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quinta-feira, 23 de maio de 2013

Guiné 63/74 - P11614: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (13): Religiosidade

1. Em mensagem do dia 19 de Maio de 2013, o nosso camarada  Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, BissauBissorã e Mansabá, 1965/67), enviou-nos a sua décima terceira "Carta de Amor e Guerra".


CARTAS DE AMOR E GUERRA

13 - RELIGIOSIDADE


Vale de Figueira, 11- Janeiro-1966 
(… … …) 
Eu creio sinceramente no teu regresso. Sou católica, como sabes. E a minha fé na protecção divina é grande. Deus ouvirá a minha prece. Fervorosamente, eu peço-lhe que nos aproxime, que te traga de novo ao seio da tua família. E já muitas preces foram atendidas, mesmo no que a ti respeita. Não permitiu que ficasses a meu lado nesta época mas, mesmo assim, não desespero. 
(… … …) 
Não queria causar-te aborrecimentos tocando-te em assuntos religiosos. Desculpa-me, pois, se te enfado mas tenho de te dizer o que sinto, o que é a minha opinião. 
Não terás tu, rodeado de perigos, no mais acerbo da dor, sentido necessidade de apelar para qualquer auxílio supremo, de te confiares a algum ser sobrenatural? 
Essa tua fé nos bons resultados da tua actuação, a tua confiança na sorte, não serão indícios da tua credulidade em algo de divino mas de que, confuso que se te apresenta, ainda te não apercebeste? 
Pelo estudo avançado de filosofia que fizeste e ao procurar explicar tudo à luz da razão, cais em contradição ao negares a existência de Deus. A meu ver só se pode negar qualquer coisa que sabemos que existe pois, se não existe, é utópico negá-la. Se negas a existência desse Deus, mesmo sem o perceberes afirmas que existe e apenas não queres reconhecê-lo. 
Talvez agora estejas sentindo essa necessidade de te protegeres, de te pores à guarda de um ser divino, dum ser supremo. Talvez que na aproximação do perigo estejas também tu voltando ao caminho de católico ou de cristão que és. 
(… … …) 
Apetecia-me doidamente abraçar-te, beijar-te muito, muito, (…). 
Meu amor querido, seja na Guiné ou em qualquer lugar recôndito da Terra por onde vagueemos, há problemas, há situações angustiantes. A cada um compete resolvê-las. Sorri um poucochito mais, meu querido … 
(… … …) 
Pondo em acção toda a nossa vitalidade, toda a nossa energia de jovens, não deixemos que as derrocadas diárias nos marquem ao desabarem. Deste modo venceremos, decerto. Combinado, minha jóia querida? (… … …). Confiemos então na tal “sorte”, na tão ambicionada sorte que há-de ser a tua mais fiel companheira enquanto a minha presença pessoal junto de ti nos for vedada. 

(…) beijos apaixonados da sempre tua N. 
Adeus meu querido. 


Bissorã, 18 Jan 66 

Muito obrigado pela tua carta, minha querida. Valerá a pena elogiar-te? Com certeza. Tu merece-lo. 
(…… …) 
Nota, no entanto, minha N. Apesar destes meus indicativos de satisfação, não quero que estagnes. Essa tua vontade de progredir que não pare, que não feneça. (…). Muito há ainda para descobrir. 
(… … …) 
E eu confio, tenho a certeza na tua capacidade de ascensão intelectual. Vais no bom caminho. Estás OK, minha querida! 

Quero-te dizer agora uma coisa: - sê coerente contigo própria, (…). Se és católica, se és religiosa, frequenta a Igreja, professa calmamente a sua doutrina mas sem te fanatizares, com o sentido crítico, razoável, que deve ser o de alguém consciente. 
(…). 
Custa-me dizer-te mas, no aspecto religioso, (…), não sinto possibilidades de poder acompanhar-te. Eu não nego a existência de Deus, nota bem. Simplesmente, eu sou agnóstico. Não nego a existência de Deus mas também não há nada que ma possa provar. Nada, percebes? 

Todos os argumentos que me possam indicar são, para mim, sem bases, refutáveis. Podes crer, minha querida, que em todos os momentos de aflição por que tenho passado, nunca, NUNCA, nota bem, um leve chamamento por algo sobrenatural me envolveu o espírito. (… … …). O que sinto, em todos esses momentos críticos, é ódio, um ódio extravasante. Não pelos chamados terroristas que provocam a aflição. Não tenho nada contra eles. Mas sim contra esta orgânica e seus mantenedores. Isto aqui é mesmo um inferno. (…). De um momento para o outro tudo pode acontecer. E a Guiné ficará na história de Portugal como o cadafalso de centenas de jovens, inglória e criminosamente sujeitos a megalomaníacos que não há meio de serem destruídos. Reza, minha querida, se tens fé. Agradeço-te as tuas boas intenções. 

Desculpa, mas ri-me de um período da tua última carta no que respeita à negação da existência de Deus. Aquela parte que se referia à filosofia. Tudo aquilo que expuseste são trocadilhos de ideias que não levam a nada e que muita gente usa para confundir os espíritos. Eu, como já te disse atrás, não nego a existência de Deus mas também nada há que me faça acreditar nele. 
(… … …) 
Acho que só quem tem fé pode acreditar em Deus. Não tenho fé. Já a tive. Mas sinto-me bem assim. Não preciso de pôr à minha frente o mito de um ser superior que nos vigia, vela por nós, castiga ou salva. Se Deus significa o caminho da salvação ou da perfeição, o meu Deus é o bem, o belo, a paz, a alegria, o amor, a liberdade, a vida. É um Deus mais íntimo, que eu mais acarinho pois sou eu também um daqueles que o ajudam a viver. 
(… … … ). 
Sei, para terminar, que posso afirmar convictamente: 
- A existência ou a não existência de Deus não é problema para mim. Sinto-me bem à margem, desinteressado do problema. Já sofri muito por causa disto. Agora sinto-me perfeitamente satisfeito com o meu agnosticismo. (… … …). 
Minha querida, AMO-TE. (…). 
M. 

******

 [Cerca de um mês depois de ter recebido a carta de D. (11.01.1965), onde se lê “Não terás tu, rodeado de perigos, no mais acerbo da dor, sentido necessidade de apelar para qualquer auxílio supremo, de te confiares a algum ser sobrenatural?” passei por um momento único em que me senti totalmente nas mãos do inimigo. Referi-lhe este facto, a tempo, numa das cartas mas não tocando na questão religiosa ou, melhor, indirectamente dizia que, num clima de aflição, não tinha pedido apoio sobrenatural. É que, numa emboscada e durante uns segundos intermináveis, tinha entrado no domínio do despojo absoluto (“acabou, tudo está consumado”) à espera de ser fuzilado. Mais que num grito abafado, saiu-me num murmúrio angustiante um “Ai, minha mãezinha!”. E não era aquela comum e muito vulgar expressão de aflição, era mesmo um pedido inconsciente de socorro de quem estava consciente da sua situação de total fragilidade e em que, qual bebé, “só” a sua Mãe o poderia salvar.]


Bissorã, 17 Março 66
(… … …)
Olha lá, não ouviste aí falar, na rádio ou nos jornais, numa grande operação realizada aqui, em que tivemos um êxito enorme? Foi na noite de 19 para 20 de Fevereiro. O teu M. lá andou. Vi-me tão atrapalhado nesse dia que até gritei pela minha Mãezinha e por ti. Não te rias, é verdade! Um “sacana” estava mesmo a atirar-me para cima. As balas picavam o chão à minha volta e só estava à espera de sentir uma pelo corpo dentro. Mas saí incólume. Éramos perto de 250 homens e só tivemos quatro feridos [ligeiros]. Capturámos muitíssimo material de guerra. (…). As fotografias do material capturado deveriam ter circulado pelos jornais e pela TV. Não viste? [*]
(… … …).

Foto 1

Foto 2
 Fotos 1 e 2 > Referências na imprensa (não identificada) à op. Castor.

Foto 3

Foto 4
 Foto 4: Fotos 3 e 4 > Imagens de material capturado, em espera para ser carregado no heli. 

Foto 5

Foto 6
Fotos 5 e 6 > Imagens de algum do mais importante material de guerra capturado e reunido no Olossato. 

 [*] [ “Vi-me tão atrapalhado nesse dia que até gritei pela minha mãezinha e por ti”:
 Referência à “Operação Castor” (20/02/1966) que consistiu num bem sucedido golpe de mão a um depósito de material de guerra do IN na sua grande base de Morés. Correu tudo de tal modo que o IN só reagiu bastante tempo depois, interrompendo o serviço dos helicópteros que já tinham recolhido e transportado para o Olossato a maior parte do material (cerca de três toneladas), tendo o restante de ser levado às costas pelo pessoal participante na acção (CCaç 816, CCaç 1419 e Pel Milicias). Nesta retirada, no caminho para o Olossato, sofremos uma forte emboscada. Na preocupação de coordenar os “meus” homens, aconteceu ver-me no meio da “estrada” e ter de me deitar aí, ficando a descoberto, de bruços, com a cabeça a tentar “esconder-se” atrás de um saco de carregadores vazios que antes levava aos ombros. Dei por um levantar de poeira provocado por uma rajada com as balas a picar o chão à minha frente, a centímetros da cabeça. Comecei a sentir-me alvo de alguém que tentava acertar-me. Sem hipóteses de me levantar e de mudar de lugar fiquei, imóvel, colado ao chão, à espera de ser “costurado”. Ainda hoje, quando penso nisto, sinto um calafrio a percorrer-me a coluna, desde o “buraco” ao fundo das costas até à nuca. E é verdade, “juro”, que nesta aflição me não ocorreu qualquer ideia e/ou expressão de índole religiosa. Se “gritei” pela namorada, já me não lembro. Mas o “Ai, minha mãezinha!” continua fortemente a ecoar na minha mente quando recordo o acontecimento.

Sobre esta operação militar, “Condor”, ver neste blogue o P3806 de 27/01/2009, do camarada Rui Silva da CCaç 816, de onde foram recolhidas as imagens acima publicadas. Neste “post” do nosso estimado “tabanqueiro” há dois erros a merecer correção:

(i) não foi a CCaç 1418 quem acompanhou a CCaç 816, mas sim a CCaç 1419, a que pertenci, deslocada de Bissorã para Olossato precisamente para esta operação.

(ii) também a CCaç 1481 não foi a outra companhia que atuou “à distância” pois estava em Moçambique (BCaç 1873). Julgo que na identificação houve troca dos algarismos 1 e 8 e, por isso, creio ter sido, aqui sim, a CCaç 1418 a atuar.]
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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE ABRIL DE 2013 > Guiné 63/74 - P11413: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (12): A morte se fez visita estrondosa

terça-feira, 19 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11278: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (24): O Sampaio armadilhou os seus tomates e deu mesmo estouro

1. Mensagem do nosso camarada Rui Silva (ex-Fur Mil da CCAÇ 816, BissorãOlossatoMansoa, 1965/67), com data de 13 de Março de 2013:

Caríssimos Luís, Vinhal e M. Ribeiro.
Votos de muita saúde e bem-estar, sempre, só que desta vez desta vez acompanhados de mais um Salpico que foi buscar às minhas memórias.
Passem bem, muito bem mesmo.
Rui Silva


Como sempre as minhas primeiras palavras são de saudação para todos os camaradas ex-Combatentes da Guiné, mais ainda para aqueles que de algum modo ainda sofrem de sequelas daquela maldita guerra. 

Do meu livro de memórias “Páginas Negras com Salpicos cor-de-rosa” 

24 - O Sampaio bem soube armadilhar os seus tomates,… e não é que deu mesmo estouro!

O amigo do Sampaio, o cabo fiel da arrecadação, e a quem bem podíamos de alcunhar de “mão para toda a obra”, pois passava a vida a engendrar isto e aquilo, e diga-se de passagem, que as suas obras saíam sempre perfeitas e sobretudo de boa utilidade.
Era realmente possuidor de muita habilidade e sobretudo de grande poder de imaginação. Uma espécie de self made man. Na arrecadação nada falhava.
Muita habilidade para tudo, só que a sorte nem sempre o acompanhou, como veremos adiante.

Entre as diversas engenharias dele, sobressaiu a armadilha nas suas plantações de tomates, plantações estas que ele tinha ali mesmo ao lado da arrecadação. Soube ele bem aproveitar aquela meia dúzia de metros quadrados, com muito esmero e dedicação, e então aquela terra era tão fértil!… Quantas vezes por ano pensava o Sampaio fazer a safra!

Mas, assim que os tomates começaram a aparecer maduros (e até mesmo ainda longe disso), começaram também a aparecer os seus apreciadores, oportunistas e amigos do alheio, e que, a coberto da noite, vinham lá de visita e… principalmente de colheita.

Então o amigo Sampaio vê a improficuidade do seu trabalho e arranja lá maneira de pregar um grande susto a tal clientela e, vai daí armadilha a plantação com detonadores, a começar pela pequena cancela de madeira que era a porta (?) da horta, já que em toda a volta havia uma sebe que tornava mais difícil o acesso à pequena mas cuidada plantação. Os detonadores não demoraram a estoirar apanhando os mais incautos e os tomates foram assim preservados; os que ficaram, naturalmente.
Quase se pode dizer que o Sampaio mal virou as costas após montar os detonadores, eles estouraram…

Meter-se com o bom do Sampaio não era assim tão fácil sair a ganhar.

Recordo-me de uma pequena mesa em madeira que ele fez para o meu quarto, e do Luís José, ainda em Bissorã, ainda nós com muito pouco tempo de Guiné, mesa essa toda feita à mão com ajuda de rudimentar ferramenta, o que logo ali mostrou toda a sua habilidade.

Então o Sampaio, numa das suas engenhocas, havia de pagar um alto tributo, pois aconteceu o que ele menos esperava, e que também passo a contar:

O Sampaio, na qualidade de responsável pela arrecadação do diverso material, incluindo munições, era amiudadas vezes incomodado de noite, quando já se deleitava com um sono retemperador. Isto já no Olossato (tínhamos estado um tempo em Bissorã). Assim, de vez em quando, lá aparecia um “fora d’horas” a importuná-lo, ou a pedir óleo para limpar a arma, ou a pedir munições para a operação no mato que se ia fazer, ou isto ou aquilo. Às vezes parecia que o objetivo era alvoraçar o bom do Sampaio

O Sampaio, às vezes, primeiro que se visse despachado era um dia de juízo. Acordar em sobressalto e por coisa que não se justificava, a maior parte das vezes, não, não podia continuar. Até parecia que faziam de propósito, até parecia…

Então o Sampaio há que pôr a imaginação a trabalhar e tratou de arranjar o antídoto para aquele estado de coisas e pôs mãos à obra. Coloca um latão, daqueles de 25 litros, cheio de água em cima da porta da arrecadação e ata-lhe um fio que se estendia até à sua cama, o que ainda distava uns bons metros.

Assim, ele, sem se levantar, e até sem ter que se movimentar muito, comandava por meio do dito fio, o movimento do latão. Assim que alguém o viesse chatear a horas impróprias e desadequadas, ele, da sua cama, sem se levantar, puxava primeiro o fio que abria a porta (este sempre existiu) e depois já com o ilustre e inoportuno visitante do lado de dentro, puxava um outro fio que fazia virar o latão e despejar toda a água pela cabeça abaixo do insolente cliente. Bom, até aqui tudo muito certo, até porque o Sampaio tinha direito ao seu descanso como qualquer comum dos mortais, e alguém teria de levar uma ensinadela, agora o que nunca passou pela cabeça do Sampaio era que o primeiro cliente a levar com a água pela cabeça abaixo seria, nem mais nem menos e, vejam lá (!)… o Capitão!!
Isso mesmo: O Comandante da Companhia.
De perto de 200 homens havia de aparecer o que ele menos contava.

O Sampaio naquela noite de estreia, com tudo preparadinho e afinadinho ao pormenor, como só ele o sabia fazer, deitou-se concerteza com um sorriso a aflorar-lhe os lábios, imaginando o que queria gozo, todo encharcado.

Aconteceu porém, que naquela noite, que já tinha principiado há muito, o Capitão, em pijama tropical, resolve ir à arrecadação para dar um recado ao Sampaio, o que nunca aconteceu ou muito raramente acontecia. Bateu à porta, uma, duas vezes, esta abre-se e de seguida catrapus, temos o Capitão molhado dos pés à cabeça. E ele que ia só com um fino pijama sobre a pele.
Foi mesmo em cheio ou aquilo não fosse projeto do Sampaio. Eu, claro, não vi, mas faço uma pequena ideia da cara do Sampaio ao constatar quem foi o primeiro a morder o isco.
O Capitão, é que não gostou da brincadeira, e trata logo de saber quem fez aquilo e no final das contas também constatou que havia cúmplices. O castigo foi fazer alinhar o Sampaio e os seus acólitos em duas operações ao mato, entre eles o bom do Zé corneteiro

O Cabo Zé corneteiro, (falecido cá já há alguns anos - paz à sua alma-), que também tomava conta da nossa messe, e que tinha sido um dos colaboradores do Sampaio, nunca mais deixou de tremer, ao saber da sua sorte.
O quê?, ir para uma operação no mato, coisa que tal nunca tinha acontecido, nem estava previsto acontecer? Afinal ele era só corneteiro: "Oh meu Furriel, como é que eu faço?” - pergunta o sobressaltado do Zé.

Apanhou por tabela o engenho mal sucedido, embora moralmente bem intencionado, do “engenheiro” e seu colega de apartamento, o Sampaio
O Zé até fez sandes de ovos estrelados para levar para o mato com o “medo de poder enfraquecer!…” (palavras dele)
Pois é verdade, o Capitão não condescendeu e eles cumpriram mesmo o castigo.

Aquela engenhoca desta vez tinha ficado cara ao habilidoso do Sampaio. O Sampaio, esse, de sorriso simples e constante, esqueceu-se deste por uns dias. Mas só por aqueles que andou por o mato.

O sorriso que o Sampaio ainda hoje o tem (semelhante ao da Gioconda) e que logo se amplia quando eu lhe lembro o episódio dos tomates, nos Convívios que ainda hoje e sempre fazemos.

À hora da partida para o mato, já pela noite dentro, era vê-los aos dois ali alinhadinhos junto ao “cavalo-de-frisa” e metidos bem debaixo dos capacetes, como bons operacionais. Muita gente à frente deles na fila indiana. Pelo menos puderam escolher a posição. Impressionou-me eles a tremerem quando frio era coisa que não existia naquelas paragens, e a cor deles também não era das melhores para além, claro, da inusitada tremedeira.

Mas voltaram sãos e salvos às lides do Aquartelamento: o Zé volta a tocar a gaita com todo o vigor ao alvorecer e com rara mestria, e o Sampaio voltou a sorrir e a atender o pessoal na Arrecadação mas aqui já com cuidados recíprocos.

Quanto à plantação dos tomates não mais valeu a pena. Agora só dava para coçar… a história.

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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 25 DE JANEIRO DE 2013 > Guiné 63/74 – P11004: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (23): As emboscadas

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Guiné 63/74 – P11004: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (23): As emboscadas

1. Mensagem do nosso camarada Rui Silva (ex-Fur Mil da CCAÇ 816, BissorãOlossatoMansoa, 1965/67), com data de 23 de Janeiro de 2013:

Caros e prezados amigos Luís, Vinhal e M. Ribeiro:
Recebam o abração de sempre.
Em anexo, uma história tirada do meu caderno de memórias.

Passem bem.
Rui Silva


Como sempre as minhas primeiras palavras são de saudação para todos os camaradas ex-Combatentes da Guiné, mais ainda para aqueles que de algum modo ainda sofrem de sequelas daquela maldita guerra. 

Do meu livro de memórias “Páginas Negras com Salpicos cor-de-rosa” 

23 - As emboscadas

A operacionalidade da Companhia de Caçadores 816, certamente semelhante a muitas outras, no terreno, passava principalmente pelas seguintes ações:

Principalmente (e ligadas diretamente à guerra):

- Golpes-de-mão a refúgios do inimigo (as então chamadas “casas-de-mato”) dentro da quadrícula distribuída à Companhia.
- Defesa dos ataques ao aquartelamento
- Saídas para montagem de emboscadas ao inimigo.

Outras (que se relacionavam de algum modo com a guerra, mas não diretamente):

- Patrulhamento (batida ao terreno) na área da periferia adstrita ao aquartelamento.
- Recolha de nativos (operação “psico”) em moranças ou pequenas tabancas “clandestinas” algures no mato e controladas pelo inimigo
- Operações “Vaca” (no Olossato era bife XL todos os dias)
- Idas à lenha e/ou à água.
- Proteção aos nativos nas capinagens, apanha de mancarra, recolha de xabéu, etc..


Falando do 3.º item: EMBOSCADAS

Era das coisas não menos importantes neste tipo de guerra, mas que raramente surtiam qualquer efeito. Era muito difícil intercetar o inimigo no terreno, que ele conhecia muito bem, como as suas próprias mãos. Assim era certo que eles evitavam os carreiros, trilhos e principalmente as estradas, pondo-se assim a coberto de qualquer cilada da nossa parte.

Quando optavam utilizar os trilhos usavam muito a tática de enviar 1 ou 2 homens à frente, desarmados, tipo batedores, e denotando pacíficos caminhantes. Após alguns minutos então vinha o “grosso” da coluna: homens armados, pelo menos alguns, então transportando armas, víveres (normalmente arroz), caixas e cunhetes de munições diversas, livros, prospetos, isto é, diverso material bélico e também didático ou propagandístico.

A maior parte das vezes, no entanto, eles não davam qualquer sinal de vida; conhecedores do terreno como ninguém e sabendo a movimentação da tropa, esta controlada muitas vezes por carteiro adiantado.

Assim, a tropa normalmente regressava de uma emboscada, e, como se costuma dizer, de mãos a abanar. Houve uma altura que a Companhia, no efetivo de um pelotão, fez sucessivas emboscadas em Colissaré baseadas em informações de que o inimigo fazia por ali um corredor para (ou de) Morés. Nada, nada resultou. Eles conheciam bem o chão que pisavam e assim evitavam-nos, ao passo que a tropa via-se normalmente forçada a deslocar-se através dos carreiros e trilhos que havia, senão queria perder-se, ou mesmo por estrada, aqui necessariamente quando auto-transportada. Quero com isto dizer que assim éramos muito mais vítimas de emboscadas montadas por eles, do que algozes das nossas. Podia então bem dizer-se que o mato era deles e as povoações eram nossas. No entanto pode dizer-se que quando havia refrega, mesmo no mato, a vantagem e qualquer que fosse o sítio do recontro, era invariável e nitidamente nossa, pelo menos na zona do nosso domínio e parecia que quase em toda a Guiné. Isto em 1965-67. Em quase dois anos luta da 816 na Guiné pode-se dizer que as emboscadas - e foram largas dezenas - que eles nos montavam normalmente acabavam por debandada deles face ao nosso poderio quer em homens quer na qualidade do armamento e porque não dizer à nossa audácia. Ao cair da nossa primeira morteirada normalmente acabava com a emboscada. Normalmente eles usavam a tática do bate-e-foge. Ressalve-se no entanto e por paradoxal que pareça, que os nossos dois mortos foram-no em emboscadas e em alturas diferentes e feitas em retaliação a nossa “provocação” (leia-se: ataques nossos) e uma delas bastante forte. Foi feita inicialmente à base de arremesso de granadas de mão. Saraivada delas.

Tínhamos já ouvido falar deste tipo de emboscadas. Provaríamos mais tarde deste veneno. Um Furriel miliciano morto e vários feridos foi a consequência desta audácia inimiga.
Dizia-se que os lançadores das granadas que se posicionavam natural e necessariamente muito próximo da picada eram elementos que faziam isso por castigo - castigo por qualquer traiçãozinha na tribo.

Eles também eram duros na sua disciplina, sabia-se. O castigo muitas vezes era pô-los a atuarem como lançadores de granadas em emboscadas às nossas tropas.
A probabilidade de serem atingidos, e foram, era grande, daí uma missão para castigados,… ou drogados (também se ouvia isto).

Verdade se diga, que à medida que os meses passavam eles também ofereciam cada vez mais resistência, pois para além de irem obtendo armamento mais sofisticado, iam sendo mais bem organizados. E depois os cubanos e outros mercenários - O pequeno partido (?) que eles tiravam, então, das suas emboscadas, na altura, talvez fosse mais psicológico, como que a demonstrar a sua força (…), o querer dizer nós estamos aqui e não vos queremos cá, para além de nos fazer gastar munições. Lembro-me que em resposta a uma simples rajada da “costureirinha” (isto nos primeiros tempos), nós despejávamos os carregadores (periquitices). Com o tempo aquela rajada do inimigo, se isolada, não tinha resposta. Ao fim de alguns meses conhecíamos o tipo de tiro ao sair do cano. Aí já não era um sexto sentido mas um sétimo talvez. Era impressionante aí já o feeling da malta com o boom do tiro.

Vou contar, em primeiro lugar, (o assunto é “emboscadas”) o que se passou com uma das emboscadas feitas pelo meu Grupo de Combate, feita não muito longe muito da “casa-de-mato” de Iracunda, mais concretamente em Cudana, e que teve o seu quê de insólito.

( Insólita era a guerra também).
 Estávamos então a 26 de Fevereiro de 1966.

O meu Grupo de Combate foi então incumbido de fazer uma emboscada em certo ponto de um carreiro, em plena zona de Cudana, onde e pelos vistos, presumia-se (informações que chegavam) que passavam por lá elementos terroristas com alguma regularidade. Com o meu Grupo de Combate foram alguns dos nativos voluntários do Olossato que sempre se prontificavam a ir a qualquer espécie de operação, pois isso sempre lhes rendia alguns “Pesos”. Chegados ao carreiro pré-identificado e depois de escolhermos um lugar que nos oferecesse boas condições de êxito, instalamo-nos o melhor possível e eu, fiquei, ou melhor procurei ficar, junto de dois pretos veteranos, os tais que esgravatavam pesos. Perto de mim estava também o “bazookeiro do meu GComb, o “Doutor”.

Eu gostava de estar junto de um ou mais indígenas, daqueles calejados (alguns já andariam há pelo menos dois anos naquilo) e veteranos, pois estes além de silenciosos eram muito atentos, até parecia que nem pestanejavam; pressentiam o inimigo ainda bem longe e até ainda que oculto. Parecia que tinha um “faro” para descobrir pessoas e denunciar ou prever as oscilações climatéricas, isto é, o tempo que ia fazer dali a pouco, ou dali a muito.

Estávamos ali emboscados havia já algumas horas, quando um dos pretos que estavam ao pé de mim me tocou e sussurrou:
- Furriel, vêm aí dois pessoais bandido.

Então, sem me agitar muito, procurei vislumbrá-los entre a folhagem que nos encobria o que com dificuldade consegui, pois vinham ainda muito longe e mal se distinguiam no emaranhado do mato, e então aqui a ideia que eu fazia de que os pretos, pelo menos os mais experimentados e que nos acompanhavam operacionalmente, eram dotados de um sexto sentido incomum, saiu reforçada, pois fiquei deveras impressionado como eles toparam os dois “turras” a tão longa e sinuosa distância. Tomei o devido cuidado pois eles podiam muito bem vir armados, segurei a arma em posição adequada. O silêncio que era quase absoluto até aí, passou a sê-lo mesmo pois então e pelos vistos, entretanto, toda a malta já estava prevenida da aproximação dos dois indivíduos.

Eles vieram pelo carreiro onde nós estávamos emboscados e no seu andar normal. Então e aqui é que tem o seu quê de piadético, qual não é a nossa surpresa, eis que eles, precisamente à nossa frente, numa pequena poça de água, que se calhar ninguém tinha reparado da sua existência, resolvem despir o seu reduzido e rudimentar trajo e aprestam-se para aquilo que seria uma banhoca. Julgo que a poça de água ali foi uma coincidência.

Detrás de uma pequena sebe saltam logo o “Fafe” (mais tarde com grande condecoração e já falecido há algum tempo, já depois do regresso - paz à sua alma), que era sempre o primeiro nestas coisas, outro soldado que não reconheci, mais o Sargento Tavares, que em jeito de far west, de armas sobre a anca e apontadas aos tipos, ordenam-lhes que se rendam. Um então, que era um verdadeiro atleta, tenta logo fugir, mas uma rajada, que lhe esfacelou um braço, faz-lhe gorar os intentos e então deixa-se dominar. O outro, que tremia de alto a baixo, nada tentou e… também nunca mais deixou de tremer. Bom, de qualquer forma, armados ou não, eles seriam sempre apanhados, mas, na circunstância, não havia armas em seu poder. A piada da história está então no raro azar que eles tiveram em lembrarem-se de se refrescarem logo naquele sítio mesmo em frente da tropa emboscada. Trouxemo-los para o Olossato. O ferimento provocado pela rajada não foi de modo a que ele não pudesse prosseguir pelo seu pé, mas, de vez em quando, fazia-se desfalecer e atirava-se declaradamente para o chão. Claro que isto provocava atraso no regresso da coluna e então logo nos apercebemos que a intenção dele era precisamente essa: retardar o mais possível a nossa marcha para que os seus colegas de uma base ali perto, que seria provavelmente a de Iracunda, uma vez alertados com a nossa rajada feita momentos antes, tivessem tempo de vir ao nosso encontro e fazerem-nos uma emboscada. Mas não, nada houve.

Mas, a emboscada de maior êxito, a emboscada que resultou no aprisionamento de mais de 10.000 (!) cartuchos de diversos calibres e no infligir de 4 confirmadas baixas e mais 2 feridos - ficaram aos olhos de toda a malta - foi uma levada a cabo pelo 2.º Grupo de Combate da 816 e que por si só justifica este “Post” . Adiante também o extrato do relatório que regista o acontecimento.

Este Grupo instalou-se num ponto estratégico do trilho que ligava Bissajar a Maqué e intercetou um grupo de 6 terroristas que transportavam à cabeça sacos cheios de munições, na circunstância cartuchos e mais cartuchos.

Foi nesta emboscada que se constatou que eles tinham a tática de mandar uns minutos antes alguém à frente e desarmado. O homem nem sonhou que tinha passado pouco antes por dezenas de G3 apontadas.

Foi uma caçada em grande, que teve o seu quê de insólito, pois tal êxito era de todo em todo inesperado.

Aquela quantidade de cartuchos e cujo destino provável era a base de Maqué, dava para um ataque a um quartel durante uma noite inteira, calculamos nós. Como o quartel mais próximo era o nosso, logo deduzimos que provavelmente aquilo estava reservado para um ataque a Olossato. A 566 (que nós fomos substituir no Olossato), que diga do ataque que lhes fizeram na véspera de deixarem a guerra.

Esta foi então uma emboscada que resultou de uma forma bastante positiva (captura de armamento e baixas ao inimigo) pois, como já disse, na grande maioria das vezes eles nem sequer davam sinais de si a não ser às vezes um ou outro que aparecia, que muitas das vezes nem “turra” era, embora fosse tomado como tal e consoante a zona em que era intercetado.


Um Obus no Olossato, calibre 8.8 (granadas de 11,54 Kg; alcance de 11800 jardas)

Na foto acima um dos dois Obuses no Olossato ao tempo (1965/66). Duas secções de Artilharia superiormente comandadas pelo meu grande amigo Alf. Miliciano M. Brandão que quando o inimigo, para atacar o aquartelamento, se instalava preferencialmente no outro lado da pista das aeronaves e precisamente de frente para os Obuses, dado aquele julgar, erradamente, que eles só batiam zonas distantes, mas aconteceu ser necessário fazer tiro direto, inclusive para junto do arame farpado (trilho entre os Obuses e a pista das aeronaves)

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 20 DE NOVEMBRO DE 2012 > Guiné 63/74 – P10701: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (22): O Boby

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Guiné 63/74 – P10701: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (22): O Boby

 
1. Mensagem do nosso camarada Rui Silva (ex-Fur Mil da CCAÇ 816, Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67), com data de 15 de Novembro de 2012:

Caros amigos Luís, Vinhal e M. Ribeiro
Recebam um grande abraço e votos de muita saúde. Aqui vai também, mais um salpico dos tais cor-de-rosa.
Rui Silva



Como sempre as minhas primeiras palavras são de saudação para todos os camaradas ex-Combatentes da Guiné, mais ainda para aqueles que de algum modo ainda sofrem de sequelas daquela maldita guerra.

Do meu livro de memórias “Páginas Negras com Salpicos cor-de-rosa”

Olossato 1966

O que havemos de fazer?! Talvez… talvez …, olha (!), pôr gasolina no cú do Boby! 

Tarde cálida muito cálida e algo seca; as chuvas estavam à porta, os pavorosos trovões e os temidos tornados. Os fantasmagóricos relâmpagos a rachar o céu de lés a lés. Coisa nunca visto por um tuga mobilizado para a Guiné.

Embora assim quente, a tarde estava muito calma, demais, e tediosa, a convidar pelo menos os mais irrequietos a fazerem alguma coisa, fosse o que fosse, para combater o marasmo. À porta da messe alguns dormiam nas cadeiras baloiçantes (é verdade, os pipos não serviam só para transportar o vinho canforado para a tropa, serviam para fazer cómodas cadeiras também), outros nem por isso. E um ou outro certamente a pensar como devia chatear o outro. Daqueles, nunca faltaram não.

Que fazer então?

Passa enfrente o Boby. Não ia para Farim não, embora o sentido fosse esse. Nem vinha de Bissorã. À procura duma sombra talvez, e para fazer o que os “amigos” Furriéis ali estavam a fazer e a sugerir: dormir! Os cães não saíam do quartel. Sentiam-se bem ali e é que de vez em quando saltava uma bucha.

No Olossato havia 5 cães (pelo menos os “recenseados”) a viverem, quase sempre em matilha: A cadela sempre à frente e o séquito sempre atrás. Disciplina militar também.

Uma cadela (pobre da cadela) e 4 machos, todos tipo rafeiro e sem qualquer patente. Entre eles destacava-se pelo corpanzil o Boby.

O clima parecia também prolongar o cio e, seria como o milho que dava 2-3 vezes por ano?


Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > Tabanca do regulado de Badora... Alguns dos numerosos cães que  infestavam as povoações... E nos nossos quartéis, onde cheirava a comida,  fresca e abundante, ainda mais... Eram um problema de saúde pública. 
Foto do nosso camarada Arlimdo Roda, ex-fur mil, CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71).

Foto: © Arlindo Roda (2010). Todos os direitos Reservados


Bom, o Boby pelo estilo e pela raça (?) era o mais solicitado pela malta. Brincava-se com ele. Só faltava dar um nó ao rabo. Tivesse o rabo comprimento para isso.

Só que naquele dia os astros não estavam com o Boby.

O Boby passou no local errado, à hora errada e… com gente errada ali por perto. Da ideia, não me lembro de quem foi, mas daquela ao fazer foi um instante. Ali era assim: havia uma ideia e já estava um ou mais a pô-la em prática. Sempre para chatear o outro. Desta vez escolheu-se o desamparado do Boby

Desperdícios embebidos em gasolina e “óh Boby anda cá”. De rabo a abanar todo solícito, como era habitual, o Boby aproxima-se e sim senhor podem fazer o que quiser. Então alguém lhe esfrega desperdícios com gasolina no rabo. O que parecia ao princípio ser um refresco para o Boby logo o tornou possesso. Numa fração de segundos o Boby encrespa-se e aí vai ele!

Velocidade de turbo. Imparável!!

A gasolina era a vulgar, das viaturas, mas pela velocidade que o Boby chegou a atingir se calhar era mesmo gasolina de avião que andava por ali O Boby de vez em quando pára e, apoiado nas patas da frente esticadas, esfregava o cú no chão. E dava para aliviar. Mas era só uns curtos segundos porque logo, e já com a “primeira” previamente metida, encetava outro vai-e-vai em correria desenfreada, louca. Enquanto houvesse quartel e espaço…O Boby ficou com o diabo no corpo.

O cão estava transformado em diabo mesmo e uma raiva incontida tomou conta dele. Era uma fera. Julgo que se alguém se atravessasse naquela altura, o Boby descarregava a fúria.

Todo o mundo refugiou-se na caserna e o filme era agora vista da janela que não se abria muito não fosse ele escolher aquela abertura para ver se passava por ali mais vento pelo rabo.

A – casa dos Oficiais; B – casa dos Furrieis; C - A estrada Bissorã-Farim que dividia a meio o aquartelamento do Olossato. Em cima, junto às árvores, e em baixo, no meio da estrada, os cavalos-de-frisa delimitavam o aquartelamento.

De cavalo-de-frisa a cavalo-de-frisa (nos extremos do aquartelamento - aprox. 150metros-) o Boby supersónico e tocado a gasolina (d’avião?) percorreu várias vezes o espaço num frenético vai-e-vem.

O filme entretanto acabou de forma paulatina e o tempo foi bom conselheiro para o Boby, isto é a irritação com o tempo foi aliviando, aliviando… . Mais calmo e sereno, agora mais a pensar certamente “quem foi o FdP que me fez isto”?

O facto de ele voltar a abanar o rabo indiciou que o pesadelo tinha passado.

Não me lembro se depois disto o Boby ainda vinha junto de nós e com o rabo a abanar.

Tudo então voltou à normalidade.

Outro programa seguiria dentro de momentos…

Bom, a lição foi aproveitada. Para mim pelo menos, pois gasolina em cú de cão?

Nem pensar!!!

Aconteceu um dia na Guiné!!... pronto!.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 14 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 – P10531: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (21): Operação Outra Vez, objectivo: Iracunda

domingo, 14 de outubro de 2012

Guiné 63/74 – P10531: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (21): Operação Outra Vez, objectivo: Iracunda

1. Mensagem do nosso camarada Rui Silva (ex-Fur Mil da CCAÇ 816, Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67), com data de 11 de Outubro de 2012:

Caríssimos Luís, Vinhal e M. Ribeiro.O que sai logo à ideia é enviar-vos um grande abraço, e este mail encontrar-vos em plena boa saúde.
Aqui vai mais uma página “ arrancada” do meu caderno de memórias “ Páginas negras com Salpicos cor-de-rosa”.

Passem bem
Rui Silva


Como sempre as minhas primeiras palavras são de saudação para todos os camaradas ex-Combatentes da Guiné, mais ainda para aqueles que de algum modo ainda sofrem de sequelas daquela maldita guerra.

Do meu livro de memórias “Páginas Negras com Salpicos cor-de-rosa”

- 22 de Junho de 1965 (quase 1 mês de Guiné) -

IRACUNDA 
(ainda hoje, ao falar, há ainda uma residual sensação)

Foi o batismo de fogo da 816: mais de 20 minutos de fogachada em Iracunda. Julgo que toda a espécie de arma que o inimigo usava na altura em toda a Guiné, estava toda ali.
Não foi a minha primeira vez no mato mas lá que foi a primeira vez que chamei a Nossa Senhora lá isso foi!
Iracunda ao tempo era o verdadeiro braço armado da base de Morés, no OIO.

Localização de Iracunda, estrada Bissorã-Mansabá, a sul do Olossato e a NW do Morés, bastião do PAIGC no Oio. 
Vd. carta da Província da Guiné.
Legenda de CV

Certo dia então chegou a ordem para os 2.º e 3.º Grupos de combate prepararem-se para saírem para o Olossato. Não sabíamos, mesmo nós os Sargentos, qual seria o objetivo. Se bem que não estranhássemos (?) a falta de dados, uma vez que sabíamos que na guerra o sigilo tem toda a importância, ficamos na desusada expectativa quanto ao que nos estava reservado com a Operação Olossato. A ordem veio lacónica embora concisa, à boa maneira militar. Sem fazermos qualquer objeção (pudera!) ou simples pergunta (pr’a quê?), embora a nossa curiosidade nos incitasse a tal, vestimos uma vez mais o camuflado, armamo-nos como de costume e abalamos rumo às viaturas que se encontravam já alinhadas, à saída do aquartelamento de Bissorã, na direção da estrada para o Olossato, ali bem perto do edifício civil da Administração de Bissorã e da rotunda com um pequeno monumento no meio. O centro de Bissorã, afinal.

Encarávamos o trajeto com certo pessimismo, (periquitices) pois a estrada que liga Bissorã a Olossato tinha fama de aparecerem muitas emboscadas, principalmente na zona da “carreira-de-tiro”, nome que a tropa deu e que ficava sensivelmente a meio caminho até Maqué e que atravessava um local de capim muito denso, mesmo propício a uma cilada. Também nesta estrada era frequente aparecerem minas e fornilhos, dizia-se. Sabíamos também que era uma zona batida pelos terroristas da fortíssima base de Morés e que a estrada passava por Maqué, a meio caminho, onde algures também existia uma casa-de-mato.

No entanto, uma vez que esta nossa saída foi rodeada do maior segredo (o que até em Bissorã parecia não funcionar muito bem), havia toda a possibilidade de os não termos à perna, o que não queria dizer que, pelo menos, não tivéssemos de depararmo-nos com minas e outras quaisquer armadilhas. Assim, e como era de contar com isto, a estrada foi picada por uma secção e à vez. Porque a coluna levava à frente homens apeados - os picadores -, obrigava a uma progressão lenta, embora segura, quanto a minas.

Os cerca de 15 quilómetros que separavam Bissorã do Olossato, ou melhor até Maqué (~8-9 Kms.) , percorridos de tal forma, pareciam não ter fim. As secções alternavam-se à frente na picagem da estrada, e quando essa mudança acontecia, havia uma longa paragem da coluna, o que fazia ainda mais enervar.

O trajeto, o primeiro que fazíamos naquela estrada, que tão badalada era - já em Bissau, quando passamos por Brá, ouvíamos falar dela, pelos seus perigos -, foi feita no clima da maior “suspense” e expetativa. Os “longos” quilómetros foram-se então calcorreando até que chegamos a Maqué sem qualquer novidade.

Logo divisei do lado oposto e do outro lado do pontão (ponto de encontro) uma auto-metralhadora e alguns soldados de camuflado já muito coçado, muito queimados (era a velhice). Rostos queimados do impiedoso sol, grandes barbas e/ou bigodes, tudo aquilo denunciador de velhos amigos daquelas paragens. Eram elementos da Companhia de Artilharia n.º 566, a Companhia que estava sediada no Olossato. Tinham picado a estrada do lado deles e portanto dali para a frente já ninguém foi apeado, pelo que a marcha foi imposta pela velocidade das viaturas.

Alguns quilómetros volvidos, deparam-se então as primeiras moranças, outras mais, mais ainda e eis que nos aparece o aquartelamento de Olossato. Troncos de palmeiras já muito gastos a fazerem de paliçada em toda a volta do aquartelamento; abrigos de sentinela cilíndricos e em cone no teto nos 4 cantos do quadrado da fortificação. Tudo no entanto bem arrumadinho e cuidado. Troncos de palmeiras, chapa dos bidões da gasolina e barro da Guiné para encher, eram os materiais utilizados. Na ponta de um mastro, já bem dentro do quartel, bem alto, ondulava a bandeira portuguesa, orgulho nosso e a chama do nosso valor e coragem. Numa alisada chapa de bidão logo sobre a “Porta d’armas”, podia-se ler em letras e números bem grandes, pintados à mão e com relativa habilidade: “C. ART. 566”. Esta chapa estava bem ao alto e logo à entrada do quartel. Eram ali que moravam os “velhinhos” da 566, Companhia que tinha muita fama pelo valor evidenciado através de êxitos e mais êxitos por aquela temerosa zona do Oio.

Tive mais tarde ocasião de o assim constatar, ao trabalhar com eles no mato.

Poucos meses atrás, pouco antes de virmos para a Guiné, tinham eles tido um formidável êxito na base de Morés. Aprisionaram entre 2 a 3 toneladas de material de guerra entre ele diversas e valiosas metralhadoras pesadas.

Aquele cenário no Olossato fez-me lembrar logo os filmes de cow-boys do western americano: muros construídos com trocos de palmeiras, cavalo-de-frisa e arame farpado a embrulhar tudo, e homens armados de carabina (diga-se G3) e em tronco nu e bem queimados; barbas, barbichas e exóticos bigodes e muita descontração; chão vermelho e poeirento também.

Olhei em redor a ver se encontrava por ali algum conhecido, mas não encontrei ninguém. Ouvi então risos e palmadas nas costas, mesmo atrás de mim. Virei-me e era o Zé Baião que tinha encontrado um seu conterrâneo eborense e amigo. Este era o Furriel Martins. Conversaram, riram, mas não era preciso haver conhecimentos, pois ficávamos logo em família sempre que se davam estes encontros. O Martins usava um chapéu à cow-boy, mais um dado característico dentro daquela encenação.

Receberam-nos muito bem e logo se aprontaram a arranjarem-nos comer na messe deles. Embora fosse da praxe, os visitantes serem bem recebidos pelos seus anfitriões, o certo é que os camaradas da 566 foram inexcedíveis em gentilezas, pelo que, viríamos a manifestar o nosso reconhecimento com grande ênfase. Ficamos desde o primeiro minuto a gostar daquela maralha e, diga-se de passagem, que também conquistamos a simpatia deles. Almoçamos então em clima de grande confraternização e depois de contarmos, e principalmente ouvirmos as aventuras da malta ali na Guiné, fizemos uma partida de futebol na parte da tarde.

O pequeno campo de futebol dentro do aquartelamento do Olossato que ficava junto às messes quer dos Oficiais quer dos Sargentos onde, antes umas horas de irmos à base de Iracunda, jogamos à bola com a malta da 566. A casa atrás da baliza seria mais tarde a secretaria da 816 onde estava o saudoso 1.º Rodrigues (falecido cá e já com alguma idade - paz à sua alma) e o desenfiado do “Boavista”, sempre com o Primeiro a perguntar-nos onde andava este, …na bola quase sempre. A casa do lado direito, já civil, e fora do aquartelamento, julgo ser a casa do Sr. Fodé, nativo,vendedor de panos e outras miudezas e apetências nativas.

Ao fim desta, fomos então, nós os da 816, chamados ao nosso Capitão (não foi preciso lembrar-nos que não fomos ali para jogar futebol) e por ele fomos postos ao corrente da nossa missão, agora com a informação em detalhe. O objetivo era para nós desconhecido, mas que lá ia ficar bem no nosso conhecimento lá isso ficou. Os velhinhos da 566 já o conheciam, e bem o notei logo no olhar apreensivo dos que iam alinhar com a gente, que tal refúgio não era nenhuma pera doce. Diante de um mapa estendido sobre uma mesa, fomos então elucidados pelo Alferes Victor da 566 coadjuvado pelo nosso Capitão, quanto ao efetivo do inimigo, seu armamento, quantidade e posição dos sentinelas, dispositivo que nós íamos adotar, etc., etc. A hora de saída do aquartelamento foi fixada para a 1 hora da madrugada. Objetivo: IRACUNDA!

Nada nos dizia (a nós os da 816), mas, só até lá chegar…

Depois da operação ficamos com a certeza que na verdade Iracunda era uma grande base terrorista, talvez até mais bem operacional do que a de Morés, isto dito também pelos da 566 e pelo chinfrim que houve também.

As lavadeiras do Olossato evidenciavam bem como a Guiné era muito fértil em boa fruta

Por gentileza de um colega Furriel da 566, dormitei um pouco na cama dele, acumulando energias, até à hora da partida. O jogo da bola tinha sido um grande desgaste, mas como havia o maior segredo, esse desgaste não foi poupado. Nesta altura, calmamente e com tempo, foi-me preparando. Peguei na minha G3, verifiquei o funcionamento da culatra, apalpei os carregadores nas cartucheiras, fixei bem a fivela do cinto do camuflado e fui beber um pouco de café. Um pouco de bagaço também para aquecer e a malta foi aparecendo. A noite estava com um intenso luar. A coluna foi-se formando no maior dos silêncios e, como autómatos, depois de tudo verificado, guarnições de “bazooka” e de morteiro, pessoal indígena carregador de granadas, nativos voluntários (de Mauser”!!) etc., fomos deixando Olossato no sentido oposto aquele pelo qual tínhamos vindo de manhã de Bissorã. A operação Iracunda tinha-se iniciado.

Olossato ia ficando para trás e a sua iluminação ia-se assim reduzindo para dar lugar às trevas. Como sempre, calculávamos o tempo de maneira que chegássemos às imediações do objetivo (refúgio) algumas dezenas de minutos antes da hora previamente combinada para o assalto. Servia tal interregno para nos refazermos um pouco da caminhada e ultimarmos também pormenores (se necessário), sobre o assalto. O facto de na maior parte das vezes chegarmos muito cedo às proximidades do objetivo devia-se também à progressão ter sido feita sem sobressaltos, nomeadamente do guia não nos ter feito andar às voltas, como não raras vezes acontecia, e que o tempo previsto também contemplava estes tipos de atraso mais ou menos previsíveis. Com o dito descanso, recuperávamos da caminhada e as nossas condições quer físicas quer psicológicas (sem nos vermos livres do nervoso miudinho, contudo), eram bem melhores. Até que chegamos junto de uma zona mais ou menos descoberta mas com folhagem suficiente para nos encobrir e camuflar uma vez sentados ou deitados. Estávamos ao longo de uma sebe e a escuridão da noite fazia o resto. Teríamos os cantares dos variadíssimos pássaros em breve a denunciar o nascer do dia.

(A descrição seguinte, em itálico, que faz parte integrante da narração desta operação “tirei-a” para introito do livro das minhas memórias - “Páginas Negras com Salpicos cor-de-rosa”- e nessa qualidade já saiu no Blogue (post 1809). Para aqueles que não gostam de ver coisas repetidas, as minhas desculpas)

"Eram 4 horas e meia da madrugada quando paramos. Fazia noite, noite escura. Já tínhamos andado um bom par de quilómetros.

Olhares que se interrogam e… era a espera.

Era aquele terrível espaço de tempo que se repetia sempre em todas as operações de “Golpes de mão”. Era aquela inquietante altura do tempo que nos punha na maior tensão e ansiedade. Era o aguardar da hora H, a hora do assalto ao refúgio inimigo e era ao mesmo tempo o retempero das energias gastas ao longo da caminhada.

Algumas dezenas de metros mais adiante estava o inimigo, oculto, algures acoitado naquela densa e emaranhada mata. A obscuridade dava às árvores e à sua folhagem feições de figuras fantasmagóricas e assustadoras. Estávamos todos reunidos, uns sentados, outros deitados, outros ainda nas posições que mais lhes apeteciam. Havia o maior silêncio, apenas cortado por um ou outro pigarrear inevitável ou pelo estalar de folhas secas provocadas pela mudança de posição deste ou daquele.

De olhos extasiados, circunspectos e de músculos contraídos, entreolhávamo-nos e parecia interrogarmo-nos: Como vai ser?..., Haverá surpresa?..., Conseguiremos o objetivo?, ou estarão eles já alertados e à nossa espera com uma emboscada montada?

Eram estas as pertinentes interrogações que nos martelavam o cérebro numa expectativa profundamente emocional. Que pesadelo!!... Não, naquela altura não éramos seres humanos, sentíamos e pensávamos como irracionais, quais animais selvagens prontos a atacar a presa.

Estávamos ali para matar, sim, matar, matar o semelhante, só que este tratava-se do inimigo, que, também… nos queria matar.

…E chegou a hora!!

O dia começou a nascer. Era na semi-obscuridade a altura ideal para atacar. Em pé e como autómatos tomamos as posições iniciais de fila indiana e a coluna retomou a marcha. Os cuidados agora redobravam-se. Era a etapa final, a curta etapa que precedia o ataque. As armas foram tomando nas mãos a posição adequada e os cuidados de progressão cingiram-se ao máximo.

De repente, inesperadamente, soa um tiro!... e foi o começo! Foi como que uma gigantesca trovoada então entoasse no silêncio da madrugada. As rajadas ouviam-se incessantemente; o matraquear da metralhadora pesada inimiga fazia-se destacar com as suas fortes detonações; os rebentamentos de granadas de “bazooka” e lança-“rockets” faziam-se aqui e acolá; o fogo era pleno… de parte a parte. A nossa reação, como que impelida por uma mola, foi imediata. Vi os soldados de dentes cerrados e feições crispadas apertarem com raiva os gatilhos, e trocarem os carregadores em movimentos nervosos mas calculados.

Foram 25 minutos de fogo cerrado e ininterrupto, e… embora lentamente, o inimigo foi cedendo… cedendo….

A peito descoberto e ainda debaixo de fogo, avançamos em “leque” em passos firmes e decididos na direção do refúgio inimigo que, entretanto, se põe em debandada, mas sem, no entanto deixar de atirar na nossa direção, com rajadas cada vez mais esporádicas e cada vez também mais distantes.

E o refúgio de Iracunda deu então lugar a gigantescas chamas que reduziram a cinzas aquela importante e estratégica base inimiga algures no Oio, zona de grande poderio e concentração inimiga.

O inimigo reagiu, e, de que maneira! Reagiu forte e decididamente!

Aliás foi o primeiro a atacar, pois tinha-se gorado o fator surpresa que contávamos, o que aliás acontecia em grande parte das vezes, e então emboscou-se aguardando a nossa aproximação.

O tal tiro era o sinal para abrir fogo.

Deram bem a noção da sua força, quer humana quer bélica. Tinham-nos também escapado, mas o seu tributo não tinha deixado de ali ser pago e de forma implacável: no chão, jaziam os corpos de três inimigos; três corpos despedaçados, por, presumivelmente, granadas das nossas “bazookas” ou dos nossos morteiros".

Foi uma terrível emboscada junto àquela base, e a atestar essa força, viu-se no que alguém da 566 nos disse já no regresso: “Eu já sabia que isto era assim, mas não convinha vos dizer”. Compreensivelmente aquiesci.

Depois do inimigo desbaratado e destruído completamente o seu refúgio, começamos a reagrupar as respetivas Secções. O intenso e demorado tiroteio tinha-nos tirado parte da lucidez e por momentos a malta viu-se desorganizada. O Capitão Riquito e o Alferes Castro tiveram mesmo que gritar para que a malta começasse a andar e ao mesmo tempo a reorganizar-se. As casas-de-mato mais importantes na Guiné (julgo) tinham também uma escola. A de Iracunda tinha a sua. Deu bem para ver. Os djubinhos das tabancas adjacentes não andavam ao Deus dará, não. Escola limpa, bem arrumada e asseada que indiciava muita disciplina e ordenação e que me ficou na retina.

Uma escola do PAIGC algures nas matas da Guiné. A que presenciei em Iracunda não fazia muita diferença no ordenamento, mas era mais simples e artesanal. Ao legítimo proprietário da foto a minha vénia pela reprodução aqui feita por mim.

Folhas de papel impressas, soltas (algumas podem ser vistas em reprodução de seguida) que recolhi para recordação (!!) que serviam para ensinar as crianças a escrever e a ler. As folhas que ensinavam o A E I O U e nas “entrelinhas” o incentivo ao combate aos colonialistas e à independência do povo nativo. Muito pedagógicas em todo o sentido.


Entretanto aqueles minutos de hesitação e desorganização permitiram ao inimigo o seu reagrupamento e o ensejo de fazerem ainda algum fogo bem dirigido àquilo que fora o seu refúgio e onde nos encontrávamos agora nós. Imediatamente ripostamos, embora que com poucas armas, pois estávamos desorganizados e até de algum modo desprevenidos. Ficamos a saber que era assim, quando o inimigo era desalojado reagrupava-se adiante umas dezenas de metros e agora disparava sobre os novos locatários do refúgio. Isto deveu-se mais à falta de experiência do que a outra coisa, pois se para o meu Grupo de combate era ainda o segundo contacto com o inimigo, para o 2.º Grupo era mesmo o primeiro. O inimigo “calou-se” então, se bem que tornasse a fazer-se ouvir através de tiros isolados e de muito longe, mais a querer dizer “até logo”. Começamos então a andar rumo à origem: Olossato.

Dada a resistência inimiga e às possibilidades de reagrupamento do mesmo, e uma vez que o nosso abandono do refúgio foi demorado, contávamos com emboscadas por o caminho. No entanto, e ao contrário do que era de supor, o inimigo não se emboscou, razão a que não foi alheia, concerteza, a impressão que lhe causamos com o destemido assalto ao refúgio ainda debaixo de fogo. E por vezes também haviam erros de cálculo. Talvez isto. Terá acontecido isso.

No regresso fomos queimando, sistematicamente, as tabancas e moranças que nos iam aparecendo, aliás como era habitual em análogas circunstâncias. Ao chegarmos a elas e como também invariavelmente acontecia, encontrávamo-las com um aspeto de recentemente abandonadas, portanto numa ação denunciadora de que ali habitavam terroristas ou pró-terroristas.

Completamente extenuados física e psicologicamente, chegamos junto do cruzamento, local, que como tinha ficado combinado, nos encontrávamos com as viaturas. Pousei o capacete no chão e deixei-me cair, deitando-me um pouco. Naquelas alturas que se lixe a guerra. O desgaste físico e psicológico fazia-nos olhar para o céu de forma absorta e descontraidamente. A segurança, se bem que em caso algum era de descuidar, não seria muito pertinente, pois estávamos muito perto do Olossato. E às vezes que se lixe a segurança também; queríamos era o chão para as costas e a lembrança: “Oh(!) Rui olha a nossa cervejinha à espera”, como me dizia muitas vezes no mato o meu amigo, Furriel também, o açoriano Vieira, falecido recentemente - paz à sua alma.

Iracunda tinha então ficado bem conhecida da 816. Chegados ao Olossato logo tratamos de regressar a Bissorã. Uma vez chegados aqui fomos logo “assaltados” por os colegas que ali tinham ficado, que nos “metralharam” com perguntas e mais perguntas, satisfazendo assim a sua curiosidade e o conhecimento de causa. Afinal a 816 tinha andado aos tiros pela primeira vez.

Compreensivelmente, fomos respondendo com maior ou menor humor, se bem que o que mais me apetecia era sentir o mais depressa possível a água a jorrar pelo corpo abaixo e de seguida abocanhar o gargalo de uma garrafa de cerveja bem fresquinha. Estas duas coisas (banho logo seguido de uma cerveja fresca ou, ao contrário, a maior parte das vezes - haja paciência!- era o nosso prazer e a nossa alegria quando chegávamos do mato. A operação “Outra vez”, que curiosamente até era a primeira para a 816, a Iracunda, marcou-me indelevelmente para sempre e porquê: Saraivada de fogo durante longos e longos minutos a abrir a nossa operacionalidade. Só em ficção e em filme tinha visto daquilo. Armamento atualizado e estratégia poderosa do lado do inimigo.

E carago(!), aquilo não era para brincar, vi que andava por ali muito quem me queria tirar o sarampo e sem me conhecer de lado nenhum e sem eu ter feito mal a alguém.

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 7 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 – P10348: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (20): Um sapo com asas no Olossato

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Guiné 63/74 – P10348: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (20): Um sapo com asas no Olossato

1. Mensagem do nosso camarada Rui Silva (ex-Fur Mil da CCAÇ 816, Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67), com data de 3 de Setembro de 2012:

Para abrir nada mais apropriado e saudável do que saudar os amigos Luís, Vinhal e Magalhães Ribeiro e enviar-lhes um abraço.
Que estejam em boa forma, também, para manterem o Blogue sempre em fasquia alta.
E, para fechar, aqui vai um “Salpico” das minhas memórias.
Rui Silva


Como sempre as minhas primeiras palavras são de saudação para todos os camaradas ex-Combatentes da Guiné, mais ainda para aqueles que de algum modo ainda sofrem de sequelas daquela maldita guerra.

Do meu livro de memórias “Páginas Negras com Salpicos cor-de-rosa”

Um salpico!

- 22 de Julho a 10 de Agosto de 1965: A CCaç 816 vai para o Olossato (deixando Bissorã) para atividade operacional naquela zona, durante aquele período. No Olossato estava a residente 566 -

XX - UM SAPO COM ASAS

Estávamos no Olossato em comissão operacional de uns dias. Fomos lá para fazermos (soubemos só há noite na véspera da saída para a operação, claro) a limpeza de abatises na estrada que ligava o Olossato a Farim e que passava pelo K3.

Operação que acabou por ser muito bem sucedida, o que não surpreendeu muito a ninguém. Aquela estrada estava dada como interdita há muito tempo e não havia portanto qualquer movimento de viaturas. Assim, em completa surpresa, foi limpar e andar de princípio a fim. Os Unimogs com os seus potentes guinchos e a destreza do pessoal fizeram o trabalho sempre com o cuidado de uma previsível armadilha. Do inimigo, nem cheiro. A Companhia, no entanto, aguardaria mais algum tempo no Olossato. Iríamos continuar em ação naquela zona.

E a ação foi aquilo que parecia e que foi: aguardar pela reação inimiga que, como se adivinhava, foi só de colocar na estrada outra vez as abatises que tínhamos desviado e acrescentar mais algumas, até de maior porte, pois então.

Estrada Bissorã/Olossato/K3/Farim. Saliquinhedim, mais conhecida por K3 fica um pouco acima da bifurcação da estrada do Olossato com a de Mansabá/Farim

A malta, e aqui refiro-me particularmente aos Furriéis, comia na messe dos Sargentos (boa malta a da 566). Já o nosso alojamento tinha que ser noutro lado e o que se conseguiu era muito precário, pois era improvisado e muito mal. Eu, o Baião, o Piedade, o Belchior e o Silva ficamos numa rudimentar dependência da casa do Chefe de Posto do Olossato mas a algumas dezenas de metros desta e já bastante fora do aquartelamento.

As enxergas, colocadas diretamente no chão, que não era limpo “há séculos”, e pronto, ali dormíamos sobre um lençol, alguns nem este tinham, que de branco passou a negro em breve tempo. Dormíamos assim em muito más condições e sempre incomodados pelos sempre persistentes e sanguinários mosquitos. Foi um tal chupar, e de palhinha. Além disso e por aquela dependência ser vítima de uma falta de limpeza total, havia ali da mais variada fauna: uns residentes, outros de passagem. Aranhões para todos os tamanhos, borboletas de todos os feitios, moscas, moscões, etc., etc.. ah (!) e aqueles insetos de cores bem vivas, voadores, de asas bem largas e finíssimas que pareciam trazer uma bolsa pendurada um centímetro abaixo do abdómen, e que até parecia um trem de aterragem? Que raio!

O que tinha mais mau dormir, por causa sobretudo desta clientela, era o Belchior, pois era o que menos aceitava aquela companhia e então ia relatando a entrada, a residência ou a saída deste ou daquele bicharoco.

Mas, afinal…, os intrusos até parecíamos nós.

A casa do Chefe de Posto do Olossato. Por coincidência apareço de bicicleta, de passeio até ao Morés

Até aí os personagens que entravam ou que apareciam de passagem em cena não eram assim tão incomodativos, e a indiferença era grande a não ser o tal de Anopheles, até que…

Uma das noites, diz o Belchior a gaguejar, como era de sua natureza, e quando alguns já estavam nos primeiros acordes do sono:
- Ó…Ó…ag…o…ra en…entrou um …um mo…mo…morcego!

Então à voz de morcego (e se é um vampiro?) todos se levantaram de um salto, mesmo os mais ensonados.

O Baião, habitual “inspetor” nestas coisas, levantou-se, contrariado, já se vê, e deu então uma volta pelo exíguo compartimento.

- Queres ver que este viu entrar um sapo com asas! Diz que viu entrar um morcego a voar e afinal o que eu vejo aqui é um sapo - Diz, em sotaque alentejano genuíno – voz grossa e pachorrenta -, o Baião, ao deparar com um amedrontado sapo num canto.

Foi uma grande risota. - O Belchior deve estar a chocar o paludismo - Alguém disse.

Tão cedo ninguém esqueceu esta, para mal dos pecados do Belchior, pois não mais foi poupado.

Mas, andar por ali um sapo!...

Olha o Belchior viu um sapo com asas!

Quantas vezes! Até aparecer outra, o que não demorou muito, o homem teve que ouvir.

Periferia do aquartelamento do Olossato
Olossato, Olossato, onde tudo é muito chato e a vida não dá prazer / Companhia, Companhia, quer de noite quer de dia há sempre muito que fazer.

Passaram-se mais dois dias e eis que o Capitão reúne Sargentos e Oficiais e diz-nos que temos de voltar à estrada do K3 para limpar as abatises, pois segundo um reconhecimento aéreo, o inimigo, em face das outras terem sido retiradas, abateu outras e então à laia de vingança, um número muito maior de abatises estava agora na estrada. Portanto, a ordem, que era do Comando do Batalhão, ficou dada através do nosso Capitão. Começou aí “o dia mais longo”, como lhe chamamos, para a 816. Operação de orgulho do Batalhão que custaria bem caro à 816. A estrada Olossato-Farim continuaria interdita afinal, mas agora já manchada também de sangue de militares da 816.

O Poste 3383 conta bem como foi…

Rui Silva
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 1 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 – P10100: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (19): A Serração de Joboiá - a destruição de um mito

domingo, 1 de julho de 2012

Guiné 63/74 – P10100: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (19): A Serração de Joboiá - a destruição de um mito

1. Mensagem do nosso camarada Rui Silva (ex-Fur Mil da CCAÇ 816, Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67), com data de 25 de Junho de 2012:

Caros Luís Graça e Vinhal, sem esquecer o meu grande amigo M. Ribeiro:
Recebam as maiores felicitações e mais uma folha “arrancada” das minhas memórias.

Rui Silva



Como sempre as minhas primeiras palavras são de saudação para todos os camaradas ex-Combatentes da Guiné, mais ainda para aqueles que de algum modo ainda sofrem de sequelas daquela maldita guerra.

Do meu livro de memórias “Páginas Negras com Salpicos cor-de-rosa”

A SERRAÇÃO DE JOBOIÁ – A destruição de um mito

16 de Dezembro de 1965

Julgo que toda a Companhia ou Grupo militar operacional, tinha, em menor ou maior grau, o seu “calcanhar de Aquiles” na guerra, isto é, algo que a estigmatizou em dado momento, através de um grande revés ou infelicidade, (refiro-me principalmente de mortos em combate ou de fortemente estropiados) na estrada, no mato, no aquartelamento, ali ou acolá, e que a marcou. A 816 não era exceção. Passar depois por esse mesmo sítio havia sempre um nervoso miudinho na malta.

A 643 dos Águias Negras (grande Companhia operacional) em Bissorã e a 566 (não menos grande Companhia) no Olossato, para falar das Companhias com que tivemos o privilégio de atuar, muitas vezes em conjunto, pareciam também ter o seu.

A 643 falava muito na “carreira de tiro”, um percurso em balcada com uma centena de metros, na estrada de Bissorã para Olossato antes de Maqué e do grande poilão.

A 566, no dizer de alguns dos seus operacionais, preferia uma operação a Morés do que entrar na estrada (então interdita) que ligava Olossato a Farim.

No entanto, não esqueço aquele Cabo da 566 que de Dryse na mão, em cima do capot do motor de uma GMC, a peito descoberto, ajudou a resolver uma grande e violenta emboscada feita a toda a Companhia 816, naquela estrada, que entretanto tinha pedido ajuda no Olossato, pois as munições estavam a acabar à coluna da 816 no célebre e traumatizante dia 1 de Agosto de 1965. Começamos aos tiros de manhã cedo e até ao princípio da noite e já depois de os dois T6 nos deixarem, por razões óbvias (obscuridade e já falta de bombas), de operar.

A serração de que falo ficava a poucos quilómetros de Olossato na estrada para Farim (e K3) mais propriamente em Joboiá, metida um pouco dentro no mato e do lado esquerdo.

Era um dos santuários do inimigo ali no Oio. A 566 tivera ali um revés que os marcou.

Até que um dia chegou a ordem de alinharmos para destruirmos a famigerada Serração de Joboiá, a célebre serração, ou melhor, o que restava do que outrora foi uma serração e isto não passava apenas das paredes ao alto (o que bastava para o IN se emboscar e era tido como um ponto de encontro) e dos caibros da armação que outrora sustentava o telhado. A serração de Joboiá distava do Olossato cerca de 4 a 5 quilómetros na estrada para Farim. Ficava isolada e longe de qualquer meio povoado. Olossato era o mais próximo, porventura. A “casa-de-mato” de Cansambo não muito longe dali também.

Chamo-lhe de célebre pois muito cedo começamos a ouvir falar dela. Logo que se falava de Olossato falava-se fatalmente da serração e de uma maneira temível e então esta tinha as suas histórias de guerra para contar. Ao que se sabia, os terroristas aproveitavam-se das suas ruínas, ou melhor das paredes, para fazerem emboscadas, assim bem abrigados e num ponto bem estratégico. Ali, naquele sítio, uma emboscada era uma constante sempre que a tropa passasse na estrada de Farim, estrada que distava da serração aí a uns 40 metros.

Lembro que esta estrada no meu tempo era dada como interdita a colunas auto.

O acesso a Farim era feito pela estrada que vinha de Mansabá até ao K3 onde entroncava com a estrada Olossato-Farim e, principalmente, pela via fluvial, através do Cacheu.

Assim, sempre que passávamos ao lado da serração havia o receio de eles estarem por ali.

Então o Capitão resolveu acabar com aquilo, o que, e no dizer dele, era mais um mito que outra coisa, o que nós concordamos.

O dispositivo para tal operação foi, prévia e obviamente, muito bem concebido pelo Cap. Riquito.

A foto na Serração (houve tempo para uma foto de circunstância): Pessoal da 816 que colaborou na destruição da serração de Joboiá – Veem-se em pé: o Alferes Costa (com a G3 à caçador), Furriéis Rui (eu com a mão no cinto) e Coelho; Flores, Alferes Esteves (de capacete) e o “Pelé”; e em baixo o Clarimundo simulando carregar o morteiro e o “Chaves” com a sua “bazooka” a “fazer foto” da estrada Farim-Olossato. Do lado direito pode-se ver ainda parte da estrutura da serração.

Cerca das 3 horas da madrugada sai então do aquartelamento o 1.º Grupo de combate comandado pelo Alferes Costa, na ausência do Alferes Barros o titular daquele Grupo. A missão deste Grupo é fazer um reconhecimento e instalar-se em redor da serração, em dispositivo de segurança, de forma que, já pelo alvorecer, a chegada do meu Grupo de combate àquele sítio e mais tarde o grupo das viaturas seja feito a coberto de qualquer surpresa, pois, uma vez já ali instalado o 1.º Grupo, não seríamos surpreendidos pelo inimigo, que podia muito bem já estar ali acoitado. Portanto, quer dizer, o 1.º Grupo assegurava a não presença inimiga ali na altura que nós chegássemos pela alvorada, e mantinha a segurança ao 3.º GC (o meu Grupo) que com o material adequado procedia à completa destruição do que ainda então restava da antiga serração. Mas, logo no começo da operação, traçou o destino, ia haver contacto com o inimigo. Assisti ao partir do 1.º Grupo de Combate, que, silenciosa e cuidadosamente, saiu em fila indiana, e como já se disse, à volta da 3 da madrugada, rumo ao objetivo. Primeiro eles iam por a estrada até à ponte do rio Olossato - o costume - que ficava a cerca de um quilómetro do Quartel, e, ultrapassada a ponte, meter-se-iam então pelo mato, para melhor segurança na progressão e evitarem serem detetados.

Quando os últimos homens da coluna estavam a sair do aquartelamento contornando o cavalo-de-frisa na saída para a estrada para Farim, e como já era um pouco tarde e eu tinha que me levantar cedo, fui-me deitar. Quando me aprestava para adormecer, e já todos nós deitados, eis que ecoa um metralhar contínuo e forte que mais forte parecia no silêncio da noite. Uma rajada breve. Parecia fogo de uma metralhadora pesada. “É nosso?” “É deles?” - interrogamo-nos, surpresos. Era eles com certeza; naquela altura já tínhamos o ouvido bem sintonizado para o tipo de estampido e a sua cor. Era ali perto, pelo nítido ouvir da metralhadora e a julgar por só terem passados breves minutos após a saída do Grupo. Como que impelidos pela mesma mola logo saltamos da cama e procuramos saber o que se passava. Tinha sido ali pertinho, precisamente logo ao sair da ponte e à entrada para o mato. “Foram eles, e parece que há feridos” - alguém disse apavoradamente. Estranhamos como aconteceu já ali perto e para mais saídos de surpresa (?) como era habitual. Logo o Capitão e dois soldados armados se introduziram num ”jeep” e para lá se deslocaram ao saber-se pelo rádio do local exato e de que haviam feridos. Pouco tempo depois regressa o “Jeep” rumo à Enfermaria e então constatou-se ter sido o Andrade atingido com um tiro numa coxa. O preto Seidi tinha levado também um tiro que lhe esfacelou um dedo dum pé. Os feridos, claro, ficaram no quartel, mas o Grupo continuou para o objetivo: Garantir a segurança em redor da serração, para o outro Grupo, que iria chegar pelo alvorecer, para proceder ao seu desmantelamento.

Viemos a saber que os tiros de metralhadora e ao que parecia ser pesada, tinham sido feitos por presumíveis sentinelas que o inimigo tinha ali instalado em permanente vigilância à tropa do Olossato. Porém, estes sentinelas, com certeza que só à noite ali estavam, pois era também sempre de noite que nós saíamos para operações de “Golpes-de-mão” e não só. As sentinelas descarregaram então o que puderam e logo fugiram através do emaranhado do mato e a coberto da escuridão. Acontecia muitas vezes isto: sentinela detetado, despejar a arma e fugir. O alarido dos tiros avisava o seu grupo e podia ainda sobrar alguma coisa. Não seriam mais que dois, como alguém bem perto da cena calculou. Do pelotão nem chegou a haver reação. Apanhados de surpresa, em plena escuridão da noite e praticamente à porta de casa, limitaram-se a deitarem-se para o chão e como ficaram aos magotes, ninguém respondeu ao fogo inimigo até com o receio de se ferirem uns aos outros. A coisa foi também muito rápida pois eles fizeram a rajada e debandaram logo. “Só se via a chama à boca da metralhadora” -  alguém acrescentou depois. “Eles estavam atrás de uma árvore muito grossa” - alguém ajuntou também.

Como se nada tivesse acontecido, ou por outra, como o que aconteceu não era de modo a abortar a operação, esta prosseguiu como se impunha.

Pelo alvorecer já estava o meu Grupo a caminho da serração e de encontro ao 1.º Grupo. Uma vez ali chegados, logo se começou a trabalhar na destruição do esqueleto daquilo que outrora fora uma serração. Começou-se pela remoção dos caibros que sustinham o telhado que provavelmente teria existido, e depois, à picareta, as paredes também foram postas abaixo. Com o barulho das moto-serras, o bater das tábuas ao caírem, e outros inevitáveis barulhos, receávamos pela chegada do inimigo a qualquer momento, embora o dispositivo de segurança entretanto montado pelo 1.º Grupo desse tranquilidade aos que trabalhavam. Assim, havia um grupo empenhado na completa destruição da serração e outro metido no mato formando um anel em volta daquela e a olhar pela segurança do primeiro. Entretanto alguém aproveitou para bater um instantâneo para a posteridade, cuja foto se pode ver atrás. É isso (!), havia sempre quem andasse de máquina fotográfica no seio da guerra; quem não se lembra do saudoso camaradão do Sarrico?

Foram também chegando as viaturas e respetivas guarnições. As viaturas serviriam assim ao transporte da grande quantidade de tábuas resultante da destruição da serração.

As tábuas grandes e espessas fariam bastante jeito em diversas construções no quartel.

As viaturas ficaram na estrada, portanto a cerca de 40 metros da serração, distância esta já referenciada atrás. A serração que ficava do lado esquerdo da estrada de quem ia para o K3 e mais à frente Farim, estava bem metida no mato e apenas havia um carreiro a ligar a dita serração à estrada, o que não permitia o acesso às viaturas. O transporte das tábuas e caibros para as viaturas foi assim muito moroso, pois para além de serem muitas, eram pesadas também.

Houve depois também um vai-e-vem de viaturas para o quartel, até que tudo que tivesse préstimo fosse transportado. Depois, a Companhia, naquela altura já praticamente toda, rumou de regresso ao aquartelamento, metade apeada e outra metade aproveitando as viaturas. Tempos andados teríamos então uma surpresa, ou talvez não… o inimigo! Como tempo para isso não lhes faltou. Montaram uma emboscada a meio caminho Serração-Olossato.

Emboscada forte mas a que a 816 respondeu com a maior determinação.

Na altura a Companhia já denotava muita maturidade e muito calo e então a reação foi espontânea e em potência. O inimigo pôs-se em debandada e o regresso continuou sem mais problemas.

Interrogamo-nos só, como ali tinham passado tantas vezes viaturas isoladas, algumas só o condutor e com um ou outro atirador, aquando do vai-e-vem do transporte da madeira para o quartel, e eles não terem atuado. Imaginamos então que, inclusivamente, eles até com um simples tronco de árvore atravessado na estrada apanhavam à unha o condutor e o seu eventual acompanhante e depois também destruírem a viatura. Mas, ou não acreditavam em tamanha descontração, ou preferiram esperar pelo grosso da coluna, ou seja pelos 2 Grupos de combate, agora já reforçados e assim teriam “caça grossa”. Os condutores que por ali tinham passado um pouco antes até tremiam quando se lembravam do tal.

Mas, isso é o que poderia ter acontecido, mas que de facto não aconteceu. Assim era a filosofia do “segue em frente e não olhes para trás” que melhor se coadunava com quem convivia com a guerra. A Companhia regressou ao Olossato e o mito da Serração deixou de existir, pois esta foi completamente arrasada, e quando por lá passávamos depois, já ninguém se lembrava da Serração, que afinal deu muito que contar sobretudo aos homens da 566.

Houve momentos de satisfação por mais um obstáculo desimpedido: E o mito da serração de Joboiá foi destruído,… de todo.

Segue o extrato do relatório da operação em questão:


"Estrela": local aproximado da Serração (4 a 5Km do Olossato, na estrada para Farim, passando pelo K3)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 11 de Maio de 2012 > Guiné 63/74 – P9887: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (18): O primeiro "ataque" a Bissorã