Mostrar mensagens com a etiqueta BCAV 8323. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta BCAV 8323. Mostrar todas as mensagens

sábado, 31 de janeiro de 2015

Guiné 63/74 - P14208: Memórias de Copá (4) : Janeiro e Fevereiro de 1974. Memórias da guerra. O abate do último avião na Guiné. (António Rodrigues)


1. O nosso Camarada António Rodrigues, ex-Soldado Condutor Auto da 1.ª CCAV do BCAV 8323, Bolama, Pirada, Paunca, Sissaucunda, Bajocunda, Copá e Boruntuma (a minha 1.ª CCAV/BCAV 8323 tinha as suas forças aquarteladas em Bajocunda e Copá), 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem:

Caros Camarigos, 


Na sequência do texto publicado neste Blog no passado dia 7 (P 14128) aqui vos deixo mais um pouco das minhas memórias da guerra, como testemunho do que se passou em Copá em Janeiro e Fevereiro de 1974. 


Copá. Janeiro e Fevereiro de 1974.
Memórias da guerra. O abate do último avião na Guiné.

Entretanto Copá continuava calmo desde o dia 7 de Janeiro de 1974 e assim se manteve durante praticamente todo o resto do mês, mas o infernal dia 7 tinha deixado vários estragos, entre os quais os pneus e o depósito de combustível da viatura (única) furados, o que fez com que durante cerca de três semanas não tivéssemos viatura para irmos à água e à lenha, remediávamos com a lenha que se ia arranjando à volta do quartel e a água, ia o pessoal de cada abrigo buscar a sua com latas. 

Mas, um belo dia eu acordei bem disposto e resolvi consertar os furos nos pneus e no depósito, neste último com um taco de madeira certo à feição e a meio da tarde desse dia 31 de Janeiro de 1974 eu tinha o carro pronto a andar e continuava com a mesma boa disposição com que me tinha levantado de manhã. 

Fui para o abrigo e até fiz o serviço do puto, lavei a mesa e os bancos e no fim sentei-me na cama sozinho a pensar numa notícia que dias antes tinha ouvido na rádio do PAIGC e que dizia que, até ao fim do mês Copá seria arrasado, ora aquele era o último dia do mês e pensando nisto de súbito comecei a sentir uma grande tristeza, não sei por que razão, mas o meu coração adivinhava algo de mal. 

Despi a roupa, peguei numa toalha e preparava-me para ir tomar um banho. 

Quando já com a toalha à volta da cintura ia a sair a porta do abrigo, ouço ao longe uma saída de morteiro, que só me deu tempo a atirar-me de barriga para o chão e já estava a rebentar na minha frente. 

Eram cerca das 17h30 e, começava assim mais uma violenta flagelação a Copá com morteiros 120, confirmava-se a tristeza que eu tinha sentido antes, porque durante esse ataque iria acontecer uma coisa trágica e quase inédita na guerra colonial ou pelo menos rara. 

Esta era mais uma flagelação da artilharia do PAIGC a Copá, quebrando a relativa paz de quase um mês, flagelação essa que iria ter a duração de cerca de hora e meia a duas horas, tendo caído dentro do arame farpado perto de 20 granadas felizmente sem consequências. Esta flagelação a Copá, foi desferida a partir de duas bases distintas: a artilharia do PAIGC estava instalada na região da fronteira frente a PANANG R e na região nordeste de Copá, SINCHA JADI. 

Visto que, como prevíamos um ataque em força, pedimos auxílio ao Comandante de Batalhão e este por sua vez pediu-o a Bissau ao Governador-Geral Bettencourt Rodrigues, que imediatamente mandou dois aviões Fiat G-91 em auxílio de Copá. 

Esses aviões tinham naquela altura o nome de código de «Miquel», enquanto Copá se chamava por sua vez «Ex-Rei-Victor» e era por estes nomes que se comunicavam os pilotos dos aviões e o homem das transmissões. 

Logo que os aviões Fiat começaram a sobrevoar a área de Copá, como de costume, o inimigo calou-se, os Pilotos pediram ao homem das transmissões as referências necessárias e prepararam-se com as manobras que entenderam para bombardear o local indicado, um de cada vez, o primeiro sobrevoou o local, depois baixou de altitude e largou a primeira bomba sobre SINCHA JADI, enquanto o segundo se mantinha à distância, mas quando o primeiro descarregou a bomba, começou a ganhar novamente altitude, embora estivesse a acontecer uma coisa estranha, ouviu-se um segundo rebentamento e o avião levava lume na cauda, a determinada altura, quando ele já ia bastante alto, vimos perto dele uma pequenina sombra que nos parecia um pássaro a voar, mas logo de seguida o avião guinou para o lado esquerdo, neste caso para o lado do Senegal e começou de novo a baixar, e nessa altura pensávamos nós em Copá que ele iria largar a segunda bomba numa outra base inimiga, que nos estava a flagelar a partir daquela direcção, (PANANG R) mas era puro engano, o avião ia acabar por se despenhar, talvez próximo ou dentro do território Senegalês a cerca de 3 a 4 Kms de Copá, enquanto o piloto que era a pequena sombra que antes tínhamos visto junto ao avião se tinha ejectado ao aperceber-se que fora atingido por um Míssil Russo (Strela Terra-Ar) e desceu de pára-quedas sem qualquer problema, só que, a área onde ele desceu era perigosa, porque era aquela onde se encontrava o inimigo e distante de Copá cerca de 5 Km. 

Quanto ao avião, ao despenhar-se no solo, provocou uma estrondosa explosão e chamas com uma altura enorme, o que foi com certeza motivo de grande alegria para os homens do PAIGC que acorreram todos para o local da queda e que com aquela acção se deram por satisfeitos naquele dia, tendo terminado por isso aquela flagelação a Copá. 

A queda do avião deu-se por volta das 7 horas da tarde, quase ao anoitecer e o inimigo dirigiu-se imediatamente para o local, pelo que passado pouco tempo era já noite, eles lançaram do local da queda um very-light vermelho, sinal luminoso que nos indicava a presença deles naquele local. O segundo avião Fiat ao aperceber-se do que tinha acontecido ao primeiro abandonou o local a todo o gás na direcção de Bissau e ninguém mais o viu. 

O piloto do avião abatido, veio a descer precisamente no local onde minutos antes tinha largado a bomba e a sorte dele, foi o inimigo ter saído dali para ir ver os destroços do avião, senão talvez tivesse sido feito prisioneiro, mas ele ao ver-se em terra, largou o pára-quedas e talvez desorientado desatou a fugir, mas não se dirigiu a Copá e, no outro dia de manhã ainda ninguém sabia dele, pelo que, nesse mesmo dia de manhã, começaram a chegar a Copá uma série de helicópteros, 2 avionetas e 2 aviões Fiat para fazerem uma busca e tentarem localizar o piloto desaparecido. Nesse conjunto de helicópteros era transportado o famoso Sargento dos Comandos Africanos, de seu nome, Marcelino da Mata e o seu categorizado e célebre grupo de homens por ele treinado e conhecido em toda a Guiné durante a guerra colonial, pela forma corajosa e eficaz como combatiam ao lado das tropas Portuguesas. 

Mas as buscas durante toda a manhã com todo aquele aparato aéreo, tornaram-se infrutíferas e o piloto não apareceu, apenas encontraram o pára-quedas e algumas granadas do PAIGC e, como o homem não aparecia, ao fim da manhã regressaram a Bissau. 

Mas por volta das 5 horas da tarde desse mesmo dia, chegou a Copá uma mensagem que dizia, que o Piloto Tenente Gil (8), tinha aparecido num aquartelamento prós lados de Nova Lamego (soube mais tarde que esse aquartelamento era Piche) e que tinha já contado a história da sua aventura, que era a seguinte: mal chegou a terra começou a andar praticamente sem destino e andou quase toda a noite e no dia seguinte, com a sorte de não ter sido apanhado por ninguém, até que chegou a uma certa povoação e pediu a um homem Africano que o guiasse até ao quartel mais próximo, o que realmente aconteceu e só nesse momento é que ele pode comunicar que estava vivo e livre de perigo e tinha terminado também aquela sua com certeza muito marcante aventura. 

(8) Piloto Tenente, Victor Manuel Castro Gil 




Link do episódio Nº. 17 da Série "A GUERRA" da RTP:
www.rtp.pt/programa/tv/p28097/e17

Um abraço,
António Rodrigues
Sold Cond Auto do BCAV 8323



Mini-guião: © Colecção de Carlos Coutinho (2012). Direitos reservados. 
___________

Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

7 DE JANEIRO DE 2015 > Guiné 63/74 - P14128: Efemérides (181): Copá – Janeiro de 1974 (António Rodrigues, ex-sold cond auto, 1ª CCAV / BCAV 8323, Bolama, Pirada, Paunca, Sissaucunda, Bajocunda, Copá e Buruntuma, 11973/74)


quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Guiné 63/74 - P14128: Memórias de Copá (3): Janeiro de 1974 (António Rodrigues, ex-sold cond auto, 1ª CCAV / BCAV 8323, Bolama, Pirada, Paunca, Sissaucunda, Bajocunda, Copá e Buruntuma, 11973/74)

1. O nosso camarada António Rodrigues, ex-Soldado Condutor Auto da 1ª CCAV do BCAV 8323 (Bolama, Pirada, Paunca, Sissaucunda, Bajocunda, Copá e Buruntuma, 1973/74) enviou-nos o seguinte texto. 

COPÁ – JANEIRO DE 1974

A minha 1ª CCAV / BCAV 8323 tinha as suas forças aquarteladas em Bajocunda e Copá. 

Este texto sobre os acontecimentos em Copá no início de Janeiro de 1974 foi retirado das minhas memórias da Guerra na Guiné. 
 
Chegámos ao dia 3 de Janeiro de 1974 e foi um dia mais ou menos calmo como de costume, embora durante a tarde enquanto jogávamos futebol na pista de aviação em Copá, se ouvissem fortes rebentamentos na direcção de Canquelifá, que soubemos depois estava a ser violentamente flagelado com armas pesadas, mas tal era ainda nessa altura o nosso àvontade, que, apesar de ouvirmos tantos rebentamentos e tão próximo de nós mantivemo-nos a jogar à bola no exterior do arame farpado e realmente até ao fim do dia nada de anormal nos aconteceu. Deitamo-nos como de costume cerca das 20h30 ou 21h00, embora ficasse como era normal um homem de sentinela em cada abrigo.

O nosso baptimo de fogo

Eram 23h30 em ponto do dia 3 de Janeiro de 1974, quando o Manuel Vicente Antunes que àquela hora fazia reforço no meu abrigo, gritou, ao mesmo tempo que ouviamos um rebentamento, que saíssemos da cama porque havia perigo, mas não foi necessário o grito do sentinela, pelo menos para mim que ao ouvir o rebentamento saltei imediatamente da cama e vim para ao pé da vala ver o que se passava.

Quase no mesmo momento todos os meus camaradas de abrigo estavam fora da cama e a nossa primeira reacção àquele rebentamento e aos outros que se lhe seguiram, é que seriam rebentamentos do obús 10,5, arma da nossa artilharia instalada em Canquelifá e que estavam a bater a zona depois de terem sido atacados durante a tarde. 



Entretanto, um dos meus camaradas de abrigo foi ao posto de transmissões saber o que na realidade se passava e na verdade de Canquelifá não havia notícias, mas o Alferes que comandava o pelotão de Africanos que já tinha mais experiência do que nós disse-lhe: "Vai avisar os teus camaradas que se previnam que este fogo é de armas inimigas"; e assim estávamos realmente pela primeira vez a ser atacados por armas inimigas e a enfrentar a realidade daquela guerra. Era este o nosso baptismo de fogo. 



As primeiras granadas passavam por cima de Copá e iam rebentar aí a uns 2 Km de distância, entre Copá e Bajocunda, elas vinham bastante alternadas, atiravam 3 morteiradas, deixavam passar dez minutos e voltavam a atirar outras três e assim sucessivamente. Entretanto perante o que estava a acontecer, lembrei-me dum conselho que me tinha dado o Amândio Noversa com a experiência que ele já tinha e que era o seguinte: “Sempre que oiças um rebentamento seja ele de que arma for, atira-te para o chão e tenta abrigar-te porque isso pode valer-te a vida”.



E eu ao lembrar-me disso, fiz precisamente o que devia, meti-me dentro da vala a aguardar o que viria a acontecer, entretanto os rebentamentos continuavam de 10 em 10 minutos e cada vez a aproximarem-se mais do nosso aquartelamento o que nos dava a impressão de o fogo estar a ser comandado por rádio. Enquanto isto acontecia, os restantes meus camaradas que se mantinham fora da vala diziam: "O Rodrigues é um cagão, tem medo a isto só está bem no buraco", palavras não eram ditas e eis que ali junto a nós cai a primeira granada, (pois que elas se tinham vindo a aproximar lentamente) e, ao rebentar, os estilhaços bateram com violência no telhado de chapa do nosso abrigo, foi então que os meus camaradas se abrigaram também na vala convencidos do perigo em que estávamos, e diziam uns: "Ai N.ª Srª de Fátima"; outros, "Ai minha Mãezinha"; e depois diziam todos, o "O Rodrigues sempre tinha razão em se ter protegido porque isto está feio".



Entretanto as bombas continuavam a cair, é curioso que a dada altura duas em cada três granadas caiam ali próximas, mas não rebentavam, entravam na terra a uma profundidade cerca de 5 metros e então dizíamos nós uns para os outros, "Amanhã não vão faltar aí granadas inteiras", dizíamos isto porque era de noite e apenas as ouvíamos cair, mas elas perfuravam a terra e desapareciam pelo chão dentro. 


A dada altura, ainda deste primeiro ataque, as granadas começaram a cair com maior intensidade sobre o abrigo ou posto onde eu me encontrava, a nossa falta de experiência disse-nos naquele momento que devíamos abandonar o posto e irmos para outro menos apoquentado, porque na verdade o abrigo 7 era naquela noite o que estava a ser mais atingido e por isso não hesitamos em nos mudarmos todos para o abrigo 1 que ficava ali mesmo ao lado e ali ficamos à espera do que iria acontecer, uma vez que não dispunhamos de armas com que pudéssemos responder, a arma mais forte que tinhamos era um morteiro 81 cujo alcance máximo, segundo me recordo,  era cerca de 5 Km e a distância a que estava o inimigo era superior, por isso a nossa resposta limitou-se a um ou dois disparos de morteiros. 

O PAIGC continuava entretanto a disparar de 10 em 10 minutos sobre Copá, pelo que só se resolveram a parar eram duas horas da madrugada do dia seguinte, precisamente no momento em que o luar desapareceu, foi aí que o primeiro ataque a Copá desde que lá chegamos terminou. Viemos a saber mais tarde que o destacamento de Copá sempre foi um dos que ao longo da guerra sofreu regularmente fortes flagelações, aliás não era difícil qualquer um de nós encontrar provas mais do que evidentes do que tinha lá acontecido muitas vezes. 

Os Guerrilheiros dispararam nessa noite, sobre Copá, 58 granadas,  mais de metade das quais caíram fora do aquartelamento. 

Felizmente naquela noite não houve problemas de maior, nem sequer o mais leve ferimento, mas a ideia que nos ficou foi que o barulho que fizemos durante a noite da passagem de ano serviu ao inimigo para ponto de referência, que aproveitou para apontar as armas a Copá e depois acabou de acertar, através de rádio, próximo do local. 

Mas o ataque desse dia foi apenas um pequeno aviso, passaram-se os dias 4, 5 e 6 com relativa calma, para o dia 7 marcou-se novamente a coluna que dias antes tinha sido interrompida, mas nesse dia veio mesmo a realizar-se, só que, chegada a meio do percurso (Massacunda Maunde) foi atacada por uma forte emboscada feita nesse local pelo PAIGC. 

Eram cerca das 9.30h da manhã, estava eu e os homens que nesse dia estavam de serviço à água junto ao poço onde tirávamos a água em Copá, a dado momento ouvimos um forte rebentamento na direcção de Massacunda, logo seguido de um enorme tiroteio, lembramo-nos logo que seria a nossa coluna que estava a ser emboscada, ficamos um pouco suspensos e logo um furriel nos chamou e disse que largássemos a água porque tinhamos que ir em socorro dos nossos camaradas. Nós assim fizemos, eu peguei no carro imediatamente e regressamos para dentro do arame farpado, formou-se o pelotão que arrancou imediatamente para o local, em Copá ficamos apenas 5 ou 6 homens mais ou menos,  um por cada abrigo, pois ainda tínhamos connosco mais alguns soldados Africanos.


7 de Janeiro de 1974: o dia mais infernal por que já passei

Na mesma altura em que saiu o pelotão, partiu também para outra zona do mato, nos arredores de Copá na direcção da fronteira com o Senegal, um Africano civil que era nosso informador, que passadas algumas horas chegava com más notícias, disse-nos ele que ali próximo o PAIGC estava estacionado com várias viaturas carregadas de munições para atacar Copá, o que na verdade se veio a concretizar nesse mesmo dia.

Na verdade esse dia 7 de Janeiro de 1974 foi para a minha companhia e particularmente para o pelotão destacado em Copá, o dia mais infernal que lá passamos e que, eu já mais esquecerei. 

Entretanto do local da emboscada chegava-nos via rádio a notícia mais concreta do que tinha acontecido, dois mortos – o Soldado Rui Silveira Patrício e o 1.º Cabo António Aguiar Ribeiro [1], os primeiros mortos do meu Batalhão.

Os dois faziam parte do 3.º Grupo de Combate da 1.ª CCAV/BCAV 8323, que eu recordo com muita saudade, havia também quase todo o pelotão que fazia segurança à coluna bastante ferido, nomeadamente, o Alferes Santos que o comandava e outro homem com uma perna partida, um outro que acabou por perder uma vista e ainda hoje tem o corpo cravado de estilhaços, para além de duas viaturas Berliet destruídas: a primeira porque accionou a mina anti-carro e o condutor Sousa foi cuspido pelo ar e caiu ao chão, ficou com as partes superiores das pernas pisadas, porque bateu com elas no volante ao ser cuspido e arranhou uma perna ao cair, a sua carga era parte do pessoal que fazia segurança;  a segunda ia carregada de munições de G3 e granadas de morteiro 81 e 60, na cabine desta viatura seguia o Soldado Condutor Abílio Correia Sabino Magalhães e o Rui Patrício mais o Aguiar Ribeiro.

O Correia saltou abaixo sem problemas, mas nesse mesmo momento os outros dois camaradas já tinham sido atingidos com um tiro, o Rui Patrício ainda desceu da viatura e disse ao Correia que ia morrer, o que aconteceu naquele preciso momento, o Aguiar Ribeiro já ferido abrigou-se debaixo da Berliet que entretanto começou a explodir as munições que trazia tendo ficado reduzida a um monte de ferros espalhados pela picada, o que deu origem a que o Aguiar Ribeiro morresse completamente calcinado pelo fogo, pois que para além das munições começarem a explodir, o PAIGC ainda continuou a atacar durante bastante tempo, tendo usado Minas Anti-Carro e Anti-Pessoais, RPG2, RPG7 Morteiros e armas automáticas. 

Para além dos mortos e feridos e das referidas viaturas, destruíram o dinheiro que seguia nessa coluna para pagamento do anterior mês de Dezembro a todos os militares Europeus e Africanos que se encontravam em Copá, foi ainda destruído todo o correio destinado a Copá, que incluía os postais de Boas Festas e lembranças dos nossos Familiares que, dadas as circunstâncias não chegaram a tempo do Natal e tendo sido ali destruídas não pudemos recebê-las. 

Para socorro dos camaradas que sofreram a emboscada, para além do Grupo de Combate de Copá, partiu de Bajocunda mais um Grupo de Combate da 1.ª CCAV / BCAV 8323 e de Pirada,  comandados pelo próprio Comandante de Batalhão, partiram mais 2 Grupos de Combate da 3.ª CCAV / BCAV. 


Estas forças de socorro levantaram 6 minas antipessoais e destruíram 1, levantaram uma Anti-carro, tendo recolhido a Bajocunda e a Copá respectivamente pelas 20h00.


Guiné > Zona leste > Pirada > Copá > 1.ª CCAV/ BCAV 8323 (1973/74) > Berliet destruída pro mina A/C na emboscada de 7 de janeiro de 1974 na picada Copá-Bajocunda. Foto de António Rodrigues. Cortesia do blogue da Associação dos Combatentes do Concelho de Arganil.
Foto: © António Rodrigues. (2013). Todos os direitos reservados.


Ataque a Copá no mesmo dia durante várias horas (das 17h00 às 22h20), ficando a guarnição reduzida a 29 homens

Mas nesse dia as coisas más não tinham terminado, aí, às cinco horas da tarde desse mesmo dia, com apenas pouco mais de um homem em cada posto (porque o restante do pelotão ainda se encontrava no local da emboscada) concretizavam-se as informações que tinhamos recebido de manhã e Copá às dezassete horas em ponto começava a ser atacado de novo pela artilharia do PAIGC.

Os poucos que ali nos encontravamos metemo-nos nas valas de G3 na mão à espera do que desse e viesse, pois mais uma vez não tinhamos armas com capacidade de lhes darmos resposta e com dois homens em cada posto lá fomos aguentando o fogo de morteiros 120 e 82 que carregava sobre nós persistentemente, só cerca das 20H00 é que entrou o restante pelotão em Copá debaixo de fogo, quando a maioria da população aos gritos se punha em fuga das suas tabancas que ardiam infernalmente e fugiam em direcção à Republica do Senegal cuja fronteira ficava dali a 3 Kms. 



Juntamente com a população fugiram (desertaram) praticamente todos os militares Africanos que ali se encontravam em reforço da Guarnição, ficando apenas em Copá naquela noite, um Alferes e um furriel Europeus que comandavam esse Pelotão de Africanos, juntamente connosco o 4.º Grupo de Combate da 1.ª CCAV/BCAV 8323 num total de 29 homens. 



Devo dizer que nessa noite vivemos um autêntico ambiente infernal e de terror com tantas chamas à nossa volta, das tabancas e do milho, que ardiam como gasolina, para além do perigo que representava o calor das chamas próximas das nossas munições que podiam explodir em qualquer momento e nós debaixo de tanto fogo, chamas e bombas não sabia-mos onde protegê-las. 

Mas o ataque do PAIGC continuava, agora já noite e com as chamas a servirem-lhe de alvo, mas nós continuavamos sem capacidade de resposta, porque eles estavam a grande distância e as nossas munições eram muito poucas para se gastarem inutilmente, dispunhamos apenas de umas 18 a 20 granadas de morteiro 81, algumas de morteiro 60 e talvez pouco mais de uma dúzia de granadas de mão, que viriam a ser lançadas de dilagramas [2], mas a artilharia do PAIGC não parava o seu ataque e vimo-nos forçados a pedir auxílio a Bissau, que nos mandou um avião Dakota que começou a sobrevoar Copá eram 22h20 da noite, altura em que a artilharia do PAIGC parou com o fogo, tinham decorrido 5 horas e 20 minutos seguidos, que nós aguentamos debaixo de fogo intenso e violento. 

Entretanto os estilhaços das bombas tinham rebentado os fios da iluminação eléctrica, visto que tinhamos um gerador próprio e como era de noite o avião não tinha qualquer sinal para nos localizar, então através do rádio o piloto falou para o nosso posto de transmissão e perguntou qual a localização do inimigo, no que foi mais ou menos informado, depois o piloto pediu para lhe fazermos um sinal que consistia no seguinte: como junto das cantinas existiam sempre uns bidões com garrafas de cerveja vazias, utilizamos essas garrafas para fazer uma grande cruz no centro de Copá e enchemo-las com gasóleo, pusemos-lhes uma torcida de pano e acendemo-las de seguida e assim o piloto já nos podia detectar facilmente além de que, esse mesmo sinal lhe servia também de ponto de referência para a partir dali localizar o inimigo. 

Feito isto e já sem se ouvir o mais pequeno ruído do inimigo, (porque este, mal ouviu o ruído do avião calou-se imediatamente),  o piloto do Dakota tentou localizar o melhor possível a base do PAIGC naquela noite e quando entendeu que estava sobre ela começou a despejar bombas e manteve-se por ali durante cerca de mais de meia hora, espaço de tempo em que nos mantivemos relativamente calmos porque o fogo tinha parado. O avião regressou à base cerca das 23h00. O resultado do bombardeamento do avião deixou-me as maiores dúvidas, porque de noite todos os gatos são pardos. 

Mas o PAIGC, ao emboscar nesse mesmo dia de manhã a coluna que nos vinha abastecer de munições e ao atacar em massa Copá nesse dia à tarde apanhando-nos quase desarmados, tinha feito uma acção muito bem planeada e em grande escala, jogava forte na conquista de Copá nesse dia. 

Mas mais uma surpresa estava para acontecer, nessa mesma noite aconteceu uma coisa bastante curiosa para nós, o inimigo não satisfeito com o resultado do ataque que tinha terminado minutos antes, ou talvez pensando que estaríamos quase todos mortos, ao aperceber-se que ia ser bombardeado pelo nosso avião, em vez de se retirar para o interior do Senegal, que ficava ali muito próximo e donde provavelmente eles se tinham deslocado, usou uma táctica inesperada, como era noite escura e se podiam deslocar à vontade sem serem vistos pelo avião, saíram do local onde se encontravam e deslocaram-se para junto do nosso aquartelamento, pois sabiam que assim estavam em melhor segurança em relação ao avião, e mal o avião partiu e se foi embora, eram cerca das 23 horas, começamos a ouvir fortes ruídos de motores a trabalhar, dava-nos ideia de serem viaturas que se dirigiam a Copá e a sê-lo àquela hora, eram com certeza do inimigo. 

Entretanto quase todos os meus camaradas do Abrigo 7 se foram deitar, pois todos estávamos bastante cansados, mas eu ao ouvir todo aquele estranho ruído tinha um pressentimento de que as coisas ainda não tinham terminado nesse dia e então decidi ficar a pé e fazer companhia ao sentinela, até ver o que ia acontecer. 

Devo dizer que debaixo do bombardeamento que sofremos nessa tarde não sofremos o mais pequeno ferimento em ninguém, por isso tenho que acreditar que tínhamos Deus do nosso lado, até porque quando estávamos debaixo de fogo quase todos nós rezávamos uma oração, principalmente o terço a Nossa Senhora, eu sentia bem essa protecção a cada momento. São situações tão aflitivas e angustiantes, em que esperamos a morte a cada segundo que passa que, mesmo os não crentes se juntavam a quem rezava. 

Enquanto nessa noite de 7 de Janeiro de 1974, eu esperava pelo resto dos acontecimentos, o que fiz foi rezar mais uma oração a Deus Nosso Senhor, que nos protegesse a todos do que poderia ainda acontecer naquela noite, ainda por cima éramos tão poucos, com a deserção dos Africanos durante aquela tarde estavamos reduzidos a 29 no total. 

Novo ataque às 23h50 junto ao arame farpado,  com apoio de viatura blindadas e artilharia... Mas Copá resistiu!

E as viaturas encaminhavam-se a toda a força na direcção de Copá e cerca das 23 horas e 50 minutos tudo parou e o ruído deixou de se ouvir, (a falta de iluminação facilitou-lhes as manobras e a instalação à vontade de todo o seu dispositivo) e ficamos na expectativa à espera de mais um momento terrível daquela noite e o meu pressentimento veio a concretizar-se, era exactamente meia noite e dez minutos quando se ouviu o já típico rebentamento que dava início aos ataques do inimigo. 

Aí teve início mais uma hora e cinco minutos horrorosos, infernais e terríveis de enfrentar, aí o inimigo estava 10 metros à nossa frente e trazia uma táctica que estava muito bem montada, tinha junto ao arame farpado 3 secções, separadas alguns metros, o que lhe permitiu fazer fogo de armas ligeiras ininterruptamente durante 1 hora e 5 minutos, porque o fazia por secções e quando uma estivesse sem munições a outra estava já preparada para disparar e assim sucessivamente, mas para além destas secções de homens armados de metralhadoras tinham um auto-blindado (tipo ZIG Russo) junto a uma das secções a apoiá-la com os disparos do seu canhão e na retaguarda destas secções tinham toda a artilharia com que nos tinham atacado durante a tarde, esta encontrava-se a cerca de 1 Km também apoiada por outro auto-blindado do mesmo tipo. 

Mas agora a coisa mudava de figura, ainda estavamos todos vivos e de saúde e por isso, como estavamos frente ao inimigo, apesar das armas de que dispunhamos continuarem a ser de capacidade inferior às deles e um número reduzido de munições, iríamos aplicar o melhor das nossas forças para lhe darmos resposta adequada e tentar defender a nossa posição e principalmente a nossa integridade física.





Esquisso de Copá, comas posições das NT e do PAIGC. Autor: António Rodrigues

Uma das primeiras coisas que fizemos a mando de um Furriel, foi lançar uma granada de bazuca do tipo iluminante, que na realidade por uns momentos ilumina tudo por onde passa, o que nos permitiu ver claramente a posição do inimigo e nos ajudou a cumprir a nossa missão com a maior objectividade possível.

Começamos então a disparar na direcção adequada dilagramas, granadas de bazuca, de morteiro 81 e 60, além das metralhadoras Breda, HK-21 e G3, a luta era quase corpo a corpo e muito renhida e a secção que estava do lado norte, apoiada pelo blindado, este estava já a abrir uma entrada para penetrar no nosso aquartelamento, onde progrediu cerca de dez metros para dentro do arame e é aqui que o meu camarada Antunes, acompanhado do 1.º Cabo João Ribeiro, se enchem de coragem, pegam em meia dúzia de granadas de morteiro 60, saltam para fora da vala debaixo de fogo e atiram-nas todas, sobre-o blindado que tentava entrar e que o terá feito recuar, não sei se por acção dessas granadas que não teriam grande efeito sobre tal arma, mas o certo é que quem o comandava resolveu iniciar a retirada naquele momento, mas a confusão era enorme e não sabíamos bem o que se passava com o restante do nosso pessoal, a dado momento aproximou-se do nosso abrigo o Demba, (um soldado Africano do nosso exército que ia em fuga para o Senegal, era o ultimo deles a abandonar-nos) que nos disse que o Alferes Brás já estava preso e nós ficamos ainda mais baralhados e confusos e dissemos até uns para os outros, se calhar esta noite vamos ser feitos prisioneiros do PAIGC, mas felizmente o Alferes Brás ainda não estava preso (e nunca chegou a estar) confirmamos isso quando pouco depois ele gritou em voz alta como costumava fazer, perguntando lá do seu posto, “EI PESSOAL ESTÁ TUDO VIVO ?”

Era verdade, estavamos todos vivos e ninguém com a ajuda de Deus estava ferido, aguentamos o resto daquela hora infernal de tiros e granadas sobre as nossas cabeças, continuamos a defender-nos principalmente através de dilagramas e morteiro 81, este último teve papel importante nessa noite, cujo artilheiro o tirou do tripé (e cujo prato se partiu ao fim dos primeiros disparos) para o poder manobrar da melhor maneira (o próprio Alferes Manuel Brás ajudou a segurar no tubo já quente do morteiro com ajuda de uns panos para não queimar as mãos) e foi esse morteiro 81 que veio a causar os maiores problemas ao inimigo, que ao fim de 1 hora e 5 minutos, teve que retirar, possivelmente com alguns mortos. [3]

Em Copá ficavam enormes incêndios com tudo a arder em grandes chamas e nós os militares e população tinhamos vivido horas amargas e terríveis nesse dia e noite de 7 de Janeiro de 1974 que jamais eu poderei esquecer. 

O PAIGC, esse, não conseguiu os objectivos a que se tinha proposto, ao cortar-nos de manhã o abastecimento a Copá e ao atacar-nos à tarde em massa, o seu plano em parte tinha falhado. 

Era 1 hora e 15 minutos do dia 8 de Janeiro de 1974 quando o tiroteio acabou e pudemos então descansar um pouco. No dia seguinte de manhã, fomos passar reconhecimento fora do arame farpado e verificamos melhor o que na realidade tínhamos provocado ao inimigo, vimos a entrada que realmente o blindado abriu no arame farpado e numa das secções, junto ao poço de água da pista de aviação, teriam tombado pelo menos dois homens, visto que aí haviam duas postas de sangue separadas por um metro de distância e tinham colados alguns dos muitos invólucros das muitas munições que já tinham disparado (tinham o aspecto de uma Pisa).

A meio da distância entre os dois e cerca de um metro atrás, rebentou uma granada do nosso morteiro 81, o que com certeza terá ferido os homens daquela secção e eles tombaram sobre os invólucros que tinham à sua volta, mas encontramos ainda um carregador e caixas de munições da KALASHNIKOV, maços de tabaco e bonés, mas haviam mais sinais, o blindado que apoiava a artilharia lá mais atrás, tinha vindo socorrer os feridos de que atrás falei, mas como nós insistimos a fazer fogo com as nossas armas, mesmo sabendo que eles estavam em retirada, esse blindado não conseguiu chegar perto dos feridos, pelo que estes foram levados de rastos até ao carro, mas vendo-se atrapalhados não conseguiram meter os feridos logo no carro, pelo que este começou a retirar de marcha atrás sobre o mesmo rodado, enquanto o carreiro que os corpos de rastos marcavam continuava a par do rodado, até que conseguiram carregá-los. 

Entretanto durante todo esse fogo nenhum dos nossos homens ficou ferido,  graças a Deus. 

A todos os possíveis leitores do relato deste episódio da Guerra na Guiné, abraço com amizade e peço desculpa pela pobreza da minha escrita porque, de facto este não é o meu mister mas penso que me faço entender. 
____________________________

[1] O Soldado Rui Silveira Patrício era natural de Stª. Margarida – Conceição do Concelho da Covilhã (encontra-se sepultado no Cemitério Concelhio no talhão dos Combatentes) … O 1º. Cabo António Aguiar Ribeiro era natural de Orca, Concelho do Fundão (encontra-se sepultado no Cemitério de Martianas na freguesia natal) 

[2] Granadas de mão lançadas pela Espingarda Automática G3 com munição própria.

[3] Em 2009 soube por um jornalista que se deslocou em 2007 a Copá na Guiné e falou com ex-guerrilheiros, que lhes disseram que, nessa noite entre outros, lhes matamos o comandante da operação.

Foto 1 - Junto ao poço de Copá 

Foto 2 - Junto ao poço de Copá 

Foto 3 - Junto ao poço de Copá

Um abraço,
António Rodrigues
Sold Cond Auto da 1ª CCAV / BCAV 8323 (1973/74)

Mini-guião: © Colecção de Carlos Coutinho (2012). Direitos reservados. 

[Subtítulos da responsabilidade do editor]
___________

Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:


domingo, 9 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10778: Os nossos médicos (44): Cumprir as normas, sempre (Valente Fernandes, ex-Alf Mil Médico do BCAV 8323)

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Valente Fernandes, ex-Alf Mil Médico do BCAV 8323, Pirada, 1973/74, com data de 4 de Dezembro de 2012:

Caro Camarada
Conforme prometido, envio-te outra aventura acontecida em terras do leste da Guiné em 1973.
Não sou de confiança em localizações geográficas, pelo que (desta vez) não me comprometi.
Junto envio três fotografias, uma do período antes da Guiné (muitas inspecções a mancebos fiz eu nas instalações da Manutenção Militar, junto à feira da Ladra), as outras duas fotos de Pirada.

Com um abraço
Valente Fernandes


CUMPRIR AS NORMAS, SEMPRE

Em 1973 eu era alferes miliciano médico no BCAV 8323 em Pirada.

Eram óbvias as nossas preocupações na perspectiva do provável agravamento da situação, isto é, das flagelações e dos contactos com os guerrilheiros numa zona de fronteira, porquanto tínhamos vivido uma intensidade operacional com menor intensidade. Sabíamos (informações muito incompletas) o que tinha acontecido em Guidage.

Após as consultas de saúde da manhã, primeiro no posto médico do batalhão e depois na enfermaria destinada à população, à tarde o tempo livre não nos faltava. Os dois furriéis enfermeiros das duas companhias sediadas em Pirada (da CCS e da 3ª Companhia) e os vários maqueiros, tiveram complemento de formação no âmbito do socorrismo, incluindo a administração expedita de soros por via endovenosa (na veia), soros que poderiam vir a contribuir para salvar vidas.

O acaso contribuiu para termos muitas ‘cobaias’ para treino: Tínhamos recebido informação de Bissau ‘havia que matar a maioria dos cães’ que pululavam no batalhão e na tabanca porque os serviços de saúde do Senegal tinham ‘detetado cães com raiva' no seu território, logo ali, do outro lado da fronteira’.

Conforme combinado com o comandante do batalhão, tenente-coronel Jorge Mathias (distinto equitador e coronel no ano seguinte), e para cumprimento das ordens de Bissau, foi decidido matar todos os cães existentes em Pirada que não tivessem dono. Aos cães condenados administrámos previamente Valium (um medicamento sedativo) por injecção intramuscular. Após adormecidos os animais, todos os membros do serviço de saúde do batalhão puderam praticar (várias vezes) a inserção de uma agulha com soro numa veia da face interna da coxa dos cães. Tínhamos soros em fartura. Era estranho que também houvesse num posto médico no mato tantas ampolas de Valium… Talvez não fosse tão estranho, se considerássemos o que viemos a encontrar no conteúdo do atrelado sanitário da CCS…

Lembrei aos maqueiros a importância da administração dos soros por via endovenosa e que sozinhos no mato, em caso de dúvida, deveriam sempre administrar um soro. Estávamos em ambiente militar, avisei-os que a falta de administração de um soro necessário, poderia implicar uma punição. Em contrapartida, a administração desnecessária de um soro, não implicaria qualquer penalização.

Certa manhã, uma coluna saída de Pirada sofreu uma emboscada próximo de Bajocunda (cerca de dez quilómetros para leste desta povoação? não sou competente em localizações geográficas). Imediatamente saiu um grupo de combate para os socorrer, no qual eu me integrei. Quando chegámos, o combate tinha cessado, infelizmente tínhamos dois militares mortos (os primeiros mortos do batalhão. Ainda era intenso o odor a pólvora e verifiquei que os poucos feridos tinham recebido os primeiros socorros adequados.

Reparei então que um jovem militar estava sentado no chão encostado a uma árvore, fumando um cigarro, de perna ‘traçada’ e com um soro (pendurado num dos ramos da árvore) em perfusão endovenosa, com a agulha adequadamente inserida na região do sangradouro.

Então o maqueiro que ia na coluna atacada, informou-me: Quando aconteceu a emboscada, os militares saltaram para fora das viaturas, ficando deitados no solo a responder ao ataque. Perante o intenso ruído de muitas detonações simultâneas, num ambiente de concentração de pólvora queimada, uma cobra tinha mordido aquele militar que estava tranquilamente encostado à árvore. O maqueiro que integrava a coluna tratou primeiro os outros feridos. Depois administrou a este militar o antídoto antiofídico que sempre transportava. Administrou correctamente o antídoto à volta do local da mordedura da cobra (no antebraço). Depois disso, surgiu-lhe a dúvida, dúvida agravada pela terrível vivência dos sentidos que tinha experimentado durante a emboscada: se a mordedura de cobra implicava (ou não) a administração complementar de soro na veia: o militar estava com óptimo aspecto mas, conforme às recentes normas do batalhão, em caso de dúvida era para administrar…

Manuel Valente Fernandes

Pirada > Na casa do (célebre) senhor Mário Soares. Acompanhando-o quatro alferes milicianos e um capitão miliciano.

Pirada > Messe
____________

Nota de CV:

(*) Vd. poste de 17 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10542: Tabanca Grande (365): Manuel Valente Fernandes, ex-Alf Mil Médico do BCAV 8323 (Pirada, 1973/74)

Vd. último poste da série de 17 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10394: Os nossos médicos (43): Amaral Bernardo e Mário Bravo, em Guileje, ao tempo do cap Jorge Parracho, comandante da CCAÇ 3325 (1971)

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10542: Tabanca Grande (365): Manuel Valente Fernandes, ex-Alf Mil Médico do BCAV 8323 (Pirada, 1973/74)

1. Mensagem do nosso camarada e novo tertuliano Manuel Valente Fernandes, ex-Alf Mil Médico do BCAV 8323, Pirada, 1973/74, com data de 14 de Outubro de 2012:

Prezado editor do blogue
Conheço-o de há longa data (ENSP e congressos de medicina do trabalho), sou admirador sincero da sua postura de cidadania e profissional, navegamos em águas comuns: as condições de prestação do trabalho.

Actualmente sou membro dos corpos gerentes da Associação Portuguesa de Medicina do Trabalho. Não viajo habitualmente por blogues, agora tive conhecimento do vosso através do António Graça de Abreu. Pelo que me apresento:

Em 1973 e 1974 fui o alferes miliciano médico do BCav 8323 - Pirada.

Obviamente tive vivências semelhantes a qualquer dos camaradas que estiveram neste TO.
Do que me ficou ressalto:

- A experiência da intensa solidariedade que se gerou entre os camaradas que vivenciaram juntos o risco de vida de cada um e a permanente entre-ajuda, isto durante largos períodos. Materializa-se actualmente na emoção dos encontros de antigos camaradas (o meu batalhão mantém estes encontros).

- As perturbações na saúde mental de tantos camaradas. Tive a experiência de dois dos nossos que manifestaram psicoses agudas (um militar da CCS e outro da 1ª Companhia - em Bajocunda), ambos felizmente com bom prognóstico após a evacuação.

- A vivência da paz: aqueles almoços entre membros do batalhão e membros do PAIGC, no período que mediou entre o 25 abril e 25 agosto 1974 (regresso a Bissau), durante o período de retração do dispositivo.
Aquele convívio com os ex-inimigos não se esquece, incluindo as conversas respeitantes a ideologia política, um tema então tão apetecido pelos jovens milicianos portugueses.

Junto duas fotos e um texto que conta um episódio da minha vida no batalhão.

Com os meus cumprimentos
Manuel G. Valente Fernandes


Residência do célebre sr. Mário Soares, um dos dois comerciantes instalados em Pirada em 1975. Três dos alferes do Batalhão: Transmissões, Tesoureiro e Médico (eu à direita).


2. A minha história:

URGÊNCIA EM PAUNCA

Alferes miliciano, em 1973 era eu o médico do BCav 8323, em Pirada, mesmo junto ao marco fronteiriço 69.

Um fim de tarde, fui chamado ao bunker dos operadores de rádio, onde recebi um pedido de apoio do maqueiro que se encontrava no destacamento de Paunca, a cerca de vinte quilómetros, destacamento constituído por milícias e integrado no dispositivo do batalhão. Um homem, membro da população, estava com retenção vesical (incapacidade de urinar, apesar da bexiga cheia, provavelmente causada por adenoma da próstata). O procedimento adequado seria efectuar uma algaliação (introduzir na uretra do doente um tubo de borracha, adequada e macia e empurrá-lo até à bexiga) para permitir que a urina saísse e assim aliviar o doente.
O maqueiro nunca tinha realizado, nem sabia como realizar uma algaliação.

Falei com o comandante do batalhão que me confirmou o que eu já sabia: àquela hora não poderia sair um grupo de combate para me levar ao destacamento (não podemos esquecer o tempo que demoraria percorrer aquela distância numa estrada possivelmente minada); àquela hora também não teríamos apoio de helicóptero.

A retenção vesical provoca intenso sofrimento: o doente não poderia ficar à espera da algaliação que eu somente poderia realizar na manhã seguinte.
O meu maqueiro não poderia tentar a algaliação (mesmo com o meu apoio via rádio) por ser muito provável, não só não ter sucesso, como provocar um “falso trajecto” na uretra, com grave prejuízo para o doente.

Somente restava uma solução, provisória, mas com baixo risco para o doente: efectuar uma punção supra-púbica, isto é, perfurar a parede da bexiga do doente com uma agulha grossa, procedimento de baixo risco numa bexiga cheia, porquanto não se perfura o peritoneu, se a picada da agulha for efectuada a “rasar” o bordo do osso que temos sob os pêlos púbicos.

Dei indicação ao maqueiro para trazer o doente para o bunker do operador de rádio de Paunca, onde ficou deitado (os bunkers caracterizavam-se pelo tecto baixo). Disse-lhe para esterilizar uma agulha grossa, pelo método habitual (fervura em água num tacho).

Agulha esterilizada, indiquei ao meu (distante) colaborador que sob minha responsabilidade, iria perfurar a parede da bexiga do doente: Com terminologia pouco científica mas muito explícita, indiquei-lhe exactamente onde deveria perfurar a pele, com a agulha rigorosamente em posição vertical (o grau de sofrimento do doente “dispensava” a anestesia local).

Depois, fiquei ansiosamente à espera de notícias do meu maqueiro. E as notícias (de sucesso) foram um simples comentário, gritado de entusiasmo:
- Doutor, o esguicho de mijo chega ao tecto !!

Manuel Valente Fernandes


3. Comentário de CV:

Caro camarada Valente Fernandes
Não estranhes por ser eu a receber-te na Tabanca Grande. Primeiro porque sou eu que normalmente recebo todos os camaradas que se apresentam, pois sou uma espécie de relações públicas do Blogue; segundo, porque embora te tenhas dirigido directamente ao Luís, ele não poderia responder-te por estar ausente do País, em trabalho.

Outra coisa que não vais estranhar é o tratamento por tu, modo que não implicará uma comunicação menos respeitosa, porque estabelecemos que pessoas que viveram as mesmas dificuldades de guerra, suportaram aquele calor húmido, pisaram aquela terra vermelha, atravessaram as mesmas bolanhas, suportaram aqueles mosquitos e viram morrer ou ficar feridos os seus companheiros, devem deixar do lado de fora da caserna os seus títulos honoríficos (não as profissões), as suas habilitações (úteis para ajudar quem tem mais dificuldade de expressão), as suas antigas (ou actuais) patentes (servem só para identificação e estatística), a sua posição social e até a idade. O tratamento por tu estreita a amizade e a camaradagem, e desinibe.

A tua entrada vem aumentar o número de camaradas Médicos em campanha e outros que se formaram após o serviço militar, que enfileiram a nossa tertúlia. Correndo o risco de esquecer algum, no primeiro grupo estão: Amaral Bernardo, Mário Bravo e Pardete Ferreira; no segundo temos os camaradas: Vítor Junqueira, Francisco Silva, Ernestino Caniço e Caria Martins.
Espero não ter esquecido ninguém.
Tens uma série no Blogue dedicada aos nossos médicos, a que podes aceder a partir daqui:  Os nossos médicos

Dependendo do tempo livre de que dispões, gostaríamos que nos remetesses algumas das tuas memórias (em prosa e fotos), especialmente que nos falasses da tua vivência de jovem médico que teve de improvisar e colmatar a sempre presente falta de meios e de pessoal habilitado. Aliás, a história que hoje nos contas é a melhor prova do que acabei de escrever.
Na minha Companhia (independente) Médico e Padre era coisa rara, situação que se inverteu a partir da altura em que se reactivou o COP6, em Mansabá, que nos permitiu ter médico a tempo inteiro. Tínhamos também a sorte (sem desprimor para os camaradas Fur Mil Enfermeiros formados na tropa) de ter um Furriel Enfermeiro que já exercia a profissão na vida civil, o que nos dava uma certa confiança e era uma mais-valia para os médicos que por lá apareceram para exercer as suas funções humanitárias.

Já agora, uma coincidência engraçada. No passado sábado, no convívio da Tabanca dos Melros, em Fânzeres, conheci o ex-Fur Mil Enf. José Pereira da 2.ª Companhia do BCAV 8323. Lembras-te dele? Julgo que me disse ser de Lamego.

Desviei-me na conversa, mas acho que deixei o essencial. O Luís brevemente entrará em contacto contigo, dando resposta à tua mensagem que fica aqui publicada.

Pela minha parte fico disponível para qualquer esclarecimento.

Resta-me enviar-te um abraço de boas-vindas em nome da tertúlia e dos editores.
O teu camarada e novo amigo
Carlos Vinhal
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 4 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10478: Tabanca Grande (364): Júlio Madaleno, tocador de guitarra, feicebuqueiro e agora grã-tabanqueiro, nº 582, ex-fur mil, CCAÇ 1685 (Fajonquito) e CCAÇ 2317 (Gandembel) (1967/69)

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Guiné 63/74 - P10176: O Nosso Livro de Visitas (143): Gama Carvalho, ex-fur mil cav, 2ª C/BCAV 8323 (Piche, Buruntuma e Piche, 1973/74), aceita o nosso convite para se tornar grã-tabanqueiro...

1. Em resposta ao nosso convite, para ingressar na Tabanca Grande, o Gama Carvalho (ou Carlos Holyday ou Carlos da Gama) registou e respondeu que... sim, embora tendo que formalizar essa entrada só mais tarde, por não ter oportunidade de nos mandar agora as fotos da praxe... Recorde-se que é (i) o autor do blogue Estrada Fora (ou Memória da Micha,  nome de guerra da sua autocaravana, foto à direita) , (ii) vive em Braga e (ii) pertenceu á 2ª C/BCAV 8323 (Piche, Buruntuma e Piche, 1973/74).

(i) 17/7/2012:

Gama Carvalho: Estamos na campanha dos 600 grã-tabanqueiros até ao final do ano... Teríamos muito gosto em que entrasses, com a tua Micha... Manda duas linhas a teu respeito... Posto, companhia (2ª...), e o mais que quiseres acrescentar... Não há aí duas fotos tipo passe, uma dos 20 anos e outra dos 60 ou 59 ?,,, Vou publicar a história do teu regresso, em poste de amanhã... O Carlos Marques dos Reis (Fá Mandinga e Mansambo, CART 2339, 1968/69) também é caravanista... Um ab. LG


(ii) 19/7/2012:

Caro Luís Graça:


Antes de mais, quero deixar-lhe o meu vivo obrigado pela pronta e afetuosa recepção que muito me sensibilizou. Felicito-o, igualmente, pelo extraordinário blog «Luis Graça  & Camaradas da Guiné».

Como lhe referi, anteriormente, já há um bom tempo que visito esse espaço de memória onde gosto de me encontrar. Daí que tenha ganho coragem para me dirigir a si, dando conta de alguns pedaços de vida que, de quando em vez, guardo na «Memória da Micha».

Agradeço-lhe, uma vez mais, a oportunidade de recordar os tempos passados na nossa Guiné.

Pertenci, como referiu, à 2ª Companhia de Cavalaria do BCAV 8323, comandada pelo Cap Tapadinhas. Tinha o posto de furriel miliciano.

Vivo em Braga, terra do meu nascimento. Trabalhei no Ministério da Saúde, durante 36 anos, onde exerci alguns cargos de chefia (Chefe de Divisão, Diretor de Serviço e Sub-Diretor Geral). Daí que lhe confesse que alguns dos seus textos da área da sociologia da saúde foram de grande importância na minha vida profissional.

Quanto às fotos: de momento não tenho oportunidade de enviar. Fica para mais tarde.

Um abraço do

Carlos da Gama

2. Comentário de L.G.:


Na realidade, caro camarada, o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande!... Guiné e Saúde são já coincidências a mais... Também passei pela saúde (até 1994, a Escola Nacional de Saúde Pública era um organismo central do Ministério da Saúde, tendo nessa data passado para a Educação, como unidade orgânica da Universidade Nova de Lisboa), e continuo a trabalhador no campo da saúde, investigando e ensinando matérias de saúde pública...

Fico contente por saber que os meus textos de apoio, na érea da sociologia das organizações e profiasões de saúde, disponíveis em acesso livre na minha página çpessoal, tiveram utilidade para pessoas como tu que pertenceste à carreira de pessoal dirigente do Ministério da Saúde...

Enfim, temos mais uma razão ou um pretexto para nos sentarmos aqui à sombra do nosso poilão e pôr a conversa em dia... Vou então aguardar que um dia destes nos mandes as duas fotos da praxe para a tua apresentação formal aos restantes camaradas que integram a Tabanca Graende. Até lá, boas viagens com a tua Micha, e demais família. Muita saúde e longa vida, camarada! Luís Graça.


_________________

Nota do editor:

Último poste da série > 8 de julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10131: O Nosso Livro de Visitas (142): Rodrigo Moura, de Leça do Balio, Matosinhos, ex-sold radiotelegrafista, CART 2440 / BART 2857, Piche, 1968/70... Já voltou a Bissau, desde 2000, cerca de 20 vezes...

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Guiné 63/74 - P10169: Os Nossos Regressos (28): Gama Carvalho, 2ª C/BCAV 8323 (Piche, Buruntuma, Piche, 1973/74), autor do blogue Estrada Fora, surpreendido em Figo Maduro pelo ardina que vendia o jornal A Merda, em 11 de setembro de 1974...



Com a devida vénia... Do blogue Estrada Fora,  do nosso camarada Gama Carvalho, que pertenceu 2ª C/ BCAV 8323 (Piche, Buruntuma, Piche, 19773/74)...

[ Recorde-se, a propósito do  BCAV 8323/73:  (i) foi mobilizado pelo RC 3,  (ii) partiu para o TO da Guiné em 22/9/1973, (iii) egressou a 10/9/1974; (iv) steve sediado em Pirada; (v) teve como comandante o ten cor cav Jorge Eduardo Rodrigues y Tenório Correia Matias;:  (vi) dele faziam parte a 1ª C/BCAV 8323 (Bajocunda), a 2ª C/BCAV 8323 (Piche, Buruntuma, Piche) e a 3ª C/BCAV 8323 (Pirada)].

1. Estrada Fora > Quarta-feira, 29 de Junho de 2011 > O mais belo nascer do sol


O regresso à metrópole estava previsto para as 23.00 horas no aeroporto de Bissau. Mas, a meio da tarde desse dia [, 10 de setembro de 1974], eram já muitos os militares a dirigirem-se para o local de embarque. A ânsia da partida manifestava-se por um imenso desassossego, visível nos constantes olhares para o relógio, nas contínuas espreitadelas às pistas e na postura inquieta dos corpos.

Foram 12 meses passados no mato, sob uma enorme pressão psicológica. Lembro bem, em Buruntuma, só me sentia mais calmo e seguro pela calada da noite, pois eram raros os ataques da guerrilha local nesse período de tempo.

Estávamos em meados do mês de Setembro de 1974. A revolução de Abril tinha constituído, para os militares que lutavam nas três frentes de guerra em África, um farol de esperança a iluminar os caminhos do futuro. Com a queda do regime político português, dissiparam-se as dúvidas sobre o final daquele conflito colonial. Pelo que o pensamento fixou-se, a partir daí, no regresso a casa.

À hora marcada, fomos informados que o avião, vindo, propositadamente, de Lisboa, ainda estava a caminho. Só pelas três horas da madrugada levantamos voo para uma viagem que me proporcionou o mais belo espectáculo que assisti, até hoje, nas alturas do firmamento: um magnifico nascer do sol, com raios multicolores, mistura de vermelho vivo com um amarelo rebelde. Na admiração daquele magnifico quadro, senti que uma nova era se iniciava na minha vida. Para trás, deixava um tempo que pretendia esquecer rapidamente.

Todos sabíamos, pelas notícias que nos chegavam de camaradas regressados de férias, que Portugal estava em vertiginosa mudança social e politica. E foi no preciso momento em que desembarquei, no aeroporto militar de Figo Maduro, em Lisboa, que dei conta dessa enorme mudança que o meu país sofreu no tão curto espaço de um ano. O primeiro sinal dessa mudança foi trazido, no cais de desembarque, por um vendedor de jornais que, junto de mim, apregoava: >
- Compre A Merda. Leve A Merda para casa!.

Um pouco incrédulo, fixei-me, por momentos, no ardina e nos jornais que carregava. Constatei, surpreso, que um dos deles tinha esse título tão pouco ortodoxo e impensável há um ano atrás.

A minha perplexidade era do tamanho da diferença de liberdade política e social com o país que tinha deixado: rural, fechado sob si próprio, amargurado pelo destino dos embarcados para o ultramar, pobre e abandonado pelos mais jovens num fluxo emigratório sem precedentes. Tudo isso estava em mudança vertiginosa.

A liberdade trazida pela «Revolução dos Cravos» estava a dar frutos a nível do desenvolvimento social e político e, um pouco mais tardiamente, a nível da economia e finanças.

O jornal «A Merda» mais não era que um apêndice dos excessos que o exercício da liberdade sempre comporta. Sobretudo, após uma asfixia tenebrosa de 40 anos de ditadura!

Mas, de tudo isto, retenho, na minha melhor memória, o mais belo nascer do sol!


2. Comentário de L.G.:

Ainda me recordo, apenas de o ver nas bancas de jornais, não de o ler, do jornal, de combate político, "A Merda", que era conotado com o movimento anarquista em Portugal.  Perdurou na nossa memória mais do que outros como o "Coice de Mula" ou até como a revista (doutrinária) "Ideia", mais séria e intelectual  (onde pontificou o meu confrade João Freire, como diretor, editor e proprietário, nos anos 70/80) ... De referir ainda, segundo José Nuno Matos, outras publicações congéneres que apareceram no pós 25 de abril: o Pasquim (Cascais), o Satanaz (Almada), a Sabotagem, o Rastilho e a Terra Livre (Amesterdão), a Revolta (Leiria), a Acção (Tomar), a Libertação (Pombal) e, mais tarde, o Apoio Mútuo (Évora), A Sementeira (Lisboa), a Lanterna Negra (Lisboa) e o Anarquista (Leiria)...

De qualquer modo, e na esteira do poste do nosso camarada Gama Carvalho, quem não se lembra do célebre refrão dos ardinas de Lisboa que vendiam "A Merda" ?!
- Olh' A Merda!... Compr' A Merda!... Lei' A Merda!... Gand' A Merda!...

Lembro-me também das pichagens nas paredes, algumas das quais resistiram anos e anos a fio à ação dos homens e das intempéries... mas não à nova horda de grafiteiros. Lembro-me, de cor, de uma ou outra palavra de ordem, anarquista, ou de inspiração anarquista, com conteúdo libertário, iconoclasta, sarcástico, corrosivo, subversivo, irónico, pungente ou simplesmente filosófico, ético ou poético.... (Enfim, recorro aqui também ao auxiliar de memória que é a notável amostra, de mais de 500 murais,  do pós 25 de abril, fotografados e tratados pelo Centro de Documentação 25 de Abril)...


Uma ou outra dessas palavras de ordem ainda se vê por aí, tentando em vão interpelar-nos, provocar-nos... Diga-se, en passant, que o anarquismo nunca teve grande implantação histórica em Portugal (contrariamente à Grécia e à Espanha), se excetuarmos a influência do anarcossindicalismo dos finais do séc. XX até aos anos 20 do séc. XX, nalguns polos industrais (e portanto operários) de um país onde o capitalismo da 1ª geração foi atípico, periférico e serôdio... Não confundam, por favor, essas pichagens de humor ácido, corrosivo, com a "cultura grafiteira" das tribos suburbanas do início do séc. XXI... Sinto-me, apesar de tudo, mais confortável com os primeiros do que com os segundos...

- A Anarquia vencerá!
- À portuguesa só conhecemos o cozido!
- Abaixo a Ditadura, viva a Coca-Cola!
- Abaixo as relações sexuais!
- Abaixo os organismos de cúpula, vivam os orgasmos de cópula!
- Apoiamos a justa luta dos bichos da fruta
- As pulgas não sabem nadar, não lavem os cães!
- Greve ao papel higiénico, compremos os jornais.
- Já não há eleições, o Dom Sebastião volta para a semana!
- Junta a tua à nossa merda! [, paródia da palavra de ordem do PCP: "Junta a tua à nossa voz"]
- Na aula de educação sexual teve falta de material
- Não encostem o cu à parede, não!...
- Nem Deus nem Chefe!
- Nem Deus nem Chefes... e muito menos anarcas!
- Nem Deus nem Pátria nem Família nem Chefe nem Governo, Autogestão!
- Nem mais um faroleiro para as Berlengas!
- O trabalho dá preguiça, a preguiça dá trabalho.
- Os nossos sonhos não cabem no nosso mundo.
- Poder aos glutões.
- Putas ao poder, que os filhos já lá estão!


- Se a merda valesse ouro, os pobres nasciam sem cu!
- Se Deus existe, o problema é dele.
- Se o governo é merda, de quem é a culpa? Da merda ou do governo?
- Sejamos realistas, exijamos o impossível!
- Unicidade pró menino e pra menina.
- Viva a dentadura do proletariado!

... Pode ser que, entretanto, alguém se lembre de mais algum!... Hoje fazem-nos apenas sorrir, com um sorriso amarelo ou amarelecido. Perderam toda a carga humorística e até subversiva que podiam ter tido na época, de descompressão política, social, cultural e mental, que foi o 25 de abril e o pós-25 de abril.

[As duas imagens de cima foram tiradas  o Porto, numa das escolas  do IPP - Instituto Politécnico do Porto, em Paranhos, no dia 6 de junho de 2012. LG].
_____________

Nota do editor:

11 de novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9027: Os nossos regressos (27): Faz hoje 44 anos que desembarquei na Estação Ferroviária de Barcelos (José Lima da Silva)

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Guiné 63/74 - P10164: Blogues da nossa blogosfera (52): Estrada fora... de Gama Carvalho, a viver em Braga, e que esteve em Piche e Buruntuma, no BCAV 8323 (1973/74)


Blogue Estrada Fora, de Carlos da Gama. Existe desde abril de 2011. O Carlos da Gama vive em Braga e é um apaixonada autocaravanista. Micha é a sua autocaravana. As "memórias da Micha" já deram cerca de 180 postes. Há também  algumas recordações do tempo da Guiné (1973/74).


1. Mensagem. de ontem, enviada pelo nosso leitor (e camarada) Gama Carvalho:


Boa noite: Já há algum tempo que passo horas a ver o seu magnífico blog - repositório de memórias da Guiné.


Eu sou um ex-combatente. Estive em Buruntuma em 1974 e em Piche em 1973.

Aqui lhe deixo umas crónicas que escrevi no meu blog http://memoriadamicha2011.blogspot.pt e que podem ser pesquisadas no Google.

Estrada fora >  O mais belo nascer do sol
 Estrada fora > Fidelidade canina
 Estrada Fora > No cais de Alcântara

etc...

Abraço
Gama Carvalho

2. Comentário de L.G:

Obrigado, camarada, pelas tuas gentis palavras. Considera o nosso blogue também como teu. Ficas, desde já convidado a integrar a nossa Tabanca Grande, onde cabe toda a malta que passou pela Guiné (1961/74) , dos velhinhos aos piras. Sobre o teu batalhão, temos mais de duas dezenas de referências... Podes trazer a tua Micha, que também há espaço para ela. Sei que gostas de correr mundo... Vou convidar os nossos leitores a visitar o teu blogue. Também temos autocaravanistas entre os mais de 565 camaradas e amigos da Guiné, que leem e fazem este blogue de partilha de memórias e de afetos. Como camaradas que somos, tratamo-nos por tu. Aparece. Vou reproduzir um dos teus postes, o  da partida para a Guiné.  Felizmente partiste e chegaste!!... Um Alfa Bravo (ABraço) do Luís Graça.


3. Estrada fora, de Carlos da Gama > 23 de junho de 2011 > No cais de Alcântara... (Reproduzido com a devida vénia)

Alcântara estava ensolarada naquele longínquo dia 13 de Setembro do ano de 1973.
Lisboa corria apressada pelas ruas e tinha-se enchido de gente da província que viera para uma última despedida dos jovens soldados que, pela tarde, embarcariam no Niassa, rumo à Guiné. 

A grande maioria vinha do Alentejo já que o Batalhão de Cavalaria 8323/73 tinha-se constituído e formado em Estremoz. Apenas uns poucos, como eu, eram do norte do país.
Tudo, para mim, era novidade nos meus vinte anos. Não fazia a mínima ideia que final me estava destinado naquele filme de que era um protagonista forçado. Nenhum familiar eu tinha no cais do desespero e da saudade. Para além da penúria da deslocação a Lisboa, num tempo em que não existiam auto-estradas, eu assim preferi. Já imaginava que a melancolia seria ampliada pelas emoções da despedida para um destino todo feito de incertezas.

Ao meio da tarde, embarquei na companhia dos cerca de 500 homens, de várias toneladas de equipamento e armamento militar e de umas largas dezenas de caixões destinados a dar abrigo aos corpos daqueles que por lá deixassem a vida. 

Quando as amarras libertaram o navio do cais, Lisboa ouviu o rumor crescente do choro da multidão que, numa constante agitação, se despedia com acenos ansiosos, com desejos de boa-sorte, com olhares fixos, com palavras de revolta e de um desespero impotente. Um cenário melodramático que atingia em cheio o coração dos embarcados.

Lembro que me recolhi a um canto do navio, de frente para o cais, assistindo, atónito, àquelas emoções libertadas com intensa comoção. Ao meu lado, vi soldados em pranto convulso enquanto as suas mãos se dirigiam para o local donde partiam lamentos lancinantes e se mostravam lenços brancos agitados com melancólica ternura.  Vi alguns, mais desesperados, a desfalecer, quer devido às fortes emoções, quer ao excesso de álcool de que tinham abusado. Daí o cheiro pestilento dos bafos etílicos misturados com vómitos imundos espalhados pelo chão.

Durante a alongada espera do soltar das amarras, ainda em pleno Tejo, perpassou pela minha alma a proibida letra de uma melodia do cantor de intervenção, Adriano Correia de Oliveira: «Tejo que levas as águas, correndo de par em par, lava a cidade de mágoas, leva as mágoas para o mar!». 

Aquela despedida deixou-me em grande sobressalto e despertou em mim algumas questões para as quais não conseguia encontrar respostas. Sobretudo, a razão porque os homens e mulheres do meu país, apenas ali, no cais de Alcântara, reagiam à dor de ver partir os seus filhos para incertas paragens de sangue, suor e lágrimas.

Mas foi lá longe que, para além da lógica da guerra, lidei com uma realidade económica e social que jamais julguei existir e que me impressionou profundamente. A Guiné era, e continua a ser, um território sem cor, sem alma, sem economia, sem organização social, sem horizontes, sem liberdade, sem vida … sem quase nada! 

Na sua história, teve, apenas, um líder, por quem nutro uma grande admiração, que, um dia, sonhou com a liberdade e ousou lutar por ela: Amílcar Cabral. Não fosse o seu cobarde assassinato perpetrado pela polícia política portuguesa (**), uns meses antes de eu lá chegar, e a Guiné teria podido sonhar com um futuro melhor. Apesar da pobreza!

_______________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 1 de julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10098: Blogues da nossa blogosfera (51): "Uma boa e rápida recuperação Meu Coronel", in Swedish Lapland to Key West (José Belo)


(**) A autoria material e sobretudo moral do assassinato de Amílcar Cabral ainda hoje é e continuará a ser objeto de grande controvérsia. Questão já aqui amplamente debatida no nosso blogue. A nós interessa-nos a busca da verdade histórica. 

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Guiné 63/74 – P9917: Convívios (437): Almoço/Convívio do Batalhão de Cavalaria 8323, dia 2 de Junho de 2012, em Coimbra (António Rodrigues)


1.     O nosso Camarada António Rodrigues, ex-Soldado Condutor Auto do BCAV 8323, Copá, 1973/74, solicita-nos a divulgação da próxima festa da sua companhia. 


Almoço/Convívio do Batalhão de Cavalaria 8323

2 de Junho de 2012

Ançã - Coimbra 




Camaradas, 

Agradeço a publicação, no nosso Blogue, da notícia do almoço/convívio do Batalhão de Cavalaria 8323, que prestou serviço na Guiné 1973-1974, em Pirada, Bajocunda, Copá, Paunca, Sissaucunda e Buruntuma. 

Realiza-se no próximo dia 2 de Junho no Restaurante Quinta do Pingão junto à estrada Nacional, em Ançã - Coimbra. 

Para mais informações, os interessados (que espero sejam muitos ) devem contactar o nosso Camarada e Amigo: 

José Tomás Fernandes 
Telefones: 253 672 374 (das 09h00 às 18h00 horas) 
Telemóvel: 964 241 854 
Ou, 
Paula: 253 673 929 (a partir das 21h00 horas) 

As inscrições devem ser feitas até ao próximo dia 25 deste mês de Maio. 

Um abraço, 
António Rodrigues 
Sold Cond Auto da 1ª CCAV do BCAV 8323. 


Mini-guião: © Colecção de Carlos Coutinho (2012). Direitos reservados. 
___________
Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

16 DE MAIO DE 2012 > Guiné 63/74 – P9912: Convívios (254): Encontro da Magnífica Tabanca da Linha, dia 31 de Maio de 2012 em Alcabideche (José Manuel M. Dinis)