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quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9310: Fragmentos da minha passagem pela tropa (Carlos Rios) (6): Fragmentos Genuínos - 4

FRAGMENTOS GENUÍNOS - 4

Por Carlos Rios, ex-Fur Mil da CCAÇ 1420/BCAÇ 1857, Mansoa e Bissorã, 1965/66

Transportados para Fulacunda um dos lugares que se pretendia servir de tampão e dissuasor de pelo sul o IN chegar a Bissau, apenas tenho memória da viagem até ao porto no rio Geba que ficava a 4/5Km da localidade, de se avistar a perder de vista uma imensa e impenetrável floresta e da linguagem do inefável barbeiro da Companhia, o grande amigo Antonino Marques, já então como que de sobreaviso com as tropelias e prepotências que se vieram a verificar por parte do Alf. Serigado e do medroso Ferreira de Almeida, altamente vernácula e que se tornou paradigma nos considerandos e conversas que frequentemente mantínhamos.

Diversas vezes entrou em choque com o Serigado, nunca lhe perdoando; de tal modo que na primeira confraternização para a qual depois de já termos feito algumas, lá ter eu próprio convencido o Serigado a participar, tendo vindo acompanhado por um filho adolescente, e obrigando-me a tentar por em prática uma política de boas relações, o bom do Antonino quando nas despedidas o Serigado o pretendeu cumprimentar lhe disse na sua voz estentória: eu não conheço o senhor de lado nenhum, e assim ficou. É hoje este meu grande amigo o Barbeiro de Meruge – Oliveira do Hospital.

Aqui após o desembarque e posterior transporte por uma desesperante picada cheia de buracos e enlameada de tal modo que um dos unimogues que nos veio buscar se atolou, e em que um dos jovens desconhecedor como todos, das características da floresta bateu inadvertidamente com o corpo num arbusto ficando com uma comichão que o fez arrastar-se no chão para tentar suavizar o ardor; era, viemos a saber depois através dos velhinhos que íamos substituir o feijão-macaco. Chegados ao aquartelamento, um rectângulo rodeado de arame farpado e sem ligações com nada excepto este porto ou uma improvisada pista de aterragem, dentro do aquartelamento existiam algumas casas de antigos colonos e que serviam de messes enfermaria etc… e um refeitório e Bar, para além de já construídas duas casernas; no exterior havia uma tabanca e algumas casas abandonadas mas funcionando ainda um posto de correio, onde estava colocado um jovem cabo-verdiano que era o nosso companheiro de actividades e alinhando na fragilíssima equipa de futebol do sul, donde éramos meia dúzia e servíamos de batuta para o resto do pessoal. A nossa Companhia tinha como maior componente, pessoal oriundo das beiras.

Aqui começávamos a sentir a realidade de uma vivência em guerra cheia de agruras turbulências e peripécias algumas delas rocambolescas mas qualquer delas traumáticas e de inimaginável tensão; para além da tragédia da morte e desaparecimento de grandes amigos e camaradas. Na primeira noite ainda muito confiante e pouco avisado deixei-me adormecer numa cadeira tipo baloiço (de design militares das colónias - feitas com as tábuas dos barris do vinho), no alpendre das nossas instalações, só acordando por mor das milhentas picadelas de mosquitos que por ali pululavam aos milhões. Que banquete, eu já na altura era suficientemente anafadinho. Enfim fui o motivo para risada geral: os trastes hem!!!

Após poucos dias de estadia em Fulacunda e ainda sem uma completa adaptação ao meio, onde as noites eram passadas em sobressalto com os ruídos naturais tanto de algum movimento na Tabanca o natural rumorejar da floresta, e os guturais gritos dos macacos-cães, principalmente em dias de chuva e ventos, e que se tornavam verdadeiramente assustadores para estes neófitos e isolados guerreiros, saímos em patrulhamento no sentido de Uaná Porto. Esta tabanca ficava situada no terminus de um vale junto do rio Corubal e à beira duma mata intensa, sendo que por todo aquele vale/planície se via uma extensa plantação de arroz, vindo só junto ao rio a aparecer a povoação; era uma paisagem paraisidiaca, tendo nós assistido ao nascer do sol que era mesmo no sentido do Rio, é indescritível a beleza e sentido de paz que pairava etereamente no ar; no meio de um silêncio profundo, um camarada não se conteve, mandou às urtigas as recomendações de surpresa e disse em alta voz: “Oh meu Deus porque é que fazes guerras aqui”. A ansiedade era enorme, transformando-me numa autêntica pilha de nervos. Exceptuando uma rajada que um camarada nosso com menos auto-domínio executou e em que a espingarda logo encravou regressámos ao aquartelamento sem mais qualquer incidente. A sugestão do médico da Companhia, Dr. Dias Neves, do Montijo (era talvez o melhor atirador da Companhia; vi-o matar em pleno voo um pato bicanço), tinha pela sua maneira de ser um grande ascendente sobre o Cap. Caria e influenciava facilmente as decisões deste, toda a Companhia foi para a pista de aterragem fazer fogo para o mato a fim de testar as armas. Uma percentagem elevada estava inoperacional.

Hoje, por sobre o aquartelamento e redondezas desencadeou-se um tremendo temporal que faz desta noite um tempo de temores e sobressaltos, tal é a quantidade de água da chuva que mais parece uma catadupa permanente que se abate sobre tudo, acompanhada do mais rigoroso trovejar e com relâmpagos, com só vi na Guiné, e que são de tal modo que se vêem em sequência por centenas de metros iluminando tudo até para lá da pista de aterragem a ponto de se entreverem difusamente os contornos do início da floresta da Bianga.
Tudo se me afigura intimador e desconhecido. Entretanto já bastante tarde foi mandado chamar o nosso guia, Malam Sanhã. Era um homem já de idade (um Homem Grande) de porte altivo e forte presença, era muçulmano e usava os trajes condizentes, homem de poucas palavras, aceitava a missão de nos guiar e encaminhar para os locais onde pretendíamos agir sem o mínimo comentário; entendia-nos perfeitamente.

Reunida a Companhia, já transformada em três Pelotões, e mesmo em face aquelas inóspitas condições, lá tivemos que sair para o mato, sendo que apenas saímos com dois Grupos acompanhados dos sempre presentes elementos das milícias, com alguns dos quais estabeleci fortes laços de amizade, e alguns carregadores que sempre nos acompanhavam, (estes elementos eram recrutados entre a população e iam sem qualquer armamento levando em bolsas adaptadas as granadas de Bazooka e de morteiro e aos quais era pago uma quantia ridícula; desta vez tive, ao vir atrás trocar impressões com alguns camaradas, pois o meu lugar era como de costume o segundo, no caso logo atrás do Malan, a desdita de verificar que um destes pobres apresentava indícios de sofrer de poliomielite ou qualquer outra doença, pelo que lhe era bastante difícil caminhar; mas coitado pelos míseros pesos=escudos que iria receber lá ia sujeito a por ali ficar. Que desumanidades cometemos.


Lá avançámos a caminho do objectivo debaixo daquela tempestade do fim do Mundo, encaminhamo-nos, depois de atravessar a tenebrosa mata da Bianga, período durante o qual se afastou o temporal a que se seguiu um opressivo silêncio e escuridão de tal monta que tivemos de nos agarrar todos ao elemento da frente e onde amiudadas vezes caíamos ou batíamos com a cara na coronha da arma desse elemento, valeu-me nesta aflição ser o segundo logo atrás do Malan Sanha e as suas roupas serem mais claras. Aproximamo-nos do Rio Geba e ouviam-se nitidamente, para além de indecifráveis e misteriosos ruídos, uns estalos secos, que mais pareciam tiros à distância.

Questionei o Malan Sanha!
E este na sua superioridade cultural e calma placidez apenas disse: - É a mar… Rios, é a mar…

É verdade, os estalidos provinham do tarrafo que crescia a esmo à beira dos canais do Geba e em todas as enchentes de maré estalavam muitos e provocavam aqueles ruído seco.
Prosseguimos e ao alvor da madrugada entrámos no objectivo: afinal uma tabanca com todos os vestígios de ter sido abandonada recentemente e onde havia um imenso laranjal onde nos abastecemos, após o que regressámos sem incidentes e em menos de um quarto do tempo a Fulacunda.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 2 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9302: Fragmentos da minha passagem pela tropa (Carlos Rios) (5): Fragmentos Genuínos - 3

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9302: Fragmentos da minha passagem pela tropa (Carlos Rios) (5): Fragmentos Genuínos - 3

FRAGMENTOS GENUÍNOS - 3

Por Carlos Rios, ex-Fur Mil da CCAÇ 1420/BCAÇ 1857, Mansoa e Bissorã, 1965/66

Durante seis dias, passámos primeiro pelo Funchal para irmos buscar mais uma Companhia, navegámos a caminho de Bissau, correu uma agradável viagem sempre com mar calmo e bom tempo; pela primeira vez vi uns curiosíssimos peixes-voadores, que acompanharam diversas vezes o navegar do navio ao seu lado. Aqui vim também a reparar na extrema estratificação existente na sociedade portuguesa; que profunda ignorância a minha: os graduados tinham aceitáveis acomodações e uma sala para refeições; os restantes camaradas, que iam exactamente com o mesmo fim que nós (a guerra) iam instalados a monte em deploráveis condições nos porões de carga e comiam em marmitas no convés do navio.

No Bar e sala de estar, onde passávamos a maior parte do tempo, adormeci um sábado nos sofás do mesmo só acordando com os ruídos estranhos na manhã seguinte; o padre preparava o espaço para a realização de uma missa. Lá tive que me levantar de madrugada, 8h00, e desandar.

O famigerado Niassa

Ao aproximar-nos de terra vislumbrava-se à distancia uma paisagem deslumbrante, ainda que difusamente, o ar era pesado e o calor abrasador começava a fazer sentir-se, de um conjunto de ilhas fronteiras a Bissau, (arquipélago dos Bijagós) aonde nos dirigimos e fundeámos entre a cidade e o agora bem visível arquipélago, que nos transmitia uma sensação de placidez com a sua luxuriante floresta onde eram visíveis alguns conjuntos de moranças (tabancas) numa mostra exuberante e exótica de tipicismo tropical que já imaginava devido às profundas explanações e ao imenso espólio fotográfico a que tivera acesso em longas e agradáveis conversas durante toda a viagem, com o malogrado, querido amigo e conterrâneo Vasco Cardoso.

Imagem de uma tabanca situada em lugar de pouca mata e onde se pode verificar o seu aspecto exótico e tipicamente tropical. Ao fundo uma luxuriante, densa e misteriosa floresta.

O povo bijagó é nómada entre as ilhas do arquipélago e cultiva principalmente arroz

Uma bolanha cultivada com arroz

Braço de mar ou bolon, em maré baixa

Tabanca bijagó. As aldeias bijagós estão sempre cercadas de árvores e afastadas da costa.

Pouco tempo tivemos para usufruir deste ambiente, onde o calor era já abrasador, porquanto de imediato começamos a transferir para os botes que nos levaram ao cais, todas as nossas bagagens e afins. De imediato comecei a sentir um profundo desalento quando cheguei a um degradado cais de desembarque e pude constatar o movimento que nele se fazia e a miséria que dele parecia depreender-se, onde pululavam um número indeterminado de crianças desnudas ou em farrapos e que se ofereciam para transportar as nossas coisas, (houve de imediato quem aceitasse) tinham em comum um pormenor que na altura me chamou a atenção apresentavam grandes ventres e os umbigos de alguns eram bastantes salientes, a tudo isto juntava-se o ar sobranceiro e displicente que uns quantos indivíduos, alguns fardados, apresentavam. O ar era seco, denso, agreste, enfim; parecia quase irrespirável; a simples tarefa de transportarmos para as lanchas as nossas bagagens e afins faziam-nos estar permanentemente a transpirar com a roupa colada ao corpo como que pegajosa parecendo fazer parte da pele, era profundamente incomodativo a par do inóspito ar ambiente que em lugar das fragâncias e odores tropicais que imaginava ir encontrar. Fui confrontado assim que comecei a caminhar, com o sufocante respirar ao cheiro a terra vermelha queimada, típica do continente africano, ainda acompanhado de episódicos pequenos tufões que se levantavam em muitas das ruas, que em parte eram de terra e com pouca limpeza, o que começou a germinar em mim um sentimento de rejeição em relação a este pedaço (dito) de Portugal. Não, pensava eu. Aqui não fico, isto não tem nada a ver com a minha já saudosa linha do Estoril onde nasci e cresci e onde em comparação escolho os maravilhosos e esplendorosos nasceres do sol, em que sorvendo uma brisa agradável e revigorante, remando numa “chata”, navegava junto da costa para recolher os “galrichos”, postos na noite anterior para fazer decorrer uma maré, sendo que escolhíamos as noites em que um manto diáfano de luar nos alumiava transmitido pelo nosso satélite, na sua majestática quietude, de que usufruíamos para a minha falhada pesca artesanal. Surgiam nesta aérea cabeça mais alguns pingos nostálgicos.

Forte da Giribita visto da Praia de Caxias

Depois de em Stª. Luzia recebermos directamente o armamento, conselhos e despedidas de grande amizade e alvoroço, juntámos um grupo em que se incluía o Vasco Cardoso, o Bastos, o Mota e mais alguns que sendo guiados pelo malogrado Vasco, que já aqui tinha estado quando ainda na adolescência, fomos dar uma volta pela cidade e terminar no “Pireza” uma pequena cervejaria cujo proprietário o Vasco conhecia e onde a uma pergunta posta por este, apenas pude responder a frase que se veio a tornar paradigmática entre os diversos elementos que se deslocavam a Bissau: "a cidade como vila é uma aldeia bastante grande".

Vista aérea de Bissau em 1966

Uma rua de Bissau – havia muitas assim

(Continua)
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Vd. último poste da série de 30 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9289: Fragmentos da minha passagem pela tropa (Carlos Rios) (4): Fragmentos Genuínos - 2

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Guiné 63/74 - P9289: Fragmentos da minha passagem pela tropa (Carlos Rios) (4): Fragmentos Genuínos - 2

FRAGMENTOS GENUÍNOS - 2

Por Carlos Rios, ex-Fur Mil da CCAÇ 1420/BCAÇ 1857, Mansoa e Bissorã, 1965/66


Retrospectivo agora um acidente marcante e que emocionou toda a gente; um dos condutores da Companhia de Formação e Serviços ao pôr uma GMC em movimento fê-lo no sentido inverso, entalando contra a parede do refeitório um camarada que teve morte imediata; nomeado o Alf. Mil. Pamplona para tratar das formalidades do enterro do jovem, lá fui também nomeado juntamente com mais seis praças companheiros do infortunado. Transportando-nos em duas viaturas uma maior onde ia eu próprio ao lado do condutor, indo na retaguarda em bancos laterais os praças tendo ao centro o caixão vindo atrás um velhinho Willis com um condutor a transportar o Alferes. Deslocámo-nos para o cemitério de Olhão por aí existir uma casa mortuária, aí já se encontrando no exterior os familiares do finado, onde foi feita a autópsia ao corpo, a que o Alferes teve de assistir para vir a elaborar o respectivo auto. Terminada que foi a autópsia, o coveiro que servia de ajudante ao médico, pegou em todos os utensílios cirúrgicos utilizados para o efeito, meteu-os num alguidar de plástico e veio ao exterior para uma torneira existente junto dos familiares, lavar toda aquela parafernalha ensanguentada. Que doloroso foi assistir aquelas manifestações pungentes e revoltadas.

Terminou esta fase ainda com a soldadura do caixão cuja execução digno de ser comparado com um das momentos de Hitchkoc. Aproximou-se a noite e como a casa mortuária não tinha luz, o expedito coveiro (não tinha o olho direito) foi buscar um gasómetro e foi a essa luz que o soldador fez o trabalho. Episodicamente saiam do caixão sopros de ar que digo com franqueza me aterrorizavam. Num dos intervalos que fazia para espairecer, um dos militares que nos acompanhavam, lembrou-me que não tinham jantado, pelo que dando dinheiro a um o encarreguei de ir comprar umas sandes e bebidas. Terminadas que foram estas peripécias arrancámos para Portel, agora levando atrás da viatura em que ia o caixão o carro com os familiares. Os militares aproveitaram a viagem para degustarem a merenda que tinham ido comprar; creio que a mesa terá sido o caixão vindo logo atrás o carro da família.

Participei, de homenagem durante toda a noite junto do desventurado defunto ate é a hora do funeral logo nos alvores da manhã.  A noite estava extremamente fria, não houve por parte de ninguém a oferta nem sequer de um golo de água e muito chegados a Portel, já alta noite, ali mantivemos um sentinela, em que também menos foi dirigida uma palavra. A tropa foi a responsável pela morte do ente querido e nós éramos a sua face. Após o cumprimento do regulamentado protocolarmente com a execução de salvas no acto final, antes do corpo baixar à terra, seriam pouco mais de 8h00, dirigimo-nos ao posto da GNR onde me foi dado assistir a uma cena perfeitamente rocambolesca: o Pamplona fardado com o capote (era bonito) cinzento com as virolas da gola em vermelho entrou no Posto, e provavelmente por ter ouvido barulho, apareceu numa porta lateral um Cabo já quarentão, de camisa da farda e em ceroulas; ficou varado: ainda ameaçou bater a pala, nunca vi expressão tão cómica. O Pamplona lá o fez vir a si pelo que rapidamente se despachou carimbando a guia de marcha e arrancámos direitos a Tavira, não sem antes nos banquetearmos com um suculento almoço oferecido pelo inefável jovem alferes.

Mais dois acontecimentos durante a minha estadia nesta cidade antes de vir a ser mandado apresentar em Abrantes já mobilizado para a Guiné, de notar que o meu irmão mais velho tinha acabado de chegar da guerra de Angola.

A primeira é demonstrativo da violência sobranceria e displicência eram tratados os jovens entregues à guarda desta instituição e ocorreu ainda durante o período em que estava a tirar a especialidade.

A actividade que fomos desenvolver nesse dia tratou-se de numa improvisada carreira de tiro que existia nas traseiras da enfermaria fazer treino de tiro com a metralhadora Dryse. Depois da necessárias recomendações pelo jovem alferes Cadete, Oficial de Tiro para aquela actividade, lá começámos a tarefa. Durante a sua actuação, o Silva de Braga, Professor Primário, deixou encravar a arma e inadvertidamente ainda deitado levantou-a do chão, de imediato o crápula do Alf Cadete lhe espetou um pontapé, que lhe quebrou duas costelas.

Não posso de deixar de contar esta rocambolesca estória quase no fim da minha estada em Tavira, um dos instruendos do Curso de Oficiais Milicianos de Infantaria que aqui decorreu, foi intimado a comparecer em Tribunal Civil no Porto para ser julgado. Fui nomeado como guarda do jovem em causa para o acompanhar ao julgamento e no caso de ser condenado teria de o trazer de regresso ao Quartel. Em conversa com o elemento foi-me transmitido por este, que praticamente estava assegurado que seriam os dois absolvidos, o pai também era arguido no processo. Então lá nos preparamos para apanhar o comboio do fim da tarde que chegou no dia seguinte de manhã a S. Bento. Mandei o meu “preso” levar uma mala com roupa civil e eu fiz o mesmo. Sai do Quartel de Tavira um desconchavado cabo-miliciano, já bastante conhecido fardado e de pistola à cintura e um anafado Cadete na sua coquete farda. Assim que o comboio arrancou, fomos imediatamente a casa de banho vestir a nossa roupa e transformámo-nos em dois jovens em amena cavaqueira a caminho do Porto, não sem antes eu ter dito: - Oh "meu a partir de agora amigo”, não penses em te pirar porque nem que vás até Paris eu vou atrás de ti.

Fizemos uma longa e incómoda viagem e ao chegarmos à Estação de S. Bento encontrava-se meio encoberto um casal que ao ver-nos aproximar se desmanchou no melhor dos sorrisos de boas vindas que se pode receber, não entendi o que esperavam ver. Lá nos metemos no carro do pai do jovem e seguimos de imediato para o Tribunal, mudámos dentro do carro de roupa convenientemente, e foi realizado o julgamento que de facto deu na absolvição.

Ainda me convidaram para ir a casa deles mas estava nos meus planos vir para casa - Caxias - para desfrutar do fim de semana e abalei imediatamente para a Estação de Comboio para passados poucos minutos embarcar. Apenas já depois de estar no comboio mudei de roupa, até a malvada da pistola foi à cintura até aí. Enfim coisas de um desmiolado e imberbe saloio.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. poste de 28 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9279: Fragmentos da minha passagem pela tropa (Carlos Rios) (3): Fragmentos Genuínos - 1

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Guiné 63/74 - P9279: Fragmentos da minha passagem pela tropa (Carlos Rios) (3): Fragmentos Genuínos - 1


1. Em mensagem do dia 22 de Dezembro de 2011 o nosso camarada Carlos Rios (ex-Fur Mil da CCAÇ 1420/BCAÇ 1857, Mansoa e Bissorã, 1965/66), enviou-nos um extenso trabalho a que chamou "Fragmentos Genuínos" que começamos hoje a publicar, integrado na sua série Fragmentos da minha passagem pela tropa.



FRAGMENTOS GENUÍNOS - 1

O Singular acto de escrever nunca pode ser um esforço solitário e, sempre que possível, para mim um incipiente e ineficiente transmissor de factos e actos praticados, ou que me chegaram ao conhecimento verbalmente ou através de escritos, rocambolescos alguns, pungentes outros e ainda demonstrativos de verdadeiras iniquidades praticados por alguém e agora passados à prosa e dos quais com a devida vénia aos seus autores bem como textos e fotografias que me tornam extremamente grato ao Arquivo Histórico Ultramarino e outra instituições, ouso transcrever.

Há muitas pessoas que embora ausentes fisicamente aqui permanecem no meu sub-consciente estruturando e moldando a minha maneira de ser e pensar e a quem devo agradecer por ter conseguido reunir a energia, vontade e capacidade para levar a bom termo a tarefa a que me propus. Existem como é óbvio inúmeras e variadas formas de homenagear a intervenção e omnipresença dessas pessoas, pelo que imaginei mostrar-lhe o meu agradecimento e gratidão tão só pelo facto de existirem no meu Universo.

No topo da lista esta é claro a minha grande mulher, Fernanda, uma ribatejana dos sete costados (teimosa, resmungona, exigente, obstinada), mas a companheira de eleição para qualquer homem e que me mantém atento e concentrado em todos os aspectos realmente importantes da vida.

O meu filho, a minha nora, disponível e amiga que me presentearam com as maiores riquezas que um homem pode sonhar, as minhas adoráveis netas. E ainda os meus caros camaradas e amigos que tiveram que ao longo dos anos sofrer e participar numa horrenda guerra, prestando a mais sentida homenagem aos mortos e feridos daquele malfadado teatro de horrores, não esquecendo de daqui mandar um abraço de solidariedade aos sofredores de traumas e stress pós traumático com um desejo de incentivo nas suas vidas.

Também aos amigos da área da literatura e cultura pelos conselhos e apoio que me souberam transmitir.
A todos o muito obrigado!



As recordações dos momentos de rigidez, maus tratos e prepotências que eram coisa corrente, e marcaram primordialmente o período de cumprimento do serviço militar na metrópole, porquanto do que se tratava era de preparar, “homens para defender a pátria” no entender e dizer dos “instrutores”; elementos esses de que vim a fazer parte; fui colocado como monitor em Tavira na CISMI; (durante a recruta em Santarém morreu afogado no Tejo um camarada de outro pelotão), fazem aumentar o sentimento de desânimo e tristeza que alastra na despedida e adeus aos entes familiares e à terra que agora fazemos de bordo do Niassa a caminho da barra e no meu caso, começando já a sentir uma profunda nostalgia ao avistar no horizonte os locais da minha vivência; Caxias, Paço de Arcos etc…

No cais da Rocha do Conde de Óbidos

A partida era um momento tormentoso e tão emotivo que muitos sucumbiam em transes dramáticos. Para quantos não era um adeus definitivo aos melhores de todos nós, os jovens.
Quase todo o pessoal se encontrava na amurada do lado direito do barco e empoleirada em tudo quanto era sitio para um emotivo doloroso e incerto adeus. É indescritível o ambiente de ansiedade e inconformismo que quase se tornava palpável no ar. Não suportei a angústia que se instalou em mim e fui postar-me sorumbático e silencioso no Bar e remoer recordações.

Já em pleno oceano sentado no exterior na área da popa do navio espraiando o olhar pelo horizonte rememorei o período de tempo que passei na bonita agradável e acolhedora cidade de Tavira, onde para além de ter tirado a especialidade, me mantive como monitor do CISMI, o que me ocupou de Abril de 1964 até Junho de 1965, de tal maneira que já comentávamos eu e os meus companheiros que não iríamos para as colónias. Sonhos de jovens incipientes e desconhecedores dos mecanismos da instituição para onde tínhamos sido arrancados do seio das famílias. A população era afável e hospitaleira, principalmente em relação aos que se mantinham depois de terminados os obrigatórios cursos. O único senão encontrava-se nas degradadas e exíguas instalações do CISMI e na qualidade da alimentação. O problema era de tal ordem que espalhados por toda a cidade, haviam quartos alugados em casas particulares onde dormia e fazia a sua vida uma percentagem elevada de militares. Havia uma espécie de osmose entre um determinado estrato da população e os militares. Não me lembro durante este largo espaço de tempo de ter havido por parte dos comandos uma negativa aos pedidos de pernoita no exterior a qualquer militar. Creio que no pequeno quartel não haveria espaço minimamente decente para os cerca de seiscentos homens que ali chegaram a estar colocados.
A cidade vivia muito social e economicamente do meio militar

Paisagem da Cidade de Tavira

Havia uma notória falta de emprego e concomitantemente naquela época, entre parte da população a ilusória ideia de que os milicianos eram gente de posses, ideia que recolhi das prolongadas e agradáveis conversas que tive com a minha hospedeira e suas jovens auxiliares, dado que a senhora onde aluguei o quarto e passei a maior parte dos tempos livres, tinha um atelier de costura. Aqui passei bons e felizes dias que compensavam todas as agruras e passagens mais difíceis, no quartel. Poucas vezes me desloquei a casa, pudera; tinham que se pagar as viagens, o que se tornava assaz difícil depois de ter de pagar o aluguer do quarto. Num intervalo entre os dois cursos de que fui monitor e que coincidiu com a Páscoa (aproximadamente quinze dias), aqui me mantive, sendo tratado por todos como um filho e não só. Aqui, neste agradável ambiente externo alguns acontecimentos no quartel ajudaram, a que se fosse começando a moldar o cérebro deste jovem que julga hoje no ocaso da vida ser uma criatura que pretende ter como principal factor estruturante um profundo sentido de humanidade e solidariedade.

A minha pátria é o Mundo. A minha nacionalidade é a humanidade.

Uma das actividades de Tavira – As salinas

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 19 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9235: Fragmentos da minha passagem pela tropa (Carlos Rios) (2): Miniautocarro civil detona mina anticarro em Encheia

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Guiné 63/74 - P9235: Fragmentos da minha passagem pela tropa (Carlos Rios) (2): Miniautocarro civil detona mina anticarro em Encheia



1. Em mensagem do dia 16 de Dezembro de 2011 o nosso camarada Carlos Rios (ex-Fur Mil da CCAÇ 1420/BCAÇ 1857, Mansoa e Bissorã, 1965/66), enviou-nos o segundo fragmento da sua passagem pela tropa.




FRAGMENTOS DA MINHA PASSAGEM PELA TROPA (2)

MINIAUTOCARRO CIVIL DETONA MINA ANTICARRO EM ENCHEIA

Algum tempo após estes graves incidentes, fui confrontado com o reactivar de uma realidade já sublimada pelo tempo e que me reactivou os sentidos de terror, pequenez e impotência ao enfrentar um inimigo invisível e tremendo: as minas.

Encontrando-me com alguns camaradas, de entre os quais estava o meu amigo J.M. Bastos, na esplanada do clube os Balantas, vestido eu à civil, (ainda me lembro da vestimenta - de calções de caqui e uma camisa de seda multicolorida, ao bom estilo africano, e uns mocassins), estava pinoca o saloio, quando ouvimos um grande rebentamento para os lados de Encheia. De imediato corremos ao quartel. Tal como estava, pus o cinturão em que tinha sempre para além das cartucheiras, quatro granadas, pegando na G3, material que sempre mantinha pendurado à cabeceira da cama, pedindo ainda a entrega de um dilagrama, e montados os diversos pelotões em viaturas, dirigimo-nos para a estrada de Encheia.

O quadro com que nos deparámos foi aterrador. Sendo aquela picada, junto da qual haviam diversas tabancas consideradas “controladas”, uma carrinha (mini-autocarro) vinha com alguma frequência de Bissau até junto da cambança para Encheia, transportando população e toda uma parafernalha de utensílios para a localidade e para as já referidas tabancas. Nesta viagem e a pouco menos de 500 metros do local onde habitualmente parava, pisou uma mina, que explodindo desfez literalmente a viatura, espalhando pelas redondezas mortos e feridos, um horror incomensurável, de tal maneira que o Zé Manuel Bastos e o seu Grupo tiveram que recolher para cima de um Unimog, corpos e pedaços dos mesmos chegando em alguns casos a haver membros decepados e esquartejados, de tal modo que não se sabia a quem pertenciam. Uma vez feito este pungente e dramático trabalho, lá seguiu o calmo e sensível J.M. Bastos e o seu Grupo com a macabra carga, sanguinolenta a tal ponto que escorria para o chão, sozinhos no Unimog para Bissau, vindo ainda já dentro da cidade a ser mandado parar pala PM. O desenlace foi um imberbe e sobranceiro alferes ficar tremelicando e sem voz na beira da Avenid , acabando o Bastos a sua missão.

Paradas as viaturas e tendo entretanto o meu Grupo intervindo por ali nas tabancas e arredores, enquanto outro grupo procedia à picagem da estrada, a população fugiu em massa para uma pequena mata pegada com uma bolanha onde cultivavam arroz, sendo que ainda fomos fustigados de longe ao que reagimos de imediato saltando eu para dentro da bolanha e disparando o dilagrama para dentro da mata, o que provocou um absoluto silêncio mantendo-me no mesmo local donde só saí (lá ficaram os meus queridos mocassins) quando a população, creio que se terá julgado entre dois fogos, começou a caminhar no nosso sentido. Na frente um encorpado gentio vestia uma camisola onde no peito era bem visível o emblema da Mocidade Portuguesa. Entretanto o pessoal que procedia à picagem do resto do troço viria a encontrar poucos metros depois de onde tínhamos parado outra mina que desmontaram e levantaram.

O contacto com esta atroz tragédia, demolidora do mais forte controlo de um ser humano, os diversos acontecimentos sub-sequentes incluindo a visão do elemento com a camisola referida fizeram despoletar em mim uma crise de nervos que me fez dizer e praticar todos os desmandos possíveis e que só no dia seguinte, já praticamente recuperado, a guerra continuava e eu era tido como preponderante no meu Grupo, vim a saber.

Mandei com a arma fora… desatando em completa convulsão a gritar “podia ser o meu irmão” maldita guerra, etc, etc..
Valeu-me o perspicaz e desembaraçado Rui, que pegando em mim ordenou a um condutor que me conduzisse de imediato ao Quartel o que ele acatou de bom grado mas clamando eu ainda que queria levar a mina.

E lá foi aquela boa alma sozinho ao volante de um camião Mercedes, com um maluquinho sentado ao seu lado com uma mina de cinco quilos de trotil ao colo. Chegados ao Quartel o meu bom amigo Carolino,(infelizmente já falecido, na sua terra - Marinha Grande), já de seringa em riste injectou-me uma mistela que só me deixou acordar no dia seguinte, tornando-se assunto motivo de conversas dichotes e conselhos assizados que puseram tudo no lugar.
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Nota de CV:

Vd. primeiro poste da série de 11 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9179: Fragmentos da minha passagem pela tropa (Carlos Rios) (1): Saída para o mato em noite de tempestade

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Guiné 63/74 - P9208: Agenda cultural (178): Convite para o lançamento do livro Tempos Sem Remissão, de Diamantino Gertrudes da Silva, dia 17 de Dezembro de 2011, pelas 15h30, no Auditório da Escola Superior de Viseu (Rui Alexandrino Ferreira)

1. O nosso camarada Rui Alexandrino Ferreira (ex-Alf Mil na CCAÇ 1420, Fulacunda, 1965/67 e ex-Cap Mil na CCAÇ 18, Aldeia Formosa, 1970/72, actualmente Ten Coronel Reformado), fez chegar ao Blogue o seguinte Convite para assistir ao lançamento do livro "Tempos Sem Remissão" de autoria de Diamantino Gertrudes da Silva, a realizar no Auditório da Escola Superior de Viseu, amanhã, sábado, dia 17 de Dezembro de 2011, pelas 15h30.



2. Conjuntamente recebemos esta carta onde Rui Alexandrino fala, ao que se julga, aos seus camaradas da CCAÇ 1420 e a um convívio a ter lugar também amanhã no Regimento de Infantaria 14 de Viseu.

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 13 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9191: Agenda cultural (177): Apresentação do romance histórico de Paulo Aido, A Primeira Derrota de Salazar, que teve lugar no dia 1 de Dezembro de 2011 (José martins)

domingo, 11 de dezembro de 2011

Guiné 63/74 - P9179: Fragmentos da minha passagem pela tropa (Carlos Rios) (1): Saída para o mato em noite de tempestade

1. Mensagem do nosso camarada Carlos Rios* (ex-Fur Mil da CCAÇ 1420/BCAÇ 1857, Mansoa e Bissorã, 1965/66), com data de 25 de Novembro de 2011:

Caros ex-camaradas de Armas
GRATIDÃO; é a palavra que a emotividade, condicionante de expressar o que pretenderia expressar aos ex-camaradas Luis Graça, Carlos Vinhal e Virginio Briote, por terem acolhido e incentivado o meu pedido de pertencer a este blogue de cariz grandemente socializante e de uma solidariedade incomensurável e que em mim fortalece um dos factores estruturantes do meu pensamento, “este Mundo pode ser sempre melhor”.

Não posso deixar de elogiar a excelente ideia e a extraordinária qualidade deste espaço criador de imensa empatia. Bem hajam!

P.S. – O meu estado de saúde actual não me permite, mas hei-de comparecer aos convívios que me permitam conhecer pessoalmente extraordinários seres humanos.

Em anexo: - Uma das esparsas memórias da minha passagem pela tropa. Tenho algumas escritas e já a esmo por um imenso grupo de folhas soltas. Algumas são perfeitamente rocambolescas e outras de momentos agradáveis; enfim sempre foram oito anos.

Com um abraço fraterno
Carlos Rios

FRAGMENTOS DA MINHA PASSAGEM PELA TROPA (1)

Saída para o mato em noite de tempestade

Hoje, por sobre o aquartelamento e redondezas desencadeou-se um tremendo temporal que faz desta noite um tempo de temores e sobressaltos, tal é a quantidade de água da chuva que mais parece uma catadupa permanente que se abate sobre tudo, acompanhada do mais rigoroso trovejar e com relâmpagos, com só vi na Guiné, e que são de tal modo que se vêem em sequência por centenas de metros iluminando tudo até para lá da pista de aterragem, a ponto de se entreverem difusamente os contornos do início da floresta da Bianga .

Tite > Junho de 1965 > Uma noite de tempestade
Foto: © Santos Oliveira (2008). Direitos reservados

Tudo se me afigura intimador e desconhecido. Entretanto já bastante tarde foi mandado chamar o nosso guia, Malam Sanhã. Era um homem já de idade (um homem grande) de porte altivo e forte presença, era muçulmano e usava os trajes condizentes, homem de poucas palavras, aceitava a missão de nos guiar e encaminhar para os locais onde pretendíamos agir sem o mínimo comentário; entendia-nos perfeitamente.

Reunida a Companhia, já transformada em três pelotões, e mesmo em face aquelas inóspitas condições, lá tivemos que sair para o mato, sendo que apenas saímos com dois grupos acompanhados dos sempre presentes elementos das milícias, com alguns dos quais estabeleci fortes laços de amizade, e alguns carregadores que sempre nos acompanhavam, (estes elementos eram recrutados entre a população e iam sem qualquer armamento levando em bolsas adaptadas as granadas de Bazooka e de morteiro e aos quais era pago uma quantia ridícula; desta vez tive ao vir atrás trocar impressões com alguns camaradas, pois o meu lugar era como de costume o segundo, no caso logo atrás do Malan, a desdita de verificar que um destes pobres apresentava indícios de sofrer de poliomielite ou qualquer outra doença, pelo que lhe era bastante difícil caminhar; mas coitado pelos míseros pesos=escudos que iria receber lá ia sujeito a por ali ficar. Que desumanidades cometemos.

Lá avançámos a caminho do objectivo debaixo daquela tempestade do fim do Mundo, encaminhamo-nos, depois de atravessar a tenebrosa mata da Bianga, período durante o qual se afastou o temporal a que se seguiu um opressivo silêncio e escuridão de tal monta que tivemos de nos agarrar todos ao elemento da frente e onde amiudadas vezes caíamos ou batíamos com a cara na coronha da arma desse elemento. Valeu-me nesta aflição ser o segundo logo atrás do Malan Sanha e as suas roupas serem mais claras. Aproximamo-nos do Rio Geba e ouviam-se nitidamente, para além de indecifráveis e misteriosos ruídos, uns estalos secos, que mais pareciam tiros à distância.

Questionei o Malan Sanha!

E este na sua superioridade cultural e calma placidez apenas disse:

- É a mar… Rios, é a mar…

É verdade, os estalidos provinham do tarrafo que crescia a esmo à beira dos canais do Geba e em todas as enchentes de maré estalavam muitos e provocavam aqueles ruído seco.
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 3 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9134: Porto de Abrigo (Carlos Rios) (5): A atribuição de Cruz de Guerra e apresentação de quadros diversos

sábado, 3 de dezembro de 2011

Guiné 63/74 - P9134: Porto de Abrigo (Carlos Rios) (5): A atribuição de Cruz de Guerra e apresentação de quadros diversos

1. Finalizamos hoje a apresentação de "Porto de Abrigo", as memórias passadas a escrito pelo nosso camarada Carlos Luís Martins Rios, ex-Fur Mil da CCAÇ 1420/BCAÇ 1857, Mansoa e Bissorã, 1965/66.


PORTO DE ABRIGO - V

Medalha da Cruz de Guerra

A Cruz de Guerra foi criada pelo Decreto n.º 2870, de 30 de Novembro de 1916, para premiar actos e feitos de bravura praticados em campanha. Esta condecoração recebeu notoriedade durante a I Guerra Mundial e durante a Guerra Colonial Portuguesa. Divide-se em 1ª, 2ª, 3ª e 4ª classe, por ordem decrescente de importância.

A Cruz de Guerra, levemente inspirada na Croix de Guerre francesa (principalmente nas cores da fita de suspensão), teve, ao longo da sua história, três tipos ou modelos diferentes, respectivamente legislados em 1916, 1946 e 1971.

O desenho desta medalha (desde 1971) na sua 1.ª Classe, é o seguinte:
- Relativamente ao anverso, ou face, é uma cruz templária, em ouro, tendo sobreposto, ao centro, um Emblema Nacional.
- O reverso tem, ao centro, um círculo carregado de duas espadas antigas passadas em aspa, cercadas de duas vergônteas de louro, frutadas e atadas nos topos proximais com um laço.
- A fita de suspensão é de seda ondeada, com fundo vermelho, cortado longitudinalmente por cinco filetes verdes de 0,0015 m de largura e equidistantes entre si e das margens da fita; largura de 0,03 m; comprimento necessário para que seja de 0,09 m a distância do topo superior da fita ao bordo inferior da condecoração, por forma a obter o alinhamento inferior das diferentes insígnias; ao centro, uma miniatura da cruz de guerra, cercada de duas vergônteas de louro, tudo de ouro.

Durante a Guerra Colonial Portuguesa, foram entregues as seguintes medalhas da Cruz de Guerra:

- Exército: 2634
- Armada: 68
- Força Aérea: 273

OBS: - Texto e imagens retirados da Wikipédia, com a devida vénia.


Que mentira!
Que iniquidade!


Esta condecoração que me foi aposta ao peito por um dos mais altos dignitários da nação naquele dia de Portugal, passado algum tempo perdeu a cor do Ouro. Seria mesmo ouro aquela medalha que lá está para casa com uma cor parecida com o aço?

Acima de tudo
Os homens passam.
As instituições ficam e podem sempre melhorar.
Que viva Portugal

FUR. MIL. DE INFANTARIA
CARLOS LUÍS MARTINS RIOS

Condecorado com a Cruz de Guerra de 1ª classe, porque tendo tomado parte em numerosas acções de combate, como comandante da Secção do Grupo de Combate Especial, para o qual se ofereceu, se revelou um graduado com excelentes qualidades de Comando e de combatente. Marchando normalmente a sua secção na testa das forças empenhadas, exposto portanto a maiores perigos, soube o Furriel Rios incutir-lhes confiança, pelo ardor combativo que demonstrou nas acções de fogo, pelo exemplo que constantemente lhes deu e pelo entusiasmo com que cumpria as missões que lhe foram dadas, mesmo nas situações mais críticas. É digna de realce a acção deste militar em diversas operações nomeadamente «Ferro», «Estopim» e «Espetro».
Tomou parte na operação «Ferro» voluntariamente, pois encontrava-se inferiorizado fisicamente e accionou uma armadilha durante a progressão para o objectivo o que em nada contribuiu para alterar o optimismo com que sempre encarou as acções de combate.
Detectadas as nossas tropas nas proximidades do objectivo, lançou-se o Furriel Rios, de rompante, com a sua Secção sobre a base inimiga onde elementos blindados abrigados reagiam ao assalto, com volumoso fogo de armas automáticas e bazucas, desalojando-os e pondo-os em debandada, com baixas. Destruído o objectivo e já no regresso ao Aquartelamento, foi a cauda da força flagelada com volumoso fogo, quando atravessava um descampado. Acorreu prontamente o Furriel Rios à retaguarda incentivando a reacção das nossas tropas, e conseguiu que a parte do Grupo flagelado manobrasse com rapidez sobre o inimigo, que perante a ameaça de envolvimento debandou, furtando-se ao contacto. Mostrou assim serena energia debaixo de fogo, coragem, sangue-frio e desprezo pelo perigo.
Durante a operação «Espectro», em que tomou parte também voluntariamente, foi o Furriel Rios vitima da sua dedicação e espírito de combatividade ao ser gravemente ferido à queima-roupa quando tentava capturar um elemento inimigo que avistara em fuga, elemento esse que explorado convenientemente certamente contribuiria para um melhor cumprimento da missão. Pelos motivos apontados, considera-se o Furriel Rios como um militar voluntarioso, abnegado, corajoso e cumpridor dos seus deveres, pelo que se tornou digno da maior consideração pela parte dos seus superiores e admirado pelos seus subordinados, constituindo assim um exemplo vivo do Soldado Português.



Apresentação de quadros diversos



Para que as gerações futuras repudiem as guerras e não esqueçam!
Em Carnaxide, 11 de Março de 2011
Carlos Rios

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Nota de CV:

Vd. postes da série de:

23 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9082: Porto de Abrigo (Carlos Rios) (1): Dedicatória, início da vida militar e viagem para a Guiné

26 de Novembro de 2011> Guiné 63/74 - P9097: Porto de Abrigo (Carlos Rios) (2): A nossa estada em Fulacunda

29 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9112: Porto de Abrigo (Carlos Rios) (3): A nossa estada em Bissorã e Mansoa, e as baixas em combate
e
1 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9124: Porto de Abrigo (Carlos Rios) (4): Troca de mensagens

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Guiné 63/74 - P9124: Porto de Abrigo (Carlos Rios) (4): Troca de mensagens

1. Quarto episódio de "Porto de Abrigo", as memórias passadas a escrito pelo nosso camarada Carlos Luís Martins Rios, ex-Fur Mil da CCAÇ 1420/BCAÇ 1857, Mansoa e Bissorã, 1965/66.


PORTO DE ABRIGO - IV

Mensagens de Manuel Joaquim e Carlos Rios

Manuel Joaquim diz:
20 Janeiro 2010 às 20:44


Meu caro Carlos Rios:
Que surpresa ler as tuas palavras por aqui! A última vez que nos vimos foi quando me entraste pela sala de aula, na Amadora, já lá vão muitos anos. Um grande abraço, meu “velhote coxo e surdo”. Desculpa-me se não te agradar o que vou dizer:

Amigos frequentadores deste blogue, Carlos Rios foi condecorado com a Cruz de Guerra, muito muito merecida! “Coxo e surdo” não é uma expressão irónica, é o resultado dos ferimentos sofridos em combate por um militar exemplar no serviço, na camaradagem, de coragem e humanismo transbordantes! Este fur. mil. da CCaç.1420 representa para mim a coragem, as angústias, os sucessos, mesmo os desastres desta Companhia.

Até sempre, Carlos Rios
Manuel Joaquim, Fur. Milº CCaç.1419


Carlos Rios diz:
1 Agosto 2009 às 10:53

Uma profunda triste saudade me fizeram os nomes dos meu amigos Passeiro e Duarte, também eu estive no K3, em tempos em que se dormia debaixo de cibes e terra, a única construção era a “messe”, pertenci se se lembram à 1420. Esse forno do pão foi feito ou reconstruído pelo amigo Banharia, isso de ter tectos e outros é um luxo. 

Um abraço amigo a todos e as desculpas por algum lapso de memória.

Saudades do velhote coxo e surdo. Notável o empenhamento e dinâmica já na altura do meu querido amigo CABRAL; ele tem ainda fotografias muito mais notáveis.


Carlos Rios diz:
1 Agosto 2009 às 11:10

As minhas desculpas, agora me lembrei penso que estive foi no k10, a caminho de Mansabá indo de Mansoa, reitero e reforço os cumprimentos escrevendo os inconvenientes da saga do hospital militar principal; parece que há preocupação de limpar aquele nojo de “guerra”.


Carlos Rios, diz:
14 Julho 2010 às 15:43

Estas fotografias branqueiam os horrores do que foi realmente a passagem da CCaç 1420, por aqui, senão vejamos:
a) o 1º Comandante de Companhia assim que pôde (1 mês?) evacuou-se para a metrópole.
b) neste período de tempo teve tempo de punir com pena de prisão alguns praças por levantamento de rancho (o cheiro e apresentação da comida era imundo).

Logo a seguir acompanhados de outra Companhia, fizemos uma operação onde perdemos o meu grande amigo, Alf. Mil. Vasco Cardoso e mais 5 praças (entretanto já tinha falecido outro camarada) as tropas regressaram em pequenos grupos a Fulacunda. Que nulidade de Comandante.


Carlos Rios, Fur Mil da CCaç 1420, diz:
14 Julho 2010 às 16:14

Espanto é o sentimento que me assalta, bonitas e saudosas fotografias, mas não posso deixar de sentir a falta de outras que façam sentir o quotidiano da vivência desta terra durante a guerra colonial. As ruas esburacadas, a prisão onde eram torturados os desgraçados que fossem apontados por qualquer outro, o lago do crocodilo que um militar qualquer matou a tiro, alguns elementos da população com a sua corrente de misérias, o desaparecimento de alguns militares, as passeatas do padre para (contactos) com a população. Capturado, fardado um IN, e uma vez chegado ao quartel de Mansoa teve o Sr. Comandante de Sector um gesto heróico (enfiou uma valente bofetada no homem que se encontrava em sentido e com as mãos atadas). Que vilania. Muito mal preparados estavam os homens que nos conduziam. Uns nadas. (Referência a Mansoa)


Carlos Rios, Fur Mil da CCaç 1420, diz:
27 Fevereiro 2011 às 14:39

Obrigado Manuel Joaquim!
As coisas mais lindas, marcantes, e emocionais não podem ser vistas ou tocadas, mas sim sentidas pelo coração. É inenarrável a emoção e alegria com que li o que fizeste o favor de dizer acerca de mim e que necessariamente se torna extensivo a ti próprio e aos nossos queridos e sofredores companheiros a quem endereço um profundo abraço de solidariedade. Pena é que não haja maior participação, onde se possa aquilatar das agruras desta geração. O anexo do hospital Militar (anexo) era um autêntico campo de sofrimentos e humilhações. No prosseguimento desta desumana situação fomos ainda deslocados para o DI (Depósito de Indisponíveis), onde estando em recuperação e tratamento os militares eram englobados nas escalas de serviço. Recordo um dia em que estando de comandante da guarda, já coxo e surdo como sabes, tive que vir a exterior comandando a secção fazer o içar de bandeira. Calcularás o caricato da cena.


Carlos Rios, Fur Mil da CCaç 1420, diz:
23 Fevereiro 2011 às 18:22

Inenarráveis são os sentimentos e emoções que me assaltam ao ver as fotos e ler o expresso por todos os camaradas. Também por aqui passei, vim ser ouvido num auto levantado para descobrir quem seria o culpado pelo desaparecimento do meu querido amigo Alf. Mil. Vasco Sousa Cardoso, quando por um tremendo erro estratégico do comandante da Operação Cap. […] hoje reformado pelo menos como coronel (vicissitudes dos ineptos Comandantes) numa tremenda emboscada toda a coluna se partiu vindo o regresso de diversos grupos a Fulacunda a ser feito durante toda a noite, devo ao meu grande amigo Soleimane Djaló e ao Salu (já falecido) ter regressado já alta noite a Fulacunda. 

O meu amigo fugiu juntamente com cinco praças para o lado errado vindo a ser perseguidos e abatidos durante dois dias, um suicidou-se e apenas um dos elementos foi capturado e trocado através da CVI com prisioneiros do PAIGC.  O Comandante da Operação foi dos primeiros a chegar ao Quartel com o maior troço de tropas. 

Que ignorante eu era destas questões. Não quero deixar de referir que no dia imediato uma Companhia a sério Comandada pelo Cap. Carlos Fabião – (Companhia dos Camelos), a quem rendo a minha homenagem – Um HOMEM – a sério, onde me integrei, pesquisou intensamente a área do incidente mas infrutiferamente. Pequenos episódios tristes demonstrativos da incipiente preparação dos nossos comandantes. Nesta deslocação a Bolama tive a oportunidade de me banhar na praia da Ilha – OFIR se chamava ela. Quando no decorrer da operação que deu azo ao levantamento do auto pelo qual me fizerem ir a Bolama ser ouvido; e sendo elementos do IN detectados em plena picada a caminho de S. João, junto de Nova Sintra (ainda não existia o destacamento nosso, criado a posteriori) estando eu como de costume a testa da coluna, avançámos de rompante metralhando o grupo e provocando dois feridos e capturando a primeira metralhadora PPSH, apanhada no campo de batalha na Guiné. Após o que regressamos ao ponto de encontro marcado pelo comandante de Operação;
Não havia ninguém.


Legenda:

A) - Primeiro morto em combate
B) - Morte do 2.º Sargento Monteiro e Ferimentos graves em diversos camaradas (Raimundo fica estropiado e amputado de dedos de uma mão)
C) - Grave ferimento do Rui (estilhaços nas pernas)
D) - Rios atingido por rajada (fica estropiado)
E) - Desaparecimento (em confrontação directa ) do Alf Mil Vasco Cardoso e mais 5 praças.
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Nota de CV:

Vd. poste da série de 29 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9112: Porto de Abrigo (Carlos Rios) (3): A nossa estada em Bissorã e Mansoa, e as baixas em combate