

Na altura, foi uma trágica notícia a que o José Carlos Mussá Biai me deu (**),  confirmando os meus piores receios!... De facto, não era nada que eu não temesse...  Escrevi-lhe na altura: "Fizeste bem, Zé Carlos: é assim, falando - mesmo com o coração apertado - que a gente, tu e nós, o teu povo, os guineenses, os fulas, os mandingas e os demais povos da Guiné, vamos fazendo as contas com passado que nos atormenta, a todos, de uma maneira ou de outra... É assim que vamos exorcizando os nossos fantasmas, libertando-nos dos diabos da floresta"...

Abibo, mais uma vez, paz à tua alma (, tu que eras fula e crente e nosso camarada de armas)!... Que a tua morte não tenha sido totalmente em vão, para que os meninos do Xime e de Madina Colhido e de Bambadinca, livres de todos os pesadelos, possam hoje ouvir contar outras estórias, as dos bons gigantes da floresta, expulsos os diabos que um dia os atormentaram...

_____________



(...) Texto do nosso querido amigo José Carlos Mussá Biai (outrora, o nosso menino do Xime):

Caro Luís:

Acabo de ler depoimentos muito impressionantes que me fizeram recuar a minha infância em Xime, que você e muitos outros tertulianos bem conhecem de outros tempos.

Aquilo que o António Duarte escreveu e que lhe foi transmitido por um estudante guineense no ISEG  (***) é pura verdade.

Eu (com os meus quase 11 anos) e muitos outros, em 1974, vimos os militares do PAIGC, em dois camiões de fabrico russo, um deles completamente tapado de toldo. Passaram por Xime, de manhã, para Madina Cudjido (Colhido, como vocês dizem). Passados uns 30 minutos ouvimos muitos tiros. Só que por volta da hora do almoço ouvimos [dizer] que foram lá fuzilados 8 pessoas. E das pessoas que nós ouvimos que tinham sido fuzilados - não sei se corresponde a verdade ou não - um deles era o tal Abibo Jau (...) que esteve na CCAÇ 12 em Xime. A outra pessoa seria o Tenente Jamanca, da CCAÇ 21 que estava em Bambadinca.

Mas tudo isso não me espanta porque os meus irmãos e primos que cumpriram o serviço militar no exército português, em Farim e depois em Bissau e Bambanbadinca, também foram presos, mas felizmente não lhes aconteceu o pior.

Um abraço, José Carlos Mussá Biai (...)



(***) Vd. poste de  11 de maio de 2006 >  Guiné 63/74 - P745: Ex-graduados da CCAÇ 12 também foram fuzilados (António Duarte)

(...) Sou o António Duarte, ex-furriel atirador da CART 3493 e da CCAÇ 12 (...).Tenho escrito muito pouco, porque o tema ainda me incomoda, mas gostava de dar duas notas (...).

A primeira prende-se com o programa [da RTP 1, Órfãos de Pátria, que passou na 3ª feira]. Partilho das opiniões já expressas, traduzidas pela expressão muita parra e pouca uva. Foi pobre na forma e no conteúdo. Foi superficial e não quis ser politicamente incorrecto.

Sem querer alongar-me, gostava de apresentar um exemplo. O programa foca-se exclusivamente nos comandos africanos e, tanto quanto sei, os graduados das CCAÇ africanas, de origem local, foram também fuzilados.

Esta informação foi-me prestada por um estudante guineense, meu contemporâneo no ISEG - Instituto Superior de Economia e Gestão (ex-ISE). Referia esse jovem, que era natural de Bafatá, que grande parte dos graduados da CCAÇ 21 foram fuzilados.

Ora, para nós, ex-militares da CCAÇ 12, esta situação toca-nos profundamente, pois em 1973 esta companhia [a CCAÇ 21], que ficou em Bambadinca, comandada pelo Ten Jamanca [ex-comando africano], foi constituída, tendo por base furriéis que eram ex-cabos da CCAÇ 12 (na época colocada no Xime).

Com a ausência de referências aos outros fuzilamentos, fica a ideia de que se tratou de uma mera perseguição aos homens dos Comandos Africanos, o que realmente não foi. Foi muito mais do que isso. (...)

sexta-feira, 24 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14928: Manuscrito(s) (Luís Graça) (62): "I want you, dead or alive"




Vídeo (0' 06'') > Alojado em You Tube > Luís Graça


Lourinhã, Vimeiro, 18 de julho de 2015_Reconstituição histórica da batalha de 21 de agosto de 1808 e mercado oitocentista. Vídeo: Luís Graça (2015)




"I Want you, dead or alive"
por Luís Graça (*)


À memória do Umaru Baldé, (que morreu de sida e tuberculose, no terminal da morte que dá pelo nome de Hospital do Barro, em Torres Vedras);

do Abibo Jau (, o gigante do 1º Gr Comb da CCAÇ 12., fuzilado em Madina Colhido);

do Abdulai Jamanca (, cmdt da CCAÇ 21, fuzilado em Madina Colhido);

do Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015);

do Iero Jaló (, o 1º morto em combate, da CCAÇ 12, em 8/9/1969);

do Manuel da Costa Soares (, sold cond, da CCAÇ 12, morto em Nhabijões, em 13/1/1971, por uma mina A/C, sem nunca ter chegado a conhecer a sua filha);

do Luciano Severo de Almeida ( que terá morrido de morte violenta, já como paisano);

e dos demais camaradas da CCAÇ 12 e da CCAÇ 21,
brancos e pretos,
mortos em combate
ou abandonados à sua sorte,
depois do regresso a casa
ou da independência da Guiné-Bissau;

ao José Carlos Suleimane Baldé,
felizmente ainda vivo, espero,
a morar em Amedalai, Xime
(e o único camarada guineense da CCAÇ 12
a integrar a Tabanca Grande);

a todos os demais camaradas da Guiné
que ainda hoje estão (sobre)vivos.




Foderam-te, meu irmão!
Enganaram-te, irmãozinho!
Traíram-te, amigo!
Deixaram-te para trás, camarada!

Não, não era este país milenário
que vinha no cartaz de promoção turística,
com montes, vales e charnecas,
com rios, praias e enseadas,
com fama de gente patriótica,
riqueza gastronómica
e forte sentido identitário.

“I want you”,
disseram-te eles,
e tu respondestes sem hesitar:
“Pronto!”.

Meu tonto,
disseste "presente!",
mesmo sem poderes avaliar
todas as consequências presentes e futuras
da tua decisão,
em termos de custo/benefício.

Decidiste com o coração,
não com a razão,
deste um passo em frente,
abnegado e generoso,
mesmo sem saberes
onde era o distrito de recrutamento,
e sem sequer conheceres
o teatro de operações,
o estandarte,
o fardamento,
a ciência e a arte da guerra,
o comandante-chefe
ou até mesmo a cara do inimigo.

Um homem não vai para a guerra
sem fixar a cara do inimigo,
sem reconhecer a voz do inimigo,
pode ser que seja teu pai,
mãe, irmão, irmã,
vizinho, amigo,
ou até mesmo um estrangeiro,
um pobre e inofensivo estrangeiro,
apanhado à hora errada no sítio errado.

Camarada,
um homem não mata outro homem
só porque é estrangeiro,
ou só porque não pensa ou não sente como tu,
um homem não puxa o gatilho
ou saca da espada,
sem perguntar quem vem lá!

Enfim, não se mata um homem,
de ânimo leve,
gratuitamente,
só porque alguém o elegeu como teu inimigo.

Não, meu irmãozinho,
não eram estes outdoors
e muros grafitados,
ao longo da picada,
não, não era este trilho,
que era pressuposto levar-te
do cais do inferno
às portas do paraíso.

Sim, porque no final, 
meu irmão,
há sempre alguém a prometer-te
o paraíso,
o olimpo,
o panteão nacional
ou cruz de guerra com palma,
em troca da dádiva suprema
da tua vida,
do teu corpo,
da tua alma.

Todos te querem,
todos te queremos,
“I want you”,
sim, quero-te, mas por inteiro,
quanto mais não seja
para tirar uma fotografia contigo,
não vales nada
cortado às postas,
decepado,
decapitado,
ou, pior ainda,
perdido, errático,
com stress pós-traumático
sem bússola nem mapa,
apanhado à unha pelo inimigo,
ou fuzilado no poilão de Bambadinca
ou de Madina Colhido.
Fuzilado, és um cadáver incómodo,
apanhado, és um embaraço diplomático,
pior do que tudo isso,
doente psiquiátrico.



Não, não foi este destino
que compraste,
com o patacão do teu sangue, suor e lágrimas,
enganaram-te, os safados,
os generais
e os seus ajudantes de campo,
os burocratas da secretaria,
os recrutadores,
a junta médica,
os instrutores
e até os historiadores.

“Guinea-Bissau, far from the Vietnam”,
alguém escreveu no poilão de Brá
ou na estrada de Bandim,
a caminho do aeroporto, tanto faz,
“Tuga, estás a 4 mil quilómetros de casa”.
Ou então foi imaginação tua,
pesadelo teu,
deves ter sonhado com essa placa toponímica,
algures,
numa noite de delírio palúdico,
deves tê-la visto
a sul do deserto do Sará.

Alguém sabia lá
onde ficava a Guiné,
longe do Vietname,
alguém se importava lá
com o teu prémio da lotaria da história,
mesmo que em campanha
te tenhas coberto de glória!

Acabaram por te meter
num avião “low cost”
ou num barco de lata,
ferrujento,
deram-te um pontapé no cu
ou cravaram-te a tampa do caixão de chumbo.
"Bye, bye, my friend.
Fuck you, man”.
Nem sequer te desejaram
"Oxalá, inshallah, enxalé,
que a terra te seja leve!"

País de merda"...
Tinha razão o polícia, racista,
que te quis barrar a entrada
no aeroporto de Saigão
(ou era Lisboa ?
ou era Amsterdão?).

Quem disse que os polícias
de todo o mundo
são estúpidos ?
Até o polícia racista
entende o sofisma
do país de merda:
“Pensando bem,
soletrando melhor,
país de merda,
país de merda,
só pode ser o meu”.

Os gajos estavam fartos de ti,
meu irmão,
meu camarada,
meu amigo.
Os gajos pagavam-te,
se preciso fosse,
para se verem livres de ti,
vivo ou morto,
devolvido à procedência.

“I want you, alive ou dead”,
porque na contabilidade nacional
tudo tem de bater certo,
diz o cabo arvorado.
Todo o que entra, sai,
é o deve e o haver
do escriturário, encartado,
mesmo que seja merda:
“Garbage in, garbage out”,
se entra merda, sai merda.

Procuraram-te por toda a parte,
do Minho ao Algarve
do Cacheu ao Cacine,
só te queriam bem comportado,
escanhoado,
ataviado,
de botas engraxadas,
se possível herói de capa e espada,
medalhado, condecorado,
de cruz de guerra ao peito,
mesmo que viesses amortalhado.

E tu ?
Sabias lá tu
o que era a pátria,
onde ficava a tabanca da pátria,
onde começava e acabava o chão da pátria ?
Muito menos sabias
a geografia da guerra,
Aljubarrota,
Alcácer Quibir,
Vimeiro,
Waterloo,
La Lys,
lha do Como,
Guidaje,
Gadamael,
Dien-Bien-Phu,
Madina do Boé,
Ponta do Inglês,
Madina Belel...

Conhecias lá tu
da pátria a anatomia e a fisiologia ,
o intestino grosso e delgado,
o que é que a pátria comia,
o que é que a pátria defecava,
ou até mesmo o que é que a pátria sentia e pensava,
se é que a pátria deveras sentia e pensava.

Queriam-te sedado,
anestesiado,
amnésico, de preferência,
sobretudo amnésico.
alienado,
aculturado,
desformatado,
paisano,
só assim eles te queriam de volta
ao teu anódino quotidiano,

Meu irmão,
meu pobre camarada,
fizeste por eles
o trabalho sujo
que compete a qualquer bom soldado
em qualquer guerra.
Mas nem como soldado eles te trataram,
nem sequer como mercenário
te pagaram,
em espécie ou em géneros.

Afinal a guerra acabou,
como todas as guerras acabam,
até mesmo a guerra dos cem anos
teve um fim
com o seu rol de mortos, feridos e desaparecidos.
“Para quê mexer agora na merda, ó nosso cabo ?”,
pergunta o sorja da companhia.
“Boa pergunta, meu primeiro,
mas há muito já que eu não cheiro,
a guerra embotou-me os sentidos”.

Luís Graça
Lourinhã, Vimeiro, 18/7/2015,
Reconstituição histórica da batalha do Vimeiro (21/8/1808)
____________

Nota do editor:

Último poste da série > 8 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14846: Manuscrito(s) (Luís Graça) (61): Poema interpretativo da batalha do Vimeiro (, dedicado ao Eduardo Jorge Ferreira)

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Guiné 63/74 - P13148: A minha CCAÇ 12 (30): fevereiro de 1971: batismo dos "piras" que nos vieram render... Adeus, Bissau, em 17 de março de 1971, no T/T Uíge... A CCAÇ 12 será extinta em 18 de agosto de.. 1974 ! (Luís Graça)


Foto nº 240


Foto nº 234


Foto nº 235


Foto nº 236

Guiné > Bissau > Imagens da Bissau Colonial que deixámos, a maior parte de nós (oficiais, sargentos e especialistas, de origem metropolitana, pais-fundadores da CCAÇ 12, de rendição individual)...

O T/T Uíge levou-nos de novo a casa, com partida a 17/3/1971... E, a maior parte de nós, nunca mais quis saber da guerra nem da sorte dos nossos camaradas guineenses... A CCAÇ 12 foi desativada e extinta em 18 de agosto de 1974. E alguns destes nossos camaradas do recrutamento local, a quem demos a instrução de especialidade em Contuboel, e que fizeram a guerra connosco - sempre bravos e leais - foram as primeiras vítimas da "justiça revolucionária" do PAIGC, como foi o caso do Abibo Jau, o "bom gigante" do 1º Gr Comb, que era comandado pelo alf mil op esp Francisco Moreira.

Conforme se pode ler na ficha resumo do Arquivo Histórico.Militar que abaixo reproduzimos, a CCAÇ 12 (CCAÇ 2590 até 19 de janeiro de 1970) teve 5 comandantes, o primeiro dos quais o cap inf  Carlos Alberto Machado Brito, felizmente ainda vivo, cor inf ref.

Foi originalmente uma companhia de intervenção ao serviço do comando do setor L1 (Bambadinca). Passou a unidade de quadrícula em finais de março de 1973, rendendo  a CART 3494 e assumindo a responsabilidade do subsetor do Xime que os seus homens conheciam como ninguém e one tiveram numerosas baixas.  

Tem história da unidade até fevereiro de 1971. É uma brochura de 50 páginas, escrita, datilografada e copiada a "stencil" por Luís Graça (que pertenceu a esta companhia como fur mil armas pes inf, na realidade atirador de infantaria a quem, em vez das armas pesadas, deram uma G3, tendo integrado praticamente todos os grupos de combate e particiupado na maior parte das operações aqui descritas) (*)


Fotos: © Arlindo Roda (2010) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: L.G.]


1. Última parte da série A minha CCAÇ 12






História da CCAÇ 12: Guiné 69/71. Bambadinca: Companhia de Caçadores nº 12. 1971. Cap. II. 45-46.


2. Informação complementar do ex-alf mil at inf, cmdt do 3º Gr Comb, Abel Maria Rodrigues, com data de 16 de maio de 2014, enviada por mail, às 18h14;

Desta operacao,eu sei tudo, pois fui o actor principal. Penso que dos velhinhos só fomos três (capitão, Piça e eu). 

Depois da flagelação,  o 2º pelotao que ia na vanguarda, recusou-se a avançar .Passei com o meu pelotão para a frente e completámos a operacao sem mais qualquer problema, porque os guerrilheiros vieram esperar-nos em Madina Colhido. 

Deviam ter-se fartado de esperar por nós,  como não apareciamos desmobilizaram,deduzindo que nós já estariamos no quartel do Xime.Foi em 28/2/1971,  um domingo. 

Devo dizer que tivemos muita sorte não nos termos encontrado, pois pelo rasto que deixaram onde estiveram à nossa espera não eram poucos .

Um grande abraço.
Abel



____________


Nota do editor:

(*) Postes anteriores da série:



9 de fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11077: A minha CCAÇ 12 (28): Dezembro de 1970: Flagelação ao pessoal e às máquinas da TECNIL, na nova estrada em construção, Bambadinca-Xime (Luís Graça)


26 de novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10726: A minha CCAÇ 12 (27): Novembro de 1970: a 22, a Op Mar Verde (Conacri), a 26, a Op Abencerragem Cadente (Xime)...(Luís Graça)


30 de julho de 2012 > Guiné 62/74 - P10209: A minha CCAÇ 12 (26): Outubro de 1970: o jogo do rato e do gato... (Luís Graça)


30 de junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10094: A minha CCAÇ 12 (25): Setembro de 1970: Levando 50 toneladas de arroz às populações da área do Xitole/Saltinho, e aguardando o macaréu no Rio Xaianga (Luís Graça)


21 de maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9930: A minha CCAÇ 12 (24): Agosto de 1970: em socorro da tabanca em autodefesa de Amedalai, terra do nosso hoje grã-tabanqueiro J. C. Suleimane Baldé (Luís Graça)

20 de março de 2012 > Guiné 63/74 - P9630: A minha CCAÇ 12 (23): Julho de 1970: "pessoal não ataca população, guerra é com tropa", diz o comissário político... (Luís Graça)


16 de fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9492: A minha CCAÇ 12 (22): Junho de 1970: Um ano de comissão... (Luís Graça)


24 de novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9089: A minha CCAÇ 12 (21): Maio de 1970: Chega o BART 2917 que vai render o BCAÇ 2852 (Luís Graça)


15 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9048: A minha CCAÇ 12 (20): Abril de 1970: intensificação da acção psicossocial através de contacto pop, e suspensão temporária da actividade operacional ofensiva por causa das negociações com o IN no chão manjaco (Luís Graça)


26 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8604: A minha CCAÇ 12 (19): Março de 1970, a rotina da guerra, a visita do Ministro do Ultramar ao reordenamento de Bambadincazinho... (Luís Graça)


8 de Junho de 2011 > Guiné 63/74 - P8388: A minha CCAÇ 12 (18): Tugas, poucos, mas loucos...30 de Março-1 de Abril de 1970, a dramática e temerária Op Tigre Vadio (Luís Graça)



16 de Abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8112: A minha CCAÇ 12 (17): 14 e 15 de Fevereiro de 1970: Op Bodião Decidido, com a CCAÇ 2404 (Mansambo) e a CART 2413 (Xitole) em Satecuta, na margem diireita do Rio Corubal: morto um guerrilheiro e apreendido um RPG2

17 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7957: A minha CCAÇ 12 (14): Op Borboleta Destemida, 14 de Janeiro de 1970: a ferro a fogo no Poindon/Ponta Varela ou... como nunca confiar num guia-prisioneiro (Luís Graça)

24 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7852: A minha CCAÇ 12 (12): Dezembro de 1969, tiritando de frio, à noite, na zona de Biro/Galoiel, subsector de Mansambo (Luís Graça / Humberto Reis)


28 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7048: A minha CCAÇ 12 (7): Op Pato Rufia, 7 de Setembro de 1969: golpe de mão a um acampamento IN, perto da antiga estrada Xime-Ponta do Inglês, morte do Sold Iero Jaló, e ferimentos graves no prisioneiro-guia Malan Mané e no 1º Cabo António Braga Rodrigues Mateus (Luís Graça)

7 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6948: A minha CCAÇ 12 (6): Agosto de 1969: As desventuras de Malan Mané e de Mamadu Indjai... (Luís Graça)

7 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6686: A minha CCAÇ 12 (5): Baptismo de fogo em farda nº 3, em Madina Xaquili, e os primeiros feridos graves: Sori Jau, Braima Bá, Uri Baldé... (Julho de 1969) (Luís Graça)

25 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6642: A minha CCAÇ 12 (4): Contuboel, Maio/Junho de 1969... ou Capri, c'est fini (Luís Graça)

29 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6490: A minha CCAÇ 12 (3): A única história da unidade, no Arquivo Histórico-Militar, é a que cobre o período de Maio de 1969 (ainda como CCAÇ 2590) até Março de 1971... e foi escrita por mim, dactilografada e policopiada a stencil (Luís Graça)

25 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6466: A minha CCAÇ 12 (2): De Santa Margarida a Contuboel, 5 mil quilómetros mais a sul (Luís Graça)

21 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6447: A minha CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, Maio de 1969/Março de 1971) (1): Composição orgânica (Luís Graça)



terça-feira, 1 de agosto de 2006

Guiné 63/74 - P1011: A galeria dos meus heróis (4): o infortunado 'turra' Malan Mané (Luís Graça)


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Mansambo > CART 2339 > 1969 > "Interrogatório a um prisioneiro. Pela disposição dos presentes é fácil imaginar a brutalidade do interrogatório. O militar das patilhas sou eu, na escrita. O sorriso é o mesmo nas duas fotos. O prisioneiro era o Malan Mané".... 

Foto do arquivo pessoal do ex-Alf Mil Cardoso ; legenda do ex-Alf Mil Torcato Mendonça; cópia enviada pelo ex-Fur Mil Carlos Marques dos Santos) (1).


Texto de Luís Graça (2)

Malan Mané. Vinte anos ? Menos de vinte ? Talvez da idade dos nossos soldados mais novos. Temos alguns com dezasseis ou dezassete. Não tenho qualquer jeito para advinhar a idade dos africanos. Mas ele próprio não saberia responder. Aqui ninguém tem certidão de nascimento, cédula pessoal, bilhete de identidade, passaporte, boletim de vacinas, caderneta militar, um papel que seja, a dizer quem tu és, de quem és filho, quando e onde nasceste. Para a tropa, do recrutamento local, é-se escolhido a olhómetro: altura, peso, massa muscular… A idade não conta. Experiência de combate, quase todos a têm, os fulas desta região, ou pelo menos algum treino como milícias...

Malan Mané. Mandinga do regulado do Cuor, lá para os lados do Enxalé. Podia ter sido nosso soldado. Temos dois mandingas na CCAÇ 12: Malan Nanqui e Ussumane Sissé… Mas há mais outros dois Malan, de etnia fula: Malan Baldé e Malan Jau…

Malan Mané. Roqueteiro do bigrupo de Mamadu Indjai, um comandante de guerrilha famoso, também ele de etnia mandinga. Veste um dolmen, velho, de cor já irreconhecível. Calças rotas no joelho. Apresenta-se descalço. Está deprimido, talvez aterrorizado. Cair, vivo, nas mãos dos tugas é talvez pior desgraça do que do que ser morto em combate – deve ter ele pensado muitas vezes no mato. Ou se calhar nunca pensou nisso. É uma pergunta que não ele entende ou a que não quer responder. Pelo menos, em público, neste cenário de circo, enjaulado como um animal selvagem, rodeado de hominídeos...

Os páras, esses, não tiveram grande dificuldade em desatar-lhe a língua. Bastou-lhes encostar a faca de mato à barriga. A mala pata do Mané!... Por azar, foi apanhado pelos páras com o seu RPG-2 na mata do Rio Biesse, na região de Camará, lá para os lados de Candamã, quando o céu desabou em cima dele (3).

Está agora às ordens do comando do sector [L1]. De mãos algemadas, metido numa gaiola de jardim zoológico. Espectáculo degradante. A Convenção de Genebra sobre os prisioneiros de guerra não se aplica aqui. Oficialmente o meu país não está em guerra com ninguém, com nenhum outro estado soberano. Oficialmente não há nem pode haver prisoneiros de guerra no meu país, do Minho a Timor, passando pela Guiné. Malan Mané é bandido. Homem do mato. Turra (2).

Faz-me lembrar o Gungunhana, passeado em gaiola por Lisboa, em 1896, como troféu de caça do Mouzinho de Albuquerque. Está aqui mesmo ao lado das instalações do rancho, o refeitório dos praças. Entre a escola e o posto administrativo. Há um correpio de gente que vem ver o turra capturado pelos paras, na Op Nada Consta, em 28 de Agosto, no sub-sector de Mansambo (1). Participámos na operação. Mas a nós, ao Pelotão de Caçadores Nativos e aos gajos de Mansambo coube-nos fazer o papel da tropa-macaca.

Básicos, cozinheiros, padeiros, pintores, carpinteiros, fiéis de depósito de géneros, faxinas de bar, maqueiros, corneteiros, mecânicos auto-rodas, desempanadores, condutores auto, escriturários, amanuenses, quarteleiros, sapadores, ajudantes de capelania, operadores de transmissões, radiolegrafistas, cabos cripto, municiadores e apontadores de metralhadora Browning, caçadores e suas presas, todo o mundo tem hoje espectáculo de borla. Até a senhora professora, a única branca (cabo-verdiana, ao que parece) que reside dentro do perímetro do aquartelamento, espreita à janela da escola.


Guiné > Circa 1969 > Cartaz de propaganda das NT, dirigido ao homem do mato...

Imagem enviada por: © A. Marques Lopes (2006)

A senhora professora (que os senhores oficiais tratam com a deferência de cavalheiros) deve estar a olhar para o prisioneiro como o bicho do mato que lhe apareceu nos pesadelos nocturnos. Ou talvez não. Se calhar é simpatizante do PAIGC. Ou até mesmo militante. Nunca lhe soube a idade nem o nome. Vejo-a agora de relance. E pergunto-me como terá reagido ela ao ataque ao aquartelamento em 28 de Maio de 1969. Se calhar portou-se com mais dignidade do que alguns dos militares que deveriam saber defender a sua unidade (5).

Intriga-me a situação desta estranha personagem: uma mulher, mestre escola, talvez à beira da reforma, que insiste em viver aqui, no cú do mundo. Numa terra inóspita. Não sei donde veio. O chefe de posto é de Cabo Verde, como manda a tradição. Desde, pelo menos, os tempos de Honório Pereira Barreto, comendador da Ordem de Cristo, tenente-coronel de Artilharia de segunda linha, governador de Bissau, de Cacheu e da província da Guiné, por carta de 24 de Janeiro de 1885, e que tem nome de rua no Porto...

Na realidade, a Guiné é (ou foi) uma colónia de Cabo Verde. Missionários e missionárias, oriundos da Europa, nem sequer os há aqui. Comerciantes tugas, só dois, perfeitamente cafrealizados, como se dizia no vocabulário colonial e racista dos europeus do Séc. XIX que exploravam estas paragens inóspitas.Os dois tugas vivem fora do perímetro do quartel. Um deles tem um bando de filhos, de mãe negra. O Rendeiro. Já nos convidou para lá ir comer a sua famosa galinha à cafriela. Fala dos filhos com ternura. Uma das raparigas está a estudar na Metrópole. Contou-nos a sua história. Veio da Murtosa, salvo erro, muito jovem ainda. Aos dezassete anos. Compra mancarra, vende arroz. Procura cultivar boas relações com a tropa. Acho-o demasiado afável...

Mas voltando ao Malan Mané: uns mandam-lhe piropos, outros dão-lhe um cigarro. Ou oferecem-lhe uma garrafa de cerveja, que ele recusa, delicadamente, como bom muçulmano que deve ser. Não entende as provocações que lhe dirigem:
- Então, pá, quantos tugas já mataste com o teu rocket ?

Há ordens, do comando, para o tratar bem. Tem-se mostrado colaborante. E para começar nada como um bom prato de bianda, arroz com mafé. Come com dignidade. No mato a vida é dura. Uma refeição por dia, um maço de cigarros por mês. Farda e botas novas só para os chefes. Bajudas, manga di sabe, também só para os chefes, imagino. Todos iguais, mas uns mais iguais do que outros.

Tinha começado a aprender o português há pouco tempo. Sabe algumas letras do alfabeto latino. Não sei se chegou a aprender o Alcorão. Com a guerra, a sociedade mandinga desintegrou-se. Muitos mandingas foram no mato. Com os balantas e os beafadas. Mas só fala o crioulo e o seu dialecto mandinga O crioulo é a língua tanto do colonizador como do PAIGC. Ninguém se entende nesta Babel sem o crioulo que é uma genial criação dos homens, de diferentes grupos étnicos, que querem comunicar entre si. O exército não faz, porém, qualquer esforço para nos ensinar o crioulo.

Malan fala pouco, a custo. As suas respostas às minhas perguntas são lacónicas, arrancadas a ferro e misturadas com um leve sorriso resignado. Procuro transmitir-lhe sinais de simpatia e de compaixão. Foi no mato ainda menino, não consegue precisar com que a idade. Não deve ter conhecido outra vida. Chefe da tabanca levara menino e mulher para o Morès com medo de avião dos tugas. Primeiro deram-lhe uma semi-automática Simonov (uma arma bem melhor que a nossa velha Mauser que está distribuída ao pessoal das tabancas em autodefesa). Começou como milícia: fazia segurança à tabanca e ao pessoal que ia lavrar a bolanha. Mais tarde, é promovido a combatente como municiador do RPG-2. Passou depois a apontador. Há um ano atrás foi ferido em combate, no Xime, quando atacava lancha-grande em Ponta Varela.

Sabia quem era o novo homem grande Bissau.
- E homem grande di bó ?, perguntei-lhe eu.
- Amílcar Cabral. – Respondeu-me, de pronto, não sem uma certa expressão de orgulho (ou foi impressão minha ?). Não, nunca o tinha visto. Só o conhecia de nome e de retrato. Comissário político falava dele e da luta di partido africano.

O intérprete é o Abibo Jau, o bom gigante epiléptico com o seu metro e noventa e tal de altura e os seus cento e tal quilos de peso. Não sei quem lhe descobriu o seu talento para torcionário. Pertence ao 3º Gr Comb, do Alferes Rodrigues. É visível o medo que o Abibo inspira ao Malan Mané (6). Um fula e um mandinga, frente a frente. Velhos ajustes de contas com a memória colectiva de cada grupo vêm provavelmente ao de cima. Fulas e mandingas já foram os donos destas terras. Conquistadores. Cada um, no seu tempo. Teixeira Pinto vingou os aristocráticos mandingas, ao subjugar os fulas. Em contrapartida, deixou a estes os papéis subalternos, mais sujos, do aparelho de repressão administrativo-militar. Os pobres dos fulas tornam-se os maus da fita, aos olhos dos outros povos da Guiné. São os cipaios, os agentes do colonialismo... Aqui, pelo menos na zona leste, os mandingas e os balantas têm um ódio de estimação aos fulas. Um ódio que é recíproco. O poder sempre soube dividir (e aterrorizar) para reinar.

Malan é franzino e frágil, embora de estatura normal. Uma criança crescida na guerra. Procuro tranquilizá-lo. Mas não adianta. Vêm buscá-lo para mais interrogatórios. O interrogador do BCAÇ 2852 é o famigerado sargento do cavalo marinho do Pelotão de Informação e Reconhecimento. Um personagem sinistro, a quem nunca dirijo a palavra. Não posso com estes gajos. Fazem o trabalho sujo. Trabalham em estreita colaboração com os pides de Bafatá. Explorando-se o seu estado físico e psicológico, e muito provavelmente sob tortura ou ameaças físicas, o Malan Mané acabou por dar com a língua nos dentes e revelar mais algumas informações preciosas, comprometendo a segurança dos seus companheiros.

Foi a minha primeira grande decepção em relação aos guerrilheiros do PAIGC. Ingenuamente, eu julgava-os da estatura humanal, moral e até intelectual de um Che Guevara ou de um Amílcar Cabral!... Que idiota!... Acredito que a escola de guerrilha do PAIGC tenha formado já grandes combatentes e comandantes. Mas o pobre do Malan Mané não é muito diferente dos meus soldados e de mim próprio: fomos todos apanhados na rede como cães vadios; somos todos vítimas da História; nascemos no sítio e na data errados… Se eu fosse guinéu, muito provavelmente estaria a combater, com ou sem convicção, num dos dois lados da barricada.

Por um dia, O Malan Mané foi o meu herói, o meu anti-herói (7)...

O Malan Mané, se hoje ainda for vivo (8), terá por volta de 55 anos. Há muito que ultrapassou a esperança média de vida, à nascença, estimada para os homens da sua geração. Se alguém o descobrir, lá para os lados do Enxalé ou nalguma outra tabanca do antigo regulado do Cuor, mandem-lhe um abraço meu.

A última vez que o vi, ia preso por uma corda, à guarda do Iero Jau (9). Foi gravemente ferido por um diligrama nosso, no assalto a um acampamento da guerrilha na Ponta do Inglês. Na madrugada do dia 7 de Setembro de 1969. Não sei se sobreviveu aos ferimentos. O Iero Jau morreu. Morreu a meu lado. O Malan, também a meu lado, ficou gravemente ferido e foi evacuado para Bissau (8). Mesmo que tenha sobrevivido e chegado a ver a independência da sua terra por que lutou, não sei o que lhe terá acontecido depois.

Não sei como é que o PAIGC, organizado à boa maneira marxista-leninista, terá lidado com este e outros casos de colaboracionismo de antigos combatentes, feitos prisioneiros. Colaboracionismo ? Delação ? Traição ? Um homem não nasce herói. Mas eu posso testemunhar que o Malan Mané tentou resistir, tentou ludibriar-nos. Não demos com o acampamento da Ponta do Inglês, à primeira, em 25 de Agosto de 1969. Ele alegou que o capim estava muito alto e que se perdera. O tanas! O tipo conhecia aquilo de cor e salteado, de olhos vendados. Resistiu enquanto pôde, o pobre diabo.

Só lá voltámos, à toca do lobo, no dia 7 de Setembro (Op Pato Real). Os espíritos da floresta (bons ou maus, quem sabe distingui-los ?) não lhe perdoaram. Se ele morreu, de morte natural, em consequência dos seus ferimentos, ou de morte matada, dentro da lógica infernal dos movimentos revolucionários que acabam sempre por devorar as suas criaturas, espero ao menos que o seu fantasma continue a vaguear, agora mais tranquilo, pela orla da bolanha do Poidon, com o seu RPG-2 ao ombro, ou a sua velha Simonov a tiracolo, guardando desta vez os bons espíritos da terra. Para que eles iluminem o presente e o futuro daquela terra onde um dia nasceu uma criança, de seu nome, Malan Mané, e a quem cedo, talvez demasiado cedo, deram uma arma e uma bandeira. E onde nós próprios fomos soldados contra a nossa própria guerra. Eu, pelo menos, fui.
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Notas de L.G.

(1) Vd. post de 25 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P906: CART 2339 e Malan Mané, duas estórias para duas fotos (Torcato Mendonça)

(2) Há uma outra versão anterior: vd post de 9 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLVII: Malan Mané, guerrilheiro, vinte anos, mandinga

(3) Sobre a Op Nada Consta, vd. post de 30 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXX: A CAÇ 12 em operação conjunta com a CART 2339 e os paraquedistas (Agosto de 1969)

(4) Vd. post de 25 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXXI: Cartazes de propaganda dirigidos aos "homens do mato"

(5) Bambandinca foi atacada ("flagelada", segundo a expressão, mais light, das autoridades militares locais), no dia 28 de Maio de 1969, "durante 40 minutos", por um grupo de uma centena de guerrilheiros ("elementos IN"), usando um forte dispositivo militar que incluiu, entre outros, 3 canhões sem recuo, além de vários morteiros, lança-rockets e armas automáticas.

Apesar da envergadura do ataque, houve apenas 2 feridos entre as NT. Por razões disciplinares, todos os oficiais superiores do BCAC 2852 foram punidos pelo Com-Chefe, a começar pelo comandante (tenente-coronel Pimentel Bastos, mais conhecido pelo diminuitivo Pimbas), na sequência desta ousada iniciativa do PAIGC, conduzida em resposta à grande operação de limpeza no Sector L1 a que foi dado o nome de código Op Lança Afiada (8 a 18 de Março de 1969).

Vd. post de 31 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXI: As grandes operações de limpeza (Op Lança Afiada, Março de 1969)


(6) O Abibo Jau consta da lista dos guineenses que combateram do nosso lado e que terão sido fuzilados a seguir à independência: vd. post de 12 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLIX: O fuzilamento do Abibo Jau e do Jamanca em Madina Colhido (J.C. Bussá Biai)

(7) Vd. posts anteriores:

13 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CLXXXVIII: A galeria dos meus heróis (1): o Campanhã ;

14 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLII: A galeria dos meus heróis (2): Iero Jau

sexta-feira, 12 de maio de 2006

Guiné 63/74 - P749: O fuzilamento do Abibo Jau e do Jamanca em Madina Colhido (J.C. Bussá Biai)



Guiné > Brá > 1966 > O Alf Mil Briote, à esquerda, ladeado de dois dos primeiros comandos africanos, o Jamanca e o Joaquim. Esta era a 1ª equipa do seu grupo de comandos. Em vésperas da Op Atraca. O Jamanca será mais tarde ofical da 1º Companhia de Comandos Africanos, participará na Op Mar Verde (invasão da Guiné-Conacri, em 22 de Novembro de 1970) e comandará, em 1973, a CCAÇ 21, da qual farão parte antigos graduados africanos da CCAÇ 12. A CCAÇ 12, provavelmente refrescada, foi colocada no Xime, de meados de 1973 até ao final da guerra, e dela fez parte o furriel miliciano António Duarte, membro da nossa tertúlia. A CCAÇ 21 ficou em Bambadinca como unidade de intervenção (LG)

Foto: © Virgínio Briote (2005)


1. Texto do nosso querido amigo José Carlos Mussá Biai (outrora, o nosso menino do Xime) (1):

Caro Luís:

Acabo de ler depoimentos muito impressionantes que me fizeram recuar a minha infância em Xime, que você e muitos outros tertulianos bem conhecem de outros tempos.

Aquilo que o António Duarte escreveu e que lhe foi transmitido por um estudante guineense no ISEG é pura verdade.

Eu (com os meus quase 11 anos) e muitos outros, em 1974, vimos os militares do PAIGC em dois camiões de fabrico russo, um deles completamente tapado de toldo. Passaram por Xime, de manhã, para Madina Cudjido (Colhido, como vocês dizem). Passados uns 30 minutos ouvimos muitos tiros. Só que por volta da hora do almoço ouvimos [dizer] que foram lá fuzilados 8 pessoas. E das pessoas que nós ouvimos que tinham sido fuzilados - não sei se corresponde a verdade ou não - um deles era o tal Abibo Jau (2) que esteve na CCAÇ 12 em Xime. A outra pessoa seria o Tenente Jamanca, da CCAÇ 21 que estava em Bambadinca.

Mas tudo isso não me espanta porque os meus irmãos e primos que cumpriram o serviço militar no exército português, em Farim e depois em Bissau e Bambanbadinca, também foram presos, mas felizmente não lhes aconteceu o pior.

Um abraço.

José Carlos Mussá Biai

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Nota de L.G.

(1) Vd posts anteriores do (ou relacionados com o) J.C. Mussá Biai:

10 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XVI: No Xime também havia crianças felizes (2)

20 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXII: Estou emocionado (J.C. Mussá Biai)

20 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXI: Sete mortos civis no ataque ao Xime (Dezembro de 1973)(J.C. Mussa Biai)

(2) Soldado Arvorado 82 107 469 Abibo Jau, 1ª secção, 1º Grupo de Combate, CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71), Comandante: Alf Mil Op Especiais Francisco Magalhães Moreira...

O Abibo era o nosso bom gigante, um poço de energia... Era ele que transportava às costas os restos dos nossos mortos ou até os nossos feridos... Estou ainda vê-lo a levar um dos embrulhos macabros dos camaradas, tugas, da CART 2715 que foram massacrados na Op Abencerragem Candente. Quem sabe, talvez do malogrado Cunha, do meu amigo furriel Cunha... Vd post de 25 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - VII: Memórias do inferno do Xime (Novembro de 1970)...

Mas o Abibo também era o nosso torcionário: o trabalho sujo era para ele... Nós fomos embora da Guiné, repressámos a casa e dormimos, hoje, tranquilos (?), em camas com lençóis lavados... É certo que, pelo menos no nosso tempo, travámos alguns dos impulsos de morte do Abibo... Mas, que sei eu ? Ele interrogava os nossos prisioneiros (o Malan Mané, o Jomel Nanquitande, o Festa Na Lona...), e a essas cenas eu poupei-me, nunca assisti... Eu e todos (ou quase todos) nós, os milicianos, os gajos decentes da CCAÇ 12 e das outras unidades estacionadas em Bambadinca...

Imagino o pó que os gajos do PAIGC lhe tinham... O Abibo há muito que apodrece em Madina Colhido. Mas não podemos ignorar ou escamotear que o Abibo foi uma criatuar nosso, uma peça da nossa máquina de repressão... Hoje ele teria ficado livre da tropa: sofria de epilepsia e de elefantíase... Tinha ataques frequentes. Era preciso meia dúzia de homens possantes para o segurar. Um dia vi o diagnóstico da doença dele numa ficha médica, no nosso posto clínico. O seu mau génio e o seu corpo de gigante foram postos ao serviço do exército português. Nunca houve um cabrão de um miliciano (médico, alferes, furriel...) ou de um oficial do quadro do exército (civilizado) do meu país (civilizado) que dissesse: este homem é um doente, não pode ser soldado!... Eu sabia que algo estava errado no comportamento, bipolar, do Abibo Jau... Simplesmente, também eu me calei... Todos nós gostávamos do lado bom do Abibo, do bom gigante do Abibo...

José Carlos, que raio de notícia é que me trazes!... E, no entanto, não era nada que eu não temesse... Mas fizeste bem: é assim, falando - mesmo com o coração apertado - que a gente, tu e nós, o teu povo, os guineenses, os fulas, os mandingas e os demais povos da Guiné, vamos fazendo as contas com passado que nos atormenta, a todos, de uma maneira ou de outra... É assim que vamos exorcizando os nossos fantasmas, libertando-nos dos diabos da floresta...

Abibo, paz à tua alma e que a tua morte não tenha sido totalmente inútil, para que os meninos do Xime e de Madina Colhido, livres, possam hoje contar outras estórias, dos bons gigantes da floresta, expulsos os diabos que um dia os atormentaram...

Vd post de 9 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - CXLVII: Malan Mané, guerrilheiro, vinte anos, mandinga

(...) "O intérprete é o Abibo Jau, o bom gigante epiléptico com o seu metro e noventa e tal de altura e os seus mais de 100 quilos de peso. Não sei quem lhe descobriu o seu talento para torcionário. Pertence ao 1º Gr Comb, do Alferes Moreira. É visível o medo que o Abibo inspira ao Malan Mané. Um fula e um mandinga, frente a frente. Velhos ajustes de contas com a memória colectiva de cada grupo vêm provavelmente ao de cima.

"Fulas e mandingas já foram os donos destas terras. Cada um, no seu tempo. Teixeira Pinto vingou os aristocráticos mandingas, ao subjugar os fulas. Em contrapartida, deixou a estes os papéis subalternos, mais sujos, do aparelho de repressão administrativo-militar. Os pobres dos fulas tornam-se os maus da fita, aos olhos dos outros povos da Guiné. Aqui, pelo menos na zona leste, os mandingas e os balantas têm um ódio de estimação aos fulas. Um ódio que é recíproco. O poder sempre soube dividir (e aterrorizar) para reinar" (...).