Mostrar mensagens com a etiqueta CCAÇ 2382. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta CCAÇ 2382. Mostrar todas as mensagens

terça-feira, 5 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11194: 9º aniversário do nosso blogue: Os melhores postes da I Série (2004/06) (3): O meu diário (José Teixeira, ex-1º cabo aux enf, CCAÇ 2381, Buba e Empada, 1968/70) (Partes III/IV): Buba e Aldeia Formosa, de 30/7 a 9/8/1968


Guiné >Região de Quínara > Buba > 1968 > Domingo de de Páscoa >  1º Cabo Enf Teixeira, da CCAÇ 2381 (Buba e Empada, 1968/70)


Guiné >Região do Cacheu > Ingoré > 1968 >  1º Cabo Enf Teixeira, da CCAÇ 2381 (Buba e Empada, 1968/70)

Fotos: © José Teixeira (2005). Todos os direitos reservados



1. Continuação da publicação do "diário" do José Texeira (ex-1º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381 (Buba e Empada, 1968/70) (*), o meu "diário de guerra", que publicámos no nosso blogue, na I série, entre janeiro e março de 2006 (**).

[Toto à direita, Farosadjuma, Cantanhez, Região de Tombali, Guiné-Bissau, 2011]


São apontamentos que o Zé foi escrevendo num caderninho, durante a sua comissão na Guiné (1968/70). É um notável documento humano onde,
 para além de dados factuais (colunas, operações, baixas, topónimos...),  também vêm ao de cima as dúvidas, as contradições e a angústia do português, do homem, e  do cristão (praticante que ele sempre foi). Nesse Agosto de 1968, em Aldeia Formosa (hoje, Quebo), o Zé escreve, dilacerado pelo absurdo daquela guerra: "Ainda não dei um tiro. A minha missão é curar. Jamais darei um tiro nesta guerra. Matar não, nunca. Vou tentar passar esta guerra sem fogo". Vem também ao de cima o poeta que ele é: veja-se a ternura de poema que ele escreveu sobre "As Mãos de Minha Mãe".


Aldeia Formosa, 28 de Julho de 1968

Ontem Aldeia Formosa voltou a ser atacada. Três vezes numa semana é muito.

Hoje fui fazer uma coluna a Gandembel. Tudo correu bem. O IN não atacou nem colocou minas na picada. Só tivemos uma tempestade de chuva. Começamos por ouvir um ruído assustador que se aproximava de nós. De repente surge uma forte ventania que nos arrastava, seguida de uma tromba de água que transformou a picada num rio. Um quarto de hora depois tudo desapareceu e voltou o sol quente que rapidamente nos secou.

Pouca antes de chegar a Gandembel vimos o IN atacar um Fiat das FAP que se incendiou, tendo o piloto saltado de pára-quedas.[***]

Passei no sítio onde há pouco tempo se deu uma terrível emboscada que roubou seis vidas. Quinze fornilhos colocados em série num local onde a tropa ao sentir as primeiras balas da emboscada se esconde. Doze rebentaram no momento em que se iniciou a emboscada e ceifaram seis vidas. Foi uma sorte não ter lá ficado toda a Companhia.

Quando chegamos a Gandembel fomos saudados pelo IN com um pequeno ataque ao aquartelamento, sem consequências. Os camaradas que estão aqui estacionados  [, CCAÇ 2317] dizem que comem disto todos os dias e mais que uma vez. Como é terrível...

Encontrei em Gandembel  o Mário Pinto, meu colega de escola [, foto à esquerda, Buba, 1968], contou-me coisas terríveis que se têm passado neste aquartelamento fortificado, junto à fronteira com a Guiné-Conacri que tem como objectivo cortar os carreiros de ligação à "estrada da morte" impedindo o IN de fazer os abastecimentos.
-Será verdade que vamos ficar nesta zona por muito tempo ?

Odeio... Odeio os homens que se guerreiam e matam. No entanto eu também sou um deles... O Inimigo também tem namorada, mulher, filhos... também se agarra aos seus santos protectores...

Pergunto-me se quantas vezes ao sair para o mato as portas das Tabancas se abrem e surgem caras, um sorriso, um braço no ar ... um desejo de "bom biaje", se não serão essas mesmas caras com o ódio estampado que nos esperam no meio da bolanha, prontos a matar quem não quer fazer guerra, mas foi obrigado pelo sentido de Pátria em que foi educado ?

Toda a cara preta me parece um IN. Odeio o IN porque é traiçoeiro,porque mata.

Aldeia Formosa, 30 de Julho 1968

Ontem o IN voltou a atacar Aldeia Formosa. Meia dúzia de granadas de morteiro, que caíram bem longe. Que quererá o IN com estes pequenos ataques ?


As Mãos de minha mãe

As mãos de minha mãe!
Mãos belas e puras,
Mãos de santa.
Mãos que sofreram, trabalharam,
Mãos que se sacrificaram,
... Para que não me faltasse o pão.
Mãos calejadas, doridas,
Sangrentas, mesmo.
As mãos de minha mãe !...

Era pequenino,
Talvez ainda não compreendesse
As mil carícias que me faziam,
Todo o amor que me dedicavam
Mas já sentia o calor dessas mãos.
Já sentia o seu amor,
O seu carinho.
Parece que sentia mesmo,
O enorme esforço dessas mãos.
Os sacrifícios de minha mãe.
O trabalho a que se votava,
A fome que passava
Para que nada faltasse
À criança
Que no berço dormia feliz,
Embalada com tanto amor.

... Como são belas
As mãos de minha mãe !...


Aldeia Formosa, 1 de Agosto 1968

É dia de correio, mas pelos vistos o avião já não vem. Ontem aterraram dois Dakotas com páras e espera-se outro hoje. Mau sinal. Ou me engano muito ou em breve vamos ter "manga de chocolate".

No dia de S. João, enquanto me divertia em Ingoré nas marchas improvisadas do S. João, o pessoal da Companhia 2382 viu arder tudo o que trouxeram da Metrópole, aqui ao lado em Contabane, num ataque inimigo. Felizmente só tiveram 4 feridos. Que rico S. João !

Aldeia Formosa, 2 de Agosto 1968

A guerra é triste... Na estrada da Chamarra ia-se dando mais um drama. Vinte e sete abrigos de três homens e dois fornilhos a serem montados, eram a espera para a Secção que vem todos os dias a Aldeia buscar víveres. Quatro milícias passaram perto e avistando o IN abriram fogo. Três acabaram as munições e fugiram, o quarto, sozinho pôs o IN em fuga. Não fora os milícias e nesse dia a Secção podia ser apanhada à mão.

Pouco tempo antes o IN tinha tentado a sorte no mesmo local. Dizem que um nativo de 12 anos ao ver um branco com farda diferente da do nosso exército lhe apontou a Mauser e matou-o. Era um cubano que junto com outros tinha uma emboscada montada. O miúdo tentou avisar Chamarra e conseguiu-o, mesmo depois de ter apanhado um tiro de raspão no nariz.

Crianças na guerra, será possível ? Que futuro para esta gente que cresce no ódio, na guerra ?.

Aldeia Formosa, 4 de Agosto 1968

Ontem foi comemorado pelo IN o V Aniversário da implantação da luta pela independência da Guiné [ou não seria, antes  o IX Aniversário da Revolta  do Cais do Pinjiguiti, em 3 de agosto de 1959?, LG]. No sector de Buba a festa começou cerca das 22 horas com um ataque a Mampatá com quatro canhões sem recuo e terminou às 3.30 horas em Aldeia Formosa.

Às 22 horas iniciaram em Mampatá. Às 22.30 acordaram Aldeia Formosa com algumas morteiradas e continuaram em Gandembel, Guileje e Buba. Às 24 h recomeçaram em Aldeia Formosa com pequenos intervalos até as 3.30 h., não fazendo feridos.

Hoje o Senhor concedeu-me a graça de ouvir a missa pela telefonia. Sinto-me outro, mais [?, ilegível]... Hoje é dia de correio. Para completar esta boa disposição é preciso que venhas também até mim com a tua confiança.

Ouvi o Spínola dar as boas vindas à tropa vinda da Metrópole. Segundo ele, o tempo de Comissão é de 21 meses.


Buba, 8 de Agosto de 1968

A Guerra e . . . a minha "paz"

Avisto a Selva,
Do outro lado, o mar...
Corpos negros,
Corpos brancos.
Almas assassinas
Que destroem, matam.
Não sabem amar.
Quando entro na guerra,
Esqueço quem sou.
Deram-me uma arma
Tenho que lutar...
Que coisa terrível !
Marca espíritos,
Destrói sentimentos,
Origina ódios.
Mais que tudo isto,
Ensina a matar !...
Mas se eu matar
E a "pátria" o afirma,
Em defesa dos "inocentes"
Buscando a "paz",
Porquê este remorso
Se quero somente amar !?

Aldeia Formosa, 9 de Agosto de 1968

Cheguei à uma da madrugada de Buba. Tinha partido para baixo em coluna no dia 6. Desta vez o IN não apareceu. Fomos e voltámos pela estrada de Nhala.

Estava com medo desta coluna, depois do que aconteceu na última, mas o Senhor protegeu-me, a mim e aos meus colegas de aventura.

Um pelotão de milícia de Aldeia Formosa foi bater a zona de Mampatá, para confundir o IN e sofreu dois mortos e três feridos. Trouxe orelhas de vários IN, mortos durante o combate. É horrível, Senhor... dois mortos e três feridos e... orelhas de vários IN mortos. Alguns, foi a sangue frio, segundo dizem, depois de serem descobertos com ferimentos que os impediam de fugir. Tudo isto é guerra, enquanto uns estavam na rectaguarda feridos, outros, autênticas feras, procuravam IN, irmãos de raça, para os assassinarem. (****)

Os homens não ouvem a voz de Deus, abafam a tua voz com o matraquear das armas. Matar pessoas, porquê ? ... E aquele corte de orelhas, vitorioso !?... Como se fosse um animal ! E se fosse, quem deu ao homem tal direito ?!...

Que faço eu nesta guerra ?... Curo uns e procuro matar outros para salvar a pele? Que culpa tenho eu que os homens não se amem ?!... Me queiram matar sem eu lhes fazer mal nenhum ?!...

Ainda não dei um tiro. A minha missão é curar. Jamais darei um tiro nesta guerra. Matar não, nunca. Vou tentar passar esta guerra sem fogo.



Guiné > Mapa geral da província (1961) > Escala 1/500 mil > Detalhe de região de Quínara, e da estrada Buba - Mampatá - Quebo - Chamarra - Gandembel [junto ao rio Balana, não  constando o topónimo]
_________________

Notas do editor:

(*) Vd. último poste da série > 28 de fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11168: 9º aniversário do nosso blogue: Os melhores postes da I Série (2004/06) (2): O meu diário (José Teixeira, ex-1º cabo aux enf, CCAÇ 2381, Buba e Empada, 1968/70) (Parte II): Buba-Aldeia Formosa, 39 horas dolorosas para fazer uma picada, de 35 km, em 24/25 de julho de 1968

(**) Vd. I Série, o último poste de 19 postes > 14 Março 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVI: O meu diário (Zé Teixeira) (fim): Confesso que vi e vivi

(***) Vd. poste de 21 de junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1864: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (7): do ataque aterrador de 15 de Julho de 1968 ao Fiat G-91 abatido a 28

(****) Julgo que a milícia em causa era a da Aldeia Formosa, comandada pelo alferes de 2ª linha Aliu Candé, ou Aliu Sanda Candé:

Vd. poste de 4 de dezembro de 20009 > Guiné 63/74 - P5406: Os nossos camaradas guineenses (16): A morte do Aliu Sanda Candé (José Teixeira)

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Guiné 63/71 - P8639: Em busca de... (173): Contacto de camaradas da CCS/BCAÇ 2834, Buba, 1968 (Manuel Traquina)

1. Mensagem de Manuel Traquina (*), ex-Fur Mil da CCAÇ 2382, Buba, 1968/70, com data de 2 de Agosto de 2011:

Camarada Vinhal:
Agradeço se possível algum contacto com elementos da CCS do BCAÇ 2834 que esteve em Buba no ano de 1968.
Não me recordo do número da Companhia com a qual estivemos cerca de um ano.

Um abraço
Traquina



Sobre o BCAÇ 2834:

Unidade Mobilizadora: RI 15 - Tomar
Comandante: TCor Inf Carlos Barroso Hipólito
2.º CMDT: Maj Inf Rui Barbosa Mexia Leitão
Of Inf Op/Adj: Maj Inf Albino Simões Teixeira Lino

CMDTs CCS:
Cap SGE António Freitas Novais
Cap Mil Art António Dias Lopes
Cap Inf Eugénio Batista Neves

CMDT CCAÇ 2312: Cap Mil Inf Júlio Máximo Teixeira Trigo
CMDT CCAÇ 2313: Cap Inf Carlos Alberto Oliveira Penim
CMDT CCAÇ 2314: Cap Inf Joaquim de Jesus das Neves

Divisa: "Juntos Venceremos" - "Para Vencer, Convencer"
Partida: 10JAN68
Regresso: 23NOV69


Síntese da Actividade Operacional

Em JAN68, rendendo o BART 1904, assumiu a responsabilidade do sector de Bissau, com a sede em Bissau e abrangendo os subsectores de Brá, Nhacra e Quinhamel, comandando e coordenando a actividade das subunidades ali estacionadas, por forma a garantir a segurança e defesa das instalações e populações da área; as suas subunidades foram então atribuídas a outros sectores.

Em 24JUN69, foi substituído no sector de Bissau pelo BCAÇ 1911 e assumiu em 25JUN68 a responsabilidade do Sector S2, com sede em Buba e abrangendo os subsectores de Sangonhá, que viria a ser extinto em 29JUL68, Gadamael, Cameconde, que desde 20DEZ68, passou a subsector de Cacine, Guileje, Gandembel e Buba, onde rendeu o BART 1896.

De 20AGO68 a 07DEZ68, a sua ZA foi reduzida dos subsectores de Guileje e Gandembel, que foram atribuídos temporariamente ao COP 2.

Em 15JAN69, a sua sede foi transferida para Aldeia Formosa, onde substituiu COP 1 e sendo então o subsector de Aldeia Formosa, incluído na sua ZA. Em 29JAN69, o subsector de Gandembel foi extinto e em 19JAN69, o subsector de Buba foi atribuído ao COP 4, então criado. Em 10JUL69, por transferência da sede do COP 4 para Aldeia Formosa, o Batalhão deslocou a sua sede para Gadamael, abrangendo nesta altura os subsectores de Guileje, Cacine e Gadamael.

Desenvolveu intensa actividade operacional de patrulhamento, reconhecimentos, emboscadas e segurança e controlo dos itinerários, bem como operações e acções sobre as linhas de infiltração e bases inimigas, orientada para a desarticulação dos grupos inimigos que procuravam fixar-se na sua ZA e ainda para a segurança e protecção dos trabalhos da estrada Buba-Aldeia Formosa.

Dentre o material capturado mais significativo, salienta-se: 2 pistolas-metralhadoras, 1 espingarda, 115 granadas de armas pesadas, 20 cunhetes de munições de armas ligeiras e 92 minas anticarro e antipessoal, destas, parte detectada e levantada nos itinerários.

Em 30SET60, recolheu a Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso, sendo a sua ZA integrada no Sector S3, então sob responsabilidade do BART 2865.

Notas do Editor:
- Elementos recolhidos na Resenha Historico-Militar das Campanhas de África (1961-1974), 7.º Volume, Fichas das Unidades, Tomo II, Guiné.
- Emblema da colecção do nosso camarada Carlos Coutinho
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 25 de Julho de 2011 > Guiné 63/71 - P8600: Em busca de... (172): Adalberto Santos, ex-Pára-quedista do BCP 12, Guiné, 1967/72, procura camaradas

quinta-feira, 31 de março de 2011

Guiné 63/74 - P8025: Convívios (305): Pessoal da CCAÇ 2382 - Zé do Olho Vivo - dia 7 de Maio de 2011 em Almeirim (José Manuel Cancela)




A CCAÇ 2382, Zé do Olho Vivo, Guiné 1968-70 vai realizar no dia 7 de Maio de 2011 o 24.º Almoço/Convívio na região de Almeirim.

A concentração será junto da Praça de Touros, seguindo depois para o almoço no Restaurante na Quinta da Feiteira

Contactos dos organizadores:

Zola - 243 509 092 e 936 576 928
Caniço - 243 509 236 e 934 501 470

Como de costume vai ser um dia bem passado, lanço daqui o meu apelo para que venham em grande número para revivermos a Guiné da nossa juventude.

Grande abraço a todos

JOSÉ M. M. CANCELA
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 31 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P8023: Convívios (220): Pessoal da CCAÇ 2700/BCAÇ 2912, dia 30 de Abril de 2011 em Alferrarede-Abrantes (Fernando Barata)

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7747: Tabanca Grande (266): Nuno Dempster, autor do poema K3, agora publicado em livro, ex-Fur Mil SAM, CCAÇ 1792 (Saliquinhedim/K3, Mampatá, Colibuía e Aldeia Formosa, 1967/69)






Capa do livro de poesia, K3, de Nuno Dempster (Lisboa: &etc, 2011, 63 pp). Sinopse: "Nuno Dempster (autor de Londres, ed. & etc) revisita o Horror. Felizmente para elas, as jovens gerações (também de poetas) desconhecem esse Horror que foi, para quem o sofreu nos ossos e no que houvesse de alma, a Guerra Colonial. Algures na Guiné e algures num quartel subterrâneo: o K 3. Nossa palavra: não conhecemos, na literatura sobre o tema, tão fundo, tão magistral testemunho desse Horror. Elegia, catarse, contrição, K 3 combate o esquecimento".


Dedicatória do autor à nossa Tabanca Grande: "Para o Luís Graça &  Camaradas da Guiné, todos meus companheiros nesta guerra que em muitos ainda está por digerir, com o afecto e a camaradagem do Nuno Dempster. 3/2/2011. Na Guiné, de [1967-1969,], no K3, Mampatá, Colibuía e Quebo (Aldeia Formosa), por esta ordem".






Um excerto do belíssimo longo poema K3 que se lê de um fôlego...

Fotos: © Nuno Dempster (2011). (Com a devida vénia...)






Guiné > Zona Leste > Gabu > Canjadude > CCAÇ 5 (1973/74) > Canjadude, a Ilha dos Amores. Ou: os tugas e a psico... E no meio, uma bajuda fula, linda de morrer, objecto de desejo... Sob o olhar vigilante da mamã, e rodeada dos manos mais pequenos... Repare-se como os tugas, passada a primeira surpresa da exposição ao nu étnico, se apoderaram rapidamente do termo psico e deram-lhe uma outra conotação... mais épica, mais erótica, mais camoniana...

Foto: © João Carvalho (2006). Direitos reservados

1. Mensagem, de 1 do corrente, do nosso camarada Nuno Dempster, que mora em Viseu [ foto à esquerda, retirada da sua página no Facebook]... O Nuno Fur Mil SAM, ou seja, vaguemestre, da CCAÇ 1792, a companhia dos lenços azuis, que andou por Farim, Saliquinhedim/K3, a norte, mas também, Mampatá, Colibuía e Aldeia Formosa, a sul... Pertenceu ao BCAÇ 1933 (Nova Lamego, Bissau, S. Domingos). A CCAÇ 1972 teve 3 comandantes:  Cap Mil Art Antóno Manuel Conceição Henriques (que ficaria sem as pernas numa mina A/C);  Cap Art Ricardo António Tavares Antunes Rei, Cap Inf Rui Manuel Gomes Mendonça. A companhia foi mobilizada pelo RI 15, tendo partido para a Guiné em 28 de Outubro de 1967 e regressado à Metrópole em 20/8/1969.

O Nuno tem três livros de poesia publicados: Londers, Dispersão, K3. É engenheiro técnico agrícola (trabalhou em cooperativas, é hoje empresário). Nasceu em São Miguel, Açores (donde é originária a família paterna, enquanto a família materna é de Amarante). Vive em Viseu. E vem pedir para se sentar sob o poilão da nossa Tabanca Grande.

Caro Luis Graça:

Além de eu ter estado também na Guiné, em [1967-69], na CCaç 1792 / BCAÇ 1933 (no K3  durante seis meses, ainda o aquartelamento era semi-subterrâneo, e depois em Mampatá, Colibuia e Quebo), julgo termos algo mais em comum. Uma amiga minha, que está a doutorar-se com uma tese sobre a obra do meu avô paterno Armando Côrtes-Rodrigues [1891-1971], de S. Miguel, Açores, onde também nasci, disse-me que tinha notícia de que Luis Graça (que pode ser outra pessoa) recebera das mãos do meu avô dois livros da sua autoria quando da partida para a Guiné.



Se assim for é uma razão acrescida para o que aqui me trouxe. Se for outra pessoa, o objectivo permanece intacto, que é o de solicitar-lhe que me envie uma direcção para lhe oferecer o meu livro K3, constituído por um só poema, em que abordo a minha experiência da guerra em que estivemos. 


O livro foi publicado pela &etc,  uma editora de referência em poesia, caso a não conheça já. Estará disponível a partir do próximo dia 3 nas livrarias do país, incluindo as da cadeia da FNAC e da Bertrand. Julgo que também será do interesse dos nossos camaradas que escrevem no seu blogue. 


O motivo deste email não é material, pois já recebi o que tinha a receber, em livros, que entretanto vão já chegando ao fim, nenhum vendido, só oferecidos. Por outro lado, a editora não faz mais edições que a primeira de cada obra. Quero com isto significar que o meu interesse é partilhar com os meus camaradas de guerra a minha experiência e esperar que seja um testemunho da guerra colonial, de resto até hoje único em livro de poesia, sobre o nosso sacrifício, que o foi para muitos de nós.


Se, caso aceitar receber o livro e depois de o ler, achar pertinente a sua divulgação no blogue, ficar-lhe-ei agradecido. Gostaria entretanto que me confirmasse por favor se é a mesma pessoa que refiro acima.

Mando a imagem da capa do livro em anexo, cuja ilustração é da autoria da pintora Maria João Fernandes. De algum modo já aponta o que está nas páginas. Envio igualmente um link sobre a editora, no caso de o Luis Graça a não conhecer.

http://bibliotecariodebabel.com/blogosfera/eles-etc/


 
Com os meus cumprimentos e na expectativa de uma resposta,
Nuno Dempster



2. Resposta de L.G., com data de 3 do corrente:

Nuno: Antes de mais os meus parabéns pela coragem de editar um livro de poesia sobre a experiência da guerra da Guiné. E em segundo lugar pelo teu gesto, "camarigo", de me mandares um exemplar do teu livro (e já agora com uma dedicatória, autografada, a todos os membros, que já vão a caminho dos 500, do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné). 

Tomo a liberdade de te tratar por tu por termos, para além da geração, mais duas coisas em comum: a Guiné e a poesia. Infelizmente não conheci o teu avô, a não ser de nome. Há mais pessoas com o nome Luís Graça, na nossa praça: o Luís Graça, obstetra e ginecologista, director  do  departamento de Obstetrícia e Ginecologia do Hospital Santa Maria, e meu colega da Faculdade de Medicina; o Luís Graça, escritor, jornalista, cronista, crítico literário,  também bloguista (que não conheço pessoalmente)...

Aqui tens o meu endereço: Prof Dr Luís Graça, Gabinete 3A 42, Escola Nacional de Saúde Pública, Universidade Nova de Lisboa, 1600-560 Lisboa

Telefone (gabinete): 21 751 21 93 / telemóvel: 93 141 5277.

Tomei boa nota do teu blogue, que prometo revisitar com mais atenção. Gostaria de ter o teu nome na lista alfabética dos membros do nosso blogue. Votos de bom sucesso para o teu livro e a tua poesia... Logo que receba um exemplar, farei a devida rencensão... e divulgação.

Um Alfa Bravo (ABraço)
Luis Graça

PS - Infelizmente ainda não temos ninguém da tua antiga companhia... Mas há referências, no nosso blogue, ao teu batalhão.

http://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/search/label/BCA%C3%87%201933

3. Resposta do Nuno, em 3 de Fevereiro de 2011 14:06:

Obrigado, Luis. A divulgação do livro entre os meus camaradas da infortunada guerra em que estivemos era o que eu mais desejava dele. Em muita coisa se hão-de rever, embora, forçosamente, a posição não seja em todos próxima da expressa no livro. O certo é que alguém nos deve esse tremendo sacrifício. O meu modo de receber esse crédito incobrável foi escrever o poema de que te dou no link abaixo uma das primeiras manifestações públicas, sendo embora do meu editor, Vitor Silva Tavares, que nunca vi expressar-se assim. De resto, deve ser raríssimo nele publicamente. É um jovem de 73 anos, vertical nas suas posições, com quem é muito grato estar a conversar e mais ainda a escutá-lo. É um homem mais que conhecido no meio, além de estimado e respeitado, de grande prestígio e também temido por não ter papas na língua. Enfim, um homem sério de que este país deveria orgulhar-se, através dos seus governos, coisa impensável, sei-o bem.

http://editoraetc.blogspot.com/2011/01/k3.html


Acho óptimo tutearmo-nos. Afinal era assim que nos trataríamos, se nos encontrássemos no tempo comum a ambos na Guiné.


Há uma referência à CCaç  1792 no teu / nosso blogue, que em boa hora descobri quando da busca de dados esquecidos sobre a Guiné, isto desde Março de 2010. Tenho-o nos meus favoritos, e continuo a visitá-lo com regular frequência. Vou hoje pô-lo nos meus links. Essa referência refere-se à importância do cabo mecânico, com quem me dava. Mais que a dele, porém, era a do furriel Ferreira. Era ele que desenrascava tudo, orientando a secção com inimaginável competência e inventividade. Morreu há uma dúzia de anos ou mais com uma cirrose alcoólica. Não se aguentou. Éramos amigos de petiscos e cervejão, e também de uma sortida a Bissau para calar, num corpo alugado, o nosso vigor de jovens.

Tenho muita honra em que conste o meu nome entre os quinhentos camaradas. O outro Luís Graça deve ser último que citaste.

O livro deve estar a manhã na direcção dada, segue hoje por correio verde, que tem a prioridade do azul. Ainda bem que me lembraste da dedicatória colectiva, pois seguiria apenas com o teu nome. Assim vai melhor, devo e julgo que todos devemos muito uns aos outros

Um Alfa Bravo, lembro-me bem, do grato

Nuno Dempster

P.S. Não tenho nem uma foto desse tempo, nem sequer minha, e tive muitas, que o cabo Simões tirava, com que juntou 400 contos no fim da comissão, o que daria para comprar 8 carros novos como o meu primeiro (um Fiat 850 http://www.netcarshow.com/fiat/1968-850_special/800x600/wallpaper_01.htm). Perdi-as nos trambolhões que a vida muitas vezes dá.

4. Segundo mail do L.G.:

Nuno: Posso, desde já tratar-te como "camarigo", um neologismo, nosso, que quer dizer camarada e amigo... Fico à espera do teu livro para fazer a devida apresentação, da obra e do autor... Confirma: afinal és da CCAÇ 1792 ("Os Lenços Azuis) e não da CCAÇ 1972 (como consta do teu 1º mail)... É isso ? Um abraço. Luís



5. Resposta do Nuno:

Data: 3 de Fevereiro de 2011 20:11

Assunto: Re: Ainda o k3 (precisando dados)


Camarigo, então. É a [CCAÇ] 1792, a dos lenços azuis, sim, e no blogue fala-se da coluna que trouxe os três obuses, que o poema, perto do final cita, sem pormenores. Demorou dois dias.

Recordei, no link que enviaste, o capitão Rei, de carreira, que teve a ideia dos lenços e que substituiu o capitão miliciano, cujo nome já não recordo, um homem lúcido, vítima de um fornilho, na estrada de Farim, uma das passagens mais intensas do poema [, Cap Mil Art António Manuel Conceição Henriques]. Isso sucedeu dentro dos seis primeiros meses do início, quando estávamos no K3. Até sairmos de lá, o aquartelamento ficou entregue ao alferes miliciano, segundo comandante, bem como em Mampatá e Colibuia, penso. O Cap [Art  Riacrdo António Tavares Antunes] Rei chegou já no tempo de Quebo.

Errei nos anos em que estive na Guiné, foram os de 1967-69, e não os de 1968-1970, infelizmente o que pus na dedicatória do livro, que já seguiu. De qualquer modo fica aqui a rectificação para eventual emenda. Em 1970 casei-me eu, em Março, e os meus três filhos nasceram quase sem descanso da mãe e foram feitos de propósito. Era o baby boom do fim da minha guerra.

Pouco tempo antes de partir para Bissau, para prepararmos a peluda, é que veio aquela tropa toda para Quebo (Aldeia Formosa, que de formoso nada tinha), com o pouco gramado Major Azeredo, braço do Spínola. Ainda me lembro do ar desasado dos periquitos da CCaç 2382 que nos rendeu. Metiam verdadeira pena.

Faltou-me dizer que o livro, que é barato (12 €), vi agora o preço, já está anunciado em algumas livrarias online, nomeadamente a Wook.


Não tenho foto do tempo da guerra, como disse, mas tenho uma mais ou menos recente, que é pública.

Alfa Bravo,
Nuno

6. Comentário de L.G.:

Nuno, estás apresentadíssimo. És bem vindo à nossa Tabanca Grande. Já falámos duas ou três vezes ao telefone. Teremos seguramente de nos conhecermos ao vivo, em carne e osso, um dia destes. Até lá, convido os nossos amigos, camaradas e camarigos da Guiné a ler, de um trago (como eu fiz), esta litania de seis dezenas de páginas, onde o poeta revisita, em viagem dorida e dolorosa, mas sempre alucinante, como se fora uma via sacra, os lugares onde sofreu e viu sofrer, matar e matar, do K3 ao Quebo... K3 é o poema que todos escrevemos, com sangue, suor e lágrimas.

Tudo começa estes três versos, com a evocação do alto navio negro que levou para a guerra (p. 7):

Que sabia eu do cais de Alcântara
que não tivesse lido
em romances de guerra ? (---)

Um poste com notas de leitura deste livvro será publicado oportunamente.

______________

Nota de L.G.:

Último poste desta série > 8 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7745: Tabanca Grande (265): José Figueiral, ex-Alf Mil da CCAÇ 6 (Bedanda, 1970/72)

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7324: Venturas e Desventuras do Zé do Olho Vivo (Manuel Traquina (8): Dia de Aniversário

1. O nosso Camarada Manuel Traquina, ex-Fur Mil At Inf da CCAÇ 2382, Buba, 1968/70, enviou-nos, com data de 21 de Novembro de 2010, a seguinte mensagem:

Camaradas,

Para que possa constar no blogue o meu dia de aniversário é o dia 5 de Junho. Aproveito para enviar este texto que consta no meu livro “Os Tempos de Guerra”que relata um “equívoco” passado na messe de Buba naquele dia 5 de Junho de 1969.
Dia de Aniversário
Naquele dia o jantar tinha terminado, a messe de sargentos de Buba estava em “festa”. Normalmente era assim, quando alguém fazia anos.
Era a minha vez, era o dia 5 de Junho de 1969, dia do meu aniversário. Completava 24 anos de idade, contava já cerca de dois anos e meio de serviço militar e, para regressar a Portugal calculava que me faltava à volta de um ano. Tinham-se bebido umas frescas cervejas e, animadamente cantava-se a canção, Senhor de Matosinhos/ Senhor da Boa hora/ Ensinai-nos o Caminho/ Para sairmos daqui para fora. Além de outras esta, pela sua letra, era a preferida.
A música vinha da viola do Cardoso da 15ª Companhia de Comandos, e do acordeon do Gonçalves da CCS do Batalhão 2834. O Furriel Henrique, (mais conhecido pelo Henrique da Burra) com a sua habitual actuação teatral, punha todos a rir. Aquela alcunha ao que parece tinha sido herdada do seu pai, que lá para os lados de Cascais, era bastante conhecido pelo “Chico da Burra”.
Naquele dia o Henrique da Burra, descalço, e com uma toalha atada á cintura, simulando uma mini-saia, tentava imitar a bonita e popular cantora inglesa Sandiechow, que tinha sido concorrente ao festival da Eurovisão.
Assistindo a esta festa estava o Dr. Franco, médico do aquartelamento de Buba, acabado de chegar de Bissau, estava visivelmente desambientado, apenas abanava a cabeça, enquanto dizia “ estão todos apanhados”, assim achou melhor retirar-se. Mas quando a “festa” atingia o seu auge, eis que se gera o pânico. Atropelando-se, todos largam a correr porta fora em busca de abrigo. Ouvira-se o que se julgou ser a “saída” de um morteiro iniciando mais um ataque. Afinal tudo não passara do bater da porta do frigorífico do bar que produzia o ruído semelhante à saída da granada do morteiro.
O Simplício, encarregado do bar, foi repreendido para não voltar a bater assim com a porta do frigorífico. É que, naquela situação de guerra em que se vivia, qualquer barulho do género era suspeito. Bem, depois de tudo acalmar beberam-se mais umas cervejas, e a festa continuou embora tivesse perdido um pouco o seu ritmo. Foi esta a festa do meu 24º aniversário que ficou para não mais ser esquecida.

Um abraço,
Manuel Traquina,
Fur Mil At Inf da CCAÇ 2382
__________
Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:
12 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4327: Venturas e Desventuras do Zé do Olho Vivo (Manuel Traquina) (7): O saxofone que não tinha sapatilhas

sábado, 4 de setembro de 2010

Guiné 63/74 - P6935: A Cantora Careca, estreado em Bissau no dia 5 de Abril de 1970 (Carlos Nery)

Mensagem de Carlos Nery (ex-Cap Mil, Comandante da CCAÇ 2382, Buba, 1968/70), com data de 29 de Agosto de 2010:

Caros Camaradas,
Tantas vezes prometido, aí vai o material para o Poste sobre A Cantora Careca, estreado em Bissau em 05ABR70.
Como expliquei trata-se de um trabalho conjunto, meu, do Mário Cláudio e do João Barge. Já têm foto minha e do Mário Cláudio, usadas do antecedente, noutros Postes.

O Barge remeteu-me a sua, agora, com idêntico objectivo. Enviar-vos-ei o email que recebi dele. Poder-se-á, certamente, encontrar forma de colocar as três no início do Poste. Há outras que não possuo e que seria interessante incluir. De Otto de Habsburo, de Carlos de Áustria (seu pai), talvez de Aristides de Sousa Mendes. E, por fim, dos três majores assassinados. Enfim, vocês verão se isso é possível.

Dia 4, sábado, vamo-nos encontrar os três, no Porto. Direi que desde 1970 que tal encontro não tem sido possível.
Teria graça se o Poste estivesse pronto, nessa data... Vocês verâo se isso é possível.

Tentarei fazer fotos do encontro e, se houver matéria de interesse, tentarei fazer um Poste sobre esse reencontro.

Um abraço forte,
Carlos Nery



“A Cantora Careca”, Bissau, Abril de 1970 (Maria Guilhermina, Rui Barbot e João Barge)

Verbete

A empresa de levar à cena nas adjacências do Quartel-General de Bissau A Cantora Careca, de Ionescu, produzida pelo então capitão miliciano Carlos Nery Gomes de Araújo, ainda hoje retém, quando lembrada, uma intocada luz de audácia juvenil, e de discreta rebeldia. Tratava-se de descerrar uma certa janela, propiciadora de mais funda respiração, no quadro constritor da guerra, e com tal gesto propunha-se o grupo de gente moça, mobilizado por Carlos Nery, prestar serviço aos camaradas que, interessados em pensar para além daquilo que constituía motivo de colectiva apreensão, poderiam ver no teatro moldura adequada ao exercício da sua inteligência, e da sua fantasia.
Entre as recordações da pequena aventura, documentada por textos e fotografias, uma muito especial ficaria, exclusivamente guardada na memória, e que oferece agora, quatro décadas passadas, algum pretexto de reflexão.
Um jornalista estrangeiro, afecto ao regime português da altura, e que viajava em reportagem pelas três frentes de combate, tendo assistido a uma das récitas daquele espectáculo vanguardista, levantado na maior economia de meios, viria felicitar-nos efusivamente, a nós, artistas mais ou menos improvisados, com palavras que não se esqueceriam. Chamava-se o senhor Otto de Habsburgo, e representava tão-só a última candidatura ao trono imperial austro-húngaro, esse mesmo que com Carlos V, rei de Espanha, se arrogara um domínio de além-mar que apenas com Manuel I, rei de Portugal, por algumas décadas partilharia.
Relata-se isto para que conste, e para que se reabram os compêndios de História.
Que importam ao fraterno convívio as opções ideológicas, navegantes como somos, todos nós, na nau de velas pandas da relatividade do Tempo?

Mário Cláudio
(alferes Barbot)

************


1 – Prontidão de Embarque

Carlos Nery - No início de Novembro de 1969, vinda de Buba, a CCAÇ 2382 chegava a Bissau, ficando adida ao BART 2866, em Brá.
Tinha terminado a parte mais dura da nossa comissão. Somos declarados com prontidão de embarque a partir de 10JAN70. Porém, até Março, iríamos, ainda, colaborar na segurança da cidade, de algumas das suas instalações militares e de destacamentos próximos.

João Barge - Anos 70 do século passado, ou, para ser mais exacto, na transição de Dezembro de 1969 para Janeiro de 1970!

Carlos Nery - Bissau era cheia de vida, de movimento, de civis e de militares. As viaturas corriam por toda a cidade. Esta ocupava uma vasta área, as distâncias eram grandes. Não raro, viam-se oficiais pedindo boleia a viaturas militares que passavam a grande velocidadade fingindo não os ver.

João Barge - Estava eu então, pela cidade, um pouco órfão, uma vez que a Companhia que me tinha acolhido, ainda em 1968, em rendição individual, a CCaç 2317, regressara a Portugal, pouco antes, acabada a comissão de serviço.

Carlos Nery - Era ao fim da tarde e à noite que a cidade se tornava mais atractiva. Tomado um duche e mudada a roupa, saíamos de Brá, da sede do Batalhão, em grupo, num velho jipe, para a Messe de Oficiais. Aí jogava-se bridge, conversava-se, tomavam-se bebidas. O uísque, livre de taxas ou de impostos, era mais barato do que a água Perrier que se usava para beber com ele.

João Barge: Talvez porque amargara (e amargurara)...

João Barge - Talvez porque eu amargara (e amargurara) Gandembel e Ponte Balana, e logo a seguir, para não me desabituar, também amargara (e amargurara) Buba, resolveram poupar-me a maiores infortúnios bélicos e colocaram-me no Quartel General, na Secção de Transportes Marítimos. Daí as idas frequentes, de dia e tantas vezes de noite, ao cais do Pidjiguiti. Ficou-me, nos olhos e talvez na alma, a marginal, com suas palmeiras, com seu cheiro a mar e a gente, com aquela brisa que chegava ao fim da tarde e me reconciliava um pouco com tudo e com todos.

Carlos Nery - Em certas noites da semana, junto da piscina onde se improvisara um recinto de cinema ao ar livre, eram projectados filmes recebidos dos distribuidores de Lisboa.

João Barge - Não era muito o tempo livre mas, ao fim do dia, normalmente rumava ao Clube Militar, para mastigar qualquer coisa, bebericar um qualquer álcool e trocar dois ou três dedos de conversa. O Clube Militar era basicamente a Messe de Oficias, a piscina e um cinema ao ar livre. Havia quem não se encolhesse muito a afogar as mágoas, havia quem se desse mais ao jogo.

Carlos Nery - Uma bela noite fez a sua irrupção uma novidade, o Bingo! Na época era desconhecido, mesmo em Portugal. Em sessões cada vez mais concorridas, por fim ao ar livre nas belas noites de Bissau, compravam-se cartões e ouviam-se anunciar os números saídos. Por último, havia já grandes painéis iluminados onde os mesmos eram exibidos. Os prémios eram aliciantes, objectos caros adquiridos nas lojas que proliferavam na baixa da cidade.

João Barge - A minha “praia” era outra, cinema sim, o resto nem por isso.

Carlos Nery – Já me ocorreu se todo aquele aparato não se destinaria a permitir, sem chamar a atenção, a compra de idênticos artigos a ser oferecidos, pelos Majores Passos Ramos, Pereira da Silva e Magalhães Osório, aos seus interlocutores, durante as negociações que estabeleciam, nessa altura, com quadros intermédios do PAIGC. Sabendo-se que quem os assassinou foi quem com eles dialogou, em encontros sucessivos, pergunto-me se não contribuíu para a sua eliminação o receio de que, se tivessem sido feito prisioneiros, pudessem vir a revelar pormenores comprometedores para os seus captores.


2 – Dar a Outra Face

Arménio Vicente e duas amiguinhas nossas que preferiam os ensaios a outras brincadeiras e que já sabiam de cor toda a peça... Onde estão hoje vocês, queridas amigas?

João Barge - Ora como o mundo é pequeno e a Guiné não é grande, por esse tempo, entre tanta e desvairada gente que no Clube Militar desaguava, quem haveria de por ali também aparecer? O Cap. Mil. Gomes de Araújo, comandante da CCaç 2382, companhia que estava em Buba, quando a minha, a CCaç 2317, também ali esteve, nos meses de Fevereiro a Maio de 1969.

Carlos Nery – Não me recordo como mas, em dada altura, passaste a fazer parte do nosso grupo, que não jogava, era pouco dado à bebida e não apreciava o Bingo por aí além.

João Barge – Saíamos para o recinto da piscina, deserto à noite, e conversávamos.

Junto à piscina (Rui Barbot, Maia Alexandre e Maria Guilhermina)

Rui Barbot - Maio de 68 tinha sido há menos de dois anos, de Portugal vinham notícias de confrontos entre estudantes e o poder, havia notícias de Associações encerradas, os “gorilas” tinham feito a sua aparição nas Faculdades. No ano anterior haviam-se realizado eleições em Portugal. Não faltavam motivos de conversa que, claro, incidia também nas peripécias da guerra da Guiné.

Carlos Nery - Lembram-se de que o Tenente-Coronel Saraiva, homem culto que havia sido amigo de José Régio, responsável pelo Clube, nos pediu para o ajudar a seleccionar os filmes a exibir? Engraçado, tendo nós feito uma escolha baseada na qualidade, logo os distribuidores avisaram que, para poder alugar esses, teriam que ser aceites outros filmes, digamos, de qualidade inferior... Aliás, isso veio ao encontro das reclamações de alguns oficiais que se queixavam, afirmando querer distrair-se e não ter de pensar nos problemas propostos pelos realizadores de maior nomeada de então, os Bergman, os Antonioni, os Fellini, os Rosselini, os Claude Chabrol...

João Barge - Ora um belo dia, tu, o Cap. Gomes de Araújo, cristianissimamente e sem que tivesse havido qualquer ofensa prévia, presumo eu, resolveste dar a outra face, a tua outra face: e surge o encenador Carlos Nery mais o projecto de criar de raiz um grupo de teatro.

Analisando o texto (Arménio Vicente e Maria Guilhermina)

Carlos Nery – Das conversas sobre Cinema passou-se ao Teatro... E em fazer-se Teatro... E em breve tínhamos uma bela PEDRA para fazermos uma bela SOPA: uma IDÉIA! Mas como conseguir os legumes, o sal e mais temperos, as ervas aromáticas? Não tínhamos, nem texto, nem palco, nem actores, nem técnicos, mas... começámos o trabalho!


3 – Onde se fala em “Audácia”, “Rebeldia”, “Ousadia” e até em “Coragem”...

Bombeiro (Maia Alexandre)

Rui Barbot - “A empresa de levar à cena A Cantora Careca, de Ionesco, ainda hoje retém, quando lembrada, uma intocada luz de audácia juvenil, e de discreta rebeldia”, escrevi lá em cima, no textinho a que pus o título de Verbete...

João Barge – O Luís Graça, aqui do blogue, já deu uma opinião semelhante...
“Parabéns pela ousadia e até coragem de levar à cena a peça do Ionesco”, disse num comentário ao P6183...

Maria Guilhermina, Rui Barbot e João Barge

Carlos Nery – Tem graça nunca pensei nesses termos. E quando fui o “motor” do empreendimento
admiti tudo menos ser necessário coragem para tomar tal iniciativa... Nunca senti a coisa assim... Mas, passados estes quarenta anos, pode ser... É que a obra de arte ultrapassa, muitas vezes, a intenção do artista, como sabemos.... Na altura, pensei que a nossa coragem residia unicamente em preferirmos aquele nosso convívio a eventuais “copofonia” ou “batota”, lá dentro, na messe...


4 – Traz Outro Amigo Também

Conversa com o público (João Manuel, Rui Barbot, Ana Maria, Carlos Nery, Maria Guilhermina, João Barge, Lisa Nunes, Maia Alexandre e Arménio Vicente). Notem-se os elementos de cena muito simples, as mesas de refeitório proporcionando o tablado e o conjunto de improvisados projectores.

João Barge – Do nada, na base de um amigo que traz outro amigo também, o grupo foi nascendo e fazendo o seu caminho, descobrindo e formando actores, inventando técnicos, confiando o guarda-roupa a senhoras sábias e generosas (1), improvisando palco e materiais de cena, propondo, discutindo, até se chegar à primeira peça (afastados o Auto da Índia e a Gota de Mel para evitar melindres maiores) - um texto de Eugène Ionesco - La Cantatrice chauve (A Cantora careca), publicado em 1950, um clássico do chamado Teatro do Absurdo.

Casal Martin e Mary (João Barge, Maria Guilhermina e Lisa Nunes)

Carlos Nery – Sugeri, efectivamente, esses dois textos: “A Gota de Mel” de Léon Chancerel (2) e o “Auto da Índia” de Gil Vicente. O primeiro é um poema lindíssimo que crítica o absurdo da guerra. O segundo, todos sabemos, evoca alguns aspectos negativos da nossa expansão marítima. Fidelidades e infidelidades de um casal separado pela ausência do marido na India, marido esse que, no regresso, se assume sem rebuços como um émulo, no sec. XVI, do já célebre Capitão Garcez... Pois bem, pediram-nos que fizéssemos outra coisa...
“Ah, grande Gil Vicente!”, lembro-me de ter exclamado...


5 – Dialogar no Caos



Mr. Martin (João Barge)
Mr. Smith (Rui Barbot)

Rui Barbot – E foi aí que irrompeu “A Cantora Careca”, de Eugene Ionesco. Teatro de Absurdo no teatro de Guerra? Tinha algum sentido...

Carlos Nery - “A peça que seleccionamos serve, porém,inteiramente a nossa finalidade: propor uma saída para eventuais conversações labirínticas ou marcar uma pausa na eternidade de certos jogos.
Que uma dúzia de pessoas haja decidido pôr em comum os seus esforços e tentar esta prova, pode ser em absoluto indiferente; pode causar surpresa, admiração e mesmo um certo alarme. Qualquer reação se justificará, se a não justificar o espectáculo que ides ver.
Gostaríamos, porém - e só formulamos este voto - que nos pudesse aproveitar a lição das personagens de Ionesco: - a lição de que, apesar de tudo, é possível dialogar no caos. E talvez nem seja preciso gritar muito alto."

Rui Barbot – Escrevi isso, em 1970, para o programa, não foi?


Mrs. Smith (Ana Maria)

Carlos Nery – Barbot, essa de que “ apesar de tudo, é possível dialogar no caos” era bastante ousada, naquele contexto... Não nos esqueçamos de que eram tempos em que se não dialogava com “terroristas”...

Rui Barbot - “E talvez nem fosse preciso gritar muito alto”, apetece insistir.

Carlos Nery – Valeu-nos a Comissão de Censura não ter alçada ali no Clube Militar...


6 - Un son mon ka ta toka palmu

Durante o ensaio (Ana Maria e Carlos Nery)

João Barge - Bem, mas escolhido o texto, mãos à obra. Ensaios diários, perceber o espectáculo no seu conjunto, cada um a aprender o seu papel, a trabalhar a voz, a decorar as marcações, a ganhar ritmo, a dar e receber as deixas tantas vezes até que a naturalidade apareça. E tu, agora Carlos Nery, metidos na gaveta os galões de capitão, a explicar, a corrigir, a incentivar, a acreditar e a fazer-nos acreditar. Um grupo unido na certeza de que todos juntos haveríamos de conseguir. Un son mon ka ta toka palmu (provérbio Bissau-guineense: uma só mão não chega para bater palmas).

Carlos Nery - Todas as portas se nos abriam. O tablado? Mesas de refeitório, presas solidamente, de topo para o público, ligeiramente inclinadas para permitir uma melhor perspectiva. Iluminação? Explica-se a um electricista militar, o soldado António Esteves, de pronto conquistado pelo nosso projecto, como se improvisa um orgão de luzes. E para projectores de cena, os usados, nas unidades de mato, para iluminar o terreno para lá do arame farpado.

João Barge – Lembram-se do Zé Camacho, o actor já falecido? Aquele dos “Malucos do Riso”... Também nos apoiou muito... Era cabo, julgo, no PIFAS... .

Carlos Nery – Talvez tenha nascido ali o seu gosto pelo teatro, quem sabe?
Seja como for conseguiu-se apoio para o som. Sonoplasta, o João Manuel, também soldado no PIFAS. O ecrã usado nas sessões de cinema é agora, para nós, um ciclorama onde é possível a projecção de tonalidades e sombras, numa feérie de cor e movimento. A imaginação, ali, anda à solta sem aceitar qualquer baia ou constrangimento...


7 – Um Anjo de Motorizada

Mrs. Martin (Maria Guilhermina)

João Barge - Claro que também houve alguns sustos. Uma das actrizes, por vontade própria ou alheia, resolveu renunciar e nós íamos ficando descalços ou, mais tropicalmente falando, perdidos no mato sem cachorro.

Carlos Nery – Vamos a sua casa, no recinto do Clube de Oficiais. Sou persuasivo, sou agressivo, sou convincente, sou duro. Nada a demove. É casada com um médico de nome, mobilizado para o serviço do Hospital Militar. Talvez o marido não ache graça ver a mulher metida em “teatrices”... A má fama dos “cómicos” vem de longe...

João Barge - Sentimo-nos derrotados...“Inventar” uma mulher capaz de representar o papel subitamente em falta não é fácil...

Carlos Nery – E é nesse ambiente de derrota que, subitamente, se ouve uma voz: “Tenho de ir ao Aeroporto”... É o Joaquim Fidalgo, um dos elementos do nosso grupo. Comprou uma motorizada, desloca-se facilmente. “Ao Aeroporto?” pergunto. “Sim, casei por procuração, vou buscar a minha mulher que deve estar a chegar, ainda passo por cá com ela... Até já”...
Instantaneamente todas as antenas se eriçam...

João Barge - E foi buscar a sua alma gémea, de motorizada...
Quando chegaram ao QG foram ambos devidamente emboscados, por quem de direito, e a actriz que faltava deixou de faltar.
Uma bem sucedida operação-relâmpago (sem baixas e que nos deixou em alta).

Carlos Nery – Quando os noivos chegam, vindos do aeroporto, vêem a sua lua-de-mel comprometida ou, pelo menos, adiada um bom par de horas. Eis-me, imparável, “vendendo”o que pretendemos fazer, aliciando a noiva para o nosso projecto... Acaba por aceitar e logo ali, naquela noite, se retomam os ensaios com a nóvel “actriz”...

João Barge - Foi a primeira e se calhar a última vez na minha vida que vi chegar um anjo salvador de motorizada...

Carlos Nery - Horas mais tarde, Maria Guilhermina, finalmente a caminho de casa, comenta não ter gostado de ser convencida tão facilmente...

João Barge – Tão facilmente, é força de expressão... Ela deu muita luta, se estou bem lembrado...

Carlos Nery - A “sopa de pedra” rescende sobre o lume forte que a aquece...


8 – Otto de Habsburgo e as Palavras que se não Esquecem

Otto de Habsburgo 

Carlos Nery - Na noite da estreia, depois do espectáculo, escondidos entre o ecrã e a parte posterior das mesas, cujos tampos foram chão de um palco, recebemos os abraços e as felicitações dos amigos e de muita gente que mal conhecíamos. Também a “actriz” desistente nos vem abraçar entusiasmada.

Rui Barbot - “Um jornalista estrangeiro, afecto ao regime português da altura, e que viajava em reportagem pelas três frentes de combate, tendo assistido a uma das récitas daquele espectáculo vanguardista, levantado na maior economia de meios, viria felicitar-nos efusivamente, a nós, artistas mais ou menos improvisados, com palavras que não se esqueceriam. Chamava-se o senhor Otto de Habsburgo, e representava tão-só a última candidatura ao trono imperial austro-húngaro, esse mesmo que com Carlos V, rei de Espanha, se arrogara um domínio de além-mar que apenas com Manuel I, rei de Portugal, por algumas décadas partilharia.”

João Barge – Otto de Habsburgo garantiu-nos conhecer bem o teatro de Ionesco, ter assistido já a várias versões de A Cantora Careca e nunca ter visto uma encenação da peça tão de seu agrado e tão bem representada...

Carlos Nery – Talvez estivesse a ser sincero, não sei...

Rui Barbot – Parecia sincero...

João Barge – Sei lá...


9 – Aristides de Sousa Mendes

Carlos de Áustria

Carlos Nery - Era o filho mais velho de Carlos de Áustria, último soberano do Império Austro-Hungaro que, tendo sido forçado a abdicar durante a Guerra de 1914/18, se fixou na Ilha da Madeira tendo vindo a falecer aí, em 01 de Abril de 1922. Está sepultado na Igreja de Nossa Senhora do Monte, sendo alvo de grande devoção popular. Foi beatificado pelo Papa João Paulo II em 03 de Outubro de 2004.

Rui Barbot – Otto de Habsburgo foi uma das primeiras pessoas a quem Aristides de Sousa Mendes, contrariando ordens expressas de Salazar, passou o visto necessário para poder passar a fronteira Franco-Espanhola a caminho de Portugal. Sendo pretendente ao trono do Império Austro-Hungaro tinha a cabeça posta a prémio por Hitler. De Portugal passou aos Estados Unidos da América.

João Barge – Na altura Aristides de Sousa Mendes acabou por conceder vistos a cerca de 30000 pessoas, entre elas 10000 judeus. Além dos vistos passados a Otto de Habsburgo e às pessoas que com ele fugiam, fê-lo também a membros do governo belga e luxemburguês, à Grã-Duquesa Charlotte do Luxemburgo, ao Rabino de Antuérpia e, uma coisa que pouca gente sabe, a Salvador Dali.

Rui Barbot – Mas que fazia em Bissau, em Abril de 1970, Otto de Habsburgo? Apresentava-se como jornalista, segundo julgo. Para que jornal escrevia?


10 – Le Pinay Circle, António de Spínola e Otto de Habsburo

Carlos Nery – Na Net há imensas referências acerca da sociedade secreta Le Circle (ou The Cercle) que dizem ter sido criada pela CIA. Veio a ser designada como Pinay Circle, antes de 1990. O Pinay Circle teria sido criado em 1969 por Antoine Pinay, Jean Violet e Otto de Habsburgo. O seu objectivo seria, na época, o combate ao comunismo. Pertenceriam ao Pinay Circle políticos, banqueiros e intelectuais europeus e americanos.

João Barge - A novidade é que, em vários sites sobre o assunto, se afirma que António de Spínola pertencia, ele próprio, ao Pinay Circle.

Carlos Nery - Nuno Barbieri, outro amigo que fiz em Buba, rejeita esta hipótese. Segundo ele, Spínola pertenceria sim à Maçonaria nunca podendo, por isso, estar ligado a uma Sociedade Secreta com ligações à Oppus Dei, como seria o caso da Pinay Circle.


11- Questões de Segurança, disseram-nos...

João Barge – Estreámos no primeiro fim-de-semana de Abril, à noite e ao ar livre, e foi um êxito. Um êxito tão grande que logo nos pediram para o repetir. Se a memória não me falha, acabámos por fazer, naquela primeira quinzena de Abril, uma série de quatro espectáculos.

Carlos Nery – No primeiro fim-de-semana para oficiais e suas famílias, no fim-de-semana seguinte para os sargentos. Ainda pensámos trazer também algumas unidades da guarnição de Bissau ao Clube Militar. Não foi considerado possível.
Quisemos, ainda, montar o dispositivo cénico no Pilão para a população africana.

João Barge - Não tenho dúvidas que teria sido um êxito. Mas... Nem pensar nisso! Os problemas de segurança seriam muitos, disseram-nos.

Rui Barbot - Descobrimos na cidade uma colectividade que tinha um pequeno palco numa sala de festas. As responsáveis pelo espaço, se estou bem lembrado, religiosas católicas, tinham-no reservado para outros eventos. Não se mostraram interessadas na nossa iniciativa nem disponibilizaram datas..

Carlos Nery - Aliás a Ccaç 2382, que eu comandara, regressara já a Portugal, em Março. Tinha-me oferecido para substituir o Alferes mais antigo, que deveria ter ficado com o Sargento que respondia pela companhia, a ultimar burocracias, entregas de material e contabilidades. Mas o meu objectivo era, principalmente, terminar o trabalho teatral a que me dedicara. Não podia, porém, prolongar por mais tempo a minha comissão na Guiné...


12 – Uma Ponta de Orgulho, Estamos Vivos...

Casal Martin (João Barge e Maria Guilhermina)

João Barge - Ionesco considerava que o seu teatro era sobretudo insólito, em vez de absurdo.
Acho que tinha razão, o que nós fizemos foi algo de insólito, naquele tempo e naquele lugar.
Que ninguém me leve a mal mas, olhando para trás, não posso deixar de sentir uma ponta de orgulho, por mim e por todos os companheiros de viagem.

Carlos Nery - Para nós, expressarmo-nos em termos de arte, era pôr de lado a guerra e libertar a imaginação soltando-a rumo ao céu pleno de estrelas da Guiné! Uma criação artística tem sempre um alvo... Mas, desta vez, julgo que, no fundo, o alvo éramos nós próprios...

Mário Cláudio – Insisto: “Tratava-se de descerrar uma certa janela, propiciadora de mais funda respiração, no quadro constritor da guerra, e com tal gesto propunhamo-nos prestar serviço aos camaradas que, interessados em pensar para além daquilo que constituía motivo de colectiva apreensão, poderiam ver no teatro moldura adequada ao exercício da sua inteligência, e da sua fantasia”.

João Barge - Creio, a esta distância, que o entusiasmo posto por todos, foi uma forma de derrotarmos aquela guerra que nos consumia. De nos dizermos: estamos vivos, somos capazes de pensar, de sentir e de transmitir emoções.




A capa (autoria de Ruy Lobato) e as duas primeiras páginas do programa
Clicar nas imagens para ampliar


13 – O Drama de Jolmete

Carlos Nery - Cerca de uma semana depois do nosso último espectáculo, deu-se o drama de Jolmete, junto ao Rio Cacheu. O assassinato dos Majores Passos Ramos, Pereira da Silva e Magalhães Osório, do Alferes Palmeiro Mosca e dos Militares que os acompanhavam, emocionou toda a gente. Nunca mais se jogou o Bingo e julgo que, a ter acontecido algum tempo antes, ter-nos-ia levado a desistir da apresentação da “Cantora Careca” em Bissau.



************

(1) – Sobras do fabrico de tecidos em fábricas texteis portuguesas eram postas à venda no comércio da Baixa de Bissau, muito baratas. Foram comprados retalhos diversos e com eles se costurou o guarda-roupa do nosso espectáculo.

(2) - “A Gota de Mel” foi um dos textos utilizados por António Pedro, em 1953, quando começou a trabalhar com os amadores do Teatro Experimental do Porto. Assisti ao espectáculo de que o poema fazia parte. Fiz parte do TEP, por essa altura, participando nas peças Antígona, na versão do António Pedro, e Macbeth, também traduzida por António Pedro e ambas encenadas por ele em 1956. Quando a Companhia se profissionalizou passei a trabalhar integrado no grupo dos alunos. Contudo, assistia avidamente aos ensaios dos profissionais até que fui chamado para o COM em Vendas Novas em 1957. No início dos anos 60, em Coimbra, integrei o CITAC participando em vários espectáculos, dirigidos por Luís de Lima, entre eles o Tartufo, de Moliére.

Já em Lisboa, na Guilherme Cossul, participei na primeira apresentação de Harold Pinter em Portugal, em 1963, O Monta Cargas, tradução de Sttau Monteiro, encenação de Jacinto Ramos, cenários de João Vieira. Actores, Filipe Ferrer e Carlos Nery. (Ver minha entrevista a Jorge Silva Melo na revista dos Artistas Unidos, n.º 8 de Julho de 2003. Consultar também http://www.haroldpinter.org/plays/frn_dumbwaiter_po63.shtml

Regressado da Guiné, em Maio de 1970, fiz parte da Direcção do 1º.Acto Clube de Teatro, até 1973. Voltei a encenar aí A Cantora Careca e, em seguida o Woyseck,de Büchner (espectáculo que não chegou a ser levado ao público por ter sido alvo de cortes substanciais no ensaio de censura).
Depois do 25 de Abril, em 1976, encenei no Sindicato dos Bancários do Sul e Ilhas, em Lisboa, A Excepção e a Regra de Bertold Brecht.

Trabalhei, a seguir, em 1977 e 78, no Teatro da Cornucópia, como actor. (http://www.teatro-cornucopia.pt/htmls/conteudos/EElVkyZApAoiXxluKM.shtml)

Actualmente pertenço à Companhia Maior do CCB.(http://www.ccb.pt/sites/ccb/pt-PT/Programacao/Teatro/Pages/BELA%20ADORMECIDA%2028%20A%2031%20DE%20OUT%20DE%202010.aspx).

Fotos dos ensaios e do espectáculo: © Carlos Nery (2010). Direitos Reservados
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 20 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6876: (Ex)citações (94): A maioria silenciosa do nosso blogue (Carlos Nery)

Vd. também postes de:

3 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6670: V Convívio da Tabanca Grande (12): Caras novas (Parte III): O João Barge, da CCAÇ 2317, que foi meu actor em A Cantora Careca, com o Rui Barbot/Mário Claúdio... (Carlos Nery)
e
24 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6781: Controvérsias (98): Quem não se sente... não é filho de boa gente (Carlos Nery)

terça-feira, 8 de junho de 2010

Guiné 63/74 - P6561: Histórias de Carlos Nery, ex-Cap Mil da CCAÇ 2382 (3): Fui o criador do emblema da Companhia, e gosto

1. Em Mensagem de 4 de Junho de 2010, o ex-Cap Mil Carlos Nery, Comandante da CCAÇ 2382, Buba, 1968/70, conta-nos como surgiu a ideia de criar o emblema da sua Companhia e as reacções ao Zé do Olho Vivo, símbolo do militar atento e corajoso, capaz de se suplantar nos momentos mais difíceis.


Emblema da CCAÇ 2382 de autoria do seu Comandante o ex-Cap Mil Carlos Nery.
Divisa: "Por estradas nunca picadas, Por picadas nunca estradas"



Foi o Alf Curado e Silva quem me disse: "Capitão, a rapaziada gostava de ter um emblema que pudesse pôr sobre o bolso da camisa da farda e que identificasse a Companhia..."

Eu era alérgico a grandes aparatos assumindo falsos "espíritos de corpo" mas naquele momento senti que, no nosso caso, havia já bastante união e camaradagem para podermos usar algo que nos identificasse. Entrei no meu gabinete, puxei pelo meu velho jeito para a bonecada e, durante umas horas daquela noite de Buba, lá estive, de esferográfica em punho, puxando pela imaginação.

Achei que devia homenagear o soldado comum, possuidor daquela sagacidade, coragem e suficiente boa disposição que lhe permitiria voltar aos braços dos seus pais, das suas noivas, dos seus familiares, terminados os cerca de dois anos de Guiné. Fiz o desenho sem uma emenda, acho que estava inspirado... Depois foi encomendar os guiões, crachás e emblemas e... Creio que foi um sucesso!...

Quando aguardávamos embarque, em Brá, ainda apareciam militares de outras unidades, que eu nem conhecia, pedindo-me, por tudo, um guião! Chegaram-me também alguns reparos: parece que eu não havia respeitado as regras de heráldica militar! Claro que isso foi o que menos me preocupou... O engraçado é que descobri, recentemente, que a maioria da rapaziada nem sabia que tinha sido eu o autor do desenho... Tudo bem!... Gostaram, não foi? Era o mais importante...

Este foi o comentário que deixei no Poste 2791 do Furriel Manuel Traquina da CCAÇ 2382. Repararam no minha satisfação? Mas há certos assuntos, próprios da intimidade da caserna, que ficam por lá... O Capitão é o último a saber... Alguns só me foram contados há pouco tempo quando já se não receava a "minha justa ira", para usar a expressão tão ao gosto de Carlos Fabião...

Vem isto a propósito do distintivo da CCAÇ 2382, desenhado por mim numa serena noite de Buba...

O assunto assemelha-se a uma cebola a que se vão tirando camadas para surgirem outras mais profundas...

Primeiro descobri que muitos militares, o Traquina, por exemplo, não faziam ideia de quem tinha sido o autor do desenho... Mas logo esclareci o assunto. O Traquina ainda teve tempo de modificar o texto do Capítulo "O Distintivo da Companhia" do seu livro Os Tempos de Guerra,  dando o "seu a seu dono" no que respeita à autoria do Distintivo... Confesso que fiquei mais sossegado... E logo me agarrei a outra tábua de salvação que volto a transcrever: "Tudo bem!... Gostaram, não foi? Era o mais importante..."

O pior, amigos, é que já não estou tão confiante...

Vou contar:

Este ano, no almoço que reuniu as CCAÇ 2381 e CCAÇ 2382, eis-me a falar com o Cancela, soldado da minha companhia e membro da Tabanca Grande... A conversa andou por estes temas, o Cancela entusiasmado com o nosso blogue e entusiasmando-me a colaborar também nele. Não sei porquê falo no distintivo... Que pensava escrever qualquer coisa sobre ele... Na expressão do Cancela passa uma nuvem de desagrado... "Aquele emblema"... E num trejeito desagradado: "Os Palhaços"...

Como podem calcular,  isto é demais para um homem só... Afinal nem toda a gente gosta da minha obra-prima... Claro... Afinal o não cumprimento das regras e do espírito da heráldica militar tem o seu preço...

Olho melhor para o distintivo... Bem... De facto aquilo tem pouco de marcial... "Por Estradas Nunca Picadas"... "Por Picadas Nunca Estradas"... Uma gracinha nada mobilizadora de uma atitude bélica... E a figura central? O tal "Zé do Olho-Vivo"? Um boneco engraçado, talvez... Mas não teria sido preferível colocar ali um bicho? Um Leão, uma Pantera ou um Tigre? Ou até um Gato, de preferência Negro? Olha,  uns camaradas nossos optaram por ser os "Morcegos de Nhala"... Bom, também... Quanto aos amigos da CCAÇ 2381 são os "Maiorais"... Que tal?... Há um sugestão de autoridade, no Oeste... Outros levam lenços de côr mal embarcam: "Os lenços Vermelhos, Azuis, Verdes, sei lá... Côr-de-rosa, acho que não"...

Mas essa do Zé do Olho Vivo... Ainda por cima ostentando um nariz redondo e vermelho... Sim... Eu estava a pedi-las naquela noite, em Buba...

Bem,  a idéia era ir buscar uma inspiração talvez ao Bordalo, à figura do Zé Povinho... Que se identificasse com o Zé Soldado, de olho alerta, atento, corajoso, capaz de passar além das minas e armadilhas existentes nas picadas da vida...

Olha: Eu gostei... E gosto... E aqui já não há mais camada que me incomode... Desculpa lá, ó Cancela, soldado amigo... Eu gosto!
__________

Nota de CV:

(*) Vd. poste de 29 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6489: (Ex)citações (63): A minha homenagem à enfermeira pára-quedista Ivone Reis que ficou connosco, em Contabane, a cuidar dos feridos graves (Carlos Nery)

Vd. poste de 23 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2791: Álbum das Glórias (46): O distintivo da CCAÇ 2382, 1968/70 (Manuel Baptista Traquina)

Vd. último poste da série de 27 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6479: Histórias de Carlos Nery, ex-Cap Mil da CCAÇ 2382 (2): Noite longa em Contabane