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segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Guiné 63/74 - P16662: (De)Caras (51): Domingos Ramos, desertor do exército português e herói nacional da Guiné-Bissau: entre o mito e a realidade: as últimas palavras que ele nunca poderia ter dito, nem muito menos escrito, antes de morrer, em 10/11/1966, no ataque a Madina do Boé (Jorge Araújo)





Guiné > PAIGC > Manual escolar, O Nosso Livro - 2ª Classe, editado em 1970 (Upsala, Suécia). Lição nº 23, pp. 74/75: Um grande patriota...  b

Exemplar cedido pelo Paulo Santiago, Águeda (ex-alf mil, cmdt do Pel Caç Nat 53, Saltinho , 1970/72).

Fotos: © Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Todos os direitos reservados.~




Guiné > Região do Boé > Madina do Boé > CCAÇ 1589 / BCAÇ 1894 (Nova Lamego e Madina do Boé, 1966/68) – imagem do aquartelamento 

[foto do nosso camarada Manuel Coelho, ex-fur mil trms, da CART 1589, P8548, com a devida vénia].




Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494 / BART 3873 (Xime e Mansambo, 1972/1974); doutorado pela Universidade de León (Espanha) (2009), em Ciências da Actividade Física e do Desporto; professor universitário, no ISMAT (Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes),
Portimão, Grupo Lusófona.




GUINÉ: (D)O OUTRO LADO DO COMBATE A MORTE DE DOMINGOS RAMOS EM MADINA DO BOÉ - A VERDADE DOS FACTOS: ENTRE O REAL E A FICÇÃO -



1. – INTRODUÇÃO

Creio não estar muito longe da verdade se afirmar que a maioria dos camaradas, ex-combatentes, independentemente da época em que isso aconteceu, está a acompanhar com atenção e interesse a divulgação de algumas das principais experiências vividas por três médicos cubanos que estiveram na Guiné Portuguesa [hoje Guiné-Bissau] em “ajuda humanitária” ao PAIGC, na sua luta pela independência, cujas missões aconteceram nos anos de 1966 a 1969. (*)

Trata-se, com efeito, de um importante contributo histórico (digo eu!), cujo valor que eventualmente possamos atribuir à informação transmitida em cada questão, mesmo que seja relativo, permitir-nos-á reflectir sobre o “outro lado do combate”, para melhor compreendermos cada uma das nossas diferentes missões.

Na operacionalização desta possibilidade, abrem-se novos caminhos de análise individual e colectiva que, quando cruzadas com outros saberes e experiências pessoais adquiridas em cada contexto, ajudar-nos-ão a estar mais próximo da “verdade dos factos”, ainda que se aceite que “entre o real e a ficção” se tenha de superar uma “pista de obstáculos”, com várias “paliçadas” sempre em crescendo, passe a imagem de âmbito militar.

Os principais temas em destaque têm sido as dificuldades em sobreviver naquele tempo e naquele ambiente de guerra-de-guerrilha, aonde o conceito de improviso sobrepunha-se ao de logística, pois esta não existia, fazendo das pernas o principal meio de “transporte”, com caminhadas longas e diárias, onde o consumo de arroz (hidratos de carbono), a caça e a pesca (proteínas magras), garantiam a subsistência possível à maioria de cada uma das comunidades, e que serviam para suavizar a fome.


Tabanca do Xime . Foto de Jorge Araújo (1972)


No contexto estritamente militar, os diferentes relatos confirmaram que a maioria dos feridos em combate (algumas centenas, se somarmos os números indicados pelos três médicos) eram tratados em enfermarias de campanha construídas de colmo, algumas da sua iniciativa e responsabilidade, aonde se realizavam grande parte das cirurgias e amputações, quase sempre durante a noite, seguindo para Boké, o hospital de rectaguarda do PAIGC situado a cerca de trinta quilómetros da fronteira Leste com a Guiné-Bissau, as situações mais problemáticos, de que um exemplo concreto, já aqui dissecado, foi o caso do cmdt Mamadu Indjai em agosto de 1969 [P16506 + P16562].

Devido ao muito trabalho a que estavam sujeitos, às enormes dificuldades logísticas e ao número de ocorrências contabilizadas no contexto das suas missões, e das tensões a elas associadas, os médicos consideraram, como uma forte probabilidade, não ser possível dai saírem sãos e salvos, ainda que sentissem grande apoio, respeito e solidariedade.

Para além do acima exposto, eram também operacionais [armados] da guerrilha, integrados maioritariamente em bigrupos, sendo informados dos dias dos ataques onde estavam os portugueses (aquartelamentos, destacamentos, colunas de abastecimento, tabancas, …) quase sempre com armas pesadas.

Ficavam geralmente na rectaguarda a um quilómetro de distância, aonde montavam o posto sanitário com o equipamento de primeiros-socorros, para ser usado em caso de necessidade de prestação de cuidados de saúde, contando em situações pontuais com apoio de uma unidade de enfermagem.

Partindo da crença de que este assunto, tal como muitos outros, mereceria o seu aprofundamento por via dos muitos comentários recebidos, que agrademos, reforçada pela sugestão avançada pelo camarada Luís Graça ao referenciar novos elementos documentais relacionados com a figura de Domingos Ramos e a sua morte, eis mais um pequeno contributo de reforço ao referido no meu poste anterior [P16613] (**).



2. – A MORTE DE DOMINGOS RAMOS EM MADINA DO BOÉ

Neste ponto, para enquadrarmos o tema da morte do cmdt da Frente Leste Domingos Ramos, ocorrida a 10 de novembro de 1966, em Madina do Boé, iremos recuperar algumas das passagens já abordadas anteriormente pelo dr. Virgílio Camacho Duverger, com destaque para a questão 11 (“Participou em acções de guerra?”), mesclando-as com outros elementos históricos, uns mais fiáveis que outros, mas todos eles a merecerem a nossa reflexão.

Como foi referido anteriormente, o dr. Virgílio Camacho Duverger chega a Conacri em junho de 1966, integrado num contingente de cerca de três dezenas de elementos, entre os quais oito médicos, em que um deles é o nosso conhecido dr. Domingo Diaz Delgado.

É colocado no Hospital de Boké, aonde permaneceu dois meses, sendo depois transferido para a Frente Leste [agosto de 1966] para uma base existente no interior da República da Guiné, na região do Boé, com o objectivo de construir uma enfermaria de campanha que pudesse servir de apoio aos combatentes aí colocados sob a direcção do Cmdt Domingos Ramos, cuja principal missão militar era atacar o quartel de Madina do Boé [até à exaustão, visando a expulsão das NT, o que veio a acontecer dois anos e meio depois, em fevereiro de 1969].

Neste aquartelamento, naquele tempo, estava instalada a CCAÇ 1416 comandada pelo Cap Mil Jorge Monteiro, aí permanecendo entre maio de 1966 e abril de 1967, sendo nesta última data rendida pela CCAÇ 1790, comandada pelo Cap Inf José Aparício. [Vd. foto acima]

 Ao terceiro mês de estar naquela região [novembro], é-lhe pedido que realize um reconhecimento ao referido quartel, considerada por si como a missão mais importante em que participou, tendo por companhia o dr. Milton Echevarria, médico do seu grupo na Frente, e o apoio de guias/guerrilheiros destacados para aquela acção, caminhada que, disse, demorou perto de cinco horas, uma vez que a base estava a cerca de três quilómetros dali.

Em 10 de novembro de 1966, uma quarta-feira, a operação concretizava-se. Antes do ataque, na companhia de um enfermeiro cubano anestesista que havia chegado para reforçar o grupo de saúde, criou um posto sanitário avançado em território da Guiné-Bissau, perto da zona do combate, de modo a facilitar a assistência médica e a prestar os primeiros socorros aos combatentes que ficassem feridos, pois não era fácil chegar ao hospital de Boké.

Conta que a primeira morteirada lançada pelos portugueses [da CCAÇ 1416] cai, por casualidade, no local aonde estava o posto de observação no qual se encontrava o comandante da Frente, o guineense Domingos Ramos. Os estilhaços da granada atingem-lhe o abdómen causando-lhe uma ruptura hepática violenta que não deu tempo para o levar até ao hospital para o poder operar. Durante a evacuação, a caminho do hospital [não indica qual: se a enfermaria que ajudou a criar em território da Guiné-Conacri, se o hospital de Boké], Domingos Ramos faleceu.

Este episódio é descrito pelo assessor militar cubano Ulises Estrada [1934-2014], pois encontrava-se a seu lado, nos seguintes termos:

(...) "Eu encontrava-me ao lado de Domingos [Ramos], em que metade do seu corpo cobria o meu para proteger-me, coisa que não pude evitar, e abrimos fogo com um canhão B-10 colocado numa pequena elevação situada a cerca de seiscentos metros do quartel. Os portugueses [CCAÇ 1416] tinham montado postos de vigia na zona e responderam com disparos certeiros de morteiro, embora nós continuássemos a disparar com o canhão sem recuo, metralhadoras e espingardas.

"Pouco tempo depois de iniciado o combate, senti que corria pelo lado direito das minhas costas um líquido quente e pensei que estava ferido por uma das morteiradas que caíam ao nosso redor. Era Domingos [Ramos], sangrava abundantemente. Peguei no seu corpo com a ajuda de outro companheiro e o conduzimos ao posto médico, situado a cem metros da zona do combate. O médico cubano [Virgílio Duverger] informou-me que havia falecido.

"Não podíamos deixar o cadáver do dirigente guineense nas mãos dos portugueses. Pegámos no seu corpo e num camião nos deslocámos pelos campos de arroz até à fronteira com Conacri. Chegámos a Boké, aonde se encontrava o posto de comando fronteiriço, e entregámos o seu cadáver ao companheiro Aristides Pereira [1923-2011], para que pudesse fazer o funeral e render-lhe as honras que merecia este combatente, que foi um dos primeiros grandes chefes do PAIGC a morrer em combate”. (...)


[Excerto traduzido por JA, do castelhano: «Recordando Amílcar Cabral, líder anticolonialista da Guiné-Bissau», em: http;//45-rpm.net/sitio-antiguo/palante/cabral.htm].



Canhão s/ r 82 mm e alma lisa,, B-10, de origem soviética...  Uma arma versátil e temível...  Sess
ao de terino possivemente na base de Boké.

Fotograma do filme "Madina Boe" (Cuba, 1968, 38'), do realizador José Massip (1926-2014), obtidas a partir da função "print screening" do teclado do PC e da visualização de um resumo, em vídeo (28' 22'') , disponibilizado no You Tube, na conta "José Massip Isalgué". O documentário foi carregado no You Tube no dia da morte do cineasta (ocorrida em Havana, em 9/2/2014). O documentário chama-se "Amílcar Cabral" (e pode ser aqui visualizado)



De notar que Domingos Ramos viria a morrer dois anos depois da cerimónia de juramento de fidelidade dos guerrilheiros do PAIGC, ocorrida em 16 de novembro de 1964, nos arredores do Gabu, com a presença de Amílcar Cabral. Este acto de juramento de fidelidade, com que encerrou os trabalhos da constituição das primeiras unidades do Exército Popular, e da qual fez parte, tinha como lema “força, luz e guia do nosso povo, na Guiné e em Cabo Verde”.

À frente das FARP estavam importantes dirigentes do partido, tais como Domingos Ramos, Chico Mendes, Luís Correia, Lúcio Lopes e Honório Fonseca. Foram criadas novas frentes de batalha: no Gabu (local do juramento); no Boé (Madina, Beli, Cheche); a Leste, e em São Domingos (no Norte). [in: Luís Cabral, «Crónica da Libertação», 1.ª edição, Julho de 1984, edições «O Jornal», Publicações Projornal, Lda, Lisboa, p 230].



Mapa da região do Boé, com a localização do quartel de Madina, assinalando-se a direcção do hospital de Boké.

3. – AMÍLCAR CABRAL E A MORTE DE DOMINGOS RAMOS:

- DO REAL À FICÇÃO

Poucos dias após a morte de Domingos Ramos, Amílcar Cabral [1924-1973], na qualidade de secretário-geral do PAIGC elabora um documento de cinco páginas A4, dactilografado, a que chamou de «MENSAGEM» dirigida a «Todos os responsáveis e militantes do nosso Partido» e a “Todos os combatentes das nossas Forças Armadas”, de que se reproduz o título:




Trata-se de um documento político e ideológico fazendo apelo, no essencial, ao reforço da luta armada em todas as frentes, utilizando a figura de Domingos Ramos como meio de acção psicológica tendente à prossecução da libertação nacional.

Eis as duas primeiras páginas  [, de cinco]:






Quanto ao sucedido, lamenta [naturalmente] mais uma perda na luta armada de libertação nacional, referindo-se  “à morte do nosso grande camarada Domingos Ramos (João Cá), membro do Bureau Político do nosso Partido, companheiro exemplar e querido de todos os camaradas, militantes de vanguarda da nossa luta de libertação” (p3).

Acrescenta que “o camarada Domingos Ramos tombou no seu posto heroicamente, durante um ataque feito a uma caserna inimiga em 10 de novembro [1966], no qual causámos mais de trinta mortos e várias dezenas de feridos às tropas colonialistas” (p3).

A propósito desta afirmação, que é ficção, eis, no quadro abaixo, o número de baixas das NT verificado no período entre 1 de setembro e 8 de novembro de 1966 em todo o território do CTIG, não constando nos registos consultados qualquer morto ou ferido durante o ataque supra.




De notar, ainda, que até à data deste ataque, que não teve consequências, a CCAÇ 1416/BCAÇ 1856 registava quatro baixas, a 1.ª, em 22 de novembro de 1965, do Alf Mil Adelino da Costa Duarte, do 3.º Gr Comb [P12320 – homenagem de Manuel Luís Lomba], e as restantes, curiosamente oito meses despois, em 22 de junho de 1966, a saber: o Sold. Augusto Reis Ferreira, de Montargil (Ponte de Sôr); o Sold. Carlos Manuel Santos Martins, da Cova da Piedade (Almada) e o 1.º Cabo Rogério Lopes, de Chão de Couce (Ansião).

A referência a estas três baixas tinha já sido lembrada por José Mota Tavares, ex-Alf Mil Capelão da CCS/BCAÇ 1856 [P16049] no qual acrescenta “tenho imensas histórias de (…) Madina do Boé (8 ou 10 vezes debaixo de fogo, três mortos, duas fugas durante a missa para o abrigo…)”].

Sobre o martírio de Madina do Boé, pode-se ver um pouco da história da CCAÇ 1790 em:

https://www.youtube.com/watch?v=7vKuLzJVgU0 (1.ª parte)

https://www.youtube.com/watch?v=wn7Oeba1b_g (2.ª parte)


Recuperando a mensagem de Amílcar Cabral, este refere que, quanto à situação de Domingos Ramos, ela era muito grave e que já não teria salvação. Daí “o camarada Domingos Ramos dirigiu palavras de encorajamento aos seus companheiros de direcção do Partido, a todos os combatentes da nossa luta, dando assim mais uma grande prova de amor ao nosso povo, de dedicação sem limites ao nosso grande Partido e de certeza da vitória final da nossa luta” (p3).

Eis as duas páginas seguintes do documento atrás citado (3 e 4):






Prossegue com uma deliberação:

“tendo em conta os grandes serviços que o camarada Domingos Ramos prestou ao seu povo, à construção da nossa Pátria e ao desenvolvimento da nossa luta como militante e dirigente do nosso Partido, guardamos eternamente a memória do nosso camarada Domingos Ramos como a de um Herói Nacional. Por isso, a data de nascimento do nosso camarada Domingos Ramos será considerada uma data nacional, a sua fotografia será afixada em todos os lugares de trabalho do nosso Partido e construiremos um monumento à memória do camarada Domingos Ramos logo que a nossa terra seja independente” (p4).

Termina dizendo: “penso que as melhores palavras com que devo acabar esta mensagem são as que o camarada Domingos Ramos escreveu para mim, nos últimos momentos da sua vida (p. 5):


Fonte: Fundação Amílcar Cabral > Casa Comum > Arquivo Amílçcar Cabral (Com a devida vénia...)


Citação:
(1966), "Mensagem aos responsáveis e militantes do PAIGC e aos combatentes das Forças Armadas por ocasião da morte de Domingos Ramos", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_42298 (2016-10-31)

Pasta: 04602.044
Título: Mensagem aos responsáveis e militantes do PAIGC e aos combatentes das Forças Armadas por ocasião da morte de Domingos Ramos
Assunto: Mensagem dirigida aos responsáveis e militantes do PAIGC e aos combatentes das Forças Armadas, assinada por Amílcar Cabral, Secretário-Geral do PAIGC, por ocasião da morte do dirigente Domingos Ramos.
Data: Fevereiro de 1966 [Novembro de 1966]
Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral - Iva Cabral



Estas palavas escritas, supostamente por Domingos Ramos, são mais uma ficção só possível no contexto da guerra. De facto, todos os testemunhos dos que dele estiveram mais próximo e o socorreram, caso do Ulises Estrada e do médico Virgílio Duverger, nada referem.

Qualquer um de nós que viveu um cenário semelhante [e eu sou um deles, mais do que uma vez] não aceita, como verdade, o que acima é descrito, por muitas e diferentes razões. Desde logo, do ponto de vista cognitivo, o ferido com a gravidade referenciada cai redondo no chão e a consciência vai-se [foi-se]. Mas, esquecendo este pormenor muito importante, vamos a questões práticas.

Aonde estava, e de quem eram: o bloco de notas e a esferográfica? Com tanto sangue, a existir papel, este estava limpinho com as mãos ensanguentadas? E a esferográfica escrevia no papel molhado? E quem guardou o papel escrito? Se o Ulises Estrada foi o primeiro a dar-lhe apoio, recorrendo a outro guerrilheiro para o transportar até junto do médico, aonde chegou já morto, como era possível escrever uma mensagem tão estruturada e sem gaffes de memória ou funcionais. Como a terá escrito: de pé, sentado ou deitado? E onde a escreveu: nos joelhos, no chão ou nas costas de alguém? A caligrafia utilizada: foi em minúsculas ou em maiúsculas? …

Eis algumas razões que me levam a concluir estarmos perante uma ficção que passou, durante muitos anos, por verdade… (***)

Obrigado pela atenção.

Um forte abraço de amizade com votos de muita saúde.

Jorge Araújo.

24OUT2016.
____________________

Notas do editor:


(*) Vd,. postes de:

12 de outubro de  2016 >  Guiné 63/74 - P16592: Notas de leitura (889): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos (1966-1969) - Parte X: O caso do médico militar, especialista em cirurgia cardiovascular, Virgílio Camacho Duverger´[I]: viajando até Conacri com nomes falsos... (Jorge Araújo)


18 de outubro de  2016 > Guiné 63/74 - P16613: Notas de leitura (892): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos (1966-1969) - Parte XI: O caso do médico militar, especialista em cirurgia cardiovascular, Virgílio Camacho Duverger [II]: Estava a 3 km de Madina do Boé, em 10 de novembro de 1966, quando o cmdt Domingos Ramos foi morto por um estilhaço de morteiro da CCAÇ 1416 (Jorge Araújo)


20 de setembro de  2016 > Guiné 63/74 - P16506: (De)Caras (45): Médicos cubanos 'versus' comandante Mamadu Indjai (Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494, Xime-Mansambo, 1972/74)



(***) Último poste da série > 24 de outubor de 2016 > Guiné 63/74 - P16633: (De)caras (49). O 'embarazo' das esposas... O campeão de luta fula, Arfan Jau, do 4º pelotão, respondendo à moda do Porto à senhora do capitão, intrigada com a carecada que ele havia apanhado: 'Senhora, Arfan Jau cá tem cabelo, manga de fodido'... (Valdemar Queiroz, ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70)

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Guiné 63/74 - P16380: Notas de leitura (868): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos (1966-1969) - Parte VI: o caso do clínico geral Amado Alfonso Delgado (II): Na margem direita do rio Corubal, na mata do Fiofioli: «¿Tú piensas aguantar la mecha esta?, olvídate, que no duras ni tres meses" / "Tu pensas aguentar esta ratoeira? Esquece, pois não duras nem três meses”...


Guiné > Região controlada pelo PAIGC, possivelmente no sul > Visita de uma delegação escandinava às "regiões libertadas" > Novembro de 1970 > Foto nº 25 > Progressão, na savana arbustiva, por meio do capim alto, de um grupo de guerrilheiros. Presume-se que as colunas logísticas do PAIGC tivessem segurança por parte da milícia ou do exército populares...

Fonte: Nordic Africa Institute (NAI) / Fotos: Knut Andreasson (com a devida vénia... e a competente autorização do NAI. As fotografias tem numeração, mas não trazem legenda. Edição e legendagem; Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné).


Sexta parte, enviada a 7 do corrente, das "notas de leitura"  (*) coligidas pelo nosso camarada e grã-tabanqueiro, Jorge Alves Araújo. Trata-se de um extenso documento, que está a ser publicado em diversas partes (*), tendo em conta o formato e as limitações do blogue,


1. INTRODUÇÃO

Caros tertulianos: no P16357 (**) iniciámos a publicação da segunda de três entrevistas realizadas pelo jornalista e investigador Hedelberto López Blanch a médicos cubanos que estiveram na Guiné Portuguesa [hoje Guiné-Bissau] em missão de “ajuda humanitária” ao PAIGC, na sua luta pela independência.

Seguimos agora com a segunda de quatro partes em que o entrevistado continua a ser o dr. Amado Alfonso Delgado, médico de clínica geral mas com experiência em cirurgia. O seu depoimento global pode ser consultado no livro, escrito em castelhano, com o título «Histórias Secretas de Médicos Cubanos» [La Habana: Centro Cultural Pablo de la Torriente Brau, 2005, 248 pp. Disponível "on line"em formato pdf, numa versão de pré-publicação].

Nesta obra encontramos uma panóplia de outros relatos e experiências vividas exclusivamente por médicos cubanos em diferentes missões africanas como foram os casos passados na Argélia, no Congo Leopoldville, no Congo Brazzaville ou em Angola.

Porque se trata de uma tradução (com adaptação livre e fixação do texto em português, da minha responsabilidade), não farei juízos de valor sobre o conteúdo desta e das outras entrevistas: apenas coloquei entre parênteses rectos algumas notas avulsas de enquadramento sócio-histórico ao que foi transmitido, com recurso a imagens desse contexto retiradas da Net e dos arquivos do nosso blogue.


Foto acima: O nosso grã-tabanqueiro Jorge Araújo: (i) nasceu em 1950, em Lisboa; (ii) foi fur mil op esp / ranger, CART 3494 / BART 3873 (Xime e Mansambo, 1972/1974); (iii) fez o doutoramento pela Universidade de León (Espanha), em 2009, em Ciências da Actividade Física e do Desporto, com a tese: «A prática Desportiva em Idade Escolar em Portugal – análise das influências nos itinerários entre a Escola e a Comunidade em Jovens até aos 11 anos»; (iv) é professor universitário, no ISMAT (Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes), Portimão, Grupo Lusófona; (v) para além de lecionar diversas Unidades Curriculares, coordena o ramo de Educação Física e Desporto, da Licenciatura em Educação Física e Desporto].


2.  O CASO DO MÉDICO AMADO ALFONSO DELGADO [II]

Sumariando as primeiras cinco questões abordadas pelo médico Amado Alfonso Delgado no poste anterior, é de relevar que foi por ter iniciado o Serviço Médico Rural em Realengo 18, em Guantánamo, e pela prática clínica desenvolvida no Hospital de Gran Tierra de Baracoa, para onde fora transferido em janeiro de 1967, que surge a oportunidade de cumprir uma "missão internacionalista", que ele desejava que fosse no Vietname mas que acabou por ter outro destino: a Guiné Portuguesa (hoje Guiné-Bissau).

Com vinte e sete anos de idade inicia a sua missão africana na véspera de Natal de 1967, na companhia de outro médico, voando de Havana até Conacri, com escala em Gander [Canadá], Praga, Paris e Senegal (, quase meia volta ao mundo!). Durante o primeiro trimestre de 1968 presta serviço médico no Hospital de Boké, na Guiné-Conacri (e uma das bases do PAIGC) na companhia de mais quatro clínicos cubanos: o cirurgião militar Almenares, um ortopedista, um analista de laboratório e um técnico de raio X.

Em abril de 1968 segue para a frente Leste, substituindo o seu companheiro Daniel Salgado, na base de Kandiafra, por este se encontrar doente com uma forte crise palúdica. Nesta base encontravam-se vinte combatentes cubanos. Entre maio de 1968 e setembro de 1969 [dezassete meses], movimentou-se nas matas do Unal Ina região de Tombali) e Fiofioli [Sector L1 - Bambadinca], com destaque para esta última frente, onde pensou não sobreviver, tantas foram as dificuldades por que passou.

Eis o relato de outros apontamentos revelados pelo doutor Amado Alfonso Delgado tendo por base o guião da sua entrevista.

A entrevista tem com 25 questões. Hoje apresentamos a resposta (em itálico) às  questões de 6 a 11 com a devida vénia ao autor, conhecido jornalista cubano Hedelberto López Blanch (n. 1947).


“Cirurgias com a ténue luz de fachos de palha ardendo” 
(Cap XI, pp. 136 e ss)


Entrevista com 25 questões [Parte 2 > da 6.ª à 11.ª]

(vi) Quando chegou 
à zona da guerrilha?

Em Conacri estive cerca de uma semana [em janeiro de 1968]. Levaram-me a uns armazéns do PAIGC e aí distribuíram-me roupas, dois pares de botas, arma, granadas e outras coisas. Os companheiros que iam deixar aquela terra africana perguntaram-me para onde ia com aquele carregamento, explicando-me que deveria levar ténis uma vez que era o mais adequado, pois que no interior da Guiné-Bissau iria ter de caminhar muito e quanto mais pesado pior. De qualquer modo, levei uma mochila bem carregada.

Num dia de semana fui transportado num camião que me levou, não sei durante quanto tempo, passando por várias aldeias até chegar a uma povoação de nome Boké, onde havia um hospital de rectaguarda do PAIGC, perto da fronteira com a Guiné-Bissau [, a sul]. Ali permaneci três meses [até meados de abril de 1968], na companhia de vários cubanos.

Aí conheci o [comandante] Victor Dreke (chefe da missão militar cubana) e o [tenente] Erasmo Vidiaux [Robles],  outro importante combatente cubano, quando ambos circulavam naquela zona. [Estes dois oficiais participaram, anteriormente, na missão cubana no Congo-Leopoldville (Belga), em 1965, comandada por Ernesto “Che” Guevara (1928-1967)].

Com permanência fixa em Boké, estavam [quatro técnicos de saúde]: o dr. Almenares (cirurgião militar de Santiago de Cuba que morreu alguns anos depois em Cuba com cancro da próstata), um ortopedista, um analista de laboratório e um técnico de raio X. Eu ia como médico de clínica geral, mas como tinha experiência de cirurgia ajudei o Almenares em várias operações, particularmente feridos de guerra.

(vii) Porquê e quando lhe destinaram 
a zona de guerra?

Um dia disseram-me que teria de ir para a frente Leste, pois havia que substituir o médico [Daniel] Salgado (morreu em 2000 de um cancro no fígado),  que tinha contraído paludismo e não se sentia bem. Saí em abril de 1968 num camião e depois de várias horas chegámos à fronteira entre as duas Guinés. Cruzámos um rio e chegámos a um acampamento denominado Kandiafara. Aí estavam vinte cubanos e onde passei vários dias até que chegou a ordem para avançar.

Designaram vários guerrilheiros guineenses para me levarem a um determinado lugar. recordo que andámos durante sete ou oito dias, em etapas de muitas horas. Foi muito duro, nunca tinha caminhado tanto mas sentia-me bem. Iam também algumas raparigas guerrilheiras que de vezes em quando ajudavam no transporte dos meus bens, colocando a minha mochila às suas cabeças.

Num desses dias entrámos numa lagoa [ou bolanha?] e nela caminhámos durante horas. Não sei como o podiam fazer mas conheciam perfeitamente o itinerário e o terreno, e em várias situações a água chegava-nos ao peito. A lagoa estava cheia de sanguessugas,  aconselhando-me a amarrar bem as calças e a levantar os braços bem alto para que não entrassem. Numa porção de terra, cercada de água, parámos para descansar e onde passámos a noite. Tinha um capote grosso e através deste os mosquitos picavam-me. Tive de me tapar completamente com uma manta. Pela manhã voltámos à caminhada.


Mapa da região de Cumbijã, no sul,  com a posição relativa de Unal. Infogravura de António Murta


(viii) De que se alimentavam?

Durante este trajecto comemos pequenas quantidades de arroz e em duas ou três ocasiões parámos em aldeias [tabancas] onde nos deram um pouco de farinha e carne. Comíamos pouco e, por isso, nos fomos habituando. Depois não me preocupava em alimentar-me, o mesmo não aconteceu no princípio, quando passava fome.

Volvidos quatro dias entrámos num lugar que me disseram ser a Mata de Unal, muito perigosa e onde o tiroteio era abundante. A menos de um quilómetro as tropas portuguesas batiam a zona com a sua artilharia. 

Continuámos a marcha até chegar a um rio grande que tinha cerca de dois quilómetros de largura. Era a junção dos rios Corubal e Geba [Xime] que iam desaguar no Atlântico. Nesse braço de mar existiam tubarões [?], hipopótamos e crocodilos, onde me disseram para ter muito cuidado porque um homem que havia caído aí recentemente nunca mais apareceu.

Fizemo-lo em canoas de troncos de árvores e informaram-me de que deveria tirar tudo do corpo caso a embarcação se virasse. Às vezes as canoas [pirogas] levavam umas trinta pessoas. Tentei chegar à embarcação mas não pude, porque era de estatura baixa. Os nativos eram altos, experimentados e podiam/sabiam andar no lodo, mas eu ao quarto ou quinto dia me enterrei até aos joelhos e não podia continuar. Naquele momento tiveram que me puxar com o meu equipamento: a arma e mais três carregadores, e me levaram até à canoa. A travessia foi feita durante a noite, uma vez que aí não existiam lanchas de patrulhamento nem aviação para nos atacar.

Disseram-me, ainda, que ali havia um problema grave, mais perigoso que a tropa [portuguesa], que era o “macaréu”. No princípio não entendi e deduzi que fosse um animal, até que um dia vi o dito macaréu, que era uma maré que entrava e subia, não sei quantas vezes no dia. Uma onda de vários metros procedente do mar e se apanhasse algo pela frente era certo que o virava e o fazia desaparecer. Eles sabiam quando podiam passar.


Guiné > Zona leste > Setor L1 > Xime > 1972 >  Imagem do “macaréu” no Rio Geba por onde circulou o dr. Alfonso Delgado no ano de 1969. Três anos depois, em 10 de agosto de 1972, a CART 3494 perdeu neste mesmo local, estupidamente, três elementos do seu contingente (faz quarenta e quatro anos): Abraão Moreira Rosa, da Póvoa de Varzim; Manuel Salgado Antunes, de Quimbres, Coimbra; e José Maria da Silva e Sousa, de São Tiago de Bougado, Santo Tirso (história deste naufrágio nos P10246, P13482 e P13493).


(ix) Como comunicava 
com eles?

Uma vez que os cubanos haviam chegado já há algum tempo, os guineenses tinham facilidade de aprender vários idiomas. Alguns deles falavam português, que era parecido com o espanhol, e ao fim de um mês eu já falava com eles. Durante a viagem de canoa, onde iam vinte guerrilheiros, seguia ainda outro cubano, que era um técnico de raio X, de apelido Pupo, e apesar de ser muito mais forte do que eu, era com dificuldade que resistia aquela caminhada.


(x) Nessa região encontrou-se 

com o médico que iria substituir?

Quando chegámos à outra margem [, direita, do Rio Corubal], encontrei um homem branco em calções, com gorro na cabeça e uma camisa. Olhou-me com alguma indiferença, perguntando-me: "Tu pensas aguentar esta ratoeira? Esquece, pois não duras nem três meses”. Perguntei-lhe porquê? Ao que me respondeu: “Tu verás como isto é”[No original: "¿Tú piensas aguantar la mecha esta?, olvídate, que no duras ni tres meses».]

Este homem era de facto Daniel Salgado, médico militar que também esteve na segunda Frente e a quem eu ia substituir. O que aconteceu depois foi que ele passou a ser o meu melhor amigo que tive e cuja amizade se prolongou em Cuba durante muitos anos até que faleceu. Como já sabia que eu vinha, preparou um macaco para o almoço. Ali esteve mais cinco dias até que partiu de regresso. Nesse lugar soube da existência de um hospitalito [enfermaria de colmo] na frente Leste, na região de Bafatá [Sector L1], que me disseram ser na Mata de Fiofioli [mapas abaixo].


Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Localização da mata do Fiofioli, zona de floresta galeria, situada na margem direita do Rio Corubal, entre Mangai e Concodea Beafada [P9080].


O "hospital de campanha" ["hospitalito"] onde esteve o dr. Delgado foi destruído pelas NT no decurso da grande Op Lança Afiada, que envolveu mais de 1300 homens entre militares e carregdores civis: vd. poste de 3 de junho de 2013 > Guiné 63/74 - P11665: Op Lança Afiada (Setor L1, Bambadinca, 8 a 19 de Março de 1969): III Parte: Dias D+4, D+5, D+6, D+7: Pânico entre os carregadores devido aos ataques de abelhas, muitas helievacuações por desidratação e esgotamento, muitas toneladas de arroz destruído, muitas centenas de animais apanhados e consumidos, várias grandes tabancas (como Mangai, Ponta Luís Dias e Fiofioli), escolas, dois hospitais de campanha e outras instalações queimadas...

Essa zona do hospitalito [enfermaria] tinha quatro palhotas: uma para os feridos, com dois pequenos bancos de madeira, duas camas construídas com estacas e palha por cima; a cozinha; o depósito de géneros e a do médico, que se encontrava um pouco mais distante. Estava situado na confluência de dois rios [Corubal + Buruntoni?] surgindo depois um grande espaço de terra que ia ter ao mar [?].

Era nessa ponta onde nos encontrávamos, num plano mais alto, bastante fechado e com muitos animais [seria entre a Ponta Luís Dias e a Ponta do Inglês? De referir que o destacamento da Ponta do Inglês foi desativado em 7/8 de outubro de 1968, com a evacuação do pelotão aí instalado da CART 1746, regressando este à sua Unidade aquartelada no Xime, comandada pelo nosso saudoso amigo e camarada ex-Cap Mil António Vaz (1936-2015). A decisão da sua evacuação é atribuída a António de Spínola (1910-1996), então Brigadeiro, contemplada no plano de redistribuição das NT no terreno, iniciado após a sua chegada, em maio de 1968, ao CTIG - P10009].

O responsável pelo hospitalito [enfermaria] era um cabo-verdiano, enfermeiro, ao qual lhe pedi autorização para caçar. Primeiro, disse-me que não se podia gastar munições, mas depois indicou-me que só o poderia fazer um pouco mais distante por forma a não sinalizar a sua posição.

Levantava-me às cinco da madrugada, cozinhava o arroz, que era o pequeno-almoço, e depois fazia a visita, pois quase sempre tinha algum ferido. Operava quando havia combates, uma vez que dava a ideia de ser uma guerra planificada. Aconteciam emboscadas pré-estabelecidas, onde estavam os guerrilheiros com mulheres e filhos. Eles tinham muitas vezes critérios rigorosos na guerra. Em certas ocasiões ficavam num acampamento, apesar do opositor [o inimigo] saber da sua localização, e quando este bombardeava morriam alguns.


(xi) Como tratava os guerrilheiros 
no mato?

As estações do ano na Guiné-Bissau são duas: a época seca [, de novembro a abril] e a da chuvas [,de maio a outubro]. Durante a época seca passavam meses [seis] e não caía uma gota de água, na outra, em determinadas ocasiões, a chuva caía durante dias. 

Os guerrilheiros faziam a sua vida normal, debaixo de água [à chuva], e pela noite reuniam-se à volta de uma fogueira para se aquecerem. Nesta época a vegetação crescia e tapava todo o hospitalito [enfermaria]. Era uma época má para a caça e a única que se conseguia apanhar era algum macaco, embora se considerasse ser uma época boa para a guerra, pois os aviões não nos detectavam.

As avionetas de reconhecimento [DO 27] passavam com frequência e quando o faziam várias vezes seguidas, mudávamos o acampamento, porque a seguir acontecia, quase sempre, um ataque. 

Por outro lado, a época seca era boa porque tínhamos abundante comida, muita carne, mas o opositor te atacava muito mais, bombardeando a partir dos helicópteros [Alouette III – Heli Canhão, de fabrico francês, utilizados pelas NT nos três TO (imagem abaixo]. 


DO 27

Heli canhão

Os helis desarmados  realizavam essencialmente operações de transporte geral, reconhecimento, heli-assaltos e evacuações sanitárias. Os armados, chamados de “helicanhões”, tinham o nome de código “Lobos Maus”, estavam equipados com canhão lateral Mauser MG-151/20 (20 mm). O artilheiro estava sentado de lado e disparava o canhão pela abertura do portão esquerdo. (http://neloolen-modelismo.no.comunidades.net/alouette-iii-52-anos-na-fap, com a devida vénia)].

Continua…
___________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 8 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16370: Notas de leitura (865): O ensino da literatura da Guiné nas escolas portuguesas (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Guiné 63/74 - P16357: Notas de leitura (865): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos (1966-1969) - Parte V: o caso do clínico geral Amado Alfonso Delgado (I): queria ir para o Vietname foi parar ao Fiofioli...



Mapa das regiões [frentes e bases] do PAIGC. Os símbolos azuis correspondem aos itinerários percorridos pelo médico Diaz Delgado (de julho de 1966 a dezembro de 1967). Os verdes correspondem ao médico Alfonso Delgado (de abril de 1968 a setembro de 1969). Infogravura adapt. de Supintrep nº 31, fevereiro de 1971, por Jorge Araújo.



Quinta parte, enviada a 13 de julho último, das "notas de leitura" coligidas pelo nosso camarada e grã-tabanqueiro, Jorge Alves Araújo. Trata-se de um extenso documento, que está a ser publicado em diversas partes (*), tendo em conta o formato e as limitações do blogue. 


 
Foto à esquerda:

O nosso grã-tabanqueiro Jorge Araújo: (i) nasceu em 1950, em Lisboa; (ii) foi fur mil op esp / ranger, CART 3494 / BART 3873 (Xime e Mansambo, 1972/1974); (iii) fez o doutoramento pela Universidade de León (Espanha), em 2009, em Ciências da Actividade Física e do Desporto, com a tese: «A prática Desportiva em Idade Escolar em Portugal – análise das influências nos itinerários entre a Escola e a Comunidade em Jovens até aos 11 anos»; (iv) é professor universitário, no ISMAT (Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes), Portimão, Grupo Lusófona; (v) para além de lecionar diversas Unidades Curriculares, coordena o ramo de Educação Física e Desporto, da Licenciatura em Educação Física e Desporto].



1. INTRODUÇÃO

Caros tertulianos. Concluímos no P16304 (*) a publicação da primeira de três entrevistas realizadas pelo jornalista e investigador Hedelberto López Blanch a médicos cubanos que estiveram na Guiné Portuguesa [hoje Guiné-Bissau] em missão de “ajuda humanitária” ao PAIGC, na sua luta pela independência.

Estas três entrevistas, associadas a outras doze missões africanas ocorridas em situações e momentos  diferentes, como foram os casos de Argélia, Congo Leopoldville, Congo Brazzaville e Angola, estiveram na origem do seu livro, escrito em castelhano, com o título «Histórias Secretas de Médicos Cubanos» [La Habana: Centro Cultural Pablo de la Torriente Brau, 2005, 248 pp. ].[Disponível "on line"em formato pdf, numa versão de pré-publicação].

Recordo que o primeiro entrevistado foi o cirurgião Domingo Diaz Delgado, elemento do primeiro grupo de clínicos chegados à Guiné em 1966, a quem foram formuladas vinte e oito questões relacionadas com a sua missão, desde a tomada de decisão pessoal [finais de 1965] e chegada a Concri,maio de 1966, até ao regresso a Havana, em janeiro de 1968.

Considerando que ela decorreu durante vinte meses, dos quais dezasseis nas matas das frentes Norte e Leste da Guiné [1966-1967], as respostas às questões formuladas dão-nos conta, com bastante detalhe, do modo como foi feita a preparação para a missão, da viagem (secreta) de barco e do processo de inclusão na estrutura do PAIGC.

 O depoimento deste homem é interessante para quem quiser conhecer melhor o contexto da guerra de guerrilha, as condições logísticas vividas em bases improvisadas, precárias e com escassos recuros recursos, bem como as misérias e as grandezas da medicina que se podia praticar naquelas condições, cvom o médico opra socorrendo os guerrilheiros feridos nos combates, ora prestando  cuidados àss populações sob o seu controlo. Descreveu, também, as actividades operacionais no interior de um bi-grupo durante os primeiros três meses de 1967, na frente Norte [Sambuia], até ao momento em que adoeceu, por paludismo, sendo transferido para Conacri aonde permaneceu durante mais três meses em recuperação. Faz, ainda, referência ao modo como foram passados os últimos seis meses de 1967 na frente Leste, acompanhando os guerrilheiros em actividades operacionais nos corredores entre Madina do Boé e Beli. Regressou a Cuba em janeiro de 1968.

Quanto à segunda entrevista, que agora se inicia, tem como principal interlocutor o médico de clínica geral, com experiência em cirurgia, Amado Alfonso Delgado. A sua missão teve início na véspera de Natal de 1967, na companhia de outro médico, voando de Havana até Conacri, com escala em Gander [Canadá], Praga, Paris e Senegal. A sua chegada a Boké, na Guiné-Conacri, aconteceu nos primeiros dias de 1968, aonde se manteve durante três meses, prestando serviço médico no Hospital local, na companhia de mais quatro clínicos cubanos: o cirurgião militar Almenares, um ortopedista, um analista de laboratório e um técnico de raio X.

Em abril de 1968 segue para a frente Leste substituindo o seu companheiro Daniel Salgado, na base de Kandiafara, por este se encontrar doente com uma forte crise palúdica. Nesta base encontravam-se vinte combatentes cubanos. Entre maio de 1968 e setembro de 1969 [dezassete meses], movimentou-se nas matas do Unal e Fiofioli [com passagens e histórias de locais míticos que marcaram a minha vida e a de muitos de nós, como foram os casos do Xime, Ponta Coli, Ponta Varela, Poindon, Ponta do Inglês e Enxalé].[vd. infogravura acima].

É de tudo isto, e de algo mais, que o médico Amado Alfonso Delgado aborda no seu depoimentos.

Porque se trata de uma tradução (com adaptação livre e fixação do texto em português, da minha responsabilidade), não farei juízos de valor sobre o conteúdo desta e das outras entrevistas: apenas coloquei entre parênteses rectos algumas notas avulsas de enquadramento sócio-histórico ao que foi transmitido, com recurso a imagens desse contexto retiradas da Net e dos arquivos do nosso  blogue.

2.  O CASO DO MÉDICO AMADO ALFONSO DELGADO [I]

Nesta longa entrevista, Amado Alfonso Delgado fala da sua família e dos seus estudos, bem como da decisão, amadurecida, de se oferecer para uma missão internacionalista em apoio à luta do PAIGC. Fala da sua longa viagem de Havana a Conacri, de Conacri a Boké, na fronteira Norte com a Guiné. Recorda as caminhadas longas de sete dias por matas e bolanhas, estas às vezes cheias de sanguessugas, dos terríveis suplícios que eram os mosquitos e as abelhas, enfim, das ofensivas das tropas portuguesas…

A entrevista tem com 25 questões. Hoje apresentamos a resposta (em itálico) às cinco primeiras, com adevdia vénia ao autor, conhecido jornalista cubano Hedelberto López Blanch (n. 1947).

“Cirurgias com a ténue luz de fachos de palha ardendo” (Cap XI, pp. 136 e ss)

“Para Alfonso Delgado foram dias aziagos, de sacrifícios, e por que não, de heroísmo, para servir um movimento de libertação que em meados da década de sessenta [do séc. XX] era o mais organizado e combativo de África”.

Nasceu em 1940 na cidade de Santa Clara [local da última batalha na Revolução Cubana, cujos combates foram liderados pela dupla do Exército Rebelde: Ernesto Che Guevara (1928-1967) e Camilo Cienfuegos Gorriarán (1932-1959), realizada no último dia do ano de 1958, levando ao exilio, nessa data, o então presidente de Cuba, Fulgêncio Batista (1901-1973), primeiro rumando à República Dominicana, depois até à Ilha da Madeira (Portugal) e, por último, a Espanha, onde morreu em Marbella, em 6 de Agosto de 1973, de enfarte do miocárdio].

Até à entrada para a universidade, estudou em colégio particular, dos antigos Maristas, não sem sacrifício opara a família, de origem modesta: a mãe era professora e i pai militar, “Os seus pais fizeram grandes esforços para lhe pagar, que frequentou desde o primeiro grau até ao quinto ano do bacharelato. Com a Universidade de Havana fechada, em 1957, pela ditadura de Fulgêncio Batista, teve procurar os seus pr+óprios meiso de subsistência, tendo trabalhado nomeadamente numa pequena fábrica de tubos em Cotorro [um município situado a sudoeste da Província e cidade de Havana].

Em 1959, a Universidade reabre e o nosso futuro médico começa a estudar medicina..

Na altura da entrevista, era cirurgião do Hospital Docente Clínico-Cirúrgico Dr. Salvador Allende, em Covadonga, Calçada del Cerro, em Havana. [A nova designação de Hospital Dr. Salvador Allende (1908-1973) verificou-se em 1973 em homenagem ao presidente chileno, também ele médico – morto em 11 de setembro de 1973, na sequência do golpe de estado liderado pelo seu chefe das Forças Armadas, Augusto Pinochet (1915-2006). Este estabelecimento de saúde chamava-se originalmenmte Casa de Saúde «Quinta Covadonga», tendo sido inaugurado em março de 1897.

“O início desta casa de saúde «Quinta Covadonga» é atribuído a acção desenvolvida, a partir de 1896, pelo emigrante asturiano (província espanhola) Manuel Valle, contando esta com vários pavilhões sanitários e onde existiam as tecnologias mais avançadas da época. A comunidade asturiana em Cuba passou a contar, desde o seu início, com apoio médico qualificado a preços simbólicos. De referir que esta instituição de saúde dependia do «Centro Asturiano de La Havana», uma sociedade de beneficência que promovia a solidariedade e a assistência entre os naturais das Astúrias e que no início do século XX chegou a ter cem mil sócios. Durante a década dos anos noventa, o governo do Principado decidiu apoiar a reconstrução e modernização deste centro, considerado o maior do sistema sanitário público cubano. Desde 2001 o edifício actual, reconstruído em 1927 por efeito de um incêndio em 1918, serve de sede a colecções de arte universal do Museu Nacional de Belas Artes Cubano]".




Cuba > La Habana > Cerro > Quinta Covadonga  > Hospital Docente Clínico Quirúrgico "Dr. Salvador Allende"

[Imagem da respetiva página no Facebook, reproduzida com a devida vénia[








(i)  Como eram os estudos de medicina 

nesses primeiros anos?

Em setembro de 1959 reiniciaram-se as aulas e eu pertencia ao primeiro grupo de estudantes de medicina depois do triunfo da Revolução. Nessa altura, inscrevíamo-nos sem fazer exame de ingresso. Antes, praticamente não tínhamos de assistir às aulas todos os dias, bastava ir a algumas sessões. Tinham-me dito que para ser bom médico tinha que trabalhar em hospitais, e no primeiro dia perguntei a um estudante se conhecia algum médico.

Levou-me, então, ao Hospital Kourí, actual Oncológico, aonde me apresentou a um médico que por sinal era cirurgião, e graças a essa coincidência continuei nessa área desde o início do trabalho como estudante de cirurgia no Kourí. Depois consegui outros locais para praticar, em particular a Clínica Cirúrgica de Havana. Este primeiro grupo de médicos graduou-se em 1965, no Pico Turquino [mapa abaixo], com a presença de Fidel de Castro (n-1926.08.13). Estivemos cinco dias a andar pelas colinas. Apesar de não ser muito desportista eu gostava de andar, e acabei por ser o segundo a chegar ao Pico Turquino entre os mais de trezentos que subimos.

Após a graduação perguntaram-me se queria fazer o Serviço Médico Rural nalgum local específico e perguntei-lhes aonde é que faria falta. Indicaram-me o de Realengo 18, em Guantánamo [enquadramento histórico em http://www.ecured.cu/Ejercito_ Rebelde], um dos lugares mais complicados.

Fui nomeado director da policlínica e depois transferiram-me para o Hospital de Gran Tierra de Baracoa. Ali trabalhava de manhã, à tarde e à noite, e praticamente não descansava para prestar apoio à população. Em Gran Tierra [município do oriente] passei oito meses e quando estou a terminar o Serviço Médico Rural, por volta de agosto de 1967, o director municipal dá-me conta de que existia a oportunidade de cumprir uma missão internacionalista.



(ii) Alguma vez levantou a hipótese 
de fazer essa missão?

Num determinado momento tinha expressado ao director do hospital a minha disposição de cumprir uma missão, sobretudo no Vietname pelo heroísmo desse povo, e na verdade sentia-me uma certa pena de não ter participado na guerra contra Batista. Estive afastado da acção política nesses primeiros anos. Creio que houve duas razões que me fizeram mudar, a primeira porque trabalhava com um grupo de cirurgia que ganhava muito dinheiro e quando operavam as pessoas no hospital nem falavam com o paciente. Em contrapartida, quando iam operar numa clínica privada, conversavam com a pessoa, a adulavam, e, por isso, desliguei-me do grupo. A outra teve a ver com “Crise de Outubro” (Crise dos Mísseis), em que fiquei indeciso sobre a posição a tomar.

[O princípio da crise dos misseis em Cuba, nome atribuído ao conflito entre os Estados Unidos, a União Soviética, ex-URSS, e Cuba em outubro de 1962, tem a sua origem na descoberta, por parte de espiões americanos, de bases de mísseis nucleares soviéticos em território cubano. De imediato, os Estados Unidos bloquearam a costa cubana e durante treze dias esteve eminente o início, em Cuba, de uma guerra nuclear, ou seja, a III Guerra Mundial, só ultrapassada pelo acordo a que chegaram as duas superpotências. Mesmo assim os Estados Unidos decidem bloquear totalmente a Ilha, impondo um embargo ao comércio com Cuba e proibindo os seus aliados de estabelecerem relações comerciais com aquele país [vd. enquadramento histórico aqui ].

Aí, as pessoas, ao conversarem sobre este episódio, diziam-me que havia que acordar, uma vez que uns pensavam no socialismo e outros no capitalismo, mas se ocorresse algum conflito, havia que estar do lado dos americanos. Esses dois factos levaram-me a cortar com as relações que tinha. Estive em Santa Clara e Guantánamo e quando regressei conclui a formação, embora os meus colegas de curso praticamente não me conheciam.

Voltando ao tema de partida, acrescento que o director municipal de saúde de Gran Tierra de Baracoa comunica-me que José Ramón Machado Ventura, então ministro da Saúde Pública, necessitava de alguém para uma missão, mas que devia ter absoluta garantia de que a cumpriria. Disse-lhe que iria até onde fosse necessário, perguntando-lhe se seria para o Vietname, mas apenas me foi dito que seria uma missão dura.




(iii) Encontrou-se com Machado Ventura 
[, ministro da saúde]?


De Guantánamo apanhei um avião até Havana para me encontrar com Machado Ventura, o qual já conhecia do tempo da pós-graduação, pois esteve no hospital aonde fui director. Um dia ele apareceu por lá, quando estava cheio de utentes. Porque soube que ele vinha, pensando que era uma inspecção, preparei-lhe um quarto, e pus-lhe uma coberta limpa na cama. Mas, em vez de nela se deitar, fê-lo no chão. Perguntei-lhe porquê? Respondeu-me se eu gostaria que ele sujasse a coberta.

Após a entrevista, o dr Machado Ventura despediu-se e pediu-me que estivesse contactável. Três ou quatro dias depois, fui contactado para que comparecesse no Ministério onde dois funcionários se reuniram comigo e disseram-me que a missão era para a Guiné Portuguesa [hoje Guiné-Bissau]. Comecei a preparar-me, pois deram-me roupa, fiz uma carta de despedida e recebi um passaporte como engenheiro agrícola
.

(iv) Teve algum treino militar? 


Não. Por sorte, quando estive na pós-graduação havia uma companhia serrana, constituída por combatentes que participaram no Realengo 18 [enquadramento histórico identificado acima], e cada vez que acontecia uma mobilização, deslocava-me com eles e sabia já manejar perfeitamente as espingardas: a AK [sigla da arma automática «Kalashnikov», de fabrico soviético] e outras armas, imnagem à esquerda].

(v) Como e quando fez a viagem?

Eu e outro médico voamos do Aeroporto de Havana, fazendo escala em Gander (Canadá), Praga, Paris, Senegal e Guiné-Conacri. Embarcámos no dia 24 de dezembro de 1967, chegámos a Praga a 25 e seguimos para Paris, onde permanecemos dois dias. Na República da Guiné ninguém nos esperava. Recorremos a um carro de aluguer e pedimos para nos levarem até à embaixada cubana. Levaram-nos, então, a uma casa, tocámos e apareceu um companheiro que nos informou que havia uma reunião em casa do embaixador. Dirigimo-nos até lá. Estava a decorrer uma festa e pensei: “Disseram-me que isto era duro e quando chego encontro as pessoas comendo porco e bebendo rum”. A festa, afinal, tinha a ver com a despedida do primeiro e segundo grupos de internacionalistas que regressavam a Cuba [aonde estava, certamente, o cirurgião Domingo Diaz Delgado, o primeiro entrevistado neste trabalho].

O médico que viajou comigo era militante da Juventude [Comunista] e disseram-nos que um de nós iria para um pequeno hospital junto à fronteira com a Guiné-Bissau e o outro iria acompanhar a guerrilha. Pensei que muito provavelmente esta situação seria para o outro, mas foi para mim e que aceitei.

Porém, antes da nossa partida de Havana, tinha viajado por barco um outro grupo de trinta combatentes e seis médicos [final de novembro ou início de dezembro’1967] que, quando cheguei a Conacri, já estavam no interior da Guiné-Bissau.


Continua…

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segunda-feira, 23 de julho de 2012

Guiné 63/74 - P10184: Notas de leitura (383): "No Percurso das Guerras Coloniais 1961-1969", de Mário Moutinho de Pádua (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 28 de Maio de 2012:


Queridos amigos,
É pena que este militante comunista disperse as suas memórias em questões fulcrais, salta de um assunto para outro, relata pessoas e situações com pouca consistência, o que é pena para quem quase ia sendo executado no Congo, observou a sociedade checa, viveu nos meios oposicionistas de Argel e trabalhou no Lar de Ziguinchor, apoiando o PAIGC.

É o relato de quem esteve no outro lado,  sentindo-se português antifascista e apercebendo-se que as causas com que simpatizava ruíam na areia. Apesar de tudo, confessa que viveu intensamente todo esse idealismo.

Um abraço do
Mário


Mário Moutinho de Pádua e o PAIGC

Beja Santos

Mário Moutinho de Pádua foi o primeiro dos oficiais portugueses a desertar, logo em 1961. Em 1963 escreveu um livro que provocou sensação, “Guerra em Angola”. O seu segundo livro, como escreve Pepetela, é uma espécie de crónica de vida, fica-se a saber como fugiu pelo Norte de Angola, as prisões que conheceu no Congo Léopoldville, onde parecia inconcebível que militares portugueses se recusassem a combater contra os angolanos, correu aqui todos os riscos de vida. Do Congo partiu para a Checoslováquia, e se vinha desiludido do Congo enquanto país dito descolonizado, o tal país dito socialista amargurou-o. Da Europa voltou a África, primeiro a Argélia e depois o Senegal, como médico apoiante do PAIGC (“No Percurso de Guerras Coloniais, 1961-1969”, por Mário Moutinho de Pádua, Edições Avante!, 2011). Se a todos os títulos estas memórias justificam leitura para se conhecer um testemunho comprometido deste militante comunista sobretudo quanto à causa angolana e à sua vivência no meio oposicionista de Argel, é do maior interesse histórico o que ele escreve sobre o PAIGC. Como se vai sintetizar.

Mário Pádua chega a Conacri em 1967, começa a tratar os guerrilheiros guineenses no Lar do Combatente. Descreve as relações por vezes muito difíceis entre os políticos influentes da Guiné-Conacri e a Direção do PAIGC. Ao fim de algum tempo de estar em Conacri, Mário Pádua sentiu que estava a desperdiçar aqui as suas habilitações, vai então para Boké trabalhar com médicos e enfermeiros cubanos, um trabalho com recursos muito limitados. E conta o que viu numa visita que fez a uma base do PAIGC já em território guineense:

“A base constava de uma dezena de cabanas dissimuladas debaixo de árvores frondosas. Observei com particular interesse a sala de operações. Esta surpreendeu-me pela extraordinária limpeza do solo. Muitas salas de operações de países ricos não são tão escrupulosamente varridas ou aspiradas. Uma enfermeira afugentava as moscas durante as intervenções cirúrgicas”.

E de Boké foi transferido para Ziguinchor, colocado no recém-criado Lar do Combatente. A sua memória desliza para dirigentes, situações e considerações sobre a guerrilha. Mário Pádua sentia-se bem ali, havia mais meios:

“Enquanto eu ali trabalhei a provisão de medicamentos renovava-se sobretudo com os envios da RDA e, em menor escala, de outros países socialistas assim como de países nórdicos (…) O hospital local, cobrindo uma área cheia de pavilhões muito maior que o lar do PAIGC, dispunha de pouco mais camas e a alimentação não fazia parte dos serviços inerentes ao internamento”.

E conta como se relacionou com o médico vietnamita que prestava serviço no hospital de Ziguinchor.

Os meios postos à disposição do PAIGC eram rudimentares, nas suas bases os guerrilheiros passavam toda a casta de provações, viviam muitas vezes subalimentados. É uma descrição que importa registar. Primeiro os feridos:

“Logo que os desembarcavam assistíamos ao espetáculo de feridas enormes, abertas, que já não se podiam suturar, dado o intervalo de tempo que decorrera após a lesão. Eu e os enfermeiros guineenses, meus colaboradores, limpávamos os tecidos infetados com água oxigenada, cortávamos os tecidos mortos e terminada a limpeza cirúrgica tentávamos aproximar os bordos esticando a pele com adesivo. Sucedeu, em feridas fundas e com pequeno orifício de entrada, que quando retirava a sonda exploratória, me vinha ao nariz o cheiro inconfundível da gangrena gasosa. Um dia comecei a tratar um soldado que tinha o braço direito muito destroçado embora não sangrasse. Estas limpezas cirúrgicas em geral demoravam horas. Este doente não se queixava de dores. Quando terminei, pele, músculos, vasos e nervos de um dos membros superiores tinham praticamente desaparecido. Apenas restavam os ossos, completamente descarnados. Nessas circunstâncias só restava a amputação”.

Conta-nos episódios de extremo sofrimento, os guerrilheiros demoravam demasiado tempo a chegar a Ziguinchor. Mário de Pádua descobriu nos seus exames laboratoriais que o PAIGC travava a luta com um número impressionante de soldados anémicos.

Mário de Pádua é também testemunha da educação dos combatentes e da preparação ideológica dada no Lar de Ziguinchor. Mas tudo era precário face às inúmeras deficiências em meios de diagnóstico. Além de anémicos, os guerrilheiros passavam literalmente fome. Verificou que a alimentação em particular na época seca era tão fraca que chegava a induzir situações de fome, os camponeses tinham tal falta de arroz que não entregavam aprovisionamento ao PAIGC para não morrerem à míngua.

No Lar de Ziguinchor momentos houve em que a alimentação estava reduzida a arroz. O autor desdobra-se em histórias relacionadas com falta de meios de diagnóstico de tratamento que redundavam em insucessos no tratamento, para desespero dos profissionais de saúde. Mostra-se sempre assombrado com o estoicismo dos guerrilheiros:

“Quando os feridos demoravam dias para chegar a Ziguinchor, as larvas fervilhavam nos tecidos expostos. O que fazia parte da rotina da guerra e me deixava estupefato era o transporte de feridos e doentes por zonas flageladas, vinham em macas fabricadas com troncos. O esforço físico exigido dificilmente se pode conceber”.

E de novo o relato salta para assuntos de espetro mais largo como o relacionamento entre as autoridades do Senegal e o PAIGC. São notas soltas onde cabem a superstição africana, a convivência de Mário de Pádua com médicos vietnamitas e jugoslavos, os aspetos chocantes da extrema pobreza e a grande riqueza em Dakar, o vespeiro de informadores e boateiros,  conta como Amílcar Cabral lidava com o conceito de libertação da mulher e evitava o combate à poligamia.

À distância dos anos, perpassa por estas memórias uma incontida melancolia, medindo o desaire de tudo quanto se passou após a independência da Guiné-Bissau. Mário de Pádua faz muitas vezes uso das memórias de Luís Cabral vazadas em “Crónica da Libertação”, mostra-se inconformado com os desvios dos dirigentes para o prazer e as venalidades. Deixa transparecer muita inocência para as questões graúdas do caos pós-independência e a corrupção que assaltou o aparelho de Estado, em Bissau, diz não acreditar nos crimes que são atribuídos a Luís Cabral, o fantasma da PIDE e o perigo das tropas africanas parecem ser suficientes para justificar a barbárie em que se tem vivido permanentemente desde a independência.

São memórias avulsas, por vezes pouco consistentes, é enorme a porosidade no tratamento dos temas, salta vertiginosamente de uns para outros, deixando o leitor atónito pela mudança de agulha. Porque Mário de Pádua tem testemunhos riquíssimos e não ilude a frustração por ver espatifarem-se os mitos em que acreditou.

Pepetela descreve-o como um homem bom, corajoso, de ideias firmes, um homem que conhece as fraquezas dos outros, que percebe as tibiezas e as traições, mas não se vinga delas. A verdade é que sabe contar as suas deceções e adversidades sem abdicar das suas convicções, mesmo que apresente justificações insensatas. E as suas memórias são incontornáveis no que toca ao que viveu no Lar de Ziguinchor.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 20 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10174: Notas de leitura (382): A Caça no Império Português, de Henrique Galvão, Freitas Cruz e António Montês (Mário Beja Santos)

sábado, 29 de outubro de 2011

Guiné 63/74 - P8961: Notas de leitura (296): De campo em campo: conversas com o comandante Bobo Keita, de Norberto Tavares de Carvalho (Parte IV): Os 'Portuguis Nara' de Boké e de Conacri (Luís Graça)


Amílcar Cabral, 1966... Fotograma do filme documental Labanta Negro, do realizador italiano Piero Nelli, 1966, a preto e branco, 16 mm, 39' de duração... Passou recentemente no doclisboa2011, na retrospetiva 'Movimentos de Libertação'...


Foto de Luís Graça (2011).


1. Continuação da leitura do livro de memórias do Bobo Keita (BK), da autoria de Norberto Tavares de Carvalho (*)...
 

“Eu não fui mobilizado directamente pelo Partido” – confessa BK ao seu entrevistador, NTC. “Foi graças à minha actividade desportiva e sobretudo à conversa do Nkrumah no Gana [, por ocasião do torneio de futebol de 1959]” (p. 58).

BK sabia da existência do PAIGC, clandestino, mas não tinha contactos diretos com nenhum militante, em Bissau. “(…) Sabia que havia o Rafael Barbosa e que o meu primo Momo Turé fazia propaganda do Partido, mas não conversávamos sobre o assunto” (p. 59).

Já na clandestinidade e sob vigilância da PIDE (, instalada em Bissau desde 1956), Amílcar Cabral tinha estado na capital da província, de 14 a 21 de Setembro de 1959,  para trabalho de organização política, com os seus colaboradores mais próximos (o seu meio-irmão Luís Cabral, Aristides Pereira, Rafael Barbosa e João Silva Rosa), instalando-se depois em Conacri.

Em todo o caso não se percebe muito bem, pela leitura do livro do NTC, como é que BK decide, uma bela manhã, partir para o sul com o objetivo de chegar a Conacri, e oferecer os seus préstimos a Amílcar Cabral que, em boa verdade, ele mal conhecia. BK, que era o sustento da família, despede-se, com a aparente naturalidade das gentes africanas, da sua querida mãe e dos seus 3 manos (dois dos  quais irão mais tarde ingressar no PAIGC, na fase da luta de guerrilha). Presume-se que BK tenha ocultado à família os seus projetos.  Aparentemente ele ia para o sul fazer a “campanha da costura” (sci), numa altura propícia aos alfaiates, que era a colheita das nozes de cola.

Por outro lado, a sua saída de Bissau não parece ter sido um ato isolado… No dia 26 de Dezembro de 1960, “o primeiro grupo de colegas” (sic)  decide “organizar-se” e parte para o sul  (p. 60). Presume-se que BK se refira aqui a “colegas” do futebol e do Cupelom de Baixo. A 30, “foi a vez do meu grupo sair de Bissau” (p. 60).

Terá sido simples coincidência ou foi mesmo uma “fuga”, planeada e organizada, com a eventual cobertura do PAIGC ? BK  não é claro a este respeito, nem o seu entrevistador aprofundou (ou mostrou interesse em aprofundar) esta questão. 


Do “primeiro grupo” faziam parte craques da bola como o Julião Lopes, o Lino Correio (UDIB) e o João de Deus (primo do BK e também titular da seleção). Do outro grupo, além do BK, fazia parte o Ansumane Mané, “Corona”. Um e outro eram também jogadores da seleção. Ao todo eram apenas três, incluindo um “rapaz de Bissau”, não identificado.

Os três embarcam no porto de Bissau a caminho de Enchudé, frente a Bissau, no outro lado do Rio Geba, mas já na região de Quínara. Aqui apanham uma boleia, de carro, até 
Sangonhá, região de Tombali, já na fronteira com a Guiné-Conacri. 


“Quem nos levou foi um dos condutores do Camacho, um grande comerciante português instalado no sul”… Em Sangonhá, havia duas lojas, “a do Alfa Camará e a de um senhor mestiço que, segundo constava, colaborava com a PIDE” (p. 61).

O Alfa Camará era amigo do pai do BK. Não se se sabe se era simpatizante ou até militante do PAIGC. Muito provavelmente não, já que a mobilização no interior ainda não tinha começado. De qualquer modo, era um dos contactos do BK no sul. Ele já tinha levado, “em segredo”, as bagagens do BK, numa viagem anterior em que viera a Bissau abastecer-se (p. 61).

A escolha da rota do sul, para se chegar a Conacri, era aparentemente mais fácil do que a rota do norte, via Senegal. Para justificar a sua presença, perante as autoridades portugueses, BK apresentava-se sempre como alfaiate que ia fazer a “campanha de costura do sul”. O “Corona” era o seu “ajudante” (p. 60).

O grupo não entrou na Guiné-Conacri através do posto fronteiriço de Sangonhá. Daqui seguiu para Campaeane, na margem esquerda do Rio Cacine, a sul de Cacine. Dormiram na casa  de “um amigo que nos fora recomendado” (p. 61). Esse mesmo amigo levou os três, logo de manhã, para a “outra margem”, que já era território da Guiné-Conacri, a uma hora de distância.

Chegados lá, tiveram uma “agradável surpresa”, foram encontrar o grupo do Julião Lopes, que partira de Bissau a 26 de dezembro de 1960. (Este Julião Lopes será o futuro comandante da Marinha de Guerra da Guiné-Bissau,  depois da independência e até ao golpe de Estado de ‘Nino’Vieira, em 14 de novembro de 1980).

Continuo, no entanto, sem perceber se BK agiu sozinho,  por conta e risco, ou se beneficiou da eventual ajuda da “rede clandestina”  do PAIGC que, na época, ainda deveria ser bastante “incipiente” em Bissau (para não dizer "inexistente" no sul). De qualquer modo, BK chega a Conacri, são e salvo,  a 12 de Janeiro de 1961, doze dias depois de se ter despedido da mãe e dos irmãos em Bissau. Ele e os seus "colegas" da bola...

Antes disso, aos dois grupos (o do BK e do Julião Lopes), reagrupados em Canfandre, junta-se em Boké, um terceiro, também oriundo de Bissau. Formaram um equipa de futebol que ainda disputou algumas partidas. Os “Portuguis Nara” (expressão local, que queria dizer: 'São Portugueses'), com vários titulares da seleção de futebol da província portuguesa da Guiné, foram recebidos com entusiasmo pela população e pelas autoridades  da região de Boké,  não tanto pelo seu ardor nacionalista como sobretudo pelo seu talento futebolístico…

Chegados finalmente a Conacri, foram encaminhados para os serviços de imigração a fim de legalizarem a sua situação. Recorde-se que a Guiné-Conacri tinha-se tornado independente da França em 2 de Outubro de 1958, quase dois anos mais cedo que o Senegal (, que chegará à independência apenas a 20 de Agosto de 1960).

“Comunicaram então ao Cabral a nossa presença na capital guineense” (p.65)… 

BK conhecera o “senhor engenheiro” uns anos antes,  “quando era ainda muito jovem”… [ou seja, entre 1952 e 1956, quando Cabral trabalhou na sua terra como engenheiro agrónomo, com a sua esposa, Helena, portuguesa]. BK lembra-se de ele lhe oferecer “uma bola” e de organizar “pequenos torneios na Granja do Pessubé para os mais jovens” (p. 65).

Em Conacri, BK e os seus amigos passaram a ficar no “lar do Partido”, que ficava no bairro de Almame-La. Nessa época Cabral preparava os primeiros combatentes da futura “luta de libertação”. Ele próprio vai à China, em Agosto de 1960, pedir apoio, à frente de uma delegação que integra o Luciano N’Dau, o Dauda Bangura e o Joseph Turpin. 

Um segundo grupo segue, no 2º semestre de 1960,  para a China,  para formação político-militar, do qual faziam parte 10 futuros destacados dirigentes do PAIGC, hoje todos desaparecidos, uns em combate outros na "voragem da revolução" (com exceção de Manuel Saturnino da Costa)… Aqui vão os seus nomes, por or ordem alfabética: 

(i) Constantino dos Santos Teixeira (“Tchutchu Axon”);

(ii) Francisco Mendes (“Tchico Tê”) (1939-1978);

(iii) Domingos Ramos (morto, em combate, em Madina do Boé, em 11 de Novembro de 1966);

(iv) Hilário  Rodrigues “Loló” (, comissário político, morreu em 1968, num bombardeamento da FAP, no Enxalé);

(v) João Bernardo “Nino” Vieira (1939-2009) (natural de Bissau; ex-Presidente da República);

(vi) Manuel Saturnino da Costa (será 1º ministro entre 1994 e 1997; ainda é vivo);

(vii) Pedro Ramos (fuzilado em 1977, às ordens de ‘Nino’ Vieira, ao que parece, no âmbito do chamado "caso 17 de Outubro");  

(viii) Rui Djassi (comandante da base de Gampará, morreu em 1964, por afogamento na sequência de um ataque das tropas portuguesas);

(ix) Osvaldo Vieira (1938-1974; morreu, por doença, em 1974, num hospital da ex-URSS, e com a terrível suspeita de ter estar implicado na conjura contra Amílcar Cabral; ironicamente repousam os dois, lado a lado,  na Amura); era também conhecido como "Ambrósio Djassi" (nome de guerra);

(x) Vitorino Costa (morto, numa emboscada em 1962, antes do início oficial da guerra, por um grupo da CCAÇ 153 / BCAÇ 237, comandado pelo Cap Inf José Curto; era irmão de Manuel Saturnino da Costa).

“Quinze ou vinte dias  depois da nossa chegada a Conacri  regressou da China este segundo grupo”, esclarece BK  (p. 66).

Os primeiros tempos em Conacri – estadia que se vai prolongar até Outubro de 1961 – foram passados com aulas de “preparação política de base”, dadas pelo próprio Amílcar Cabral … As aulas chegavam a prolongar-se até às tantas da noite. Cabral utilizava, para o efeito, a garagem da casa onde vivia. 

"Aí é que começamos a vida dura de militantes. Cabral dava aulas de conhecimento geral sobre a nossa terra, sobre os motivos porque resolvera lutar contra os Tugas, as injustiças, e dava exemplos práticos que toda a gente compreendia. Falava muito de independência e de liberdade" (p. 66).


À pergunta de NTC sobre se alguma vez o BK teve dúvidas ou quis voltar para trás (“e entregar-se aos tugas”), BK é firme e peremtório, mas sobretudo "politicamente correto" (aos olhos do seu entrevistador, também ele antigo militante do PAIGC, e também ele vítima do golpe de Estado de 'Nino' Vieira), como seria de esperar, de resto, de um homem que passou mais de 13 anos na dura luta de guerrilha:

“Houve momentos de incertezas, felizmente esses momentos foram passageiros. De dúvidas não posso falar. Sabe que eu tenho um princípio que é o seguinte: palavra dada é coisa sagrada. A luta foi difícil, mas nunca pensei em abandonar. Quanto aos desertores, a lei do Partido exigia que fossem executados… Era a lei militar” (p. 67).

Não tenho dúvidas que Bobo Keita, sendo um homem coerente, se tivesse jurado bandeira, nas fileiras do exército português e não se tivesse sentido injustiçado (como aconteceu com o 1º Cabo Miliciano Domingos Ramos, vítima de racismo, segundo o depoimento do seu amigo Mário Dias), nunca teria chegado a comandante do PAIGC... Bobo Keita, por outro lado - é bom recordá-lo - foi dos poucos guineenses que, opondo-se ao golpe de Estado do guineense 'Nino' Vieira contra o caboverdiano Luís Cabral, se exilou voluntariamente, em Cabo Verde, em 1998, para vir morrer no país dos  tugas, em 2009...

Luís Graça,

Quinta de Candoz, Candoz, Paredes de Viadores, Marco de Canaveses, 27/10/2011

(Continua)

[ L.G. segue a nova ortografia. Respeita, no entanto, a ortografia antiga nas citações de outros autores ou fontes]