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segunda-feira, 27 de abril de 2009

Guiné 63/74 - P4252: Os Bu...rakos em que vivemos (7): Destacamento de Rio Caium (Luís Borrega)

1. Mensagem de Luís Borrega, ex-Fur Mil Cav MA da CCAV 2749/BCAV 2922, Piche, 1970/72, com data de 22 de Abril de 2009:

Caríssimos LG,VB e CV
Aí vai alguns considerandos sobre a Ponte Caium
Alfa Bravo
Luís Borrega


Destacamento da ponte de Rio Caium visto da margem direita do Rio Caium

DESTACAMENTO DE RIO CAIUM

UM BU... RAKÃO


Na perspectiva do Gen Almeida Bruno, Colónia Balnear de Férias para os “BANDOS ARMADOS” da CCav2749/BCav 2922 (PICHE 1970/1972)

Se houvesse um ranking para os maiores BURACOS da Guiné, Ponte Caium estaria certamente no TOP TEN, e provavelmente dentro dos 10, muito à cabeça.

O Destacamento de Ponte Caium, em conjunto com o Destacamento de Cambor (na estrada Piche-Canquelifá) pertenciam à CCav 2749.

Ponte Caium tinha que ser rendido a cada três semanas, (só em teoria), pela necessidade de géneros, mas também porque psicologicamente era o máximo de tempo que o Destacamento podia aguentar.

No entanto só éramos rendidos mês e meio ou dois meses depois. Numa das vezes estivemos 15 dias a sobreviver só com latas de atum, café e pão confeccionado sem fermento. Podem imaginar a qualidade desta panificação. Não havia mais nada no depósito de géneros. Era o meu grupo de combate que estava lá nessa altura. Foi um bocado complicado lidar com a situação, especialmente acalmar a guarnição.

Para o comandante do BCav 2922 (Ten Cor Raúl Augusto Paixão Ribeiro), não era prioritário ir reabastecer-nos. Tivemos de esperar pela coluna de reabastecimento a Buruntuma, para recebermos os géneros necessários à manutenção do Destacamento.

E como era o Destacamento da Ponte de Rio Caium?

Era uma ponte estreita em pedra e cimento com 59 metros de comprimento sobre o Rio Caium, na estrada Piche – Buruntuma. Estava situada a 17,5 km de Piche, a 3,5 Km do Destacamento de Camajabá (pertença da CCav 2747 sediada em Buruntuma) e a l8,5 Kms de Buruntuma.

O aquartelamento estava instalado no tabuleiro da ponte. Dois abrigos à entrada e dois abrigos à saída. Estes eram feitos de bidões de gasóleo de 200 litros, cheios de terra, uns em cima dos outros, cobertos com troncos e cimento por cima. Ao meio do tabuleiro a cozinha, o depósito de géneros e o refeitório. Eram uns barracos, cujo telhado eram chapas de zinco. Havia ainda um nicho com uma santa e do lado esquerdo (sentido Buruntuma) estava o forno.

Como armamento pesado tínhamos um Canhão S/recuo montado num jeep e um morteiro 81 mm num espaldão apropriado. O restante do armamento era HK21 e RPG 7 apreendidos ao IN

Dilagramas, morteiro de 60 mm e G3 distribuídas pelo Grupo de Combate.

Para nos reabastecermos de água (para beber, cozinha e banhos) tínhamos que nos deslocar a 2 km do aquartelamento, a um poço cavado no chão, com um Unimog a rebocar um atrelado carregado com barris de vinho (50 litros) vazios, que eram cheios com latas de dobrada liofilizada, adaptadas para o efeito.

Como era de difícil solução a localização de um heliporto, foi decidido superiormente, manter sobre a estrada, uma superfície regada com óleo queimado, para a aterragem de helicópteros.

Como se pode imaginar, nas horas de lazer o tempo era preenchido a jogar cartas, ler, escrever à família. Quase todos os dias tínhamos saída à agua, patrulhamento às áreas em redor, etc.

Os dias e as noites eram passados nos limites do espaço, do tempo, na expectativa dum ataque – e quando este começasse, já estaríamos cercados por todos os lados, porque ali não havia milícias, nem tabanca, nem pista de aviação ou possibilidade de retirada (só saltando o parapeito da ponte e atirarmo-nos ao rio uns bons metros mais abaixo).

A desvantagem da área diminuta tinha contrapartidas benéficas: era mais difícil ao PAIGC acertar com os morteiros e a nossa artilharia tinha mais à vontade nos tiros de retaliação, nos limites do alcance das peças de 11,4 instaladas em Piche.

Se o General Almeida Bruno tivesse sobrevoado o Destacamento a bordo dum Alloette ou numa DO 27, certamente teria pensado que ali estaria alojada a “Colónia Balnear de Férias” do BCav 2922 para premiar os seus “Bandos Armados”.

Ali tínhamos praia fluvial (não era aconselhável ir a banhos por causa dos Crocs), caça grossa (aos Crocodilos e a outras espécies cinegéticas)e pesca.

Pensaria de certeza que a boa vida que levava em Bissau, na messe de oficiais e também no Palácio do Governador (onde deve ter almoçado e jantado bastantes vezes) era inferior à vida que os “BANDOS ARMADOS” levavam na sua Colónia Balnear de Ponte Caium (cercada do tão falado arame farpado).

No dia 27 de Junho de 1971, pelas 22,00 h, um grupo IN estimado em 30 elementos, flagelou o Destacamento com morteiros 61 mm, RPG 2 e RPG 7 e com armas automáticas ligeiras (Kalash e PPSH vulgo costureirinhas) causando um ferido às NT. A rápida e certeira retaliação obrigou o IN a retirar deixando rastos de sangue, indicando terem tido baixas.

Nesse ataque, apesar de ter um vasto palmarés de ataques e emboscadas, não estava presente junto do meu Grupo de Combate (3.º GC/CCav 2749), não me lembro concretamente do motivo, mas pela data só poderia ter ido render algum graduado por motivo de férias no Destacamento de Cambor (situado na estrada Piche-Canquelifá) ou estar envolvido nalguma operação de minagem nas margens do Rio Corubal em conjunto com os sapadores da CCS/BCav.

Caros Camarigos LG, CV e VB

Espero que o Corpinho esteja Jametum.

Em resposta à solicitação do Luís Graça, para falarmos dos BU… RACOS da Guiné estou a enviar uma estória acerca de um desses Bu… racos.

Espero que informaticamente façam o tratamento adequado.

Manga di Saúde
Alfa Bravo
Luís Borrega
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 19 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4215: O mundo é pequeno e o nosso blogue... é grande (7): Luís Borrega, visitante um milhão (Luís Borrega)

Vd. último poste da série de 19 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4211: Os Bu...rakos em que vivemos (6): Banjara, CART 1690 (Parte II): Lugar de morte (A. Marques Lopes / Alfredo Reis)

domingo, 19 de abril de 2009

Guiné 63/74 - P4211: Os Bu...rakos em que vivemos (6): Banjara, CART 1690 (Parte II): Lugar de morte (A. Marques Lopes / Alfredo Reis)

Guiné > Zona Leste > Geba > CART 1690 (1967/69) > Destacamento de Banjara > Um local de desolação e de morte... "Banjara gozava da fama, e do proveito, de ser o segundo pior destacamento da Guiné, a seguir a Beli, na zona de Madina do Boé. Não apenas pelos ataques mas, sobretudo, pelo perigo que representava, por estar muito isolado da Companhia, e por estar cercado por uma cintura de destacamentos IN, que vigiavam de fora do arame farpado e do alto das gigantescas árvores que o envolviam todos os movimentos da nossa tropa [tinha Sinchã Jobel do lado sul e Samba Culo do lado norte]" (António Reis) (*)

Fotos: © Alfredo Reis (2009). Direitos reservados.


1. Texto de A. Marques Lopes, coronel DFA, na reforma, ex-alferes miliciano na Guiné (1967/68) (CART 1690, Geba, 1967/68; e CCAÇ 3, Barro, 1968)...



... E já agora, aqui vai um exemplo das dificuldades para chegar a Banjara.

Digo-vos também que foi no caminho para lá que eu fui ferido e fui, por isso, para uma estadia de nove meses no Hospital Militar Principal da Estrela [,em Lisboa]...
[Não admira, por isso, que o António eleja Banjara como o pior Bu...rako que ele conheceu]


59. Operação sem nome. 15 de Julho de 1968 (**)

Situação particular: Do antecedente o IN coloca minas no itinerário Sare Banda-Banjara.

Missão: Transporte de frescos e correio. Patrulhamento do itinerário Geba-Banjara-Geba.

Força executante:

Dest A - CART 1690 (1 Secção +) ref. c/PEL MIL 111/Companhia Milícias 3

Dest B - PEL CAÇ NAT 64

Dest C - 1 PEL REC/ EREC 2350


Desenrolar da acção:

Em 16 de Julho de 1968, às 11h15 saiu do destacamento de Sare Banda o 1º Gr Comb , constituído por 2 secções do PEL CAÇ NAT 64 e seis milícias que iniciaram a picagem da estrada.

As 12h05 verificou-se o rebentamento de uma mina A/P, reforçada com 1 mina A/C, que provocou 6 mortos e 1 ferido grave às NT pelo que tive que pedir uma evacuação urgente e fiz transportar os corpos dos mortos (com excepção de 1 que ficou completamente pulverizado) e o ferido para Sare Banda.

O transporte foi feito num Unimog, levando como escolta uma secção de atiradores e 1 Daimler. O restante pessoal ficou a manter segurança no local do rebentamento e aguardando a chegada destas viaturas.

Quando as mesmas regressaram verifiquei que os elementos da Companhia de Milícia não queriam prosseguir na operação, pelo que tive de os obrigar a continuar a desempenhar a missão de que iam incumbidos: picar a estrada.

Consegui que a coluna prosseguisse em direcção a Banjara, que se atingiu às 16h25. A saída de Banjara verificou-se às 17h00, tendo a coluna atingido Bafatá às 18h30.

Foi cumprida integralmente a missão apesar do grande atraso em relação ao previsto.

A distância de Banjara a Geba era, em linha recta, de 27,5 km. Na prática era quase o dobro (47 km).

A. Marques Lopes

___________

Notas de L. G.:

(*) Vd. poste de 31 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4115: Os Bu... rakos em que vivemos (1): Banjara, CART 1690 (Parte I) (António Moreira/Alfredo Reis/A. Marques Lopes)

(**) Vd. poste de 30 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXXIII: A morte no caminho para Banjara (A. Marques Lopes)

domingo, 12 de abril de 2009

Guiné 63/74 - P4175: Os Bu...rakos em que vivemos (5): Guileje bem se podia considerar um hotel de 5***** (Manuel Reis)

1. Mensagem de Manuel Reis (*), ex-Alf Mil da CCAV 8350, (Guileje, 1972/74), com data de 5 de Abril de 2009: Os BURAKOS da Guiné Poste 4115 (**) Amigos Editores: Os nossos caros editores vieram espicaçar-me um pouco, o que acaba por ser positivo, pois obriga-nos a sair da letargia e da indiferença em que por vezes caímos, no que respeita a estas histórias da Guiné. Quase todos nós sofremos, directa ou indirectamente, os horrores da guerra e não faz grande sentido estar a seleccionar os locais em que se viveram os momentos mais difíceis pela subjectividade que encerra. De qualquer modo emitirei a minha opinião, mais adiante. Em primeiro lugar quero esclarecer os nossos editores LG/CV/VB, que me vão permitir ironizar um pouco sobre Guileje, para que o tema não se torne repetitivo e maçador. De facto, Guileje bem se podia considerar um hotel de 5 estrelas cujas infraestruturais e serviços passo a citar: - Havia 20 quartos (bunkarizados), amplos, com ar condicionado e com uma suite para as visitas. Em Maio de 1973 estava a ser melhorado com a ajuda do nosso amigo Nino. (O nosso amigo Amaro está desactualizado)! - Era abundante e variado o fogo de artifício, que para gozação da malta, até à exaustão, não havia direito a folga! - Como se estava a aproximar a época das chuvas era garantido a todos, banhos abundantes de água, bem quentinha! - Estavam garantidas umas refeições, bem recheadas, de que destaco, o prato estilhaços na marmita! - Apesar de todo um apoio promocional, bem publicitado, não nos foi possível atingir os nossos objectivos. - Meus caros amigos, digo-vos com sinceridade. Visitas de cortesia a este lugar paradisíaco, no seu auge, com garantia de uma recepção apoteótica, ZERO. Antes de 18 de Maio de 1973, as únicas visitas, com direito a permanência, eram de alguns camaradas, oriundos de outros bandos, onde haviam sido proscritos. Os ditos corrécios! Ah! Recordo a visita a que fora obrigado o médico de Aldeia Formosa, que só dizia ABRIGO e donde não saiu, durante o tempo de permanência. Caros editores, desculpai-me esta ironia. Quando falam em bunkers, valas, bidões, chapas de zinco estão a falar em algo que eu e a CCAV 8350 conhecemos perfeitamente. Basta analisar o nosso trajecto por Gadamael, Cumbijã e Colibuia. Retomando o tema BURAKOS, ele será maior ou menor consoante a sua localização no tempo e no espaço territorial. A nossa capacidade de reacção à estratégia montada pelo inimigo era também determinante. Aquartelamentos que nunca foram atacados, de um momento para outro transformaram-se num inferno. Do que conheci, Gandembel, teria sido, na sua curta existência, um BURAKÃO. Nos patrulhamentos, em que participei, naquela zona, testemunhei uma grande quantidade de viaturas completamente destruídas. A picada estava cheia de crateras, indicativo da estratégia utilizada pelo inimigo. O aquartelamento estava localizado junto à linha de fronteira e em cima do mítico Corredor de Guileje. Como foi possível que tal sucedesse? Um abraço para o amigo Idálio Reis, cuja fotografia no blogue é bem sugestiva de um determinado tempo vivido na Guiné. Deixo aqui a possibilidade de um possível encontro. A minha aldeia, onde frequentemente vou, dista 12Km de Cantanhede. Um Alfa Bravo Manuel Reis Guiné > Região de Tombali >Guileje > Abril de 1973 > CCAV 8350 (1972/73), Piratas de Guileje > O Alf Mil Reis junto ao monumento erigido à memória do Alf Lourenço, dos Piratas de Guileje, morto em 5 de Abril de 1973, na explosão de uma armadilha. Foto: © Manuel Reis (2009). Direitos reservados Guiné-Bissau > Região de Tombali > Fotos tiradas em Guileje, no meu regresso a Bissau. Visita a Guileje e ao Cantanhez (1, 2 e 3 de Março de 2008), no âmbito do Seminário Internacional de Guiledje (1 a 7 de Março de 2008). Restos arqueológicos da antiga tabanca e aquartelamento de Guileje, local destinado a um futuro museu. (LG) Foto: © Luís Graça (2008). Direitos reservados. __________ Notas de CV: (*) Vd. poste de 11 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4172: Bandos... A frase, no mínimo infeliz, de um general (14): Desprestígio e ofensa a quem foi obrigado a combater (Manuel Reis) (**) Vd. poste de 31 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4115: Os Bu... rakos em que vivemos (1): Banjara, CART 1690 (Parte I) (António Moreira/Alfredo Reis/A. Marques Lopes) Vd. último poste da série de 10 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4168: Os Bu... rakos em que vivemos (4): Acampamentos de apoio à construção da estrada Mansabá/Farim (César Dias)

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Guiné 63/74 - P4168: Os Bu...rakos em que vivemos (4): Acampamentos de apoio à construção da estrada Mansabá/Farim (César Dias)

1. Mensagem de César Dias, ex-Fur Mil Sap da CCS do BCAÇ 2885, Mansoa, 1969/71, com data de 6 de Abril de 2004:

Carlos,
Como estás no comando da Tabanca, e porque este bu...rako te é familiar, se vires de interesse, podes publicar.

César Dias


Destacamento do Bironque

Foi neste buraco que vários bandos se esconderam, CART 2732, CCAÇ 2753, Pel Sap do BCAÇ 2885 e outros que nos revezaram, daqui partiam e voltavam dia e noite, para levar a bom termo a estrada Mansabá - (K3)Farim, apesar das minas, das flagelações etc. Mas não me espantaria nada se aparecesse um Sr. General a dizer que como parque de campismo até não estava mal.

Foi mais um desabafo
Um abraço para todos

César Dias
BCAÇ2885

Fotos promocionais do Parque de Campismo de Bironque






Boa estrada de acesso, feito à custa de muito sangue, suor e lágrimas, porque as minas não pouparam civis e militares e as emboscadas eram o pão nosso de cada dia.

Fotos: © César Dias e Carlos Vinhal (2009). Direitos reservados
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 7 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4153: Os Bu... rakos em que vivemos (3): Acampamentos de apoio à construção da estrada T.Pinto/Cacheu (Jorge Picado/José Câmara)

terça-feira, 7 de abril de 2009

Guiné 63/74 - P4153: Bur...akos em que vivemos (3): Acampamentos de apoio à construção da estrada T.Pinto/Cacheu (Jorge Picado/José Câmara)

1. Mensagem de Jorge Picado (*), ex-Cap Mil da CCAÇ 2589/BCAÇ 2885, Mansoa, CART 2732, Mansabá e CAOP 1, Teixeira Pinto, (1970/72), com data de 4 de Abril de 2009: Caro Carlos Como ouvi ou li? que estavas à beira do desemprego por falta de matéria prima, envio-te mais um pequeno (?) escrito para te entreteres e ires aguentando o lugar, que não é nenhum tacho... não me batas se nos encontrarmos na quarta-feira. Tive uma troca de mails com o camarada José Câmara (**) e perante o que ele escreveu achei por bem dar a conhecer esse conteúdo, pela parte que lhe toca. Apenas eliminei certas gralhas próprias da escrita por vezes mais apressada dos mails, aumentei os intervalos e acrescentei os sub-títulos, mas o sumo afinal é do J. Câmara. Também envio as minhas 2 fotos e as que ele me mandou e representam as magníficas instalações hoteleiras de *******estrelas em que ele esteve instalado naquele seu período de férias pago pelo Estado, com refeições dignas de qualquer Gran Chefe do famoso Guia Michelan. Abraço do Mansoa ao Cacheu Jorge Picado 2. Em 9 de Março p.p. recebi o mail que passo a transcrever, do camarada José Câmara. Senhor Capitão Picado. Prefiro tratá-lo assim. Aprendi, desde os meus tempos de berço, a respeitar tudo e todos. Tenho lido com muita atenção tudo o que tem escrito, sobretudo no que diz respeito à zona de Teixeira Pinto. Por lá andei. Fiz parte da CCaç 3327, uma Companhia do BII17 com sede em Angra do Heroísmo. A 3327 era comandada pelo Cap Mil Rogério Rebocho Alves que, infelizmente, nunca mais soube dele. Encontro-me emigrado desde 1973. Primeiramente estivemos na protecção à construção da estrada Teixeira Pinto/Cacheu. A minha Companhia ocupou os dois primeiros acampamentos à esquerda da estrada, uns quilómetros acima do Bachile. De lá, por altura do começo das chuvas (Junho de 1971) fomos para Bassarel. Em Novembro a Companhia seguiu para Tite e Bissássema, tendo eu seguido para as tropas africanas... No seu escrito sobre as consoadas, você demonstra dúvida se existia alguma Unidade Africana no Bachile. De facto, o Bachile era, nessa altura, a sede da CCaç 16 uma Companhia de Nativos. Essa Companhia, como todas as outras nativas tinha, por base, os soldados atiradores nativos. Os graduados e especialistas eram quase todos metropolitanos, açorianos e madeirenses. Espero que este esclarecimento lhe possa servir em próximos escritos. Como se diz na minha terra, e com todo o respeito, haja saúde. Cumprimentos José Câmara Ex.Fur Mil 3. Em 12 de Março p.p. respondi-lhe deste modo: Caro camarada de armas da Guiné, José Câmara. Primeiramente quero pedir desculpa por só agora responder ao seu mail, cujas informações muito agradeço. Creia que não o fiz por desconsideração, mas apenas pelo simples facto de que tomei conhecimento dele fugidiamente, isto é, sem tempo para o apreciar já na noite do dia 10 e, afazeres diversos, só agora me permitiram lê-lo com calma. Tenho quase a certeza que na estrada em construção, não cheguei aos locais onde estavam instalados, pois creio que o mais longe que atingi foi Bachile. Tenho porém duas fotografias, obtidas de meio aéreo que são duma parte dessa estrada, que admito terem sido obtidas em 12 de Outubro de 1971, porque nesse dia desloquei-me a Jolmete, que fica perto do Rio Cacheu mas na direcção norte de Có, e ao Cacheu, localidades muito distantes uma da outra e nessa época sem ligação terrestre. Entre elas ficava a Coboiana, zona ocupada pelos guerrilheiros. Portanto eu fui de DO ou mais provavelmente de Héli e ao sobrevoarmos a estrada em construção, tirei essas fotografias. Envio-lhas para ver se consegue identificar algo, porque no cimo duma delas nota-se uma área quadrada ou rectangular que parece um acampamento. Porém, tivemos com toda a certeza, momentos de encontro em Bassarel, uma vez que afirma terem-se deslocado para esta aldeia em Junho e saído de lá em Novembro. Ora, tenho um apontamento no dia 25MAI71, "caíram primeiras chuvas (muito pouca coisa) à noite" e logo no dia 5JUN71, tenho apontado, Bassarel, Calequisse. Segue-se: 15JUN Bassarel, Chulame (Granja e Veterinária); 28JUN Bajobe, Bassarel (almoço), provas passagem, dos alunos das escola subentenda-se; 3JUL almoço no Bachile com Cor., Ten Cor., visita Chulame, Bassarel, Calequisse. Depois das férias ou seja depois de 16AGO e até ao fim de Novembro, Bassarel aparece uma só vez, no dia 13OUT, englobada entre Bajope, Blequisse, Cajinjassá, Chulame, Calequisse e Cati. Para já é tudo que consigo descortinar nos meus poucos apontamentos. Já agora agradecia-lhe que não me tratasse por Capitão. Isso, como já deve ter percebido dos meus escritos, foi um acidente de percurso na minha vida profissional que muito me traumatizou. Trate-me simplesmente por Jorge Picado e proponho-lhe mais, como camaradas e da Tabanca use o tratamento por tu. Creia que para mim isso não significa falta de respeito. Aprendi com o meu Pai, que foi emigrante nos USA desde cerca de 1920(?) até à década de 60, que lá todos se tratava por tu. Já vê. Não sei em que País está a viver, nem tão pouco se é Metropolitano ou Açoriano. Se é Açoriano, entre outros tive um colega de Curso, sou Engenheiro Agrónomo, e igualmente colega do Curso de Capitão que também foi para a Guiné no mesmo período (1970-1972), chamado António da Costa Santos, duma Família muito abastada desse arquipélago. Um abraço Jorge Picado 4. Ora em 29 de Março p.p. chegou a seguinte resposta: Caro camarada de armas Jorge Picado. Obrigado pela sua resposta, pelas fotografias e pela cortesia demonstrada. Continuação de boa saúde para si e todos os que o rodeiam. Estrada Teixeira Pinto – Cacheu Nunca tinha visto a estrada do ar. Traz lágrimas aos olhos, e recordações que aos poucos se vão desvanecendo na memória. Se bem me lembro, a estrada tinha apenas duas grandes curvas à esquerda: a primeira logo a seguir ao Bachile e a outra à entrada do Cacheu. É pena que uma das fotografias não mostre a curva, para em seguida mostrar aquilo que parece ser um descampado que serviu de acampamento, ou um aterro do qual se tirava brita-massame para servir de base à estrada. Se a referida fotografia é, como eu penso ser, da curva a seguir ao Bachile, e se é de facto o local de um dos destacamentos, só poderia pertencer aos dois grupos da Companhia do Fontinha (CCaç 2791). A minha Companhia esteve nos dois acampamentos à esquerda, quem vai na direcção Teixeira Pinto-Cacheu, a cerca de 10Km do Bachile. Os BU…RAKOS em que vivemos (***) O Jorge diz que não conheceu nenhum dos acampamentos. Foi pena que não os tenha conhecido, mas foi muito bom que não tenha acampado em nenhum deles. Pode ter a certeza que o inferno não podia ser pior, e que as vacas do meu pai tinham melhores condições que nós. As condições de vivência eram pura e simplesmente desumanas, e o trabalho a que estávamos submetidos era infernal. Para ter uma ideia, aqui vai: 1 - Actividade militar - Dois GC saíam para o mato, pelo período de 24 horas, patrulhando e emboscando, e fazendo protecção afastada do acampamento. Dos dois Grupos que ficavam (que afinal eram os dois Grupos acabados de regressar do mato), um saía de imediato - ao regresso do mato - para a picagem da zona onde a estrada ía passar e cujo traçado já estava feito, e ficando por lá até às 6 da tarde para fazer a protecção próxima das máquinas e dos capinadores. O outro GComb ficava com os serviços de sentinelas, ida ao Bachile para água, correio, pão, etc, e arranjo da lenha para a cozinha. Durante a noite, esses dois grupos faziam de vigilância nos dez postos de sentinela (3 soldados por cada posto). Depois de 24 horas tudo se trocava... e continuava a mesma música. De treze em treze dias, uma secção descansava entre as 6 da tarde e as 6 da manhã, desde que não acontecesse embrulhanço. Felizmente que nunca aconteceu! 2 - Alimentação: ração de combate dia sim dia não, sendo que o grupo que seguia para a picada da estrada tinha apenas uma lata de fruta para o meio dia. 3 - Dormir - Três meses e meio a dormir em cima de um pano de tenda de campanha. 4 - Condições de higiene - Latrinas a céu aberto, com todas as consequências adversas que isso acarretava, água para banho ao mínimo, um frigorífico para bebidas e produtos alimentares, etc, etc... De tudo isso poderá observar alguns aspectos do que foi essa vivência nas fotografias que junto. São bem visíveis as coberturas de palmeira, a vala feita a buldozer, e a imagem de N.ª Sr.ª do Coração de Jesus (não fosse a Companhia de açorianos bem enraizados na fé cristã). Mas afinal o porquê de lhe chamarmos Mata dos Madeiros? Julgo que, oficialmente, não existe esse nome em qualquer mapa que eu tenha consultado. Portanto é de admitir que esse nome é de gira popular, e se referisse a uma faixa de terreno que existe entre a estrada velha e a estrada nova que se estava a construir. Antes da guerra começar naquela ex-província, uma companhia de madeiras deixou, por lá, alguns troncos de árvores enormes, junto da estrada velha que ligava Teixeira Pinto e o Cacheu. Tive a oportunidade de contemplar esses lindos troncos de árvores. Julgo que essa deve ser a explicação para o nome Mata dos Madeiros. Adiante... Direito há Indignação de mais um elemento dos BANDOS Sem me querer desviar do assunto, e porque mais uma vez estalou controvérsia (segundo li no blogue do Luís Graça) tenho a certeza que o general Almeida Bruno teria tido imenso prazer em fazer parte do bando que era a CCaç 3327, no período em que essa Companhia esteve naquela Mata. Ou nos cerca dos 10 000 blocos que já deixou feitos em Bassarel. Se isso não for o suficiente, posso acrescentar as 100 (cem) casas e as 7 (sete) escolas que construiu em Bissássema (zona de Tite), os dois furos artesianos e correspondentes fontanários, e ainda a sua actividade militar com as consequentes baixas. Pessoalmente, sou natural da ilha das Flores, Açores, e emigrei para os EUA em Julho de 1973. Profissionalmente estou ligado ao ramo de seguro automóvel. Resido com a minha esposa e um filho em Stoughton, MA., e ainda tenho duas filhas já casadas e cinco netas. Nada mau! Sou, no meio das minhas recordações, um homem em paz consigo mesmo, e com a consciência tranquila de que cumpri o meu dever para com o País. A guerra era impopular. Disso não tivemos culpa. Choro de raiva quando me chamam soldado colonialista. Nenhum de nós, obrigados que fomos ao serviço militar, o foi. E desconheço a guerra em que fomos derrotados militarmente, e nunca estive em zonas libertadas. Porque, pura e simplesmente, nunca fui impedido de ir a qualquer lugar na Guiné. Zonas difíceis sim. Inexpugnáveis não. A estrada de que temos vindo a falar é prova disso mesmo. Pode utilizar tudo o que ficou escrito, bem assim como as fotografias, em tudo o que lhe for útil para os seus escritos. No meio de tudo isto apenas peço desculpa por um outro erro cometido. Sempre são trinta e seis anos fora do País. Com os meus melhores cumprimentos, e um abraço que só nós, os que combatemos na Guiné, compreendem José Câmara Fur Mil CCaç 3327 Imagem de N.ª Sr.ª do Coração de Jesus PS:- As minhas fotos são do mesmo local mas de ângulos diferentes e não apanham qualquer zona asfaltada. Há sim, uma larga área desmatada, onde são visíveis vários caminhos, além da fita mais larga, que se cruzam. Quando as examinei com grande ampliação verifiquei numerosos traços representativos de árvores e palmeiras deitadas no solo. Por sua vez na Dig0016, na parte superior apercebe-se uma mancha clara, que em grande ampliação dá aideia de ter um acampamento. Com as fotos do camarada quase me convenço que seja do antigo acampamento. Jorge Picado __________ Notas de CV: (*) Vd. poste de 17 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4041: O Spínola que eu conheci (4): Mansoa, 17 de Março de 1970, com o Ministro do Ultramar (Jorge Picado) (**) Vd. poste de 22 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3777: O Nosso Livro de Visitas (54): Um camarada da diáspora, José Câmara, da açoriana CCAÇ 3327 (1971/73) (***) Vd. poste da série de 5 de Abril de 2009 Guiné 63/74 - P4141: Os Bu... rakos em que vivemos (2): Bula, CCCAÇ 2790 (António Matos)

domingo, 5 de abril de 2009

Guiné 63/74 - P4141: Os Bu...rakos em que vivemos (2): Bula, CCCAÇ 2790 (António Matos)

1. Mensagem de António Matos (*), ex-Alf Mil da CCAÇ 2790, Bula, 1970/72, com data de 1 de Abril de 2009: Caro Luís Graça, Perante o teu desafio, não podia deixar de me alistar de imediato na descrição de mais um buraco da Guiné, desde logo o único que conheci. Talvez o ideal fosse, antes de mais, definir o que entendo por buraco neste contexto. Assim, buraco, seria todo e qualquer local onde, o militar em comissão de serviço, se via confrontado, diariamente, a desenvolver a acção que lhe fora confiada com grande probabilidade de ser vítima atingida na sua integridade física ou moral durante aquela guerra. Nesse sentido, a Guiné, toda ela, era um imenso buraco. Não limitarei, portanto, a designação ao(s) local(ais) onde a intensidade das acções inimigas tivessem sido mais assíduas ou desferidas com maior acutilância. É, pois, com essa postura realista e humilde que reinvindico a minha zona de actuação como um buraco de dimensões enormes não esquecendo todos os outros camaradas que passaram as passas do Algarve em missões de grande stress e quantas vezes com a dor do ferro a trespassar-lhe a carne e a arancar-lhe pedaços... Estive em Bula cujos limites (grosseiros) seriam, a Norte o Cacheu (S. Vicente), a Oeste, Ponta Matar, a Este, Choquemone e a Sul o Mansoa.

Bula > Mercado Foto: © Luís Faria (2009). Direitos reservados De 1970 a 1972 foi uma zona de grande actividade guerrilheira com passagens constantes de Este para Oeste e vice-versa a desencadear constante perseguição da nossa parte e originando-nos diversas baixas. Na tentativa de minorar essa movimentação do IN, foi montado o maior campo de minas de todo o ultramar (cerca de 16.000 minas) em cuja equipa de técnicos me encontrava na qualidade de alferes atirador e minas e armadilhas. A montagem demorou bastante tempo e o desgaste físico e psicológico a que fomos submetidos leva-me a confrontar essa realidade com qualquer outra na Guiné. Lá, vi caírem vários camaradas de pernas decepadas; Lá, vivi momentos de inolvidável apreensão ao temer flagelações sem hipótese de grandes defesas, pois não estávamos armados uma vez que se tornava incompatível o transporte da G3 com aquela actividade; Lá, vi indígenas igualmente vítimas daqueles engenhos; Lá, voei com o sopro da deflagração duma mina que tinha sido accionada por outro camarada; De lá, falei com o meu Deus a implorar protecção; Do meio de todo aquele inferno lembrava os pais, irmãos, namorada... Naquele campo de ferros e trotil alienei parte da minha capacidade de ser inteligente para sobreviver e poder, um dia, vir a um blog contar como foi... Os dias começavam bem cedo para que o calor não perturbasse tanto os movimentos cirúrgicos que as nossas mãos executavam... Quantas vezes, mal chegados à arena, regressávamos de imediato fruto de acidente com um camarada... No dia seguinte, qual trapezista que cai do seu equilíbrio e se estatela no chão, voltávamos, maquinalmente, estranhamente calmos, sem reinvindicar nada, até que (quantas vezes, meu Deus!) o PUM se ouvisse e os gritos nos dilacerassem as entranhas... E os dias sucediam-se... E os acidentes também... E os erros que se cometiam aquando de deslocações pelo campo a fim de permitir operações que nos eram atribuídas... E com que trágicos resultados... E quantas vezes, depois de regressar ao quartel após esse part-time eu tomava o comando do meu Pelotão para o acompanhar em operações de maior melindre... Mas nem só de minas era constituído o nosso dia-a-dia! No nosso buraco cabíam outras realidades... O nosso camarada António Matos manuseando uma mina portuguesa. Foto: © António Matos (2009). Direitos reservados Estive destacado em Augusto Barros cuja população, hostil por excelência, era verruminosa. Às nossas ofertas de arroz e mão de obra para a construção de tabancas, agradeciam com flagelações. A essas, respondíamos com galhardia e de todas saímos vencedores e impusemos a autoridade. As picadas de acesso a Bula cedo se tornaram suportáveis pela adopção de critérios psicologicamente traumatizantes: as viaturas da frente eram cheias com as mulheres e crianças que necessitavam de se deslocar aproveitando as disponibilidades militares. Porém, a hipótese de contacto era sempre admitida e o ambiente tornava-se fechado, de dentes cerrados, olhos prescutando o inimigo e o mergulho para o chão estava à distância de um clique. Quando os mísseis assobiaram por cima das nossas cabeças, a dimensão da guerra tomou outra envergadura. Quando as Panhards demoravam mais um bocado e a luta tomava foros de coisa de homem-a-homem, a nossa meninice perdia mais uns pontos e os homens iam-se formando com a bitola das leis da selva. E quantas vezes era solicitado o heli-canhão que, ao aparecer, permitia que muitos soldados chorassem de alívio e Lhe agradecessem a benesse de continuarem vivos... E para culminar a configuração do buraco, chegados ao quartel, quantas vezes encarávamos uma hierarquia militarmente incompetente, balofa, désputa e estúpida! Esta hierarquia que perguntava pelos estragos materiais e esquecia os mortos e os feridos! Isto não são figuras de retórica, sr. Almeida Bruno! Se do alto do seu pedantismo tiver dúvidas (não as devia ter, falando como fala!) recordo-lhe o 19 de Janeiro de 1971 na estrada Bula-S.Vicente. Documente-se e limpe-se a esse guardanapo, meu caro senhor! Nem só de Guileje viveu a guerra da Guiné! E heróis, houve-os nas mais insignificantes situações! Nos mais miseráveis e recônditos buracos desabrocham estórias dum dramatismo incomensurável que a morte, só por si, deveria fazer erguer monumentos individualizados a cada uma das vítimas! (in http://sekanevasse.blog.com/). Camarada Luís Graça, por aqui me fico na identificação do meu buraco na expectativa de que esta prosa, pouco cuidada, possa ser motivadora de outras fotografias que envergonhem os homens do ar condicionado, calcanhares em cima da mesa, arrotando estrondosa e etilicamente nas reuniões da socialite! Um grande abraço, António __________ Notas de CV: (*) Vd. último poste de António Matos de 4 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4139: Comentários que merecem ser Postes (1) As vacinas da tropa ou as doses cavalares (António Matos) Vd. Primeiro poste da série de 31 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4115: Os Bu... rakos em que vivemos (1): Banjara, CART 1690 (Parte I) (António Moreira/Alfredo Reis/A. Marques Lopes)

terça-feira, 31 de março de 2009

Guiné 63/74 - P4115: Os Bu...rakos em que vivemos (1): Banjara, CART 1690 (Parte I) (António Moreira/Alfredo Reis/A. Marques Lopes)

1. As imagens, sem legenda, que se seguem são de Alfredo Reis(*), ex-Alf Mil da CART 1690. Mostram um pouco do quotidiano em Banjara, famosa estância de férias, localizada algures na estrada Bissau/Bafatá. Podem consultar qualquer prospeto turístico. O texto é de António Moreira(*), também ex-Alf Mil da CART 1690. Este trabalho foi enviado há já algum tempo pelo nosso camarada A. Marques Lopes, ex- Alf Mil At Inf, CART 1690 (Geba) / CCAÇ 3 (Barro) (1968/69, actualmente Cor DFA Reformado. Achamos por bem recuperá-lo nesta altura. CV Localização de Banjara no Google Fotos: © Alfredo Reis (2009). Direitos reservados. 2. A vida em Banjara (I) Este texto é do meu camarada António Moreira, ex-alferes miliciano da CART1690. Entre parênteses rectos alguns comentários meus. O Moreira esteve dois meses seguidos em Banjara depois de eu ter sido ferido. O que sucedia é que era eu que, na altura, fazia os abastecimentos aos destacamentos da companhia. Nessses dois meses ninguém lá foi. Comeram o que conseguiam caçar, até cobras e macacos... O nosso camarada Fernando Chapouto sabe também como era Banjara. «Banjara fica situada a cerca de 40 Km de Geba e a cerca de 20 Km de Mansabá, na estrada Bissau/Bafatá. Fica no coração da mata do Oio, e teve, antes da guerra colonial, uma unidade industrial de serração de madeiras. Pertencia, durante a guerra, à área de actuação da Companhia de Geba, do Batalhão de Bafatá. [Cabe aqui um parêntesis para dizer que aquela serração em Banjara pertenceu ao português Fausto Teixeira: "Antifascista desde a sua juventude, via-se no comportamento de Fausto Teixeira toda a história de um velho democrata que amou profundamente a liberdade, lutou por ela e acbou por ser vencido pelas forças da repressão e do mal. No entusiasmo e dedicação que pôs no cumprimento desta arriscada missão, sentia-se todo o seu orgulho em poder participar na luta que então travávamos, também pela liberdade, contra os mesmos inimigos". Isto diz Luís Cabral no seu livro Crónica da Libertação, aí referindo também que a missão do Fausto Teixeira foi ajudá-lo na sua fuga para o Senegal, em 1960, levando-o no seu "Peugeot 203 pintado de cor azul forte" desde as Oficinas Navais do porto de Bissau até perto da sua serração, de onde Luís Cabral seguiu a pé até a uma aldeia senegalesa, passando por Fajonquito.] Banjara gozava da fama, e do proveito, de ser o segundo pior destacamento da Guiné, a seguir a Beli, na zona de Madina do Boé. Não apenas pelos ataques mas, sobretudo, pelo perigo que representava, por estar muito isolado da Companhia, e por estar cercado por uma cintura de destacamentos IN, que vigiavam de fora do arame farpado e do alto das gigantescas árvores que o envolviam todos os movimentos da nossa tropa [tinha Sinchã Jobel do lado sul e Samba Culo do lado norte]. O destacamento era constituído por uma caserna, quatro abrigos subterrâneos e um posto de comando, que era uma casa abarracada, sem portas nem janelas, por onde os sardões e as cobras vagueavam livremente, sem nenhum obstáculo que lhes barrasse a passagem, a não ser a presença humana. Tinha ainda outros abrigos à superfície. A envolver este destacamento, que no essencial era uma clareira circular com cerca de mil metros de diâmetro, duas fiadas de arame farpado paralelas e em círculo. O capim era necessário cortá-lo de dois em dois meses, para evitar a aproximação camuflada do IN. As casas de banho, como é de calcular, eram a céu aberto. A guarnição deste destacamento, comandado por um Alferes, variava entre 60 a 80 homens, normalmente (houve alturas em que tinha só um pelotão), bem armados e disciplinados, capazes de aguentar debaixo de fogo uma boas dezenas de horas. O seu comando era rotativo e por lá passámos os mais longos meses da nossa juventude, então com 23 anos, e responsabilidades tremendas em cima dos galões de Alferes. A paisagem envolvente era de uma beleza indescritível, com dezenas de cajueiros, mangueiras, árvores gigantes, capim e as célebres lianas. O barulho ensurdecedor dos milhares de pássaros e a vozearia nocturna da mais variada bicharada, desde macacos a hienas, tornavam aquele ambiente um mistério todos os dias renovado. O dia, em Banjara, iniciava-se naqueles anos (1967/1968), por volta das 18 horas. A essa hora o Comandante mandava distribuir a 3ª refeição, e as sentinelas avançadas ocupavam os seus postos. Toda a gente vestia então o seu camuflado, calçava as botas e recarregava as armas. Não é que de dia estivessem todos a dormir, mas durante a noite entrava-se em alerta máximo. Durante a noite era rigorosamente proibido acender luzes, fazer fogo e fumar à vista desarmada para não denunciar a presença e a localização de ninguém. Tomada a 3ª refeição e colocadas as sentinelas, que eram sempre dobradas, iniciava-se toda uma série de rondas de posto a posto, podendo os soldados que estavam de folga, e só nos abrigos subterrâneos, jogar cartas, conviver e confraternizar, pôr a correspondência em dia, etc. De vez em quando dormia-se uma hora ou duas mas sempre em sobressalto, e sem a mínima tranquilidade. Posso dizer que durante o tempo que passei neste destacamento não dormi uma única noite descansado. Durante a noite, de vez em quando, uma sentinela nossa dava um tiro, à aproximação do arame farpado de um macaco ou qualquer outro bicho (podia não ser...). Logo todos corriam para as armas pesadas e, normalmente, o IN respondia com dois tiros ao longe. Então a nossa sentinela, aquela ou outra, respondia passado algum tempo com três tiros. A seguir a resposta de novo do IN, então com 4 tiros. Era um jogo macabro, que nos mantinha constantementevivos e despertos. O dia amanhecia, então, e, pelas 7 da manhã, iniciava-se a distribuição da 1ª refeição. As horas mortas do pessoal eram gastas, durante o dia, à caça, quando isso era possível e o capim estava seco e caído no chão, a jogar cartas, pôr a correspondência em dia e jogar futebol. O jogo de futebol era normalmente diário, mas sempre a horas diferentes, para não se cair na rotina, e sempre com os abrigos guarnecidos de atiradores. Terminada a 1ª refeição iniciavam-se os trabalhos de rotina, para o que o efectivo estava dividido em 4 grupos, cada um deles composto por 15 ou 20 homens, comandados por um sargento.Um grupo estava de serviço à água e à lenha para as refeições. Os banhos eram tomados na bolanha a um quilómetro do arame farpado, e sempre com 10 ou 12 homens armados em vigia. Outro dos grupos era o piquete que realizava, normalmente, uma patrulha de reconhecimento nas imediações do aquartelamento. O terceiro grupo estava de prevenção rigorosa e o quarto estava de folga. Este destacamento tinha apenas uma coluna de reabastecimento por mês, no máximo, mas chegava a estar mais de 2 meses sem alimentos frescos e sem correio. Não havia população civil, apenas militares. [Em Outubro de 1969, quando a CART1690 saíu de Geba, a CCAÇ2406, que estava em Mansabá, colocou um pelotão em Banjara. No entanto, saíu de lá em Janeiro de 1970, sendo o destacamento desactivado] 3. Nota dos Editores: Nem sequer tínhamos bunkers, a sério, de luxo, de cinco estrelas. Construídos pela Engenharia Militar à prova de canhão sem recuo, morteiro 120, foguetões 122, etc. Fala-se da ‘bunkerização’ da guerra da Guiné… Mas isso é um eufemismo, se não mesmo um insulto. Bunkers ? Buracos, valas, bidões cheios de areia, placas de zinco… Guileje era um pequeno luxo (que nos perdoem os camaradas que lá penaram, sofreram e morreram) comparado com Banjara e outros Bu…rakos onde vivemos, dormimos, lutámos, gritámos, respirámos, sangrámos, suámos, chorámos… Camaradas e amigos: Estas foram as ‘estâncias turísticas’ onde passámos as melhores ‘férias’ do mundo, pagas com o dinheiro dos contribuintes portugueses… A sério, queremos aqui falar dos piores Bu…rakos da Guiné do nosso tempo. Das estações do nosso calvário. Da geografia da fome, da dor, da guerra, da alienação. Para que a memória, volátil, chegue até à geração dos nossos filhos e netos. Não queremos estátuas nas nossas vilas e cidades, de estética kitsch, queremos apenas não sermos ofendidos e humilhados pelos nossos contemporâneos e pelos nossos descendentes, do Governo à comunicação social. A pior ofensa e humilhação, para um ex-combatente que deu o melhor à sua Pátria, é a indiferença, o cinismo, o esquecimento, a desvalorização do seu sacrifício. Ironia à parte, queremos mostrar e documentar aqui alguns dos sítios por onde passámos e que as nossas mãezinhas nunca sonharam. Rapazes, toca a trabalhar. Os editores, LG/CV/VB __________ Nota de CV: (*) Vd. poste de 10 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2424: Álbum das Glórias (37): Os alferes da CART 1690 ou uma estória de amizade e camaradagem a toda a prova (A. Marques Lopes)