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quarta-feira, 24 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22747: Memória dos lugares (432): Tabatô, a tabanca da utopia, a 10 km, a nordeste de Bafatá - Parte III


Guiné-Bissau > Bissau > Dezembro de 2009 > Hotel SPA Coimbra, sito na Av Amílcar Cabral >   Da esquerda para a direita, o João Graça, músico e médico,  português, o Mamadu Baio (músico da tabanca mandinga de Tabatô,), Victor Puerta (cooperante espanhol / Barcelona, ONG Intercanvi), Catarina Meireles (médica portuguesa), Jandira (só se vê o rosto,  guineense, à data era namorada do Alexandre Lopes um dos donos do Hotel SPA Coimbra)...

A menina da frente e o primeiro rapaz (de pé.  não recordo o nome, convivi pouco, ) eram namorados, e estavam em cooperação mas no âmbito informático/administrativo em Bissau. Também já não  recordo se eram portugueses.

A última pessoa sentada é a Enf Luísa, de Coimbra, no mesmo projeto que eu - ONG Saúde em Português. Éramos como D. Quixote e Sancho Pança (não sei quem era o quê... ehehe) e auto-batizamo-nos de Catarina Sanhá e Luísa Baldé .... ehehehehe.

O último senhor em pé é o Dr. Miguel Lopes - dono/proprietário do Hotel (com o irmão Alexandre e a mãe, D. Francelina).
 
Local: lobbi bar do restaurante do Hotel Spa Coimbra (recentemente inaugurado). Este jantar foi-nos oferecido, a mim e à Luisa, em gratidão à alegria que levávamos à Casa (e despedida antes de Natal... também)!
 
Foi-nos permitido convidar amigos e, de entre aqueles que estavam em Bissau e podiam vir... resultou esta fabulosa moldura humana.

Legenda: Catarina Meireles (2021)
 
Foto: © João Graça  (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complemenetar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné-Bissau > Região de Bissau > Tabatô > 28 de Novembro de 2009 > A cerimónia do Tabaski... em que pela 1ª vez participaram três europeus, não-muçulmanos, duas portuguesas e um espanhol... Uma das portuguesas foi a Catarina Meireles, médica, que aparece nas fotos a seguir,  nas fso (a 3ª, a contar de cima), com uma criança mandinga ao colo; e na 2ª, partilhando a refeição)... Na 1ª foto, de cima  a temos uma vista geral da assembleia, durante a cerimónia do Tabaski, na aldeia mandinga de Tabatô, a ea nordeste de Bafatá, a escassos 10 km. 



Guiné-Bissau > Região de Bissau > Tabatô > 28 de Novembro de 2009 > Festa do Tabaski >  O Mamadu Baio ,. à esquerda, partilhando a refeição do dia com a Catarina  Meireles e um putro estrangeiro


Guiné-Bissau > Região de Bissau > Tabatô > 28 de Novembro de 2009 > Festa do Tabaski >  A Caytarina Meirelss com um menina mandinga
 

Fotos (e legendas): © Catarina Meireles   (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complemenetar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Tabatô > 16 de dezembro de 2009 > 9h30 > O chefe da aldeia, Mutar Djabaté, pai do músico Kimi Djabaté, e ele próprio um grande balofonista (tocador de balafon)... É um dos atores principais do filme do João Viana, "A batalha de Tabatô" (2013), juntamente com Fatu Djabaté e Mamadu Baio. Sinopse do fil
me: "Depois de anos a viver em Portugal, o pai de Fatu regressa a África para assistir ao casamento da filha com Idrissa Djebaté. Ela é professora universitária e seu futuro marido é um músico conhecido. A festa de casamento é em Tabatô, um lugar extraordinário onde todos os seus habitantes são, há 500 anos, músicos djidius, cantores-poetas que narram contos e lendas representativos da vida africana. No caminho até lá, à medida que as recordações se avivam, o velho senhor começa a revelar traumas esquecidos da sua juventude, enquanto soldado mandinga na guerra colonial, décadas antes.
Filmado na Guiné- Bissau, é a primeira longa-metragem de ficção de João Viana, que foi distinguido com uma menção honrosa na edição de 2012 do Festival Internacional de Cinema de Berlim." CineCartaz / Público.

Foto (e legenda): © João Graça   (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 

1. Tabatô passou-nos completamemte ao lado, ao tempo da guerra colonial, Era uma aldeia, discreta, de músicos, com raízes ancestrais no antigo império do Mali e depois no reino do Gabu, Fica a 10 km, a nordeste de Bafatá, do lado direito da estrada que segue para Contuboel (e a cerca de 15 km, a sul desta povoação, onde  alguns de nós estiveram no respetivo Centro de Instrução Militar, em 1969)(*).

Depois da independência da Guiné-Bissau, form etnomusicólogos, como o canadiano Sylvain Paneton quem pôs Tabatô no mapa, com um estudo "seminal", de 1987, sobre o "balafón" (**).

Mas só em março de 2010 é que se realiza o Festival de Cultura Tradicional do Balafon, que traz à aldeia a conunicação social (rádio, televisão, jornalistas, nacionais e estrangeiros). Mas uns meses antes a aldeia era visitada por potugueses, como o João Graça e a Catarina Meireles, ambos médicos. Notável é o facto de, sendo mulher, a Catarina  ter conseguid conseguido  mesmo assim participar na festa do Tabaski (***), o que a antropóloga social brasileira   ainda não conseguira. É desta investigadora o importante estudo sobre a música afro-mandinga, com raiz em Tabató (****):

Eis alguns excertos sobre Tabatô e a sua população e a sua história, extraídos da tese de doutoramento da Carolina Carret Höfs, com a devida vénia:

(...) Está localizada a 12 km de Bafatá, na zona leste do país, e (...) é conhecida pela sua população ser maioritariamente de griots ["djidius"] , apesar de ser dividida em duas metades.

(...) A segunda metade é habitada pelos descendentes do régulo fula. Há ainda em Tabato uma família que é tida como de cativos, sendo o patriarca destes o homem mais velho da tabanka, mas que não tem a autoridade do patriarca de apelido griot.

(...) Embora considerada uma tabanca mandinga, Tabatô está sob o regulado de um homem fula, que mantém uma certa autoridade sobre os mandingas que ali vivem, como podemos ver na maneira como exerce a sua autoridade nas reuniões na mesquita, em que se fala fula, e nas reuniões sobre assuntos da tabanca, como foi a dos preparativos para o Festival de Cultura Tradicional do Balafon, realizado em Março de 2010 [e que deu grande visibilidade nacional e até internacional a Tabatô].

Naquela altura, era imprescindível o aval do régulo fula como também de um guia de visitas, que foi preparado para receber a comitiva vinda de Bissau. A casa do régulo antigo estava entre os outros pontos de interesse, como o polón (a grande árvore em que está enterrado o patriarca), o mato sagrado, a casa-museu. (pág. 63)

(...) Tabato é uma pequena aldeia formada por uma moransa de descendentes do régulo fula
responsável pela vinda da família de Bundunka Djabaté para aquela zona do país. Estas casas foram construídas na primeira metade da aldeia, ao passo que os descendentes do griot mandinga ocupam a segunda metade das terras.

Estava-se nos fins do século XIX, quando Bundunka Djabaté chegou a Tabatô com as
suas esposas e os seus dois filhos, partindo de Kankan na Guiné-Conakry, a chamado de um
régulo fula cuja família, pouco a pouco, se foi espalhando por outras tabancas que pudessem nomear em língua fula, ao contrário do que se passou em Tabatô, uma das poucas localidades com nome mandinga que restaram depois da Guerra de Kansalá, quando o Império do Futa- Djalon se instalou onde antes estava o Reino do Gabu, última fronteira do Império do Mande (...).

Tabatô é uma referência também para griots de outras famílias na Guiné-Bissau, que
foram até lá para estudar com Ba Djabaté, e outros “grandes”, a arte do balafon e da djaliá. (pág. 214).

(...) Mutar Djabaté é hoje o homem grande de Tabatô, descendente do fundador da tabanca e, como chefe de família, ele é papesinho (pai pequeno) das gerações mais jovens, razão pela qual lhe devem respeito e sempre lhe apresentam, a ele e ao Conselho da família, as suas vontades, projectos e ideias. (...) (pág. 75)

(...) Até ao fim dos anos 1970 [, ou seja, desde a administração portuguesa até ao fim do regime de Luís Cabral ], os griots [ leia-se "djidius", em crioulo ] que ali estavam [ em Tabatô] viviam quase exclusivamente da sua arte [, atuando em festas, casamentos, choros...] o que ao longo do tempo se tornou insustentável pela própria conjuntura do país, obrigando muitas famílias a voltarem-se para a agricultura de exportação [ ,caso do caju, em particular], (e não apenas de subsistência, como acontecia até então), e entrando também nos grandes circuitos do êxodo rural [, estabelecendo-se em Bissau, por exemplo] e da migração internacional [, países vizinhos, Lisboa, Paris, Londres...] (...) (pág, 214).

(...) Na Guiné-Bissau e em Lisboa, os griots se apresentam não apenas em festas de
casamentos e baptizados ou no tabaski (a festa que celebra o fim do jejum do Ramadão),
como também participam em eventos voltados para o activismo social e engajamento em
questões sociais, como a dos direitos das mulheres, por exemplo. Entretanto, acompanhando
os diferentes contextos em que essas festas e suas actuações se dão, podemos perceber uma
diferença na maneira de se apresentar e realizarem sua performance, muito embora em todos eles preza-se por manter o propósito do djumbai, ou seja, do levar diversão às pessoas
presentes, mantendo aceso um dos propósitos da djaliá. (...) (pág. 157).

 
2. Grande exemplo do ecumenismo e da hospitalidade que em 2009 já se praticava em Tabatô,  é este relato da (Ana) Catarina Meireles (que hoje vive em Braga e é especialista em medicina geral e familiar). Merece voltar a ser reproduzido aqui no nosso blogue (***).


O Tabaski em Tabatô

por Catarina Meireles


No passado fim de semana (26-27 de nivembro de 2009) fui ao Tabaski - cerimónia de imolação do carneiro (por analogia: Páscoa dos Muçulmanos).

Depois de muitas resistências, dúvidas, declinações... lá consegui que me deixassem assistir ao ritual ("eucaristia") numa tabanca perto de Bafatá, de seu nome Tabatô - muito especial, particularmente pela sua forma de vida comunitária, que assenta na música e dança étnicas. São fabulosos!

Fui com mais uma amiga (portuguesa) e um amigo (espanhol). Vestimos roupas típicas, ocupamos as posições indicadas (segundo a ordem social vigente) e imitamos tudo o que nos diziam para fazer... E não me senti diferente... ao contrário, até me senti mais especial!

No fim do ritual, chamaram-nos (aos 3 brancos) para junto dos Homens Grandes e ajoelhámos em círculo.

Para quê? Para dar graças a Alá por esta dávida - pela primeira vez 3 brancos visitaram aquela tabanca no dia do Tabaski. Era um sinal divino de prosperidade e de vida longa (incluindo para nós!)

As explicações foram reforçadas várias vezes para que percebessemos o quão importante e bem-vinda era a visita dos 3 brancos.

Eu disse...
- Sim, 3 é número sagrado!

Eles rejubilaram com o entendimento do misticismo!

Foi-me pedido que falasse... e falei. Pedi uma cadeia de união - corrente de mãos dadas. Expliquei como fazer e disse:
- Não há preto, não há branco, somos todos irmãos... daí esta cadeia de união.

E do meu lado esquerdo soou uma voz meiga, dum dos homens que me acolheu nas 3 vezes que fui a essa tabanca:
- Obrigado, Fátima de Portugal!

Catarina Meireles

Bafatá, 1 de Dezembro de 2009


3. Mensagem da Catarina Meireles (que foi minha aluna em 2007, na ENSP / Universidade NOVA de Lisboa), com data de 22 do corrente (, respondendo a uma mensagem minha, e ao meu comentário: "Catarina, que bom saber de si, ter notícias suas, sentir que continua a ser o mesmo maravilhoso ser humano que eu conheci há de mais uma boa dúzia de anos, não ?!"):

(...) Bom dia a todos! Estive lá, na mesma altura com do seu filho João. Fui algumas vezes, a Tabatô, por ser realmente perto de Bafatá. Lá vivi o Tabaski (matança do carneiro) de 2009... E partilhei consigo, Professor. Aldeia verdadeiramente especial, Pessoas incríveis... Ainda hoje as sinto.


E sabe o curioso? Em 2010 fui a Cabo Verde, à ilha da Boavista... E num dia a passear pela rua se vendedores de artesanato encontrei alguém... Um homem dessa aldeia de Tabatô - uma Alegria imensa para ambos!!!

Eu dei-lhe "notícias da terra", pois não ia lá há anos... Contei-lhe do terreiro, festas para turistas, do novo poço da aldeia, da escola, das filhas do primo Figgi...

Os dois, de lágrimas nos olhos e coração cheio, demos um Abraço que só a Fraternidade Universal pode entender!

Manga di  Mantenhas!
Que bom recordar depois de tantos anos... (parece que foi ontem) 

Ana Catarina Meireles (...)


____________

Notas do editor:

(*) Vd. postes de 


22 de novembro de  2021 > Guiné 61/74 - P22741: Memória dos lugares (431): Tabatô, a tabanca da utopia, a 10 km, a nordeste de Bafatá - Parte II

(**) Vd. Sylvain Paneton . Le balafon mandinka mori. Compte-rendu et perspectives de recherches et d’études en Guinée-Bissau. Dissertação de Mestrado de Artes em Musicologia
apresentada à Faculdade de Música da Universidade de Montreal, 1987  (Mimeo).

(****( Vd. poste de 8 de julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6695: Memória dos lugares (89): Bafatá, Tabatô, Tabaski 2009: Não há preto nem branco, somos todos irmãos, disse a Fátima de Portugal numa cadeia de união... (Catarina Meireles)

(****) Carolina Carret Höfs - Griots cosmopolitas : mobilidade e performance de artistas mandingas entre Lisboa e Guiné-Bissau. Tese de doutoramento em antropolgia social. Lisboa: Universidade de Lisboa, 2014, 271 pp.  Disponível em https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/12136/1/ulsd068997_td_Carolina_Hofs.pdf
 
 

quarta-feira, 7 de abril de 2021

Guiné 61/74 - P22076: Antropologia (42): "Grandeza Africana, Lendas da Guiné Portuguesa", por Manuel Belchior (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Setembro de 2020:

Queridos amigos,
A recolha que Manuel Belchior fez no Gabú abre preciosas pistas de trabalho. Recorde-se a importante investigação de Carlos Lopes sobre o Kaabunké, o Império do Cabo tinha vasto território na colónia portuguesa. Há lendas muito antigas que os povos não esqueceram, como Sundjata Keitá, o fundador do Império do Mali, aliás estes trovadores que ao longo de séculos exaltaram estes heróis não circunscrevem o território, tanto podem falar do Sudão como da África do Noroeste, as narrativas precipitam-se para os combates entre Mandingas e Fulas, estamos já no século XIX, estes heróis vão entrar no ocaso com a chegada dos franceses, dos ingleses e dos portugueses no chamado período da ocupação, as três potências coloniais introduziram um enquadramento político-administrativo que desmantelou os velhos poderes. São lendas onde há por vezes sinonímia com os quadros lendários indo-europeus: lealdade e deslealdade; amizade e traição; bravura descomunal... E ficamos a saber como estes reinos viviam em guerras permanentes e se dedicavam ao tráfico de escravos. São linhagens que o povo ao longo dos tempos recordou sempre graças aos trovadores, foram estes artistas que comoveram os povos falando-lhes de uma identidade perdida, nesses tempos remotos de grandeza africana.

Um abraço do
Mário


Grandeza Africana, Lendas da Guiné Portuguesa, por Manuel Belchior (2)

Mário Beja Santos

Manuel Belchior, já aqui abordado a propósito dos seus livros Contos Mandingas e Os Congressos do Povo da Guiné, era funcionário colonial com habilitações superiores, uma longa carreira administrativa no Ultramar Português (de 1938 a 1961), depois foi investigador da Junta de Investigações do Ultramar, em serviço da qual se deslocou à Guiné numa missão que está na base que tornou possível a publicação deste livro. "Grandeza Africana" foi editado pela Mocidade Portuguesa, não se menciona a data. A capa e as belíssimas ilustrações são de José Antunes. No Gabú, contatou o régulo Alarba Embaló, descendente dos Embalocundas, que governaram durante muito tempo o Gabú unificado – o régulo Monjur era descendente desta família. Alarba Embaló deu meios a Manuel Belchior para ir conhecendo narrativas orais transmitidas de geração em geração, neste caso o repertório envolve duas importantes etnias, Fulas e Mandingas.

A recolha de Manuel Belchior permite uma viagem pelo tempo, começando em Sundjata Keitá, fundador do Império do Mali, filho do rei de Mandem, são narrativas de bravura, elegias de fraternidade, trata-se de uma preciosa recolha que permite, a despeito de todas as interrogações que levantam as narrativas orais, não abonadas por documentação factual, entender como se ergueram impérios, como ainda subsistem heróis lendários como Coli Tenguelá, Alfá Moló, figuras de transição de um império em franca decomposição cuja machadada final foi dada pela chegada da potência colonial, que trouxe uma nova organização político-administrativa. Era indispensável, como ponto de referência incontornável, falar da batalha de Cam Salá. Obrigatório é também a canção de Quelé Fabá, como sempre a descrição tem consideráveis semelhanças com a mestiçagem da descrição africana e islâmica, veja-se o caso:

“Quelé Fabá Sané, natural de Badora, era o maior guerreiro das terras de Bafatá e Gabú. Ninguém o igualava em temeridade e destreza. Tão alto subiu a sua fama que vários régulos, quando empenhados em guerras, pediam seu concurso.

Um dia, Demba, senhor de Baria e seu amigo, chamou-o para o auxiliar a combater um chefe vizinho poderoso.

Pôs-se Quelé Fabá a caminho, acompanhado da sua mulher, Fendabá, mas antes de partir jurou na sua tabanca que, nem na guerra, nem tão pouco na viagem, voltaria a cara para trás.
A certa altura necessitaram de atravessar um rio e, na canoa, o herói esqueceu-se do juramento feito. Para melhor conduzir o barco ficou de frente para o ponto de partida. Vendo isto, Fendabá gritou: - Que desgraça! Lembra-te do juramento! Entristeceu Quelé Fabá e disse que o seu esquecimento era presságio de que ia morrer na luta”
.

É bem curioso, como observam investigadores das Literaturas Comparadas, as analogias de temáticas clássicas, a quebra do juramento, o olhar para trás e aparece igualmente no mito órfico.

Pondo termo a estas lendas da Guiné Portuguesa coligidas por Manuel Belchior, recordemos seguidamente Samori Touré, de quem Sékou Touré se dizia descendente, o religioso Fodé Bacar Dumbiá, que tratava as suas duas mulheres desigualmente, ele reparou na injustiça e da relação nasceu Fodé Cabá. 

Tudo se passa no final do século XIX, o Islamismo ia triunfando por todo o imenso Sudão e, de uma maneira geral, em toda a África do Noroeste, Fodé Cabá aplicou-se na conversão dos djolas, povo idólatra que vivia no Baixo Casamansa, criou um reino cujas fronteiras tocaram o de Mussa Moló, rei de Firdu, crescem as tensões e depois a guerra. São, curiosamente, heróis que vão desaparecendo. Associado a esta história de Fodé Cabá temos outra narrativa, o primeiro combate de Demba Agedá, vê-se claramente tratar-se de uma história apologética do triunfo do Islamismo.

Já com relação a uma outra história lendária que envolve o régulo Monjur, do Gabú, temos o cativeiro de Selu Coiada, príncipe Fula-Forro. O rei do Firdu, Mussa Moló, foi visitá-lo, era um cortejo de 300 cavaleiros ricamente vestidos. A alegria do encontro foi turvada quando um dos trovadores sentenciou: Por mais que um Fula-Preto seja rico ou poderoso, nunca o seu valor pode igualar o de um Fula de raça. Da amizade passou-se ao ódio e depois a vingança. 

Manuel Belchior aproveita para fazer alguns comentários. Selu Coiada sucedeu a seus irmãos Alfá Bacar Guidali e Alfá Mamadu Paté no trono do Gabú, que transitou a seu sobrinho Monjur Embaló, falecido em 1926. Os soberanos do Gabú pertenciam à família dos Embalocundas. As autoridades portuguesas da Guiné intercederam junto das autoridades francesas do Senegal para que estas alcançassem de Mussa Moló a liberdade de Selu Coiada. O príncipe Fula-Forro foi entregue ao comandante português de Farim por uma escolta francesa.

História bem curiosa é a narrativa que fala da conquista do Futa-Djalon. O soberano da região, o Almami Abubakar, confiou ao seu parente Alfá Iáiá a chefia dos 666 regulados da região de Labé, por um ano. Alfá recusou-se a entregar o mandato, seguiu-se guerra, o Almami foi vencido, outros intercederam, Alfá também foi vencido. O Almami procurou fazer as pazes com o seu parente. 

Intervêm os franceses, passaram a ser os senhores do Futa-Djalon, onde somente Alfá Iáiá, no Labé, guardaria por pouco tempo uma certa independência. Noutra narrativa, assistimos à deposição de Alfá Iáiá, o último grande senhor do Futa. E termina a obra de Manuel Belchior com a canção de Cherno Rachide, que habitava em Aldeia Formosa ou Quebo, cuja letra é a seguinte:

Filhos amados, vosso pai Rachide
Uma regra de vida nos vai dar,
Segui-a com rigor e não tereis
Nada que lastimar.

Raparigas sabei que um homem espera
Encontrar na mulher três qualidades:
Respeito aos seus segredos, ao seu leito
E a todas as vontades.

A vós rapazes dou-vos um conselho
Que todo o sábio para si tomou
De outro, inda mais sábio, Logomane
Que outrora assim falou:

- Deves ter fé em Deus que tudo vê
E tudo pode acerca dos mortais
Trabalha com ardor e serás útil
A ti e aos demais.

- Estuda e elevarás a tua alma
Que os livros te podem ensinar
Muitas coisas formosas deste mundo
E a Deus agradar.

- A palavra, o alimento e o sono
Como remédio deverás tomar:
O bastante p’ra que o corpo não sofra
Mas sem nunca abusar.

- A boca é uma e as orelhas duas
Isso te indica como proceder
Usa o ouvido mais do que o falar
E saberás viver.


- Em três partes o estômago divide
P’ra comida só uma reservar
As outras hão-de ser bem necessárias
P’ra água e para o ar.

- A noite é grande e não deve ser gasta,
Do sol posto a amanhã, toda a dormir,
Destina parte dela à oração,
Terás feliz provir.

- Deves casar p’ra nunca cobiçares
Mulher d’outro. Não nego, o casamento
Terás desgosto profundo.
Mas se a fêmea procura fora dele,
Em vez desse desgosto terás dois
Neste e no outro mundo.

Meus filhos, quem seguir estes conselhos
No decurso da vida há de contar
Satisfações a esmo.
E maiores triunfos que o atleta
Que vença toda a gente nos torneios,
Pois vence-se a si mesmo.

____________

Nota do editor

Último poste da série de 31 de março de 2021 > Guiné 61/74 - P22054: Antropologia (41): "Grandeza Africana, Lendas da Guiné Portuguesa", por Manuel Belchior (1) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 31 de março de 2021

Guiné 61/74 - P22054: Antropologia (41): "Grandeza Africana, Lendas da Guiné Portuguesa", por Manuel Belchior (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Setembro de 2020:

Queridos amigos,
Esgotada que foi esta edição de Grandeza Africana, o Comissariado da Mocidade Portuguesa fez uma larga edição policopiada, lembro-me perfeitamente de ter encontrado no Centro de Estudos da Guiné Portuguesa estes textos que eram ofertados e seguramente difundidos em meio escolar.

A recolha a que Manuel Belchior procedeu no Gabú vai do século XIII ao período da pacificação do século XIX-XX, nascimento, apogeu e queda de impérios, a supremacia Mandinga e a chegada dos Fulas, que irão tornar-se o poder dominante do Gabú. 

Fala-se da escravatura africana praticada entre etnias, do poder dos adivinhos, da assombração das aves e das forças da natureza, por detrás destas narrativas estão moralidades: o combate à inveja, o prémio da fidelidade, o heroísmo, o papel dos cantores-tocadores, a indumentária, a lembrança dos cavalos, símbolo de poder e riqueza. 

As narrativas mais longínquas não escapam ao discurso árabe e ao seu modo de contar, é incontestável que a literatura oral dos Fulas e Mandingas tem dado páginas muito belas que a literatura da Guiné-Bissau deverá esforçar-se por recolher e transmitir, é um dos veículos da sua identidade.

Um abraço do
Mário


Grandeza Africana, Lendas da Guiné Portuguesa, por Manuel Belchior (1)

Mário Beja Santos

Manuel Belchior, já aqui abordado a propósito dos seus livros Contos Mandingas e Os Congressos do Povo da Guiné, era funcionário colonial com habilitações superiores, uma longa carreira administrativa no Ultramar Português (de 1938 a 1961), depois foi investigador da Junta de Investigações do Ultramar, em serviço da qual se deslocou à Guiné numa missão que está na base que tornou possível a publicação deste livro. "Grandeza Africana" foi editado pela Mocidade Portuguesa, não se menciona a data. A capa e as belíssimas ilustrações são de José Antunes. 

No Gabú, contatou o régulo Alarba Embaló, descendente dos Embalocundas, que governaram durante muito tempo o Gabú unificado – o régulo Monjur era descendente desta família. Alarba Embaló deu meios a Manuel Belchior para ir conhecendo narrativas orais transmitidas de geração em geração, neste caso o repertório envolve duas importantes etnias, Fulas e Mandingas. Como escreve o autor, 

“As primeiras lendas que vão seguir-se têm o seu cenário longe das fronteiras da nossa Guiné, no velho Mandem (foco original dos Mandingas) ou no reino Fula de Maciná, e os personagens nelas referidos viveram, segundo a cronologia estabelecida por escritores e viajantes árabes, entre os séculos XIII e XV. Quanto às últimas lendas, já se passam no nosso território ou nas regiões vizinhas e narram factos ocorridos no século XIX. As lendas do Mandem e do Maciná são património histórico e intelectual tanto dos Mandingas e Fulas da Guiné Portuguesa, como dos indivíduos das mesmas etnias que se espalham por vários Estados africanos onde, se tomarmos os dois povos em conjunto, chegam nalguns casos a constituir a maioria das respectivas populações (Mali e República da Guiné) ou importantes minorias (Senegal, Nigéria, Camarões)”.

A primeira lenda diz respeito a um herói cuja memória ainda vive em toda a África Ocidental, Sundjata Keita, aquele que haveria de ser o fundador do Império do Mali, filho do rei de Mandem. Nascera paralítico, foi sujeito a uma operação miraculosa, revigorado, afrontou o usurpador, Sumaôro, que morreu em combate. Manuel Belchior aproveita a ocasião para explicar a importância dos cantores-tocadores de korá, os “judeus”. 

Em notas de rodapé, observa que Sundjata Keita venceu o rei Sôsso Sumaôro em 1225. O Império do Mali foi fundado por Sundjata e substituiu o Império de Ghana. Segue-se a lenda do cavalo Indjaru, observe-se a importância que a fauna e a flora têm nesta esplendorosa narrativa oral, mas fala-se também da fidelidade e da inveja. Ter cavalos era prova de poder e riqueza, mas a tripanossomíase destruiu a generalidade das manadas de cavalos. A terceira lenda tem a ver com uma águia, e pela sua trama sente-se a influência da cultura árabe:

“Um dia, uma águia, poisada no ramo mais alto do mais alto poilão, pôs-se a cantar os feitos do herói Gueladge. Eis o que dizia a rainha das aves: Gueladge, filho de Ambodejo, rei de Maciná, tinha um primo chamado Bubo Gorgolo, nascido da única irmã do seu pai. Bubo era valente e ninguém o igualava em beleza mas não tinha a generosidade nem a irradiante simpatia de Gueladge. Além disso, invejava o primo que, pelo contrário, era verdadeiramente seu amigo”. 

Podemos antever o desfecho e a moralidade e Manuel Belchior aproveita a ocasião para um comentário antropológico: 

“Ainda que entre os Fulas fossem reguladas pelo tipo de sucessão patrilinear, a herança do trono obedecia, pelo contrário, à regra da sucessão matrilinear. Deve ter-se dado a certa altura nos costumes Fulas uma alteração que tornou obrigatória a aplicação do sistema patrilinear à sucessão dinástica e é possivelmente esta modificação que esta lenda quer evidenciar”.

A lenda seguinte intitula-se Garba. Um pastor, durante a atividade de pastoreio, adormeceu e acordou ouvindo uma estranha canção que se elevava das águas, a partir daí não se quis afastar muito da lagoa, era um génio que a habitava, o autor da melodia. O pastor pediu ao génio que lhe desse um instrumento igual ao seu, era uma espécie de violão de quatro cordas. 

E logo se entronca outra história, o nascimento de duas crianças, filhas do patrão e de um escravo, é inevitável uma situação dramática, neste caso enfrentar o medo, uma temível cobra, toda esta moralidade para anunciar a independência do Maciná e Manuel Belchior fala também no simbolismo dos sentimentos da amizade que uniam os Fulas livres (Forros aos seus cativos cujos descendentes são conhecidos por Fulas-Pretos.

Nova história, desta feita com o título Bassaru, sempre com a musicalidade e a construção próprias para captar as audiências:

“Houve em tempos, no país Bambarâ de Segú, um rei chamado Semba Segú (força de Segú). Um dia, Semba, que já estava velho, mandou o seu filho Damansôa fazer uma correria às terras de Manciná, com o fim de obter escravos. Entre os que o príncipe trouxe, figurava um rapazito Fula, chamado Bokarjá”

Surge um sentimento afetivo entre a filha do príncipe e Bokarjá, há uma série de guerras entre o reino de Segú e o de Bassaru, este rei impunha pesados tributos a Segú, inevitavelmente é Bokarjá que derruba o déspota, o herói Bokarjá foi compensado.

Chegou o momento de falar de outra figura de renome, ainda hoje na boca dos tocadores-cantores, Coli Tenguelá, estamos em tempos recuados, um dos adivinhos do rei Samódo avisou-o que uma das suas mulheres que estava grávida ia dar à luz a criança que espantaria pelos seus feitos todo o imenso Sudão. Temendo que os outros filhos matassem o seu mais recente filho, entregou a mãe ao cuidado de um “judeu”, já estamos a ver como irá despontar o futuro herói. Teixeira da Mota referiu-se sempre ao conquistador Coli Tenguelá, que viveu no tempo do rei português D. João II.

Como o leitor pode constatar, avançamos do passado remoto para factos que ainda hoje são contados e lembrados: o reino de Alfá Moló, que compreendia territórios que pertenceram a ingleses (Gâmbia), franceses (Senegal) e portugueses (parte da Guiné Portuguesa), que acabou com o seu filho Mussá Moló, que nos primeiros anos do século XX foi destituído pelos franceses do Senegal; a batalha de Cam Salá, determinante para impor a supremacia Fula sobre os Mandingas do Gabú; a canção de Quelé Faba, que era natural de Badora e era considerado o maior guerreiro das terras de Bafatá e Gabú, esqueceu-se do juramento de que nunca voltaria a cara para trás, e segue-se uma história de redenção; Samory Touré fala da história de uma mulher que era desprezada e que deu a um homem riquíssimo um filho que ficaria conhecido, Samory Touré, que enfrentou os franceses, foi preso e deportado em 1900, Sékou Touré era sobrinho-neto do protagonista desta lenda; Fodé Cabá, homem de grande cultura, que tratava as suas duas mulheres de modo desigual e quando descobriu que a que tratava menos bem era inequivocamente a mais fiel anunciou-lhe que esperava que ela lhe desse um filho que fosse o orgulho da raça Mandinga…

Vale a pena continuar, mas já agora um apontamento sobre este Fodé Cabá que é contemporâneo (final do século XIX) do triunfo do Islamismo no imenso Sudão e na África do Noroeste, ele pretendeu a conversão dos Djolas animistas, lançou-se contra eles, o seu poder cresceu sem cessar. E ir-se-á dar um afrontamento entre Mussa Moló, rei de Firdú e Fodé Cabá, mas o significado destas disputas inter-étnicas é que todo aquele mundo estava em vias de desaparecer, os franceses arrasaram toda a oposição, estes senhores poderosos ficaram para a lenda.

(continua)

Ilustrações de José Antunes

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21870: Antropologia (40): Conto iniciático da etnia Fula, contado aos mais novos (Cherno Baldé, colaborador permanente em assuntos étnico-linguísticos da Guiné-Bissau)

Guiné > Região de Cacheu > Bigene > A festa do fanado... mandinga

Foto (e legenda): © António Marreiros (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Mensagem do nosso amigo tertuliano Cherno Baldé, ("Chico de Fajonquito", colaborador permanente em assuntos étnico-linguísticos da Guiné-Bissau), com data de 1 de Fevereiro de 2021:

Caros amigos,

Na sequência das ultimas publicações sobre cerimónias e ritos tradicionais de fanados e outros, junto envio um conto iniciático dos fulas, contado aos mais novos nessas ocasiões. Trata-se de uma amostra quando se fala das bases sociológicas em que se assentava a educação tradicional africana nas suas diversas facetas.

Todos aqueles que foram educados na base da matriz cultural da tradição africana saberão reconhecer os alicerces e suas derivações e aqueles que não o sendo tem acompanhado seus contornos poderão experimentar o prazer de navegar em águas já conhecidas e apreciadas ao longo dos últimos anos.

Se for de algum interesse, de momento, podem publicar no Blogue da TG.

Com os meus respeitosos cmpts,
Cherno Baldé


CONTO INICIÁTICO DA ETNIA FULA CONTADO AOS MAIS NOVOS

Um homem que vivia numa aldeia tinha um filho de quem gostava muito e a quem queria dar uma boa educação conforme usos e costumes da época. Depois de uma vida de criança livre de brincadeiras até à idade dos sete anos, o pai decidiu enviá-lo para uma escola corânica a fim de aprender os fundamentos da religião que orientava a vida espiritual da sua comunidade. 

Depois de muitos anos de aprendizagem e de duros trabalhos junto do seu mestre, concluiu os estudos e voltou para casa familiar.

Após o contentamento e euforia dos primeiros dias e quando o jovem se preparava para construir sua casa e ampliar a família com a constituição de sua própria família, o pai chamou-o outra vez e disse-lhe:

- Meu filho, estamos muito orgulhosos da tua dedicação ao trabalho e o teu desempenho escolar, mas acontece que na vida a escola é importante mas não é tudo. Agora vais ter que aprender na escola maior que é vida, o conhecimento sobre o mundo, suas infindáveis maravilhas, contradições e desafios, por isso queremos que partas para uma viagem de volta ao mundo, tomando a direcção que te convier - Norte-Sul-Este-Oeste - e durante o percurso vais encontrar e viver muitas situações e observar fenómenos que nunca tinhas visto e experimentado na tua vida. Em tudo deverás tirar lições que te poderão servir na vida futura, pelo que tudo que não for da tua compreensão, deverás observar direito e tomar boa nota até ao seu regresso.

No dia seguinte, o filho despediu-se da sua mãe e de toda a família, pegou na sua flecha e no chapéu de abas largas com que protegia a cabeça do ardor do sol africano e outras poucas coisas que poderia precisar durante a sua viagem e partiu rumo ao desconhecido.

Depois de muito caminhar, encontrou uma abelha que estava morta no caminho e decidiu dar-lhe sepultura, mas para sua surpresa, à medida que a enterrava e se preparava para continuar a sua caminhada a abelha emergia da terra e voltava ao mesmo sitio donde a tinha retirado antes.

 Percebendo estar diante de um fenómeno que não compreendia, lembrou-se dos conselhos do pai que lhe dissera para tomar nota de tudo que visse e lhe parecesse estranho, tomou nota e continuou a sua caminhada.

Mais à frente viu no caminho um objecto redondo que brilhava parecendo ouro, mas quando se preparava para pegá-lo o objecto transformava-se numa cobra e quando se afastava, o objecto voltava a assumir, de novo, o mesmo brilho. Percebeu estar diante de um fenómeno estranho, tomou nota e continuou. 

Prosseguindo seu caminho, viu um macaco em cima de uma árvore que, sistematicamente, metia a mão no sexo e de seguida punha na boca como se de alimento tratasse, pareceram-lhe muito estranhos e pouco higiénicos estes gestos, todavia lembrando-se dos conselhos do pai, tomou nota e prosseguiu.

Passou à frente e viu um grupo de vacas num terreno de ervas verdes e água ao redor, mas os animais eram bem magros e de aspecto triste. Não conseguiu entender o que se passava com aqueles animais, havia muita erva e água em abundância, mas mesmo assim estavam tão magros e tristes. 

Mais à frente vislumbrou um outro grupo de vacas num terreno desta vez sem ervas nem água, curiosamente, desta vez, os animais eram gordos e bem dispostos. Pareceu-lhe mais um fenómeno incompreensível, tomou nota e prosseguiu.

Continuando a sua caminhada viu, mais à frente, um porco vestido de batina, uma larga e comprida camisa que lhe ia da cabeça aos pés como se vestem os nossos almames (padres), nas mãos tinha um rosário cumprido recitando versículos corânicos. Ele que conhecia o Alcorão de cor, nunca na sua vida imaginara ver um porco religioso e eis que encontra um porco que recitava versículos. Era tudo muito estranho. 

Mais a frente viu uma outra imagem, onde o mesmo porco estava, desta vez, mais descontraído e rodeado de mulheres em ambiente que parecia de uma grande festa. O jovem ficou confuso diante deste fenómeno bizarro, lembrou-se das palavras do pai, tomou nota e continuou seu caminho. 

Cada vez mais perplexo com o que estava observando pelo caminho, prosseguiu a sua caminhada e desta vez ele viu um enorme elefante parado numa bolanha (planície) enquanto outros pequenos animais, répteis, insectos e pássaros subiam ou pousavam no seu dorso picando e alimentando-se da sua carne e bebendo do seu sangue, mas o elefante, incompreensivelmente, mantinha-se quieto e imóvel. O jovem não compreendeu porque um animal tão possante estava parado e quieto enquanto animais insignificantes o molestavam. Lembrou-se das palavras do pai, tomou nota e continuou sua viagem.

Mais à frente viu uma gazela que só tinha três pés e dum lado e doutro do corpo tinha brilho de ouro e de prata. O jovem correu atrás da gazela tentando agarrá-la ja que só tinha três pés, no entanto sempre que se aproximava da mesma esta parecia que voava e se distanciava para bem longe da sua vista. Pareceu-lhe estar diante de um novo fenómeno que não compreendia, lembrou-se do pai, tomou nota e prosseguiu. 

Continuando a sua caminhada de aprendizagem sobre a vida e o mundo e já o sol se escondia no horizonte e a noite estendia o seu manto de escuridão sobre a terra, quando o jovem resolveu entrar numa aldeia situada à beira do caminho para passar a noite a fim de prosseguir no dia seguinte. Quando entrou na primeira morança, encontrou um homem muito velho e abatido pelo peso da idade que estava sentado junto a uma fogueira, cumprimentou-o com todo o respeito e pediu asilo para uma noite pois tinha caminhado muito e estava cansado. 

O velho respondeu-lhe numa voz acabada e quase inaudível que a morança não era dele, mas do seu pai que, de momento estava ausente. O jovem ficara, mais uma vez, pensativo com a ideia de saber, se o filho estava assim naquele estado como não seria o pai. No mesmo momento surgiu a entrada da morança um homem mais novo e robusto que trazia lenha a cabeça para sua morança. O homem cumprimentou-o e confirmou que, de facto, era o pai do velho sentado junto a fogueira. Deu asilo e mandou trazer água e comida ao jovem, que, mais uma vez ficou intrigado com o fenómeno diante dos seus olhos, lembrou-se das palavras do pai, tomou nota e foi dormir para descansar, enquanto passava em revista todas as cenas de que tinha sido testemunha em tão pouco tempo de viagem.

Após alguns anos de viagem pelo mundo, o jovem decidiu regressar a casa dos pais e contar ao pai e família tudo aquilo por que tinha passado e tinha observado ao longo dos últimos anos. Enquanto ele descrevia as cenas do filme das experiências da sua viagem, o seu pai dava o significado dos diversos comportamentos e fenómenos daquilo que ele tinha visto no caminho, com que tomamos a liberdade de partilhar com os nossos estimados leitores.

Assim:

1. A abelha que ele não conseguia enterrar, é o homem de bem, homem puro, solidário e desprovido de inveja, a este homem imaculado ninguém consegue denegrir a sua imagem por mais que tentem. É o homem próximo do Deus.

2. O objecto brilhante que se transforma em cobra, é a mentira embelezada para parecer verdade, ao longe tem o brilho de ouro, mas é brilho de pouca dura, pois se a mentira pode ser o início numa relação, só a verdade a manterá.

3. O macaco que metia a mão no sexo e de seguida a levava a boca, são os nossos tempos actuais “Afri-djamanu” (África moderna), tempos em que homens e mulheres vendem seu corpo, ganham autonomia financeira vivendo por sua conta graças à prostituição, alimentando famílias inteiras.

4. O cabrito que subia o tronco da árvore com espinhos em vez dos seus semelhantes fêmeas, é o jovem que vai atrás de mulheres idosas e do sexo duvidoso e infrutífero, ele perde seu tempo, sua força e saúde, mas nunca terá progenitura.

5. O pássaro que, quando se pousava numa árvore esta perdia suas folhas, é o homem irresponsável que em sua casa não assume suas responsabilidades, mas lá fora é o homem-valentão de mãos largas e bondoso que alimenta as mulheres e filhos alheios.

6. O grupo de vacas muito magras num terreno fértil e água em abundância, são as mulheres eternamente insatisfeitas, que passam a vida a bisbilhotar na vida dos outros e levantar a vista para a casa dos vizinhos. Estas mulheres, inconformadas com as possibilidades dos seus maridos e família,  nunca se contentarão com aquilo que têm, em consequência nunca serão felizes da vida. As vacas gordas num terreno seco sem ervas nem água, pelo contrário, são as mulheres de bem, conformadas com o pouco que têm em casa e não se embirram com seus maridos.

7. O porco vestido de batina com um rosário nas mãos recitando versículos, é o rei despojado do seu trono que está a fazer figura de grande religioso. Devolvam-lhe o poder e verão que ele continua tão descrente como todos os reis e homens de poder do mundo.

8. O elefante gigante parado na bolanha e servindo de pasto aos pequenos animais, é o velho e chefe da morança (família) que com paciência, benevolência e muita resignação trabalha todos os dias para o sustento e bem estar da sua família sem esperar qualquer retribuição em troca. Em África, o mais velho é o centro do mundo, o abrigo e a lixeira onde se deita o lixo da humanidade.

9. A visão da gazela de três pés que tinha brilhos de ouro e de prata de um lado e doutro, é a visão utópica e efémera do mundo que perseguimos todos os dias, sem nunca a alcançar na sua plenitude. Significa que no mundo, ninguém deve esperar ser completamente satisfeito e que devemo-nos conformar com a nossa pequena estrela e que é o nosso destino, para a sanidade do nosso espírito e da nossa mente numa luta de permanentes (des)equilíbrios e rupturas.

10. E, por fim, o velho encontrado junto da fogueira e que era filho do outro homem, aparentemente, mais novo que ele, é a visão metafórica da inutilidade de alguns jovens da nossa sociedade actual que vivem do ócio e da futilidade, onde o corpo e a alma, rapidamente, envelhecem triste e precocemente.

Estas sessões iniciáticas em forma de lições de vida para os mais novos, eram feitas nos fanados e outros fóruns de ritual tradicional africano com o objectivo de prepará-los para a vida adulta de modo a poderem assumir plenamente suas responsabilidades como homens e futuros chefes de família.

Bissau, 1 de Fevereiro de 2021
In Conto tradicional fula, de autor(res) desconhecido(s)_apenas um exemplo.
Tradução de Cherno Baldé
Bissau-Guiné-Bissau

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Nota do editor

Último poste da série de 25 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20773: Antropologia (39): Guiné Portuguesa, breve notícia sobre alguns dos seus usos, costumes…, pelo Cónego Marcelino Marques de Barros (3) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 17 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21553: Agenda cultural (764): Exposição a não perder: As moranças da Guiné-Bissau, Museu Nacional de História Natural e da Ciência, até ao fim do ano (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Novembro de 2020:

Queridos amigos,
Andara desleixado, até que alguém advertiu que a exposição sobre as moranças guineenses estava patente até ao final do ano. Fiquei assombrado com a seleção de imagens, a doação do Arquiteto Fernando Schiappa de Campos parece ter uma dimensão impressionante, foi incansável a registar mais do que as moranças, usos e costumes, museograficamente é um atrativo para os olhos, obriga a refletir e para nós que lá vivemos é uma tremenda sacudidela na nostalgia, percorremos estas atmosferas e até colhemos bonitos sorrisos deste povo que não se ensaia pela belicosidade e que, no entanto, é dos mais afáveis do mundo. Não percam a exposição, até porque com o mesmo bilhete têm acesso ao valiosíssimo património do museu e visita ao esplendoroso jardim botânico.
Quando disse à minha neta que havia lá uma sala de dinossauros, entusiasmada, lá fomos. Depois contarei como foi.

Um abraço do
Mário


Exposição a não perder: As moranças da Guiné-Bissau,
Museu Nacional de História Natural e da Ciência, até ao fim do ano


Mário Beja Santos

Depois da aula de ginástica, quatro reformados acordaram em ir visitar a exposição sobre as moranças guineenses, supostamente já fechada ao público, descobriu-se que é possível visitá-la no majestoso edifício que foi o Colégio dos Nobres, depois Escola Politécnica e agora Museu Nacional, toca a preparar uma visita-guiada, com antropólogo e tudo. Muito está estudado sobre o habitat guineense. Teixeira da Mota, quando trabalhou como Adjunto do Governador Sarmento Rodrigues, pôs de pé um conjunto de estruturas culturais que marcaram indelevelmente o conhecimento antropológico, etnólogo e etnológico das suas populações. O oficial de Marinha convocava os administradores para produzirem estudos monográficos que vieram a ser publicados no Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, as investigações mais curtas e parcelares ficaram dispersas no valioso Boletim Cultural da Guiné Portuguesa. Sobretudo no final da década de 1940, por toda a década de 1950 e também com algum dinamismo ao longo da década seguinte, foram aparecendo trabalhos que deram conta da completa integração da morança do quadro da tabanca, o uso de materiais, a construção permitia espaços sombrios e frescos, as arrecadações, as construções de querentim permitiam a privacidade do agregado familiar, a posição estratégica da mesquita, a produção de adobe, o corte dos cibes, a lógica de pinturas, especialmente na cultura Bijagó. A Junta de Investigações do Ultramar enviou dois arquitetos e um sociólogo no fim da década de 1950 para aprofundar esse conhecimento. É do trabalho dessa missão que esta magnífica exposição revela que o investigador foi acicatado pela curiosidade e cedeu ao feitiço africano. Todas estas imagens falam de um encontro de alguém que seguramente tinha conhecimentos dos locais que visitava, mas foi tão intenso o encontro que o fotógrafo se perdeu de amores. Consta mesmo que o arquiteto Fernando Schiappa de Campos guardou esta revelação até morrer, fora deslumbramento inextinguível.
Para saber mais, quem vai visitar esta exposição pode consultar o seguinte site: https://museus.ulisboa.pt/sites/default/files/Folheto%20Moran%C3%A7as%20site.pdf
Enquanto o grupo espera a chegada do mestre de cerimónias, um tanto à sorrelfa vou até à zona do museu onde se situa o velho Laboratório de Química, que liga com o anfiteatro muitíssimo bem conservado. Nestas balaustradas, os alunos viam professores fazer as experiências que deviam ser comentadas em voz alta, os alunos nesta geral deviam ir pondo questões. Tudo obra do passado, ainda bem que estas relíquias estão primorosamente conservadas. E agora vamos começar a visita propriamente dita.
Aqui ficam as imagens de quem por lá andou e os dois aparelhos fotográficos que pertenceram a Schiappa de Campos. O nome deste arquiteto era muito conhecido, quando andei a pesquisar a história do BNU da Guiné, ele foi chamado a apresentar um projeto para a construção da nova delegação do banco em Bissau, não retive se também fora convidado para apresentar o projeto da delegação de Bafatá, prevista em 1974. Era portanto um conhecedor da Guiné, mas estas imagens não são as de um repórter seduzido, é alguém que entrou na intimidade de diferentes facetas culturais, dir-se-á hoje que procedeu inclusivo, despido de preconceitos, deixando as imagens exprimir formas de resposta àquilo que alguém designou por Babel negra.
Quem visitar a exposição registará que o fotógrafo colheu diferentes imagens deste dançarino Bijagó, ele aparece a remoinhar, aquela ráfia se sacode vertiginosamente, é uma dança que vai afrontar, pode ser um tubarão-martelo, pode ser os espíritos endemoninhados que precisam de ser aplacados pelo vigor do movimento e dos sons. E repare-se como a vida continua na proximidade, aquele toque de quotidiano que nos é dado pelo arco com que o menino brinca.
E temos a luta, um desporto com regras, não é para bater nem massacrar, é para coroar a agilidade, há lutadores com o corpo bem oleado, há quem faça das mãos e da postura o engenho que leva ao desequilíbrio do contendor, veja-se a simetria das posições, até parece que há ali um árbitro que confere as regras da equidade, para ver quem primeiro bate com os costados no chão.
Atenda-se ao pormenor, o que interessa ao fotógrafo é revelar os adornos dentro de uma certa elegância corporal e nada mais, o que prova que não são necessárias braceletes de ouro ou prata, o cordame é mais do que suficiente para decorar e chamar a atenção, em todas as culturas o corpo é vitrina, os adornos são chamariz, é o que dita a imagem.
Temos aqui o transporte de mel, há quem esteja esquecido que foi sempre uma riqueza e produto de troca, há milénios. Há diferenças nas etnias quanto à forma de afugentar as abelhas e retirar os favos preciosos. Como nunca vira este comércio, pensei que se tratasse de uma imagem deslocada, até me pareceu um transporte asiático, mas não, o que está ali é mel e da Guiné.
Temos agora a derradeira fotografia, Schiappa de Campos talvez tenha organizado encenação, uma pose quase de estúdio. Veja-se a seriedade da mulher, o olhar dos dois jovens vai ficar gelificado para a eternidade e aquele sorriso é de quem ama a vida, gostou de acolher o visitante e quer que saibam, para todo o sempre, que tirar uma fotografia é sempre um tiro para a posteridade, como aqui aconteceu, guarda-se a nobreza dos povos e acende-se o rastilho desse feitiço de ver tão belas imagens e ter uma infinita saudade de gente tão acolhedora, tão cruelmente fustigada pelos desatinos do destino.
Não percam esta exposição, é gente que conhecemos e que jamais esquecemos, pelo que a vida nos ensinou.
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Nota do editor

Último poste da série de 16 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21550: Agenda cultural (763): "A batalha do Quitafine: a contraguerrilha antiaérea na Guiné e a fantasia das áreas libertadas", de José Francisco Nico, 2ª edição, a sair no final de novembro de 2020 (António Mimoso e Carvalho)

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Guiné 61/74 - P21302: Notas de leitura (1300): “Castelos a Bombordo, Etnografias de Patrimónios Africanos e Memórias Portuguesas”, coordenação de Maria Cardeira da Silva; edição do Centro em Rede de Investigação em Antropologia, 2013 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Junho de 2017:

Queridos amigos,
Trata-se de um projeto de investigação financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, revisitar rotas que ligam historicamente Portugal a alguns países árabes e islâmicos (Marrocos, Mauritânia), alargando-se depois a outros países africanos (Senegal, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique) investido na análise de memórias, nostalgias e outros recursos patrimoniais.
Creio que para muitos haverá surpresa sobre o que se pode entender como a memória de presença portuguesa nesta região que hoje pertence ao Senegal, foi presença influente e depois diluiu-se, permitindo a intrusão francesa sobretudo a partir dos anos 1830, nesta tão fértil região de comércio.
Muita gente de Ziguinchor sentiu-se atraiçoada pelas negociações luso-francesas, foi um taco a taco diplomático em que Portugal teve a ilusão que ao entregar esta parcela de território ia receber vastas compensações, tudo fantasia.

Um abraço do
Mário


No Casamansa, à procura de memórias portuguesas

Beja Santos

“Castelos a Bombordo, Etnografias de Patrimónios Africanos e Memórias Portuguesas”, coordenação de Maria Cardeira da Silva, edição do Centro em Rede de Investigação em Antropologia, 2013 é uma publicação associado a um projeto financiado pela Fundação para Ciência e Tecnologia, projeto que visa analisar reconfigurações étnicas e novas figurações identitárias em territórios pisados pelos portugueses e onde confluíram povos africanos das mais diferentes proveniências. É um projeto aliciante onde se fala de Marrocos, até de Marrocos no Brasil, de Portugal nos confins sarianos, do Casamansa, da ilha de Moçambique e até do primeiro cruzeiro de férias de colónias a bordo do paquete Moçambique, em 1935. Francisco Leitão é o autor do texto intitulado Existências e Utilizações Contemporâneas da Casamansa Portuguesa.

O autor começa por nos recordar que desde meados do século XV e início do século XVI, Portugal estabeleceu uma presença comercial na costa ocidental africana, assente no comércio de escravos, baseada na fundação de feitorias. Os portugueses chegaram a Casamansa principalmente interessados no ouro, no marfim e nos escravos. A partir de meados do século XVI, percorriam a área compreendida entre o rio Cacheu e a Gâmbia na senda destes comércios. Em troca dos escravos, nesta época, os portugueses traziam ferro, vinhos, algodão, cavalos, contaria da Índia, entre outros. O manuscrito de Valentim Fernandes não deixa dúvidas quanto ao facto de, 50 anos depois da sua descoberta, o rio Casamansa ser já frequentemente utilizado para o comércio pelos portugueses. Tudo se irá alterar com a evolução do comércio de escravos, com a descoberta e exploração da América que se irá expressar num dos mais famosos sistemas de comércio triangular (Lisboa – Santiago – Bissau ou Cacheu – Maranhão – Lisboa), que veio contribuir para o papel fulcral de Cabo Verde na influência portuguesa na região da Senegâmbia.

Desenvolve-se uma comunidade de lançados em Ziguinchor, em 1621 a povoação tinha 15 casas de comerciantes portugueses, uma igreja, um padre e muitos cristãos locais. Nos anos seguintes, a vila tornar-se-á no principal entreposto de troca no rio entre luso-africanos e bainuncos. Mais tarde, Ziguinchor será classificada como presídio dependente da capitania de Cacheu. Recorde-se que o objetivo destes presídios era proteger a rota vertical de escravos que ligava regiões do interior da atual Gâmbia a Cacheu e Bissau.

Mais observa o autor que a maioria dos dados atualmente disponíveis sobre a história do Casamansa e Ziguinchor saltam de 1645 diretamente para 1846 ou mesmo 1886, quando Ziguinchor é cedida a França. No período intermédio existe pouca ou nenhuma documentação. Sabe-se, no entanto, que gentes de Cabo Verde tinham grande influência sobre a costa Norte-Ocidental africana mas não se sabe como esta presença se coordenava com a presença portuguesa europeia. Em 1623, um holandês em Cacheu dividiu ali o comércio em dois tipos: aquele que era realizado com a metrópole e o que era feito com os que viviam na ilha de Santiago. No século XVII, Cacheu era muito visitada por embarcações provenientes, não só de Cabo Verde, mas também de Sevilha e de Portugal.

Em toda a literatura não existem praticamente referências a Casamansa e Ziguinchor, ou porque não há registos históricos ou porque não foram suficientemente investigados. Paradoxalmente, Casamansa é repetidamente referida como uma zona de influência portuguesa. Também não se ignora que os séculos XVII e XVIII foram um período de enfraquecimento da presença portuguesa. Seja como for, por volta de 1760, cresceu o ascendente luso-africano sobre Ziguinchor e o controlo português-europeu, aos poucos os luso-africanos foram substituindo os portugueses em lugares representativos. Mas no início do século XIX, encontramos Ziguinchor administrativamente órfã, nas mãos de uma burguesia portuguesa de origem cabo-verdiana e com ligações à Guiné. É um tempo em que o cargo de capitão passava de pai para filho, uma espécie de domínio dinástico que diz bem do abandono a que estava votada esta remota extensão do império português. Economicamente, a vila vivia de um comércio de pouca envergadura e à margem dos fluxos internacionais de troca.

Em sentido inverso à remota presença portuguesa, os franceses entram em cena nos anos 30 do século XIX, compram terrenos no rio e em 1838 principiam os trabalhos para se instalarem definitivamente em Sédhiou (em português Sedjo). Recrudescem os conflitos na região, acirram-se as disputadas de soberania que implicaram repetidas trocas de bandeiras, multas, alguns encerramentos e represálias sobre as populações. Os franceses, a partir de Goré, começam a insistir na anexação de Ziguinchor, movidos pela sua localização geográfica associada a motivações comerciais. Isto passa-se ao tempo em que não estão delimitadas as fronteiras entre o Senegal e a Guiné Portuguesa. Com a Convenção Luso-Francesa de 12 de Maio de 1886, Portugal cede oficialmente Ziguinchor e a região do Casamansa, recebe em troca o rio Cacine e direitos de pesca na Terra Nova. Em 1901, a população mestiça, cabo-verdiana e bainunco-descendente, com conexões a Bissau e falante de crioulo é relocalizada num bairro novo, periférico. É aqui que vão ficar os sinais da presença portuguesa. Para o autor distinguem-se, com segurança, quatro vetores da influência portuguesa no Casamansa: a situação geográfica e a proximidade com a antiga Guiné Portuguesa, os permanentes intercâmbios com Cacheu; os lançados, juntamente com os explorados e os comerciantes, funcionaram como agentes de disseminação de uma cultura portuguesa proveniente da metrópole: a população cabo-verdiana manteve um contacto próximo e regular com o continente e provavelmente com o Casamansa; por fim, os fenómenos de reprodução e evolução local, caso da língua e religião. Escreve o autor: “Esta reprodução foi mais acentuada em Ziguinchor e, pelo que apurei no terreno, a Leste desta vila, na região das atuais aldeias de Sindone e Adeane”.

A presença colonial francesa procurou passar uma esponja sobre o passado português. Mas qual é a realidade que o estudioso observou? Ele escreve: “Hoje, em Ziguinchor, reside uma população espacialmente concentrada que mistura influências bainunco e cristã que continua a utilizar o crioulo como língua principal de comunicação. O crioulo é falado por uma grande parte da população idosa de algumas zonas de Casamansa e o fluxo constante de migrantes da Guiné-Bissau contribui permanentemente para o reativar (…) A presença portuguesa relaciona-se intimamente com a história da etnia bainunco. Os bainuncos são a população autóctone e foram, em tempos, a etnia dominante de Casamansa. Tornaram-se virtualmente extintos, já que foram absorvidos ou conquistados por outros grupos”.

A memória portuguesa paira sobre o fenómeno separatista na região. Ainda é comum o uso da alegação que Casamansa não é francesa (e, logo, senegalesa) mas sim portuguesa (e logo, independente ou ligada, de alguma forma, à Guiné-Bissau). Trata-se de um discurso que predomina em jovens intelectuais independentistas muçulmanos de etnia diola.

Para o auto onde a existência portuguesa é mais evidente é nos edifícios e também a referência, muito frequente, de que foram os portugueses que colonizaram a ilha de Carabane, uma aldeia histórica que simboliza, talvez mais que qualquer outra, a presença colonial francesa em Casamansa, já que foi capital desta sub-região administrativa da África ocidental francesa. Há uma outra via de ligação ao passado português, a qual possui uma conotação que não poderia ser mais negativa: Ziguinchor, nas palavras de quase todos os casamansenses, é um nome que tem origem no português “cheguei e chorei” – a reação emocional à função esclavagista da vila (Ziguinchor foi um presídio esclavagista português) – que, por corrupção fonética, teria formado o nome da cidade. Outra observação do autor é que há inúmeros lugares na região onde alguém pode passar por nós e nos cumprimentar com um “bom dia” foneticamente tão português como se estivéssemos em Alfama.

A finalizar o seu trabalho o autor discreteia sobre o papel da memória e como a história não destruiu certos mecanismos coletivos, plurais e individualizados. Casamansa revela-se uma sociedade de memória, as utilizações do passado português por ali pululam, e ninguém sabe qual o seu destino. E deixa-nos uma frase sibilina: o remexer e vasculhar positivista e historiográfico do passado é o privilégio de um presente que não se agita facilmente. Para meditar.


A capa e contracapa deste livro é um verdadeiro achado, trata-se do tabuleiro do jogo “Cruzeiro ao Mundo Português”, da Majora, um género de jogo da Glória com as parcelas do império, começando pela viagem até à Índia e acabando na Torre de Belém. A Guiné era simbolizada pela fortaleza de Cacheu.

Ziguinchor
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Nota do editor

Último poste da série de 24 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21289: Notas de leitura (1299): “Capitães do Fim… Uma radiografia estatística”, por António Inácio Correia Nogueira; Chiado Editora, 2017 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Guiné 61/74 - P21227: Historiografia da presença portuguesa em África (225): Os Banhuns da Guiné: num romance e na etno-história (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Abril de 2017:

Queridos amigos,
Tudo começou na preparação de um romance passado na Guiné Portuguesa, fundamentalmente entre a década de 1950 e a eclosão da guerrilha. O Administrador Colonial, marido de Benedita Estevão, era pesquisador e tinha escrito trabalhos sobre Manjacos e Banhuns. Na altura, tive o cuidado de ler algumas referências sobre estes Banhuns, e não hesitei em pô-los na ficção, havia poucos estudos e etnia caminhava para a extinção. Recentemente adquiri um número da revista Garcia de Orta com um curioso estudo sobre a importância dos Banhuns ao tempo em que os nossos descobridores e viajantes do século XVI ali aportaram.
É com satisfação que trago os Banhuns ao vosso conhecimento.

Um abraço do
Mário


Os Banhuns da Guiné: num romance e na etno-história

Beja Santos 

Quando estava a preparar o meu romance “Mulher Grande”, coloquei Albano Toscano, Administrador Colonial na Guiné Portuguesa desde os anos 1940 até à eclosão da guerrilha, como um estudioso emérito de um pequenino povo, os Banhuns. No romance, o funcionário colonial conhecia bem os Manjacos, os Cassangas e os Banhuns. O seu último estudo seria alvo de consagração por outros investigadores, houvera mesmo uma homenagem de arromba na Sociedade de Geografia de Lisboa. Porque me servi dos Banhuns nesta ficção? Segundo o censo populacional de 1950, o último dado como probatório na região, os Banhuns não seriam mais que 267, isto quando tinham merecido a particular atenção dos viajantes e descobridores, basta recordar André Álvares de Almada, Francisco de Lemos Coelho, Valentim Fernandes e Duarte Pacheco Pereira. Que viram esses descobridores e viajantes de tão surpreendente e porque se dera o declínio dos Banhuns?

Aquando da chegada dos portugueses à Guiné, os Banhuns tinham estado ligados ao império do Cabo, tinham sido combatidos pelos Mandingas, aos poucos foram arrastados para a margem atlântica do continente, foram-se acantonando entre o rio Cacheu e a fronteira com o rio Senegal.

Num artigo publicado na revista Garcia de Orta, em 1966, José D. Lampreia faz levantamento da sua etno-história, apresentando uma saborosa antologia de textos verdadeiramente marcantes. Diz o autor que os Banhuns cultivam intensamente o arroz e árvores de fruto, possuindo uma economia de tipo litorálico. Embora ribeirinhos, são fracos pescadores. Constroem casas circulares, com prumos enterrados no solo, revestindo as paredes com entrelaçados de bambu e tara. No século XIX, acrescenta o autor, os Banhuns constituíam ainda uma das mais importantes etnias que habitavam a região de Sédhiou (ou Sejo, na literatura portuguesa), então território nominalmente português, no Casamansa. Posteriormente fundariam, na região de S. Domingos, aldeamentos.

Valentim Fernandes, no seu manuscrito fala dos Banhuns, a propósito do rio de S. Domingos que ele diz ser um rio em que os navios podem subir 60 léguas, os navios iriam resgatar cavalos comprando escravos ao Farim Braço. E diz que o povo desta terra são os Banhuns. Fala no costume de oito em oito dias se fazer uma feira a cinco léguas do porto do mar, vem a esta feira muita gente de 15 a 20 léguas em redor. E escreve um pormenor espantoso: “Os Banhuns adoram um pau a que chamam hatichira o qual pau consagram desta maneira. Tomam um pau forcado que há-de ser cortado com um machado novo e o cabo dele também há-de ser novo e que nenhum destes haja servido em alguma coisa e então fazem uma cova no chão e têm ali um cabaz de vinho de palma e assim outro cabaz de azeite e uma alcofa de arroz. E têm ali um cão vivo e então deitam este vinho, o azeite e o arroz dentro desta cova e matam o cão com aquele machadinho novo, fendem-lhe a cabeça e deixam correr todo o sangue do cão na dita cova. E então lançam o machadinho dentro e põem depois o pau forcado e tapam-no muito bem com terra e em cima daquela forca de pau que assim sai por cima da cova penduram umas ervas do mato e para fazer esta cerimónia são chamados os melhores velhos de toda a terra”.

Também André de Faro, na sua "Peregrinação à Terra dos Gentios", carreia elementos úteis para o conhecimento dos Banhuns: “… este rei se chama D. Diogo, era cristão e seus irmãos e parentes o eram também, e na verdade me pareceu bom cristão pelo que vi em seu modo e em falar e no amor com que nos recebeu e o quanto folgava em ver frades no seu reino”. D. Diogo teria dado licença para retirar uma estátua animista que estava perto da igreja que os frades estavam fazendo no seu reino, não se podia ter uma igreja e ídolos à volta com sangue de galinha e outros animais.

Duarte Pacheco Pereira escreve sobre os Banhuns: “… deste Rio Grande se podem fazer dois caminhos para a Serra Leoa: um deles é por dentro das ilhas e por ali podem sair pela banda do Sueste (mas poucos pilotos sabem esta terra); o outro caminho é por fora segundo adiante diremos. E dentro deste Rio Grande está um rio que se chama Bugubá e os negros dele são Beafares. E adiante de Bugubá está outro rio e mais adiante acharão outro rio que se chama dos Pescadores; e adiante deste, cinco léguas, é achado outro rio; e mais avante está outro que se chama de Nuno (e aqui há muito marfim); e adiante deste rio duas léguas está o cabo da Verga. Todos os negros desta terra são idólatras. E uma geração destes negros se chama Banhuns”.

Os Banhuns, insista-se, estiveram sujeitos a razias que muito contribuíram para a sua quase extinção já que estavam situados entre os grandes inimigos da África Ocidental, os Fulas e os Mandingas. André Álvares de Almada não deixou de se referir a este assunto, referiu a guerra entre Fulas e Mandingas, os primeiros com os seus numerosos exércitos, traziam enxames de abelhas que largavam contra os inimigos assolando a terra dos Mandingas, Cassangas, Banhuns e Brames, só quando chegaram à terra dos Beafadas é que foram vencidos. Este autor localiza melhor os Banhuns: “Este reino de Mandinga é muito grande e está povoado todo de gente de uma banda e outra. Pela banda do Norte se mete muitas léguas pelo Sertão até partir com os Jalofos, e quase que estão todos de mistura. E pela banda do Nordeste vai por cima dar na terra dos Beafadas; e pela banda do Leste para partir com os Cassangas e Banhuns”.

Sem dúvida alguma que André Alvares de Almada conferiu uma grande importância aos Banhuns no século XVI, ao seu negócio de escravos, identificando S. Domingos como terra dos Banhuns, e dá-nos um pormenor relevante: “Neste rio de S. Domingos há mais escravos que em todo os outros da Guiné, porque deles os tiram estas nações – Banhuns, Brames, Cassangas, Jabundos, Felupes, Arriatas e Balantas. É rio de muito trato de arroz e outros mantimentos, bons pescados e muitas galinhas que continuamente andam os negros vendendo a troco de algodão e outras coisas. As mulheres desta terra e as Banhumas andam vestidos com uns panos curtos e os cabelos trançados, e as moças trazem uma tira de pano por diante, da largura e comprimento de um palmo, que escassamente lhes cobre as dianteiras, e desta maneira andam até se casarem”.

Tudo conjugado com base na leitura de todos estes historiógrafos se infere a ideia da importância tida pelos Banhuns em épocas passadas. As lutas entre Fulas e Mandingas certamente os levaram a um processo de interpenetração cultural e diluíram-se no seio de outras etnias, há quem sugira quem foram principalmente absorvidos por Manjacos e Balantas.

Continuo sem saber porque forjei Albano Toscano a estudar os Banhuns. Mas lendo este artigo, fiquei muito contente em saber o seu papel relevante na Guiné de outros tempos. Para os interessados em lerem o Tratado Breve dos Rios da Guiné de André Álvares de Almada, remetemo-los para o link:

https://books.google.pt/books?id=nJARAQAAMAAJ&pg=PA48&lpg=PA48&dq=banhuns,+g#v=onepage&q&f=false



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Nota do editor

Último poste da série de 29 de julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21207: Historiografia da presença portuguesa em África (224): Viagem à Guiné, para definir as fronteiras, 1888 (4) (Mário Beja Santos)