Mostrar mensagens com a etiqueta CCAÇ 2616. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta CCAÇ 2616. Mostrar todas as mensagens

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Guiné 61/74 - P16948: Brunhoso há 50 anos (11): Crasto, Fraga do Poio e Rio Sabor (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

Rio Sabor


1. Em mensagem do dia 7 de Janeiro de 2017, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), volta à sua série Brunhoso há 50 anos, desta vez para nos falar do Crasto, da Fraga do Poio e do Rio Sabor.


Brunhoso há 50 anos

11 - Crasto, Fraga do Poio e Rio Sabor

No lugar do Crasto, que ocupa uma colina fronteira à aldeia, identificada na fotografia, segundo a memória transmitida por muitas gerações ao longo dos séculos, que se confunde com a lenda, terá existido uma povoação romana. Quando eu era mais novo vi lá algumas vezes pedaços de telhas que os lavradores desenterravam ao lavrar as terras.

O Crasto, que dominava toda a paisagem em redor numa lonjura de vistas variável, a menor nunca inferior a dois quilómetros e a maior superior a 50, era um sitio estratégico para os seus habitantes se precaverem e poderem defender de ataques surpresa de possíveis invasores, nos tempos em que as guerras de conquista e reconquista eram constantes. Existe em muitas povoações e nalgumas denomina-se “Castro” pois são palavras com a mesma raiz etimológica e significado. Era um lugar fortificado num sitio estratégico, entre os povos romanos ou pré-romanos. Hoje está morto e enterrado debaixo do pó da terra que os ventos transportam e que se foi acumulando ao longo de centenas de anos, tendo os lavradores lavrado essa terra que o cobre para semear trigo e onde algumas árvores foram crescendo, semeadas pelas aves e pelo vento. A sua forma cónica e a proximidade da aldeia, associada à lenda doutras eras, dá-lhe uma beleza um pouco familiar, misturada com uma certa nostalgia de um passado desconhecido.


 Duas perspectivas do Lugar do Crasto

Com a progressiva pacificação da Península depois da ocupação dos romanos, invasões dos bárbaros, os Suevos, os Vândalos e os Visigodos, e das invasões dos muçulmanos, provavelmente ainda muito antes do inicio da nacionalidade, a povoação terá sido construída no lugar onde hoje se encontra, um sitio mais baixo, entre colinas, mais protegida dos ventos frios e agrestes do Inverno e do inferno dos calores estivais. Uma planície mais verdejante, entre pequenos montes e colinas, onde nascem os ribeiros, mais abrigada dos ventos e das intempéries.

Já longe da aldeia, passando pelos montes de sobreiros e entrando na zona das oliveiras, quando os terrenos começam a descer em declive na direção do Rio Sabor, encontramos a Fraga do Poio, um monumento natural que marca a paisagem pela sua dimensão. A Fraga do Poio é um enorme penhasco de xisto com cerca de 300 metros de altura e com uma largura, na base, superior, formando um penedo, que impõe a sua presença em toda a paisagem em redor, como se fosse uma enorme catedral de pedra erguida em tempos antigos a um Deus da Terra menos omnipotente e mais próximo dos mortais do que o Deus dos Céus que, na sua ânsia de poder, quis ser Deus dos Céus e da Terra. Sinto dificuldade em definir o sentimento que os brunhosenses sentiam e sentem em relação a essa fraga gigante: respeito, temor, veneração, exaltação, vaidade, orgulho? Talvez um pouco de tudo isto mesclado com a simplicidade e a naturalidade que foram sempre características dos meus conterrâneos.


 Vistas da Fraga do Poio

Sem saírem da povoação, tinham à vista o Crasto que lhe povoava a imaginação dum passado de gentes que confundiam com romanos e mouros, mais mouros que foram os últimos a passar por lá e dos quais alguns resquícios da memória coletiva conservavam lembranças difusas envoltas em lendas.

Descendo por caminhos ou carreiros de terra batida, em direcção ao rio Sabor, a três quilómetros, podiam debruçar-se de cima da Fraga do Poio e apreciar as vistas do rio serpenteando no vale, a cerca de dois quilómetros, brilhando como prata em dias mais claros de sol ou como chumbo em dias mais escuros de inverno .

 Panorama a partir da Fraga do Poio

Hoje para quem o vê e admira, o Sabor parece um rio grande, que a barragem a jusante, perto da foz, converteu num enorme lago de águas paradas que irá aumentar ou baixar o seu volume conforme as necessidades das barragens hidroeléctricas do Rio Douro, no seu caminho para a Foz do Porto, em direcção ao Atlântico. O Sabor não será mais aquele rio furioso e selvagem dos Invernos chuvosos do Nordeste ou calmo e com tão pouca água no Verão, que se deixava atravessar a vau nalgumas partes do seu percurso. Com a construção da barragem, o Sabor deixou de estar ao serviço dos habitantes das aldeias das suas margens, cada vez mais desertas, para se transformar num rio moderno para produção de electricidade para os grandes burgos. Entrou na era da globalização tal como a maioria dos habitantes de Brunhoso e das outras terras pequenas atraídos pelas grandes cidades do país e do estrangeiro, que ainda antes da construção da barragem já o tinham abandonado .

As pessoas crescem e fazem-se na contemplação do meio ambiente em que são criadas e é ele que que lhes vai ajudar a moldar o carácter e a personalidade. O Crasto, a Fraga e o Sabor irão marcar para sempre as gentes de Brunhoso. A colina arredondada e elevada do Crasto, tão perto da povoação, com vestígios doutro povoado mais antigo, deu-lhes uma dimensão difusa da longevidade que transportam os séculos e da história que os homens escreveram quando se espalharam pela terra. A Fraga do Poio, erecta, firme e imutável na sua consistência e rigidez de pedra, com milhões de anos, dá-lhes a ideia confusa e mal assimilada, das medidas e dum tempo astral, quando tempo e distâncias se confundem e se transformam em crenças que a pouca ciência ou a ignorância dos homens não conseguem decifrar.

O rio Sabor, antes da construção da barragem, suave e transparente no Verão, cheio, escuro e apressado no Inverno, vai dar-lhes a beleza fluída e envolvente ora calma e transparente no Verão, ora furiosa e temerosa no Inverno, da água, essa mãe primordial que tanto cria, alimenta e afaga os outros elementos, como os destrói na sua passagem impetuosa.

 Rio Sabor

Há cinquenta anos, quando Brunhoso ainda estava povoado de gente a viver num mundo mais difícil, primitivo e antigo, os seus habitantes formaram pois o carácter sob a influência da colina do Crasto que lhes deu o sentido do passado e da história, da Fraga do Poio que lhes transmitiu dureza e algum sentido de grandeza, do rio Sabor que lhes deu outra dimensão da beleza e da vida.

É tão difícil utilizar as palavras mais apropriadas para definir a luta e a comunhão entre a natureza e esses antigos habitantes da história de Brunhoso, que antecedeu a minha partida para a Guiné.

Peço desculpa, se a emoção, de quem ainda viveu parte dessa história, lhe dificulta a razão e lhe prejudica a objectividade e imparcialidade.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 28 de outubro de 2016 > Guiné 63/74 - P16651: Brunhoso há 50 anos (10): As casas (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Guiné 63/74 - P16651: Brunhoso há 50 anos (10): As casas (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

Brunhoso - Com a devida vénia


1. Em mensagem do dia 18 de Outubro de 2016, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), volta a falar-nos da sua terra natal, Brunhoso, há 50 anos.


Brunhoso há 50 anos

10 - As casas

As primeiras fotografias procuram retratar parte dos muros que formam um círculo, dentro dos quais havia uma casa antiga e grande e outros edifícios anexos, que ainda conheci em ruínas há já mais de cinquenta anos, na rua do Fundão. Hoje da casa e das dependências agrícolas nada resta e o terreno onde os edifícios estavam implantados está invadido por silvas e fenanco (feno alto).

O homem que está junto do prédio é o seu actual proprietário, o meu amigo Joaquim Cordeiro, mais conhecido por Joaquim Passarinho, que a comprou aos seus últimos herdeiros há cerca de trinta anos.



O Joaquim Passarinho é um monumento vivo da aldeia pela sua energia e pelo trabalho incansável que tem desenvolvido ao longo de mais de sete décadas, em todas as áreas da agricultura ao serviço das casa grandes e das mais modestas e como emigrante em Espanha e em França. Lá fora em trabalhos duros, como muitos dos seus conterrâneos, ganhou muito dinheiro que aplicou totalmente na compra de prédios urbanos e rústicos da aldeia, passando a trabalhar na casa agrícola que formou tendo melhorado muitos terrenos com plantações e outros benefícios. Herdou a altura, a energia e a alcunha do seu pai o Ti João Passarinho que trabalhou quase até à hora da morte, já depois dos 80 anos.


O meu amigo Joaquim, também conhecido por Jacob, sendo um efabulador com uma imaginação sempre activa ao comprar as ruínas desta casa grande, ele que viveu na infância e na juventude, quase paredes-meias com ela, numa casa pequena e pobre, terá talvez pensado construir nelas um grande castelo que assombrasse as gentes das redondezas, tal como Luís da Baviera, esse rei sonhador que construiu aquele enorme Castelo de Neuschwanstein, castelo de duendes e fadas, num penhasco dos Alpes Bávaros.
Há homens que têm sonhos tão loucos e grandiloquentes, que podem nunca os ver realizados, mas são felizes enquanto convivem com eles.

A minha imaginação tinha dificuldade em preencher aquele espaço de casario em ruínas enorme e murado. Tal como eu, as gentes da aldeia, que também não conheciam a sua história, nem os seus moradores que se adivinhavam ricos, teriam a mesma dificuldade em compreender aquelas paredes mortas e abandonadas ao vento, ao sol e à chuva, e talvez por isso deram-lhe o nome de “Casa das Feiticeiras”. Naqueles verdes anos, ainda a navegar entre o sonho e a realidade, embora descrente de fadas, feiticeiras e zângãos, sentia que havia uma magia fantasmagórica naquele espaço abandonado, formado por esses muros altos e por essas construções em ruínas, onde as almas dos seus mortos esquecidos pareciam querer falar connosco. Constava-se que as feiticeiras saíam algumas noites, a desoras e gostavam de fazer bailes nessa casa grande, decrépita e abandonada ao luar ou na escuridão da noite.

Sendo conhecida como "Casa das Feiticeiras", era uma denominação que as pessoas aceitavam, sem procurarem outra, já que pelo mistério que infundia, se coadunava bem com o seu aspecto.

Na “troça” de pedra que encima o portão da entrada, sustentada por “ombreiras” de grandes pedras de xisto, consta uma data que só se consegue ler se subirmos próximos da inscrição já que está muito enegrecida pela passagem dos anos. Na inscrição, bem nítida, para quem se aproxima, utilizando uma escada, está a data de 1698 (MDCXCVIII) em algarismos arábes. Com a maior parte do muro exterior ainda em pé, penso que é a edificação mais antiga da aldeia. Desconhece-se quem a terá construído ou quem habitou esse enorme casarão que mais parecia uma fortaleza com muralhas tão altas, sabe-se apenas que o seu último proprietário terá sido o Sr. João "Lagoa" Ribeiro, viúvo de uma senhora de apelido Neves Ferreira, que o teria herdado dos seus pais. É muito duvidoso que essa família o tenha construído pois é voz corrente na terra que era originária doutra aldeia que dista 20 quilómetros de Brunhoso. Dessa família ainda há descendentes na aldeia embora não haja ninguém que tenha herdado esse apelido porque o último dos seus antepassados varões morreu há mais de 60 anos, solteiro e sem filhos.

A casa grande retratada na foto que se segue, foi mandada construir na década de 40 do século passado pela Dona Adelaide das Neves Ferreira, a última descendente conhecida dessa família que conservava ainda esse apelido. Era irmã do último Neves Ferreira que ainda terá vivido com ela ocasionalmente alguns anos.


Recordo-me desta senhora como de uma castelã nos seus domínios pois ela, que era solteira, vivia sozinha com as criadas, nessa casa imensa um pouco semelhante às casas solarengas que os nossos “brasileiros” ricos mandaram construir no início do século vinte. A casa foi construída por um lendário pedreiro de Brunhoso, de apelido Moredo, depois de ter regressado ainda novo do Brasil, para onde voltaria novamente alguns anos após a sua construção para garantir o sustento e o futuro dos seus onze filhos. Com muito trabalho, génio, conhecimentos adquiridos e com a ajuda dos filhos, esse pedreiro, quase analfabeto, fundou em S. Paulo uma firma de construção e importadora e exportadora de pedras, sobretudo mármores e granitos, de projecção internacional.

A Dona Adelaide era uma mulher afável, elegante e tão alta que os conterrâneos se referiam a ela com a alcunha de “A Longa”. Alguns mais antigos ouviram aos seus pais que na juventude se terá perdido de amores por um moço de lavoura da casa e quando a família lhe proibiu esse devaneio amoroso, jurou que nunca casaria com outro homem.

Nesses tempos antigos, apesar de muitas leis, muitos tabus e proibições, a atracção entre os sexos, sempre levou alguns enamorados/as mais fogosos e aventureiros a não respeitar essas barreiras e a entregaram-se a esse sentimento, por vezes transformado numa paixão tão violenta que apelava à comunhão de corpos e almas. A literatura fala-nos de muitas dessas paixões impossíveis por vezes trágicas, sendo a mais emblemática a de Romeu e Julieta.

Essa sociedade antiga, quase medieval de terratenentes, tinha regras próprias, muito rígidas sobre o amor, as paixões e o casamento. O amor era um bem somente transacionável e permitido entre os membros da mesma classe, com o mesmo poder económico e social. Quando eram homens ricos ou filhos de ricos atraídos pelas “criadas” (empregadas domésticas) , ou outras mulheres “pobres”, solteiros ou já casados muitas vezes conseguiam estabelecer ligações com essas mulheres, à revelia dos bons costumes e da família, muitas vezes ilegais, outras vezes adúlteras, segundo as leis da igreja e segundo a lei civil, que o tempo e o sentido prático das gentes, se encarregaria de "legalizar".

Quando eram mulheres ricas atraídas por criados de lavoura ou de uma classe económica mais baixa, raramente originavam relações esporádicas ou duradouras, dado o estatuto de inferioridade de que a mulher gozava que lhe dava pouca liberdade e autonomia.

Não casou, teve uma vida longa a ministrar conhecimentos de costura, tear, bordados e outros conhecimentos práticos às raparigas da aldeia.
Tratava também do arranjo da igreja, das capelas e dos santos, nesse tempo ocupações próprias para sublimar as frustrações das mulheres solteiras da sua condição social, privadas das alegrias próprias de quem constitui família. Ainda garoto entrei algumas vezes nessa casa grande, que me despertava bastante curiosidade, na companhia de um sobrinho neto da proprietária que por ironia do destino, continua ainda solteiro, tal como a tia-avó e vive sozinho nela, já restaurada e com algumas alterações no seu interior.

Há outras casas na aldeia que merecem um passeio, uma reflexão sobre o seu passado, as transformações que sofreram, o seu estado de conservação e os seus moradores mais antigos ou actuais.
Percorro as suas ruas que são também ruas do meu passado, as pedras que piso e as que se erguem em altura, com tanta história para contar, estão cada vez mais caladas porque as vozes do povo são pouco audíveis, o chiar dos carros de bois são um som que se perde no tempo e na distância e o chilrear dos pássaros cada vez mais monótono parece uma sinfonia triste.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 12 de julho de 2016 > Guiné 63/74 - P16297: Brunhoso há 50 anos (9): O Ciclo do Pão (2) (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

domingo, 14 de agosto de 2016

Guiné 63/74 - P16388: Blogoterapia (280): Amizades e Memórias que o tempo vai esfumando (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

Foto: Com a devida vénia à Câmara Municipal do Porto


1. Em mensagem do dia 11 de Agosto de 2016, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), fala-nos das Amizades e Memórias que o tempo vai apagando.

 
AMIZADES E MEMÓRIAS QUE O TEMPO VAI ESFUMANDO

Já quase no final da minha caminhada, no Parque da Cidade do Porto, fui abordado por um cavalheiro, que vinha em sentido contrário, que me perguntou educadamente pela minha naturalidade. Eu disse-lhe qual era e ele disse-me que se lembrava de mim depois muitos anos já passados, talvez cinquenta e cinco, e que eu o tinha iniciado na aprendizagem da língua francesa, e para minha surpresa começou a contar em francês: un, deux, trois, quatre, cinque...

Era um homem afável, de estatura média, que denotava além de uma boa dieta alimentar, cuidados físicos para manter a forma. Quis corresponder à simpatia demonstrada por ele e ao apelo que fazia à minha memória, mas para meu desgosto e dele possivelmente, não me fazia lembrar ninguém do meu passado.

Para avivar a minha memória ele disse-me que me tinha conhecido na Vila, na casa de uma tia dele, irmã da mãe, casada com um alfaiate onde eu estava “ aboletado”, foi o termo que ele usou, quando eu estudava no colégio. Eu teria catorze ou quinze anos e ele, pela diferença de idades de que falamos depois, teria sensivelmente metade da minha idade.

Ele, numa tentativa de acordar a minha memória adormecida, ainda me disse que era o Emílio e que a mãe dele se chamava Luísa.
Tinha seguido a carreira militar, tendo entrado na Academia Militar onde ainda estava quando aconteceu o 25 de Abril e a independência das colónias. Atingiiu o posto de coronel, actualmente já está reformado.

Eu que por um preconceito comum na nossa sociedade, justificado ou não pelo comportamento dos oficiais superiores, distantes e autoritários por formação, ou deformação, profissional mesmo quando abandonam a vida militar, fiquei muito sensibilizado por ver um coronel despir a farda militar, calçar as sapatilhas e vestir os calções de garoto, para me cumprimentar, a mim que sou um civil desalinhado e sem condecorações, e fui oficial miliciano por um acidente da história. Falámos doutras circunstâncias das nossas vidas e despedimo-nos com um até breve, numa próxima caminhada no Parque da Cidade, que ele também frequenta com assiduidade.

Abandonei o Parque da Cidade pesaroso e consternado por não ter correspondido às expectativas dessa amizade prolongada, que eu esqueci e que esse menino, hoje coronel reformado, conservou para sempre. Pus-me a contar em francês, nessa língua que eu sempre amei, como quem reza, a pedir perdão pelas falhas da minha memória traiçoeira.

Nas horas e nos dias seguintes procurei forçar a minha memória relapsa, para me abrir caminho através do nevoeiro dos dias cinzentos, dos dias tristes e dos dias escuros do meu passado. A revelação aconteceu e voltei a rever esse rapazinho, simpático e curioso, que me adoptou como o irmão mais velho, com mais conhecimentos do que ele, pois já estudava francês, uma outra forma de falar com palavras diferentes. Palavras tão diferentes que ele iria inscrever na memória para a vida inteira, associadas a esse adolescente de catorze anos que lhe tinha dedicado alguma atenção e era tão alto como o pai dele.

As crianças gravam para uma vida inteira nas folhas brancas da sua alma os conhecimentos que elas misturam com os afectos que recebem dos pais, dos avós, dos irmãos e dos amigos .

Tudo é real menos os nomes do coronel reformado e da mãe dele. Para ele e para a mãe, que recordo como uma senhora simples, simpática e delicada e que ainda é viva, conforme ele me contou, desejo uma longa vida com muita saúde.

Este episódio, na falha de memória que assinala, é semelhante a outros que me têm acontecido nos últimos anos quando comecei a despertar com nostalgia na procura dos meus velhos camaradas e amigos da Guiné. Alguns que eu tinha esquecido e não consigo lembrar, lembram-se de mim com pormenores que eu já tinha esquecido.
Um deles com quem convivi diariamente pelo menos dois meses e que encontrei num almoço da companhia 44 anos depois, cumprimentou-me com muita familiaridade e eu disse-lhe que nunca o tinha conhecido. Ele disse-me que se lembrava bem de mim e que eu nesse tempo usava bigode. Não me lembrava de alguma vez ter usado bigode. No ano seguinte, noutro almoço ofereceu-me uma fotografia onde estávamos os dois entre outros oito ou dez a jantar e eu com um bigode, que não era de cavalaria mas de infantaria para não renegar a minha Arma.
Noutro caso sou eu que me lembro muito bem de um alferes de outra companhia que reforçou a minha durante dois meses, que dormiu no meu quarto durante esse tempo, com quem tive uma boa relação de amizade. Para meu desgosto, ele apagou-me completamente da memória sem se dar conta pois ele era um bom camarada e acredito que pela vida fora conservou as boas qualidades que lhe reconheci, quando jovem.

Ao camarada do destacamento de fuzileiros com quem falei por telefone este ano, e que me disse que se lembrava bem de mim, das muitas refeições que fizemos na messe, não tive coragem de lhe dizer que não me lembrava nada dele e menti-lhe.

Enfim quando estivemos em África, ao tempo na chamada província portuguesa da Guiné, não trouxemos a imagem de elefantes vivos, que já não havia, nem a sua memória prodigiosa. Viemos com o cérebro esturricado e zonzo pelo sol ardente dos trópicos, pelo calor do álcool que o adormecia, pelo estrondo das granadas e das bombas e pelo matraquear das metralhadoras.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 12 de agosto de 2016 Guiné 63/74 - P16384: Blogoterapia (279): A odisseia da minha prótese (Joaquim Luís Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728)

terça-feira, 12 de julho de 2016

Guiné 63/74 - P16297: Brunhoso há 50 anos (9): O Ciclo do Pão (2) (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

Brunhoso - Com a devida vénia


1. Em mensagem do dia 8 de Julho de 2016, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), traz-nos a segunda parte do Ciclo do Pão.


Brunhoso há 50 anos

 9 - O Ciclo do Pão (2)

Depois das ceifas ou em parte em simultâneo, era necessário fazer o transporte dos molhos de trigo que os ceifeiros tinham juntado em "rilheiros" nas terras já despidas de cereal e cobertas de restolho áspero. Começava a “acarreja” assim se chamava essa grande operação do transporte dos molhos de trigo e centeio para as eiras do Prado e outras eiras particulares, para serem trilhados ou malhados.

Os lavradores normalmente iam dormir às terras, com o gado, para a primeira carrada estar nas eiras ainda antes do nascer do sol, aproveitando o calor das noites e a luminosidade dessas alvoradas de Verão. Por esse ou por outros motivos cheguei a dormir muitas vezes no campo nessas noites quentes de verão, tendo por luz somente o céu estrelado que cobria a terra com um manto de estrelas que brilhavam como se o Universo tivesse renascido.

Os carros eram carregados, como diziam os lavradores, com "pousadas", conjunto de quatro molhos, e havia muito rivalidade nessas cargas, quer pela melhor aplicação da técnica utilizada, quer por carregarem mais, sinal de animais possantes e bem treinados.

Devido a esse peso, os carros "chiavam”, assim se dizia e, para que isso não acontecesse, primeiro porque o eixo aquecia muito e podia arder com a fricção, e também porque se andassem nas estradas, mesmo municipais, poderiam ser multados, untava-se o eixo e as "estreitouras" com sabão caseiro ou com borras de azeite.

Logo ao inicio do alvorecer, dessas manhãs claras de Verão, com o sol ainda escondido atrás dos montes, os lavradores, os filhos ou os criados de lavoura regressavam numa primeira viagem com os carros carregados de trigo ou centeio, numa marcha lenta que enchia os ares dessa música continua e arrastada, produzida pela fricção das rodas, que parecia um lamento transformado em sinfonia, que desagradava às autoridades policiais, mas não desagradava às gentes da aldeia. À medida que os dias iam passando, as medas nas eiras iam crescendo em largura e altura, algumas imponentes como grandes pirâmides, e outras mais ou menos modestas de acordo com a riqueza em terras de cultivo de cada um. Eu, como de resto os meus irmãos, na adolescência, só começávamos a ir à acarreja, quando o meu pai achava que já tínhamos músculos nos braços para poder atirar, com uma espalhadoura, os molhos para os carros, onde o irmão mais velho ou alguém os acomodava. Na década de cinquenta esse trabalho seria feito por um criado de lavoura, que se "justava" anualmente no dia de S. Pedro, e por um trabalhador que era chamado à jeira. Eu e os meus irmãos, à medida que íamos crescendo, como no geral os filhos dos lavradores menos abastados, íamos fazendo todos ou quase todos os trabalhos agrícolas. Depois das ceifas, o trabalho mais duro das colheitas, de que o nosso pai nos poupava com trabalhos menores, como distribuir água aos ceifeiros ou levar-lhes as refeições nos alforges em cima da burra, voltávamos a ser novamente trabalhadores activos no primeiro plano das actividades agrícolas. A acarreja seria uma tarefa de quinze dias, mais ou menos, em que animais e homens andavam num rebuliço constante que começava logo nesses alvoreceres de verão, suspendia-se durante as horas de maior calor, para recomeçar outra vez à tarde. As eiras do Prado eram um grande espaço de relva próximo da aldeia, propriedade da Igreja (Fábrica da Igreja, como se denominava), onde todos os que não tivessem uma boa área de terreno, uma cortinha ou um prado, próximo da aldeia, podiam trilhar ou malhar os cereais. Fora da época das colheitas era um terreno de pasto, destinado a burros e outros animais de carga, aproveitado sobretudo pelos mais pobres que não tinham “lameiros” (o mesmo que prados) onde os pudessem levar a pastar. Todos os grandes lavradores, cinco ou seis, tinham eiras próprias para fazer as debulhas.

Nos primeiros anos da década de cinquenta os cereais ainda eram debulhados, tal como acontecia com as ceifas, pelo processo tradicional e histórico, igual aos dos antigos povos de lavradores da bacia mediterrânica, com recurso ao trilho e à trilha.

O trilho, aparelho para debulha do cereal, é uma espécie de estrado de madeira, compacto e com algum peso, com lâminas de ferro em forma de faca fixados na parte inferior. Puxado pelo gado na eira, com o condutor em cima do trilho, para maior pressão sobre o cereal tirado das medas, e previamente espalhado, depois de cortados os ”vincelhos” dos molhos. Os vincelhos, com que os ceifeiros atavam os molhos de cereal na ceifa, faziam-se atando o próprio cereal pelas espigas de forma a não se soltarem. Havia sempre um garoto que ia no trilho com uma cortiça em concha, para aparar as fezes dos animais.

Trilho
Com a devida vénia a Capeia Arraiana

As lâminas de ferro separavam o grão da espiga e cortavam a palha.

A Trilha, em tudo igual aos trilhos, mas em vez de metal, tinham seixos cravados na madeira e usavam-se, sobretudo nas lentilhas e tremoços.

Depois da malha o trigo (ou centeio) era junto em parvas, compridos montículos com pouca altura, para fazer a separação da palha e do grão, com a ajuda do vento, utilizando pás próprias para esse efeito. Depois de separado o cereal da palha, era metido com as rasas ou rasões nos sacos de linho grosso com a capacidade de cerca de cinquenta quilos cada um. No fim do dia os sacos seriam carregados nos carros de bois e transportados para as despensas dos lavradores, muitas vezes despejados em tulhas a aguardar o transporte para o celeiro, situado à beira da estação dos caminhos de ferro de Mogadouro. A palha era também carregada nos carros que eram providos de grandes cancelas para puderem transportar mais quantidade, e levada para os palheiros e curraladas. As curraladas eram recintos grandes que alguns lavradores tinham, onde guardavam as alfaias agrícolas, a palha, o feno e nalguns casos também os animais de trabalho.

Os mais pobres ainda utilizavam os malhos ou, "manguais", para todo o tipo de cereal, primeiro porque a colheita era pequena, segundo porque os trilhos eram caros para as suas posses.

Malhar o centeio
Com a devida vénia a Quinta do Lagar da Moira

Parte do centeio era sempre malhado pela força dos homens com os malhos, preservando o caule inteiro, chamado colmo, muito útil para fazer albardas, belfas, encher os xaragões (colchões de colmo, já que outros não havia) e para chamuscar o pelo dos porcos nas matanças, durante o inverno. Nesse tempo havia uma aldeia no concelho de Freixo de Espada-à-Cinta, chamada Fornos, a cerca de 30 kms de Brunhoso, onde os telhados da maioria das casas eram cobertos de colmo. Outras iguais havia nas zonas serranas e mais afastadas, tanto nas Beiras como em Trás-Os-Montes.

A debulha era o epílogo do longo ciclo do pão, o culminar de uma grande jornada onde todos estavam presentes: os homens, as mulheres, os pais, as mães, os filhos, os patrões, os trabalhadores, os novos, os velhos. A gente de Brunhoso saía toda de casa para ajudar nas malhas, o final das colheitas do cereal. Em casa só ficavam as mulheres dos lavradores e algumas ajudantes a fazer comida, pois era necessário alimentar todo esse exército de trabalhadores que estavam nas eiras a tratar do grão e da palha. A comida era abundante tal como tinha sido a dos segadores nas ceifas. Havia uma algazarra própria dos grandes acontecimentos, com todo esse povo de homens e mulheres, sujos do pó do cereal e da palha, a trabalhar debaixo desse sol tórrido de Agosto, ou sentados em longas mesas improvisadas com trigo ou centeio a comer as melhores comidas que as patroas sabiam fazer e a beber o vinho “precioso” da colheita do patrão ou comprado para os lados de Miranda do Douro. Eram dias de grande convívio, trabalhava-se muito, mas falava-se, gracejava-se, comia-se bem, bebia-se bastante. O que recebiam desses dias de trabalho além do vinho e da boa comida, do prazer dessa convivência alargada, era um agradecimento dos lavradores que se confundia com a caridade cristã, de alguns alqueires de trigo ou centeio, ou pães já cozidos que em tempos posteriores de mais necessidade lhes dariam para eles e para os filhos e alguns sacos de palha, para alimento dos burros. Era pouco mas esse pagamento ancestral dessa ajuda por comida e por alguns benefícios futuros certos ou incertos, era muito antiga, tão antiga que os mais velhos já não sabiam se tinha sido instituída por Nosso Senhor Jesus Cristo, na Galileia, que era terra de trigo. Tinha uma vizinha, mãe de muitos filhos, boa mulher, muito faladora e sociável que não perdia um dia de colheitas.

Nos primeiros anos da década de cinquenta, do século passado, era eu garoto, e recordo-me ainda das debulhas serem feitas da forma que descrevi atrás, somente por homens e animais. Talvez ainda antes de meados dessa década surge a malhadeira uma grande máquina que por processo mecânico, movida inicialmente por um motor a gasóleo e posteriormente por um tractor, separa a palha do grão, saindo a palha já moída por uma abertura larga e o grão por outras aberturas mais estreitas onde havia sacos de linho a encher, vigiados por trabalhadores.

Malhadeira
Com a devida vénia a Paisagens de Trá-os-Montes

O primeiro tractor agrícola surge em Brunhoso, disso recordo-me ainda bem, a meio dessa década e quando foi levado ao lavrador que o comprou para demonstração, com arados e outros acessórios provocou grande sensação e juntou muita gente, pequena e grande sobretudo do género masculino.

Nunca me esqueci era um David Brown, grande e azul .

Tractor David Brown 900 de 1957
Com a devida vénia a The David Brown Tractor Club

Passados alguns anos, já na década de sessenta, irão entrar na aldeia as ceifeiras debulhadoras, máquinas agrícolas, uma espécie de grandes tractores, que se deslocam às searas e fazem toda a ceifa e a debulha à medida que cortam o cereal, que irão alterar radicalmente as formas ancestrais de ceifar e transformar as searas em grão e em palha. As primeiras ceifeiras da região, eram do chamado GRÉMIO DA LAVOURA, instituto do estado que fomentava o cultivo dos cereais, quando vieram para esta região já eram usadas, vinham do Alentejo, onde já eram consideradas pequenas e obsoletas. Com a introdução das ceifeiras-debulhadoras, os antigos ceifeiros passam a ser meros espectadores desse progresso tecnológico onde não havia lugar para eles. Provavelmente será uma das causas, associada a outras, da debandada em massa, a salto, desses trabalhadores para França e para essa Europa das nossas ilusões, depois das Índias, das Américas e das Áfricas. Os homens querem jeiras, querem trabalho e ele cada vez escasseia mais.


A agricultura sujeita a variações de produção provocadas pela seca, a chuva excessiva, as trovoadas o granizo e outras causas naturais pelo que os povos de agricultores procuraram sempre a protecção de entidades sobrenaturais para se protegerem de todas essas calamidades.

A palavra cereal vem de Ceres, a deusa romana da agricultura da colheita e dos grãos.
Ceres, generosa na essência e na forma, é bela sem sofisticação, serena e natural como uma flor silvestre.
Tem outras representações de acordo com os gostos e a sensibilidade dos seus adoradores ou artistas. Eu imagino-a tal como a descrevi.

Ceres é também um símbolo da fertilidade e da vida tal como a sua irmã da mitologia grega a deusa Deméter.
Quando o Império Romano declara o cristianismo como sua religião oficial, no século IV dC, através o imperador Teodósio, as competências de muitos deuses e deusas da antiga religião politeísta são atribuídas pela Igreja a santos e santas.
S. Isidoro, um santo espanhol, é o protector dos lavradores, quase desconhecido no Nordeste Transmontano onde no geral se pedia auxílio a Santa Bárbara, virgem e mártir, protectora das trovoadas e doutros males associados como aguaceiros fortes e o granizo.
A festa à Santa Bárbara, nesse tempo antigo, ainda antes da "fuga" dos trabalhadores para a Europa, era celebrada no segundo domingo de Setembro, quando as colheitas já estavam feitas com o cereal e a palha recolhidos. Era um tempo em que se podiam lançar os foguetes sem o perigo de incendiar as searas ou as medas de trigo e era a ocasião de agradecer à Santa os resultados das colheitas do ano.

Francisco Baptista
____________

Nota do editor

Poste anterior de 1 de julho de 2016 Guiné 63/74 - P16258: Brunhoso há 50 anos (8): O Ciclo do Pão (1) (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

sexta-feira, 1 de julho de 2016

Guiné 63/74 - P16258: Brunhoso há 50 anos (8): O Ciclo do Pão (1) (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

Brunhoso - Com a devida vénia


1. Em mensagem do dia 24 de Junho de 2016, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), volta a falar-nos da sua terra natal há 50 anos, desta feita com a primeira parte do Ciclo do Pão.


Brunhoso há 50 anos

 8 - O Ciclo do Pão (1)

Na década de cinquenta do século passado, que é até onde a memória me consegue transportar na minha viagem ao passado, Brunhoso vivia de uma agricultura rudimentar que pouco diferia da agricultura praticada pelos antigos egípcios, gregos, romanos e outros povos mediterrânicos.

Era uma agricultura, sem recurso a máquinas que se baseava na utilização intensiva da força humana e dos grandes animais domésticos: bois, vacas, gado muar e asinino. A tecnologia mais avançada que utilizava, para além da charrua, era o arado e o carro de bois de que já se vêm em gravuras do antigo Egipto do tempo dos faraós. A charrua com funções semelhantes às do arado, era toda em ferro, mais pesada portanto e com uma relha maior que rasgava a terra com mais profundidade e conseguia lavrar em solos mais duros, que veio como tal permitir aumentar a área de cultivo possibilitando o desbravar de muitos terrenos incultos. A charrua é considerada um avanço tecnológico da Idade Média, que terá sido mais difundida após a revolução industrial da Europa com a criação de fábricas metalúrgicas que as fabricavam em série como acontecia na fábrica de Tramagal no Ribatejo, donde eram as que eu conheci, nesses tempos. Para além da melhoria tecnológica que representou a invenção da charrua, terá havido, como é natural outras melhorias que a marcha dos tempos sempre traz, como melhores selecções de sementes, um melhor conhecimento dos solos e a criação de melhores adubos para os tornar mais férteis. Um adubo muito utilizado e publicitado por paredes de vilas e até aldeias, nos anos cinquenta e algumas décadas subsequentes era o famoso "Nitrato do Chile".

Charrua do Tramagal
Com a devida vénia ao Blogue Alcoutim Livre

Depois das sementeiras em fins de Setembro, meados de Outubro, conforme o tempo o permitisse, novo ciclo do pão recomeçava. O lavrador nunca tinha descanso e a terra, essa deusa antiga, exigia dele uma atenção e um trabalho constante. O meu amigo Joaquim "Passarinho", já com 86 anos, diz muitas vezes que a “fazenda” (conjunto das propriedades agrícolas de que o lavrador tinha que pagar anualmente a décima nas repartições da Fazenda Pública) gosta de ver o dono. Para preparar as terras para as sementeiras do próximo ano, os lavradores começavam logo a decrua, que era a primeira lavra com as tais charruas de ferro da fábrica de Tramagal, puxadas por juntas de bois, vacas, mulas ou machos que rasgavam a terra cheia de ervas e restolho já ressequido. O tempo da decrua, que decorria no Outono, que por não haver colheitas, era uma estação do ano triste e temida pelos trabalhadores da terra, pois antes da apanha da azeitona que só começava em Dezembro as jeiras eram escassas.

Venda do Pinheiro - Publicidade ao Nitrato do Chile em azulejo
Com a devida vénia ao Blogue Partilhar Diferenças

A “vima”, que era a segunda lavra, fazia-se normalmente na Primavera, nos meses de Março, Abril e Maio. Não havia muito rigor nestas datas pois tanto a decrua como a vima dependiam muito das condições atmosféricas que podiam trazer tempo seco ou chuvas e condicionavam as fases da preparação dos campos de cultivo. Podia até acontecer que se fizesse alguma decrua na Primavera por não ter havido condições para fazê-la antes, nesses casos a vima seria já mais próxima da sementeira.

Alguns lavradores, quando a vima era feita logo no inicio da Primavera, “escardavam” também os campos, que era uma última lavra que tinha por objectivo arrancar as ervas daninhas que entretanto tinham crescido. Um dos sinónimos de escardar é eliminar os cardos, que nalguns terrenos cresciam em abundância.

As sementeiras começavam em Setembro e acabavam em Outubro. As sementeiras eram pois feitas ao entrar o Outono, nesse tempo de paz em que duração dos dias e das noites se equilibravam e o sol enviava raios mais oblíquos com um calor suave que iluminavam a terra com uma claridade que alargava mais os horizontes, quando as folhas caducas dos castanheiros, das parreiras e de outras árvores e arbustos de folha caduca, na despedida, se iam transformado em tonalidades suaves de verde, castanho, amarelo, rosa e vermelho. O tempo das sementeiras era um tempo que se adequava ao meu temperamento e sensibilidade. Um tempo calmo, ameno e em que os horizontes de montanhas se alargavam e tornavam mais visíveis, fazendo crescer os sonhos em evasões imaginárias.

Nesse tempo tínhamos uma junta de bois e uma junta de vacas. O meu irmão mais velho lavrava com a junta de bois e eu com a junta de vacas, enquanto o meu pai semeava o trigo. De manhã ao sair de casa a minha mãe como de costume, dava-nos o saco da merenda, feito de linho ou estopa, com o pão, presunto, toucinho, chouriço, por vezes queijo ou frango. Lembro-me desses dias de sementeira como de solenidades místicas com homens e animais empenhados no mesmo esforço comum, sendo o nosso pai o “Xamã” que "espalhava" o cereal (trigo ou centeio) com ar sério e compenetrado. Pelo meio-dia, por ordem dele, parávamos e escolhíamos uma sombra para merendar. Nunca esqueci um dia, teria 16 ou 17 anos, em que fizemos a sementeira duma terra do Zimbro. Há dias ou momentos que recordamos para a vida inteira sem sabermos explicar o porquê desse registo. A mim tem-me acontecido algumas vezes ao longo da vida. Desse dia de sol esmaecido, de fins de Setembro, recordo quase tudo com uma fidelidade fotográfica. Além da visão dos homens e dos animais e das suas tarefas até recordo o sabor do toucinho que fazia parte da merenda. Não me lembro de ter comido um naco de toucinho como aquele. Depois de ter sido curado pelos frio seco de Inverno e resguardado do calor intenso de verão na despensa fresca do rés-do-chão, o toucinho estava curado e feito, como um bom vinho, que afinal até lhe fazia companhia no mesmo lugar. Talvez tudo isto me tenha acontecido por ter experimentado a bênção da terra que o lavrador recebe quando comunica com ela, eu que era um lavrador sazonal, de tempos de férias.

Normalmente as terras ficavam de "POUSIO", pelo menos um ano. Não havia nenhum pacto de regulação de zonas, no entanto, para acautelar o pastoreio dos animais, os lavradores procuravam andar na mesma folha que os outros, embora houvesse quem assim não fizesse, se não tivesse alternativa. Isto significa que metade dos campos cultiváveis da aldeia estavam cobertos de cereal enquanto os da outra metade, de pousio, estavam a ser preparados para as próximas sementeiras.

Depois das sementeiras o trigo e o centeio tinham uma gestação de nove meses, tão demorada ou mais como as dos filhos dos lavradores, pois as colheitas só seriam feitas nos meses de Junho ou Julho do ano próximo. As searas iam crescendo lentamente, passado um mês não teriam mais de um palmo. Chegados os frios de Dezembro ou Janeiro, um pouco mais crescidas para poder suportar as geadas e a neve desses meses. Um provérbio muito conhecido, a experiência acumulada dos lavradores tinha tantos provérbios mensais e anuais, que este era mais um a juntar aos outros: “Cresce o trigo debaixo da neve, como o carneiro debaixo da pele”.

Com a chegada da Primavera ainda com muitas chuvas mas com mais sol a aquecer os campos de trigo e centeio, as searas iam crescendo e ondulando ao vento em aguarelas de tons de verde sobre verde. Pelos fins de Maio os campos de cereal iam adquirindo uma cor aloirada, sinal de que o grão e a palha estavam quase maduros e prontos a ser colhidos. Com as ceifas, que conforme o tempo atmosférico, teriam lugar nos meses de Junho e Julho, começavam os trabalhos que durante três meses congregavam o esforço de todos os homens e muitas mulheres da aldeia.

Olho para trás, para esses tempos antigos, e revejo esses homens, alguns ainda adolescentes, a andar ligeiros, curvados sobre a terra, cada qual com três assucadas, com a seitoura na mão direita, a ceifar o trigo e centeio, horas e horas debaixo desse sol transmontano de Julho que abrasa a terra como o fogo do inferno. Tenho recordações que são como flaches da memória e volto a ver esses quinze segadores, nesse dia quente de Julho, na Cortinha das Maias, todos magros e curtidos pelo sol e pelos ventos, com o suor a cair do rosto em pingas de água, como se fossem lágrimas. Os mais experientes revezavam-se ainda na tarefa de “atar” sempre difícil e dolorosa, ainda mais dolorosa que segar. Era preciso que alguém fizesse esse trabalho difícil com responsabilidade e, ao mesmo tempo, que os “molhos” fossem todos mais ou menos iguais entre si. Os segadores além de cada qual assumir uma responsabilidade individual pelo acompanhamento na marcha ritmada das assucadas tinham também a responsabilidade colectiva de fazer um trabalho perfeito mesmo que para isso alguns tivessem que se sacrificar mais. Eu, era o filho do patrão, que tinha por missão um trabalho bem mais leve que era distribuir água, que transportava num cântaro de barro, a quem dela necessitasse.

CEIFEIROS - Painel de azulejos policromos, pintado por Eduardo Leite segundo cartão de Dórdio Gomes, produzido na Fábrica da Viúva Lamego, Lisboa. Átrio da Escola Secundária Diogo de Gouveia, Beja. 
Com a devida vénia ao Blogue Do Tempo da Outra Senhora

 As refeições eram os únicos momento de descanso que tinham durante todo o dia. Gostava de as fazer com eles, sempre abundantes e com boa qualidade para repor as energias gastas e compensar o organismo do esforço despendido:
Cerca das 9,30, comíamos sopas de pão centeio que levavam alho, colorau e azeite rijado. Os homens agrupavam-se cinco ou seis, de volta de uma caçarola, munidos de uma colher para comer esse repasto matinal. Gostava muito dessas sopas que a minha mãe só fazia para os segadores.
Ao meio-dia era o almoço que podiam ser batatas guizadas com carne de borrego ou carneiro;
Às quatro da tarde era a merenda, que podia constar de toucinho, queijo, saladas de alface e tomate, e às oito horas, já em casa do patrão, o jantar que muitas vezes era bacalhau cozido ou guisado com batatas.

Nesses tempos em que a dureza do trabalho era sentida por quem a prestava e era bem visível para quem a pagava geralmente todos os lavradores tratavam os trabalhadores com boas comidas, melhores até, falo dos lavradores médios, do que aquela que comiam diariamente eles e as suas famílias, em suas casas.

Todas as refeições acompanhadas de algum vinho pois era consensual, entre os trabalhadores, que o patrão que dava pouco vinho não prestava.

Os principais cereais que se semeavam em Brunhoso, que cresciam e amadureciam ao mesmo tempo, por vezes lado a lado, eram o trigo e o seu meio irmão o centeio, mais escuro e considerado menos nobre, como se fosse um bastardo do mesmo pai, mas apesar disso com um porte mais altivo. Tanto com um como com o outro as nossas mães faziam os grandes pães cozidos em grandes fornos aquecidos com lenha de giesta e esteva, que se conservavam quinze dias em óptimas condições, guardados nas despensas das casas. Lembro-me da minha mãe, afogueada pelo esforço e pelo calor, depois de ter metido todos esses grandes pães no forno, os abençoar, fazendo o sinal da cruz, na sua entrada, com a mesma pá com que os tinha metido. O pão era esse alimento sagrado que nunca devia ser pousado doutra forma que não fosse aquela em que assentou quando foi cozido, que quando deixávamos cair um pedaço ao chão tínhamos que o beijar, que não se devia estragar ou usar em brincadeiras.

(Continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 15 de março de 2016 > Guiné 63/74 - P15860: Brunhoso há 50 anos (6): Uma terra rica e auto-suficiente (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

sexta-feira, 10 de junho de 2016

Guiné 63/74 - P16190: (In)citações (92): Uma troca trágica (Francisco Baptista, ex-Alf Mil)

1. Mensagem de 20 Maio de 2016, do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72):


UMA TROCA TRÁGICA

Há cerca de cinco anos entrei numa confraria gastronómica, irregular, já que embora os seus associados se juntem para almoçar, todas as quartas-feiras, em restaurantes que vão variando, num raio de alguns quilómetros, com epicentro em Leça da Palmeira, não obedecem a nenhuma formalidade ou obrigação dessas confrarias existentes por esse país fora. Não há sede, não há estatutos, não há lugar ao pagamento de quotas, nem jóia de entrada, não há órgãos impostos ou eleitos, não há trajes próprios. Entra-se nela por uma porta larga, que nos abre qualquer um dos seus frequentadores, e a partir daí passamos a ter direito a frequentá-la quando quisermos e a levar os amigos que entendermos. Terá sido formada há algumas décadas por profissionais de um grande hospital, médicos, enfermeiros, técnicos, administrativos e outros amigos do exterior. Todos amantes da boa comida, da boa bebida e da “jolda” que é o convívio divertido e um pouco excessivo que as mães, as irmãs, as namoradas e esposas sempre censuraram nos jovens ou nos mais velhos, porque não querem entender esse aspecto “deles” que os afasta delas, e faz parte da sua natureza irrequieta, que se prolonga pela vida fora, que os junta em folguedos, que vão variando com a idade, onde as raparigas ou as mulheres não cabem. Talvez reminiscências dos tempos pré-históricos, quando eram caçadores e longe dos povoados e das mulheres, comiam à volta da fogueira o primeiro javali que caçavam. Os “Bandalhos”, nossos ilustres camaradas da Guiné, alguns tais como eu, sócios da Tabanca de Matosinhos, outros independentes, que eu estimo, respeito e admiro celebram e encenam muito bem essas festas.

Desse grupo inicial só já restam três, um técnico, um administrativo com mais de setenta anos e um empresário com quase noventa. O último médico, um camarada com grande sensibilidade poética e totalmente integrado no espírito do grupo pelas suas vivências passadas e recentes, morreu há seis meses, quando já todos pensávamos que tinha ultrapassado uma doença grave que o tinha atacado. Os outros foram saindo, a maior parte também empurrados pela morte, que a todos nos há-de levar para o mundo das trevas e do esquecimento ou para o céu, reservado aos crentes e felizardos. Dentre os amigos que o frequentam ou por já lá passaram, identifico, entre outros, dois médicos, um arquitecto, um técnico de engenharia, dois mecânicos, um chapeiro, dois motoristas, dois comerciantes com lojas abertas na baixa do Porto, o dono de um ginásio, dois enfermeiros, seis funcionários públicos, pequenos empresários, um lavrador, um padre, um cangalheiro, um antigo jogador de futebol, africano de Angola, um polícia, dois guardas-fiscais e um pequeno empresário analfabeto. Há um camarada da Guiné que afirma que em 1966 ele e outros estiveram perto de apanhar à mão o próprio Amílcar Cabral.

Dentre todos o mais assíduo é o amigo Figueira, que também poderia ser Nogueira, Cerejeira, Oliveira, Pereira, pelos seus hábitos de poupança, que por brincadeira, alguns (eu incluído) classificam de sovinice, pois todos esses nomes podem esconder antepassados judeus. O Figueira, um dos três fundadores que restam desta tertúlia, viúvo há dez anos, foi na vida adulta Chefe de Serviços nesse grande hospital. Justiça lhe seja feita, será poupado mas não é sovina, pois a casa dele está à sempre aberta a todos para prolongar o convívio depois dos almoços e tem sempre, nozes, figos, queijinhos ou outros acepipes para acompanhar um copo de vinho que ele oferece da garrafeira dele, ou que alguém leva. Por vezes, para festejar os anos de alguém ou outro acontecimento, os almoços são mesmo feitos, por alguns “cozinheiros” do grupo, na casa dele.

Pela sua simplicidade, naturalidade, boa disposição, bonomia e amizade, que sabe repartir sabiamente com todos, é muito apreciado e estimado e dá muita coesão a esse grupo anárquico, que não tendo um dirigente se revê no carácter e nas qualidades morais desse amigo que nunca quis ser director, sargento, capitão, general ou presidente de junta.

Para além das grandes propriedades agrícolas que herdou dos pais, herdou também o sentido do dever, da honra, da palavra e a fé religiosa de um católico praticante e tradicional, cumpridor de todas as obrigações religiosas inerentes, sem nunca pôr em causa as verdades e dogmas da Igreja.

Não gosta de ler ou escrever, a televisão aborrece-o tal como a internete, tendo bastante habilidade manual, gosta de fazer alguns arranjos ou trabalhos de carpintaria, serralharia, de agricultura, em que foi criado, ou outros.

Com a idade a balançar entre os setenta e os oitenta, o que ele aprecia sobretudo é o convívio com os amigos e com as pessoas em geral, sem ser exigente em relação à riqueza ou à pobreza dos seus semelhantes, ou à condição social mais baixa ou mais elevada, é também muito tolerante em relação aos defeitos e manias de cada um. Frequenta outra confraria mais formal, que me parece reunir “os ilustres” duma grande freguesia, essa com sede, na qual mensalmente se reúnem para almoçar. É convidado ainda de uma outra confraria internacional ainda mais elitista, onde as senhoras dos importantes da sociedade gostam de mostrar os vestidos, os casacos, as carteiras e sapatos que estão na moda, e que nos passeios e banquetes que organizam, fazem uma recolha de dinheiro para ajudar os pobrezinhos de todo o mundo. Em festas anuais, S. João, Carnaval, Passagens de Ano e outras, junta-se muitas vezes com as famílias dos grandes lavradores do Porto e dos arredores, em grandes jantares de convívio.

Para além dos almoços de grupo, vou também almoçar uma vez por semana a sós com ele, pelo prazer da sua companhia e porque sei também que nessas horas sente muito a solidão em que ficou com a morte da sua companheira. Entre cinco e oito euros encontramos tascos ou restaurantes que servem uns almoços razoáveis com tudo incluído, outras vezes até cozinhamos em casa dele. Muitas vezes juntam-se ainda um ou dois amigos. Gosto de falar com ele sobre as coisas simples da vida como por exemplo os trabalhos agrícolas que fazíamos na nossa adolescência e juventude. Eu, filho de lavradores “remediados” de Trás-Os-Montes e ele filho e mais tarde genro, de lavradores abastados de duas grandes freguesias de Matosinhos.

A “Maínça” era, ainda assim se conserva, uma veiga extensa, de terra funda, onde não falta sequer um riacho que a atravessa, que além de milho, vinho, batatas, couves, feijões e outras hortaliças, produzia tantas cebolas e cenouras que ele, outro irmão e quatro trabalhadores contratados, passavam dias e dias a lavá-las e arranjá-las para serem transportadas diariamente em carros de bois para o mercado do Bolhão, no Porto, numa viagem que só na ida demorava mais de uma hora. Mais tarde a Câmara do Porto proibiu a circulação de carros de bois na cidade e o pai dele viu-se obrigado a comprar uma carrinha para fazer esse transporte.

Há algum tempo, num desses almoços, os dois a sós, falámos das andanças que ainda garotos tínhamos que fazer por terrenos distantes da povoação e os medos que isso provocava, pela solidão, por vezes agravada pelas trovoadas e outras vezes pela escuridão nocturna. Eu confessei que tive que fazer um grande esforço mental e psicológico para me adaptar a essas situações e vencer esses medos. Ele, que só raramente era sujeito a essas situações pareceu-me que nunca os conseguiu dominar razoavelmente. Talvez tenha sido por isso que eu aproveitei para lhe fazer uma pergunta que nunca lhe tinha feito sobre a tropa e a guerra do Ultramar.

Em resposta ele disse-me que no inicio de 1963 foi convocado para fazer a recruta e como não tinha dado as habilitações literárias que lhe poderiam ter dado acesso ao curso de sargentos milicianos, foi como soldado para o Regimento de Infantaria de Viana. Pela sua educação e pelo seu espírito cordato, que não terá passado despercebido aos seus superiores, depois da recruta e da especialidade foi colocado na secretaria do regimento, durante muito tempo a fazer, segundo disse, as ordens de serviço e outros trabalhos afins. Entretanto ao saber que iria ser mobilizado para Angola, falou com outro soldado do ano de 1962, que se prontificou a ir no seu lugar, a troco de cem contos que os seus pais disponibilizavam. Nesse tempo cem contos era uma grande quantia de dinheiro que daria para construir uma casa ou comprar um apartamento, portanto representavam um começo de vida aliciante para um jovem com poucos recursos. Na altura própria, os cem contos foram pagos ao seu camarada que acabou por embarcar para Angola no seu lugar.

Pelo conhecimento que tenho dele, atrevo-me a afirmar que ele teve realmente muito medo da guerra do ultramar e a sua estratégia, ao não dar as habilitações literárias, foi no sentido de conseguir, no caso de ser mobilizado, a troca mais barata, que seria sempre entre soldados, possivelmente já com o apoio dos pais. Penso ainda que só revela este facto da vida dele quando confrontado com uma pergunta directa sobre a sua vida militar, além do mais porque as consequências foram trágicas para o camarada que fez a troca. Segundo afirmou, um outro camarada disse-lhe que esse jovem que teve a ambição honesta de ganhar cem contos para um começo de vida mais desafogado, morreu numa emboscada, no território dessa Angola imensa, no norte, no leste ou no sul, não sabe precisar. Disse-me por fim que terá mesmo morrido pois, palavras dele “cheguei a escrever-lhe uma carta e nunca obtive resposta”. Conhecendo a sua religiosidade, penso que ainda hoje se continua a lembrar dele nas orações que faz ao Deus dos cristãos.

Cá ou lá, todos tivemos medo. Dos que nunca embarcaram nos cais dos lenços brancos do adeus, alguns fugiram, outros desertaram, outros pagaram para ser substituídos, como este meu amigo. Dos que partiram, ainda houve alguns que desertaram e outros que se mutilaram, outros aguentaram por vezes com os nervos à flor da pele, outros tiveram premonições de morte e morreram, outros tiveram falsas premonições de morte e regressaram, outros morreram em grande sofrimento, outros sem um ai deixaram cair a cabeça no meio do mato ou do capim e adormeceram para sempre. Eu, que estive lá, não julgo ninguém, a psicologia da guerra e dos medos é uma matéria difícil para compreensão e análise de um qualquer curioso.

Gosto muito do meu amigo Figueira e gostaria também de saber que o camarada que o substitui em Angola ainda será vivo e feliz no meio dos filhos e dos netos, na casa que tinha construído algures com cem contos. A nossa vida com o passar de alguns anos marca o início da nossa morte que se vai anunciando logo após a juventude pelo envelhecimento físico, com o aparecimento de rugas, cabelos brancos, as calvícies mais ou menos acentuadas, com entradas à frente, ao meio da cabeça (parece uma coroa de padre) como no meu caso ou carecas quase totais, os órgãos internos vão enfraquecendo com a progressão dos anos e nós vamos disfarçando essas falhas com remédios e mezinhas no silêncio sigiloso dos consultórios médicos. As marcas das nossas falhas, dos nossos êxitos, das nossas fraquezas, da nossa energia, dos nossos erros, dos nossos crimes, das nossas virtudes, dos nossos pecados, dos acontecimentos fastos e nefastos ficam registados na página branca da nossa alma e irão adoçar ou atormentar a nossa vida futura. Não sei avaliar em que medida a morte desse nosso camarada, que morreu numa emboscada em Angola, ficou registada na memória espiritual do meu amigo Figueira, mas atendendo à bondade e humanismo do seu carácter, é natural que o tenha marcado com uma cicatriz que ainda magoa.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 25 de maio de 2016 Guiné 63/74 - P16134: (In)citações (91): "Um gajo não sabe o que foi a guerra colonial", diz Marcos Cruz, filho do Dr. Adão Cruz, um dos médicos do BCAÇ 1887 (Francisco Baptista, ex-Alf Mil)

domingo, 24 de abril de 2016

Guiné 63/74 - P16007: Brunhoso há 50 anos (7): Uma terra de artes (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

Brunhoso - Com a devida vénia


1. Em mensagem do dia 8 de Março de 2016, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), volta a falar-nos da sua terra natal há 50 anos.


Brunhoso há 50 anos

7 - UMA TERRA DE ARTES

Brunhoso não era somente uma terra rica e auto-suficiente pela variedade e quantidade de produtos agro-pecuários e florestais que produzia mas também pelos serviços que os seus artistas prestavam a essa comunidade agrícola laboriosa e a outras comunidades próximas.
Nesse tempo Brunhoso era conhecida como sendo uma terra de artes. Estas artes de que os povos dessas terras humildes falavam eram as artes mais utilitárias, que se confundem com os ofícios. Para vestir e calçar as pessoas e dar conforto e beleza aos lares havia as artes de alguns homens e de muitas mulheres:
As donas de casa que depois de transformarem num processo moroso que passava por várias fases a lã e o linho, em fio, só com as suas mãos hábeis ou com a ajuda dos teares ou das máquinas de costura, faziam as meias, os meotes, as saias, os saiotes, as blusas, as camisolas, os bordados, as camisas, as cuecas, as ceroulas, os lençóis, os carapins, as toalhas, as colchas, e outras utilidades, com a mesma entrega e a mesma dedicação com que tratavam dos filhos, das hortaliças e das flores nas hortas e do lar.

Senhoras trabalhando a lã
Com a devida vénia ao autor da foto e ao Blogue Aldeia de Castelões

Outras fazendas para roupas, diferentes da lã e do linho, eram vendidas pelos tendeiros de Campo de Víboras que periodicamente passavam pela aldeia com as mulas carregadas com peças de tecidos das mais variadas cores e qualidades.

Havia ainda os sotos em Mogadouro ou os dias de feira para compras semelhantes.

Havia três alfaiates que faziam fatos por medida.
Os homens, mais ainda os rapazes, estreavam geralmente os fatos no dia de Páscoa, costume antigo, talvez para celebrar o renascimento da vida, depois da Quaresma e da chegada da Primavera.

Havia quatro sapateiros que faziam sapatos novos de cabedal com brochas de quatro pancadas na sola do pé ou outras mais finas e arranjavam todo o tipo de sapatos;

Havia dois barbeiros, sendo um deles barbeiro-cirurgião, pois além de fazer as barbas e cortar os cabelos, sabia dar injecções, tratar das feridas, extrair carbúnculos, e tratar outros males de que as pessoas pudessem sofrer;

Havia duas parteiras, que tinham aprendido essa arte com outras mulheres mais velhas. Conheci melhor a senhor Cândida "Passarinho" mulher desenvolta, simpática, faladora, que se fechou muitas vezes no quarto dos meus pais, a sós com a minha mãe e uma amiga dela, para algumas horas depois o meu pai nos dizer, nem triste, nem contente, com o ar mais natural do mundo, que tinha nascido mais um irmão.

Para tratar das ferramentas, todo o tipo de apetrechos e equipamentos necessários à lavoura e ao bem-estar e resguardo de pessoas e animais havia os seguintes artistas:
Ferreiros, pai e filho, para tratar dos sachos, das picaretas, das enxadas, das relhas das charruas, dos arados, para arranjar ou fazer mesmo outras ferramentas e trabalhar o ferro para as mais diversas utilidades. Faziam aros de ferro que aplicavam ainda incandescentes, para se moldarem, nas rodas de madeira dos carros de vacas.
A forja do ferreiro era bem perto da casa dos meus pais, a cerca de 100 metros logo a seguir, separada por um terreiro, estava a antiga escola primária onde aprendi a amar as palavras escritas, a geografia e a história. Gostava de entrar na forja para ver o ferro a ficar incandescente e ver o ferreiro e o ajudante a moldar esse ferro em brasa com as marretas para construir ou arranjar ferramentas.
Para maior prazer meu e dos outros garotos da escola o ferreiro tinha um torno com que fazia piões de madeira que nos vendia por uma coroa, de freixo, de carrasco, de choupo e outras madeiras.

 Forjador
Imagem do Youtube

No terreiro da escola, os rapazes jogávamos ao pião, lembro-me que um dos jogos era lançar os piões sobre os dos outros para os danificar ou inutilizar. Para esse jogo, os piões bons, pela sua dureza, eram os de carrasco que dificilmente se danificavam, já os de choupo por vezes com uma ferroada certeira podiam rachar ao meio.

Noutro espaço desse terreiro as raparigas jogavam a macaca.

Havia carpinteiros de três áreas diferentes:
Os carroceiros ou carreiros que além dos carros de bois, faziam os jugos, os arados, os agrades, os trilhos para os cereais e outros;
Os carpinteiros da construção civil que montavam os soalhos, as vigas e as armações dos telhados;
Havia também dois artistas de carpintaria fina o que significa que além de outros trabalhos também fabricavam móveis, sendo um deles também fabricante de urnas.

Carro de bois
Imagem da internete

Havia duas parelhas de serradores que serravam manualmente as grandes ou pequenas árvores para fazer tábuas para os soalhos das casas, para os carros de bois e para as mais diversas aplicações. Era um trabalho muito duro que exigia muito músculo e muita precisão.

Havia um ferrador para aplicar as ferraduras nas bestas (gado asinino e muar) e nas vacas e bois;
Havia um capador que além de capar os animais também os curava de alguns males;

Havia os tosquiadores de carneiros e ovelhas que pelo mês de Maio faziam a tosquia da lã desses animais, que nesse tempo era muito bem paga pelos comerciantes;

Decorrentes da actividade agrícola havia:
Os segadores, quase todos os trabalhadores válidos que eram exímios na ceifa do trigo e do centeio:
Os gadanheiros que ceifavam a erva dos lameiros para fazer o feno para o gado comer nos estábulos sobretudo no Inverno.
Os limpadores de oliveiras que conheciam a melhor técnica para libertar essas árvores dos ramos em excesso sem as danificar.
No final da década 50 e no início da década de 60 do século passado vieram duas levas de alentejanos cada qual constituída por 6 trabalhadores para fazer a poda dos sobreiros, já que nesse tempo não havia em Brunhoso, nem nas redondezas trabalhadores habilitados para tal. Os da primeira leva, pela lenha extraída na poda com a qual fabricavam carvão vegetal, faziam esse serviço. Os da segunda leva fizeram esse trabalho pela cortiça que retiravam dos ramos cortados que depois vendiam para as fábricas para ser moída para várias aplicações.

Nas minhas andanças de garoto por montes e vales a guardar as vacas ou noutros afazeres, cruzei-me muitos vezes com eles. Eram homens simpáticos, pouco faladores, frugais, caçavam passarinhos com redes perto dos bebedouros deles, pediam aos lavradores conhecidos tomates, alfaces e batatas das hortas. Eram sóbrios, bebiam pouco vinho, o trabalho em cima dos sobreiros também não consentia abusos. Nem melhores ou piores mas diferentes dos meus conterrâneos, aprendi a apreciá-los pelas características enunciadas e por essa nostalgia meditativa que cresce na visão das grandes planícies, tão própria dos alentejanos.
Os tiradores de cortiça, seriam talvez dezoito (ainda hoje existirão no mesmo número) que sabiam tirar a cortiça com muita perícia, para não danificar o casco das árvores para futuras produções. Eram também solicitados para trabalhar noutras terras.

Descortiçamento
Com a devida vénia a Green Cork

Havia os albardeiros que além das albardas, fabricavam os atafais, as belfas para as mulas, meleias para as vacas, e outros artefactos. Os albardeiros além de trabalharem para a aldeia, montados em mulas percorriam todo o Nordeste Transmontano e ainda parte da Beira Transmontana . Ficavam alguns dias em cada aldeia, dependendo do trabalho que houvesse para fazer arranjos ou obras novas e em seguida mudavam-se para outra. Segundo testemunhos que recolhi por vezes chegavam a andar mais de um mês nesses trabalhos de terra em terra. Os albardeiros pertenciam todos, menos um, a uma família numerosa, cujo pai instruiu todos os filhos varões, penso que cinco, nessa arte. Eram homens fortes e grandes trabalhadores que deram fama a Brunhoso e às suas gentes por toda a zona, num raio de mais de 100 quilómetros.
O que não pertencia à família foi também ensinado pelo pai dos outros e era igualmente um bom profissional. Posteriormente, em meados da década de 50, os albardeiros deixaram de calcorrear as aldeias e passaram a fazer as feiras onde vendiam as obras feitas e recebiam também encomendas de outras obras ou de arranjos.

Os pedreiros, que com tanta perícia construíam as paredes dos edifícios da aldeia e os muros de muitos terrenos. Resta acrescentar que todos estes artistas praticavam também a arte milenar da agricultura.

Tudo isto se passa entre a minha meninice e a minha entrada na adolescência. Nesse período de tempo, quando em 1961, regressam dois soldados que tinham cumprido quase três anos na Índia onde estiveram presos quando a União Indiana invadiu esses territórios e foram recebidos com muita comoção e alívio por toda a aldeia, começa a guerra colonial em Angola que rapidamente atinge também a Guiné e Moçambique. Brunhoso tem um excesso populacional como nunca teve pois o Brasil seu destino tradicional de emigração está em crise e há alguns anos que impede a entrada de emigrantes.
Quando se descobre a França como destino de trabalho, embora em condições de partida clandestinas e difíceis é como uma válvula de escape que se abre e que os homens de todas as idades, artes e profissões aproveitam indiferentes aos riscos pois se nesse tempo não havia fome na aldeia, havia muita gente já no limiar da pobreza.

Pelos seus soldados mobilizados para a guerra do Ultramar as pessoas têm as mesmas saudades, que sentem pelos seus familiares emigrados com mais alguns receios que vão aplacando com choros, rezas e promessas. Felizmente não houve mortos ou feridos, nesses três destinos. Com a partida dos melhores trabalhadores do campo e de muitos artistas que lhe davam suporte, a agricultura tradicional irá morrer no espaço de poucos anos. Finalmente essa sociedade tradicional nas suas vivências, nos seus meios de produção, nos seus métodos e nos seus valores entra na era da globalização.
Nos processos de mudança há sempre uma crise e um choque a que nem sempre as pessoas e as sociedades conseguem resistir. No ano de 1960 viviam em Brunhoso 600 habitantes, actualmente vivem 200, e eu penso que por razões políticas regionais esse número está inflacionado.

A globalização, esse fenómeno mundial que o progresso económico e os meios de comunicação criaram, está a acabar com todas as sociedades tradicionais, nem sempre muita justas na distribuição da riqueza, mas infelizmente por ser movida pela ânsia do lucro das grandes empresas industriais e financeiras, que dominam os governos das nações, a globalização está a criar ainda uma maior miséria entre os povos e a destruir os rios, os mares, os solos, as florestas, enfim a ecologia que está na base da saúde mundial.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 15 de março de 2016 Guiné 63/74 - P15860: Brunhoso há 50 anos (6): Uma terra rica e auto-suficiente (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

terça-feira, 15 de março de 2016

Guiné 63/74 - P15860: Brunhoso há 50 anos (6): Uma terra rica e auto-suficiente (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

Brunhoso - Com a devida vénia


1. Em mensagem do dia 8 de Março de 2016, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), volta a falar-nos da sua terra natal há 50 anos.


Brunhoso há 50 anos

6 - Uma terra rica e auto-suficiente

O planalto de Miranda, que para sul se prolonga bastante pelo concelho de Mogadouro, vem ainda dar forma à parte norte de Brunhoso, com terras planas, pouco fundas e secas, próprias para o cultivo do trigo e do centeio, que se produzia em abundância. Os meses de Julho e Agosto eram meses de grande azáfama com a ceifa das searas, a acarreja dos molhos de cereais, feita pelos carros de bois e de mulas, para as eiras do Prado, onde as medas iam crescendo em largura e altura e finalmente as malhas e a recolha do grão e da palha.

Nessa zona de planalto, numa parte sobranceira à aldeia a cerca de um quilómetro, existia um grande souto, implantado num terreno de muitos hectares, propriedade da Junta da Freguesia, sendo os castanheiros propriedade dos naturais da terra, divididos desigualmente através de um processo já antigo que desconheço, possivelmente com vendas e trocas posteriores. As castanhas eram tão boas, sobretudo as variedades predominantes: a longal e a judia, pouco a rebordega só própria para dar aos porcos.

Seara de centeio em Trás-os-Montes
Com a devida vénia a Panoramio

Nos dias de domingo, já um pouco frescos de Outono, os rapazes e raparigas solteiras faziam magustos na Serra (sítio dos castanheiros, seria Serra porque ficava noutro plano acima da aldeia, penso eu) com grandes fogueiras e faziam bailes ao som de realejos (harmónicas de boca) para aquecer os corpos e as almas. As castanhas eram uma riqueza que não saía da aldeia, pois nesse tempo não tinha compradores, as pessoas comiam algumas cruas, mais cozidas ou assadas e a maioria davam-se aos porcos, para os cevar, pois as matanças não estavam longe e elas eram um bom alimento para eles. Guardavam-se sempre algumas nas despensas, em talhas de barro, para serem comidas cruas no dia primeiro de Maio senão o burro mordia, vá-se lá saber porquê.

Para sudoeste o termo de Brunhoso integra-se na paisagem formada por montes e vales a perder de vista que identificam e dão nome à província de Trás-Os-Montes. As montanhas da Ribeira e da Lagariça que acompanham os vales dos mesmos nomes, onde correm ribeiros bastante caudalosos no Inverno e na Primavera, quase secos no Verão, estão cobertas de sobreiros e de estevas, giestas e outros arbustos. As giestas e estevas na humildade do seu porte aqueciam as casas dos trabalhadores sem terras nas noites frias de Inverno e eram uma lenha excelente para aquecer os fornos onde se coziam os grandes pães trigos e centeios. Os sobreiros no seu porte altivo produziam a bolota, tão do agrado das ovelhas e carneiros e a cortiça que proporcionava uma fonte de rendimento extra para alguns lavradores.

Nesse tempo, do norte ao sul da província, na zona de terras entre o rio Sabor e o Douro Internacional, Brunhoso era a aldeia que produzia mais cortiça e mesmo fora dessa área muito poucas aldeias haveria no norte de Portugal com maior produção.

Caminhando montes fora por caminhos e carreiros vamos encontrar a cinco quilómetros o vale do rio Sabor com uma ladeira muito extensa coberta de oliveiras com muitos socalcos de pedra, chamados safardas, que permitiram que se fizessem os plantios e manutenção dessas grandes áreas de olival. Para aproveitamento dos terrenos planos para o cultivo dos cereais e dos montes com menor declive para o montado de sobreiros, os nossos antepassados reservaram esses terrenos de encostas íngremes que descem para o rio e com um clima menos frio para as oliveiras. Encostas por vezes tão íngremes que as oliveiras tinham que ser cavadas pela mão do homem pois as juntas de vacas ou de mulas não conseguiam equilíbrio suficiente para as puder lavrar. Terrenos tão íngremes onde não havia caminhos onde pudessem circular os carros de bois e a azeitona tinha que ser transportada dentro de sacos por burros e mulas.


Para além de todo o trabalho em excesso, essas árvores, que dizem que um Deus há muitos séculos abençoou, davam azeite para dar e vender, azeite óptimo feito sobretudo das variedades madural, negra e verdial com algumas lentisca, cobrançosa e bical.

Junto ao rio Sabor numa planície de 100 a 200 metros de largura, que lhe acompanhava a margem, estavam as oliveiras centenárias, com troncos mais largos do que um abraço de dois homens. Muitas delas teriam mais de 500 anos. A memória da aldeia, que transmitida de gerações em gerações geralmente se perde nos nossos bisavós, estava no seu ADN, caso houvesse um cientista que o soubesse descodificar e revelar todos os que ao longo dos séculos as plantaram, as limparam, as lavraram, as estrumaram, as varejaram e lhe apanharam a azeitona.

Infelizmente essas grandes oliveiras, há dois anos, foram arrancadas para dar espaço livre à inundação provocada pela barragem do Sabor. Enfim é o progresso a descaracterizar o passado, num país mais rico e mais respeitador da sua história natural, essas árvores, monumentos da natureza, seriam transplantadas para terrenos livres e há tantos agora ao abandono.

 A povoação está situada numa parte mais baixa, abrigada entre o planalto e a zona montanhosa. Ao redor dela, num raio de 1 a 2 quilómetros em terrenos mais fundos e com maior abundância de nascentes de água situavam-se as hortas e lameiros. As hortas produziam batatas, feijões, melões, melancias, abóboras, beterrabas, milho e muitos outros produtos hortícolas para consumo das pessoas e dos animais. Produziam ainda linho com que as mulheres fabricavam nos teares: toalhas, colchas, peças de roupa e grandes sacos de linho para transportar o trigo e o centeio.

Vale do Sabor
Foto: © Miguel Barbosa

Os lameiros e regadas davam bom pasto ao gado bovino, asinino e muar e os freixos e olmos, que cresciam neles, forneciam-lhes também as suas folhas, comestíveis no tempo quente e seco do Verão, em que havia pouca erva. Havia muitas vacas para o trabalho dos campos que pariam muitas vitelos para venda ou para criação.

Há um mês, à lareira da casa de Brunhoso, que herdámos dos nossos pais, à conversa com o senhor António, lavrador de Mogadouro, um homem rijo e com boa cabeça, apesar dos seus 90 anos, com muitas estórias para contar, falou-nos nas carneiradas já esquecidas nas dobras da minha memória. Segundo ele, em 1945, com a idade de 18 anos, foi contratado por um negociante de gado para ir a pé com mais quatro pastores para levar 900 carneiros a Celorico da Beira, a uma distância de cerca de 130 quilómetros. A viagem, de ida e volta, sempre a pé, demorou quatro dias e conta que ganhou 50 escudos, uma boa importância para a época,  segundo afirmou. Segundo ele, nesse tempo e ainda em tempos posteriores, que eu recordo vagamente da minha meninice em Brunhoso, havia três ou quatro carneiradas. As carneiradas eram rebanhos de carneiros capados, para atingirem maior crescimento e como tal próprios para serem vendidos para produção de carne.

Rebanhos de ovelhas nesse tempo haveria 15 a 20 que produziam muito leite de que as mulheres fabricavam bons queijos e produziam muita lã aproveitada para fazer, tal como o linho, muitas roupas para uso pessoal e doméstico, estou a lembrar-me das meias grossas de lã, usadas no Inverno.


Os carneiros e as ovelhas andavam por montes, terras não semeadas, por hortas não plantadas, terras de adil, raramente lameiros. Nessa sociedade de subsistência nada se desperdiçava, havia lugar para todos os tipos de plantas e animais e cada um ocupava o seu espaço próprio em proveito da comunidade.

Não havia cabras em Brunhoso, um acordo antigo entre os lavradores, instituiu essa proibição para proteger os sobreiros no seu crescimento pois esses animais gostavam de roer os caules e ramos tenros dessas árvores. Dentre as aldeias em redor esta "lei" era única e respeitada pelos cabreiros das terras próximas, sendo já antiga, talvez nos ajude a compreender porque razão se produzia tanta cortiça na aldeia.

Produzia-se algum vinho, não o suficiente para consumo da aldeia, já que estando situada numa zona de terra fria, o clima não era o melhor para o amadurecimento das uvas. A melhor zona para plantar a vinha seria, penso eu, nas arribas do Sabor, pela sua exposição solar e por ter clima mais quente, porém esses terrenos estavam reservados, há longos anos, por vontade dos mais velhos, para a produção desse líquido dourado, abençoado pelas mulheres e pelos deuses, que produziam as oliveiras.

 Para a economia das famílias eram também muito importantes os porcos que cada uma criava para matar no Inverno e guardar o presunto, o toucinho, os salpicões, as linguiças, as alheiras e outros enchidos para consumir durante o ano, assim como a criação de galinhas e perus que além de ovos forneciam boa carne. Muito importante também para a dieta dos mais pobres e apreciada igualmente por todos os habitantes eram as produtos que cresciam espontâneamente nos campos, os míscaros, as azedas, os cunqueiros, os agriões, as merugens. Para variar as dietas alguns tinham acesso à carne de caça, perdizes, coelhos e lebres e aos peixes que alguns pescadores pescavam no rio Sabor por vezes em grandes quantidades.

Tudo é relativo, assim Brunhoso, nesse tempo, que era uma aldeia rica e auto-suficiente, uma sociedade rural de subsistência, com os recursos agrícolas e florestais explorados até ao limite, não conseguia alimentar nem dar trabalho a todos os seus filhos porque a explosão demográfica fazia crescer exponencialmente a população. Tendo cada casal uma média de seis ou mais filhos, a única saída para os mais desfavorecidos da fortuna quando se atingia um certo limiar populacional, era o drama da emigração. Actualmente com o declínio acentuado da agricultura tradicional, esse drama converteu-se na tragédia da vida que a grande poetisa galega Rosália de Castro retratou em verso em relação à sua terra.

Em Brunhoso só já moram alguns desfavorecidos da sorte e outros que por muito amor às mães que os geraram e à terra mãe onde nasceram e foram criados, nunca tiveram coragem de abandoná-la. Ficaram também alguns mais velhos a sonhar com o movimento das gentes e dos animais de antigamente e algumas mais velhas com o olhar mortiço e desalentado pois estão privadas da presença dos netos e dos filhos que davam calor às suas vidas e tanto brilho ao seu olhar. Os da minha faixa etária (já velhos!) que vamos periódica ou ocasionalmente à aldeia, que acompanhámos a transição entre estes dois mundos, temos a alma repartida pois em troca de algum bem-estar fomos perdendo as nossas raízes. Os olmos tão verdes e frondosos na Primavera e no Verão morreram há muitos anos com a grafiose, doença holandesa dos ulmeiros, os freixos vão ficando enrugados porque não há rapazes ou homens que lhes esgalhem os ramos, nem vacas que lhe comam as folhas, os castanheiros morreram também todos de outras pragas, os sobreiros têm morrido, uns por velhice, outros por causa das alterações climáticas.

Os terrenos da minha aldeia, que tem 20 km2 de área agrícola e florestal, está dividida em dezenas de sítios com nomes que podem identificar uma área de dois ou três hectares ou uma área de trinta ou mais hectares. Sem estarem assinalados com qualquer marca física, toda a gente da terra conhece os seus limites.

A minha vida na aldeia que nunca esteve confinada às quatro paredes da casa dos meus pais, abre-se para esses espaços livres que percorri tantas vezes e fazem parte da minha memória geográfica e afectiva, que passo a nomear: Lagariça, Ribeira, Hortelã, Miragaia, Gaiteiro, Fonte da Dona, Fonte do Buraco, Fonte do Junco, Juncais, Juncaínhos, Urzal, Entre-Caminhos, Ferreiros, Cachão, Barca, Perdigosa, Rabo da Vaca, Cova dos Lobos, Sapo Torrado, Boiselas, Cabecinho, Canadinha, Crasto, Lamas, Fraga do Poio, Fraga da Tecedeira, Forno dos Mouros, Lama das Vinhas, Vinhas dos Cães, Milhares, Balhelhos, Serra, Cinzas, Chabouco, Vale de Cabo, Vale de Meio, Valedramum, Vale da Nina, Couço, Azinhal, Arrebentão, Escaleiras, Figueiredo, Picotas, Prado, Orretas, Olmos, Lameira, Lameirões, Rodelas, Barriguinho, Queimada, Maias, Francos, Picotas, Netos e outros que agora não recordo.

Um abraço
Francisco Baptista
____________

Nota do editor

Último poste da série de 8 de junho de 2015 Guiné 63/74 - P14714: Brunhoso há 50 anos (5): Uma sociedade paternalista (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)