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sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25060: O nosso blogue em números (91): Temos esperança que a Guiné-Bissau ultrapasse a China em 2024,... pelo menos em número de visualizações de páginas do nosso blogue!

Figura n.º 2 - Mapa-múndi com a distribuição do número de visualizações de páginas, do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (n=12,8  milhões), desde maio de 2010 a final de 2023.

Fonte: Blogger (2024)

Figura n.º 2 | Gráficos n.ºs 7 e 8 > Principais localizações dos nossos "visitantes" (leia-se:  visualizações de páginas, entre maio de 2010 e o final de 2023): no "Top 10", o destaque vai para Portugal (com 40% do total), seguido dos Estados Unidos da América (24,7%) e o Brasil (4,8%)... 2. mantem-se no essencial.

Infografias: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)


1. Sem falsa modéstia gostamos de (e podemos) dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande"...

A principal origem dos que visitam o nosso blogue, quase dois terços, é Portugal (40%) e os EUA (25%) (Gráfico nº 8)

Segue-se, à distância, com menos de 5% cada, o Brasil, a Alemanha e  a França.  Tudo somado, são quase 80%.

Este perfil não se tem alterado desde 2014, ano em que o Brasil perdeu o 2º segundo lugar para os EUA.  

Os  EUA (que tinham  7,6% do total de visualizações em 31/12/2013), deu então um salto  para os 17,6%). E o Brasil ficou-se pelos 7,8%... Mas Portugal também vindo a perder peso relativo: em 2014 tinha uma "quota" de 48,2%

Há uma explicação: a crescente penetração da Internet em todos os países do mundo...(Veja-se  o crescente peso relativo do "Resto do Mundo", que era de 13,2% em 2015).

No mundo globalizado em que vivemos, somos vistos em muitos lados... Seguem-se por ordem decrescente (com menos de 1%) (entre parênteses indicam-se os números absolutos, em milhares) os seguintes países que aparecem no "Top 20", entre as posições 10 e 19 (no período em referência, junho de 2006 a final de dezembro de 2023),e que constituuem o "resto do mundo" (n=2,1 milhões)(16,4%) do Gráfico nº 8:

10 > Canadá > 78,7 mil
11 > Espanha > 73,5 mil
12 > Ucrânia > 62 mil
13 > Região desconhecida > 58,5 mil
14 > Itália > 56,4 mil
15 > China > 50,6 mil
16 > Guiné-Bissau > 41,4 mil
17 > Países Baixos > 39,4 mil
18 > Irão > 36,5 mil
19 > Hong Kong > 35,9 mil
Outros > 1,59 milhões

Ficamos felizes por saber que , no nosso "Top 20",  estão  3 países lusófonos: Portugal (1º), Brasil (3º) e Guiné-Bissau (16º).

E, nos restantes, há também muitos portugueses e outros falantes da língua portuguesa que seguem ou visualizam, com regularidade, o nosso blogue, nomeadamente nos EUA, França e  Alemanha, sem menosprezar a Suécia, o Reino Unido, o Canadá e a Espanha...

Recorde-se, mais uma vez, que estes números respeitam apenas ao período que vai de maio de 2010 ao final do ano de 2023, ou seja, desde quando passámos a ter o contador do Blogger (ver aba, do lado esquerdo do blogue). Há, portanto, 1,8 milhões de visualizações, que ficam de fora, desde abril de 2004 até abril de 2010.

2. O caso da "nossa" Guiné-Bissau é interessante: 

(i) há dois anos atrás (2021)  estava em 19º lugar,  com 23,5 mil vizualizações; 

(ii) dois anos depois,  sobe 3 lugares, está com um total acumulado de 41,4 mil visualizações...e temos esperança que ultrapasse a China em 2024... (Os valores da China, todavia,  são os mesm0s de 2021, deixou de aparecer nos útimos dois anos,)

Cabo Verde, por sue turno, já não aparece no nosso "top 20", como aconteceu num ano atrás.

Estes números são interessantes, reflectem também a crescente penetração da Internet na nossa "pequena" Guiné Guiné (que, de resto, quadriplicou a sua popukação em 50 anos: de 0,5  para 2 milhões!).

De acordo como quadro a seguir, a Guiné-Bissau passou de 1500 utilizadores da Internet em 2000 para 900 mil em 2021. O grau de penetração da Internet e agora de 44%, ligeiramente superior ao totald e África, mas mesmo assim aquém dos 62% de Cabo Verde.

De qualquer modo, parece poder concluir-se que há mais interesse pelo nosso blogue na Guiné-Bissau do que em Cabo Verde... E seguramente do que na China!

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Nota do editor:

Último poste da série > 8 de janeiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25049: O nosso blogue em números (90): A pequena Guiné-Bissau vem na lista dos 12 primeiros países onde somos mais vistos, e por pouco não ultrapassava, em 2023, a Suécia (11.º lugar)...

segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25050: Notas de leitura (1656): Notas do diário de um franciscano no pós-Independência da Guiné-Bissau (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Julho de 2022:

Queridos amigos,
É um testemunho de um valor inquestionável, alguém que acompanha e anota acontecimentos entre 1973 e 1976, a chegada de um novo poder a Bissau, regista as mensagens de maior impacto, cedo se percebe que não houve uma negociação séria entre o novo poder e os portugueses, os hospitais ficam sem médicos e as escolas sem professores e livros. O Padre Macedo regista as primeiras tensões com os apologistas da laicidade e da completa intromissão na obra missionária, deu faísca, as missionárias de Bafatá são as primeiras a sair. O tempo encarregou-se de alisar as propostas fanáticas como as de Lilica Boal, os missionários, depois deste período turbulento regressaram e são altamente estimados, deve-se-lhes o crescimento do catolicismo na Guiné, que não passava de um dígito magro até à independência, hoje o clero é influente, dialogante com o islamismo, as suas escolas são altamente procuradas e o trabalho na área da saúde mantém-se sem rival. Espero que a Ordem Franciscana publique o essencial deste diário, dada a sua riqueza histórica.

Um abraço do
Mário



Notas do diário de um franciscano no pós-Independência da Guiné-Bissau (3)

Mário Beja Santos

Na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa chamaram-me à atenção para o número mais recente da revista Itinerarium, o n.º 227, referente ao semestre de janeiro a junho de 2020, a Itinerarium é a revista semestral de cultura publicada pelos franciscanos em Portugal. Ali aparece um artigo com páginas do diário de Frei Francisco de Macedo (1924-2006) que foi missionário na Guiné entre 1951 e 1997. O diário inclui os apontamentos do religioso sobre os primeiros anos da Independência, a matéria versada relaciona-se com a educação e as missões.

Estamos a 18 de outubro de 1974, escreve: “O ruído das pancadas é estranho! Depressa me ocorre a verdade do facto: estão a retirar as letras Honório Barreto do liceu. Pobre Honório… Até tu, que eras guinéu de têmpera e que nos dias de hoje terias sido outro Amílcar, foste considerado grande colonialista e por isso querem apagar o teu nome da memória dos homens!”

Cresce a tensão entre membros da direção do PAIGC e os missionários. Nessa mesma data, consta do seu diário: “O Sr. Prefeito Apostólico recebeu as Irmãos de Bafatá, que lhe falaram da visita da Dr. Lilica Boal à casa das Irmãs em Bafatá. É uma fanática do Partido. Disse às Irmãs que o internato teria de ser misto, o que pôs em sobressalto as pobres das Irmãs. À noite, o Sr. Prefeito recebeu notícia de que tinha sido convidado para ir ao aeroporto esperar os “Homens Grandes” do Partido, que deviam chegar ao aeroporto às 10h do dia 19. A notícia caiu bem e deu-nos ânimo.” E no dia seguinte relata a chegada de Luís Cabral, Aristides Pereira, Nino e Chico Té, houve saudação à chegada do presidente do município, Juvêncio Gomes. E regista a resposta de Aristides Pereira: “A luta continua. Cabo Verde não está livre e é preciso que connosco forme uma só nação.”

A 21, volta a anotar que a posição do novo Governo não é manifestamente favorável às missões. “Uma onda de tristeza e de derrota se apoderou de alguns de nós, ao termos conhecimento da orientação que o Partido está decidido a tomar em relação aos internatos das Irmãs. Não há chance alguma para as obras missionárias.” A 25, continua as suas considerações sobre a mesma matéria: “Pelos contactos havidos e observações feitas, se vai notando que a ação da Igreja vai ficar muito coartada pela nova orientação política. É um Governo declaradamente laico que quer tomar nas mãos toda a juventude para instruir segundo a doutrina do Partido.” Mas não deixa haver surpresas, pois nesse mesmo dia Mário Cabral preside a uma reunião com os responsáveis da Educação e professores onde anuncia que será o camarada Padre Macedo que vai ser o reitor do liceu.

Estamos agora a 28, já está decidido qual o nome para o liceu de Bissau: Liceu Nacional Kwame N’Krumah. A 1 de novembro, regista que o Internato de Bor vai ser dirigido por um elemento do Partido e escreve que o totalitarismo se está a implantar. “Frequentes vezes nos interrogamos sobre qual o melhor sistema de governo para os povos africanos. A democracia evidentemente só é possível em países onde haja respeito mútuo pelas ideias políticas e maneira de pensar de cada cidadão. Ora, isso não acontece em países africanos, onde predomina o regime patriarcal. Dizem que há muitos inimigos. Continuam em luta e tomam todas as precauções de defesa. Todas as residências dos dirigentes e responsáveis estão guardadas por militares.” Também nos dá a saber que partiram delegações da Guiné-Bissau para Lisboa, é o próprio Mário Cabral quem declara que a Guiné-Bissau necessita com urgência que os seus hospitais não fiquem sem médicos e que as escolas não parem por falta de professores e de livros escolares, apela-se à cooperação portuguesa.

Em 5 de novembro, é manifesto o seu desânimo, nunca escrevera a este nível de desfalecimento: “Desfazer, desmantelar, derrubar, demolir, arrasar, abater, destruir, destroçar, desconjuntar, desertificar, aluir todas as obras de valor cultural, assistencial ou socioeconómico, realizadas e mantidas pelos portugueses, parece ser a ideia principal de alguns responsáveis do Partido. O pensamento essencial é anular, desfigurar, dissipar, apagar da mente do povo todo o conceito de bem que possa haver a respeito do branco. O único remédio e médico para estas coisas é o tempo.” Estamos agora a 8 de novembro, iniciaram-se as aulas no liceu, sai-lhe um comentário muito pessimista: “Este estabelecimento de ensino está transformado numa fábrica de… futuros operários desempregados.” No dia 14 regista no diário que a Rádio Libertação tinha emitido naquele dia um ataque frontal aos padres: “Padres sobrealimentados… e o povo subalimentado. Queremos uma nação sem subalimentados e sem padres sobrealimentados.” É neste período que há uma troca de correspondência entre o Prefeito Apostólico e o Secretário-Geral do PAIGC, Aristides Pereira. Este procura ser habilidoso, escreve contidamente, apela a que os missionários se mantenham no seu posto, o seu trabalho é altamente meritório. Acontece que as Irmãs de Bafatá tinham recebido instruções para regressar a Portugal.

Estamos nas vésperas de Natal, a 22 de dezembro, Chico Té preside a um seminário para professores do ensino secundário, o seu apelo é provavelmente a produção, não deixa de afirmar que o Governo é laico, mas que respeita todas as crenças. A 27 de dezembro, há um seminário político em que o conferente foi o Dr. Vasco Cabral. Observou em determinada altura que a direção do Partido organizara a greve o Pidjiquiti, em 3 de agosto de 1959 (rotunda mentira, dirigentes máximos do PAIGC, como Luís Cabral, sempre tiveram cuidado a falar desta greve dos estivadores manjacos), o Partido tinha analisado o acontecimento e reconheceu que não podia adotar essa via dentro dos meios urbanos (o que efetivamente aconteceu foi que Amílcar Cabral foi o autor de tal observação, abrindo espaço para a organização da subversão e desvio para Conacri de militantes para sempre preparados para a luta armada, o que efetivamente aconteceu graças ao denodado trabalho de Rafael Barbosa).

O Padre Macedo ainda põe no seu diário a 30 de dezembro a referência uma conferência do Dr. Fidélis Cabral de Almada sobre a Justiça popular, e traça um quadro histórico:
“Os descobridores veem povos com leis, com costumes, com justiça, com tradições. Queriam eliminar tudo o que era costume, queriam suprimir todos os elementos de civilização. Era este o método de colonização. A regra do domínio de um povo sobre outro povo. Por isso, a noção de Justiça e de Direito foi também eliminada. O povo da Guiné foi considerado colónia de indigenato. De fazer justiça eram encarregados os chefes de posto e os administradores, gente com espírito mercenário que vieram apenas para enriquecer. Os comités de tabanca acatam os princípios em que o povo tem de mandar na sua cabeça. A eleição do comité de tabanca faz-se por eleição popular. Em 1969, o Partido chega à conclusão de que tudo está maduro para a criação da Justiça popular. Lançámos a ideia de juízes populares, eleitos pela maioria. Escrivães, professores primários, faziam parte dos tribunais populares. O nível de criminalidade diminuiu logo. Havia pena de morte por fuzilamento. A revitalização da nossa cultura nacional surge no campo jurídico.”

O diário do Padre Macedo termina em 12 de fevereiro de 1976. Espera-se que a Ordem Franciscana, perante a valia deste testemunho histórico, permita a sua publicação, contém matéria digna de reflexão para esse período em que tantas medidas foram tomadas e que o tempo se encarregou de esvaziar o conteúdo.
Missão das Irmãs Clarissas Franciscanas em Gabu, Guiné-Bissau
No sábado, dia 29 de dezembro de 2018, em Suzana, Dom Pedro Zilli teve a felicidade de viver a graça da ordenação sacerdotal do Pe. Jacinto Baliu Sibandió, o primeiro missionário da comunidade paroquial de Suzana para a Congregação dos Missionários do Santo Espírito

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Nota do editor

Post anterior de 1 DE JANEIRO DE 2024> Guiné 61/74 - P25027: Notas de leitura (1654): Notas do diário de um franciscano no pós-Independência da Guiné-Bissau (2) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 5 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25038: Notas de leitura (1655): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (6) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P25012: Notas de leitura (1653): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (5) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Dezembro de 2023:

Queridos amigos,
Este texto permite uma grande angular sobre o período de 1966/1967, finalmente Schulz dispõe de meios aéreos julgados suficientemente eficazes para travar a guerrilha, dá-se uma reorganização da Zona Aérea de Cabo Verde e Guiné, o comando unificado é entregue ao coronel Abecasis, os meios aéreos trouxeram muito mais segurança à atividade operacional, abonam os diferentes testemunhos; acontece, porém, que a atividade da guerrilha intensificou-se, houve reorganização do PAIGC e das FARP e em igual período a atividade da insurgência não só se intensificou como alargou o seu espaço de ação. Há também testemunhos de que o helicanhão deixou inicialmente a atividade da guerrilha atemorizada, foi forçada a adaptações táticas.

Um abraço do
Mário



O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974
Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (5)


Mário Beja Santos

Deste segundo volume d’O Santuário Perdido, por ora só tem edição inglesa, dá-se a referência a todos os interessados na sua aquisição: Helion & Company Limited, email: info@helion.co.uk; website: www.helion.co.uk; blogue: http://blog.helion.co.uk/.

Capítulo 1: Um Comando “Desconfortável”

Recapitulando a matéria deste primeiro capítulo, os autores recordaram as grandes dificuldades sentidas em encontrar diferentes tipos de aeronaves à altura das necessidades do território e da natureza da guerrilha guineense. Entendeu o Comando-Chefe, nos finais de 1966, que as principais dificuldades estavam supridas, o Fiat e o Alouette III, também adaptado a helicanhão, iriam fazer recuar a guerrilha. É neste contexto que se dá a remodelação no comando da Zona Aérea da Guiné, fundem-se os Comandos desta e da Base Aérea 12, com o estabelecimento do Centro Conjunto do Apoio Aéreo, é este o final do capítulo I.

Entre as primeiras ações do Coronel Abecasis como Comandante da Zona Aérea e da Base Aérea 12, criou-se o Centro Conjunto de Apoio Aéreo como autoridade de controlo orientada para operações aéreas táticas e operações de apoio às forças de superfície, ficou localizada em Bissalanca e tinha o indicativo de Marte, o Deus grego da guerra. Este Centro Conjunto foi responsável por priorizar as solicitações de apoio aéreo, atribuindo às aeronaves o cumprimento de solicitações que aprovava, gerindo também as conexões de comunicação indispensáveis. Esta organização foi essencial para planear, programar e potenciar com responsabilidade os meios aéreos, conclui o historiador da FAP Luís Alves de Fraga. Criou-se em Nova Lamego a secção conjunta de apoio aéreo para agilizar operações no setor Leste. Ao ligar-se o Centro Conjunto e as forças apoiadas, a aeronaves como DO-27 passaram a ser utilizadas como postos de comando volante, sobrevoando as áreas de operações e fornecendo uma visão tática às forças em intervenção na superfície, e fazendo de elo de comunicação entre as unidades terrestre e os meios de apoio aéreo. 115 aeronaves utilizavam rádio no PCV, ajustando as frequências e assim facilitando a rapidez no apoio aéreo. Apesar das incompatibilidades entre os recursos terrestres e os aéreos quanto a equipamentos de rádio, as forças portuguesas conseguiram um nível satisfatório de comunicações táticas mediante arranjos, garantindo apoio de fogo, reabastecimento de emergência ou evacuação de feridos em tempos que podiam chegar a 20 minutos. O Coronel Abecasis também orientou a criação de um Centro de Campanha de Exploração Fotográfica, sediado na Base Aérea 12, no outono de 1966.

Apesar da variedade de equipamento fotográfico utilizado durante as missões de reconhecimento – câmaras portáteis transportadas a bordo de aeronaves leves. O Centro de Campanha de Exploração Fotográfica desenvolveu uma “capacidade notável” para interpretar imagens pontuais, analisar fotografias e organizar conjuntos de imagens detalhadas dos objetivos visados para as operações. No final de 1966, a FAP tinha instalado uma frota de 50 aeronaves na Base Aérea, complementada por vários campos auxiliares, apoiada por uma estrutura de comando e controlo mais eficiente. O contingente da FAP na Guiné parecia capaz de poder intervir em todas as funções operacionais relevantes, dispunha da sua própria “infantaria”, os paraquedistas. A capacidade de desempenho da Zona Aérea ganhara muito com o G.21 e o Alouette III. Tudo parecia, depois de quatro anos de intensa luta de guerrilhas, que as Forças Armadas estavam em condições de contrariar a insurgência na Guiné.


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Capítulo 2: Eles não conseguiram parar a nossa luta

“Os criminosos colonialistas utilizaram aviões a jato, helicópteros modernos, bombas de fragmentação, bombas napalm e de fósforo, [mas] não conseguiram travar a nossa luta. No entanto, conseguiram aumentar ainda mais o ódio do nosso povo ao domínio colonial português.” (Amílcar Cabral, 2 de janeiro de 1968)

O PAIGC, tal como o seu inimigo português, estava a viver um período de crescimento e reorganização. Em 1966, o movimento nacionalista evoluiu para uma insurgência generalizada que ameaçava de forma credível o controlo sobre grande parte do território, se bem que mantivesse a estrutura militar adotada no Congresso de Cassacá, 1964, estrutura que incorporava o Exército Popular, a Guerrilha Popular e a Milícia Popular. O seu conjunto compunha as FARP (Forças Armadas Revolucionárias do Povo). Em novembro de 1966, houve restruturação do PAIGC e das FARP, estabeleceu-se um Conselho de Guerra no nível mais alto do partido, afastou-se a milícia da cadeia de comandos das FARP. Através do Conselho de Guerra, as FARP dirigiam o Exército Popular e a Guerrilha nos níveis de Frente, Região e Setor, enquanto as Milícias passaram a ficar subordinadas ao Bureau Político, através de uma hierarquia geográfica semelhante. O Bureau Político manteve a supervisão das FARP através de comissários que exerciam uma autoridade operacional através de um arranjo de vice-comando.

A componente militar regular do PAIGC, o Exército Popular, tinha um efetivo aproximado de 3000 combatentes a tempo cheio, operando dentro da Guiné Portuguesa ou ocupando santuários transfronteiriços para formação, recuperação ou reabastecimento. Eram forças organizadas em grupos de 22 a 24 pessoas, geralmente combinadas e empregadas como bigrupos, com o dobro desse tamanho. Quando reforçados por exigência de equipamento pesado ou atividade de pessoas especializado, os bigrupos podiam chegar a 66 combatentes. As unidades irregulares da Guerrilha Popular tinham um efetivo superior a 6000 combatentes adicionados ao quadro miltiar do PAIGC, tinham funções de mão de obra, com funções defensivas, mas disponíveis para reforçar as operações de grande dimensão. No total, as Forças Armadas Portuguesas na Guiné enfrentavam até 1000 oponentes armados, excluindo as milícias, que cada ano que passava estavam mais bem treinadas e equipadas.

No plano militar do PAIGC para 1966-67, o secretário-geral e líder-estratega, Amílcar Cabral, anunciou que estas forças iriam “intensificar, desenvolver e estender a luta por todo o país” para “forçar o inimigo a lutar em toda a parte.” Com o objetivo de espalhar a rebelião, o PAIGC estabeleceu três Inter-Regiões (Norte, Sul e Leste) divididas em 13 regiões e 32 zonas ou setores. Cada Inter-Região tinha, pelo menos, um bigrupo do Exército Popular e 250 guerrilheiros, com unidades adicionais atribuídas a nível regional ou de “Frente”. A cada setor foi atribuído artilharia (canhão sem recuo e morteiros), sapadores e/ou metralhadores antiaéreas de acordo com as condições táticas ou o planeamento operacional.

As intenções estratégicas de Cabral tornaram-se rapidamente evidentes para os comandantes portugueses. As principais áreas de preocupação para as forças militares portuguesas incluíam o Oio, zona do noroeste da Guiné, a região central de Xime-Xitole, o litoral sul e as três “áreas de base” centrais do PAIGC no Morés, Injassane e Cafal. Havia também a preocupação com a capacidade do PAIGC em infiltrar pessoal e material através de corredores, facilidade essa que permitiu aos rebeldes lançar operações de “grande intensificação da ação militar”, isto no final da primavera e do verão de 1966, procurando interromper linhas de comunicações e flagelando as forças portuguesas no Oeste e no Sul, particularmente. No Sul da Guiné, na Península de Quitafine, tinham aumentado as defesas antiaéreas, o que dificultavam os esforços da Zona Aérea para proteger os postos avançados sitiados, o que levou a que o chefe de Estado-Maior do exército expressasse a sua preocupação de que houvesse guarnições que corressem o risco de serem tomadas pelo PAIGC. O número médio mensal das atividades do PAIGC quase triplicou, chegando a 293 flagelações e outros atos hostis em maio de 1966.

O ritmo acelerado da insurgência refletiu-se num aumento de baixas – cresceram de 258 mortos e feridos em 1963 para 1226 em 1966.
Um T-6 Harvard francês usado na guerra da Argélia e, mais tarde, vendido a Portugal (EALA/ECPAD)
Um Alouette III com um canhão Matra MG151 instalado na porta lateral do Alouette III (Coleção Costa Neves)
Outra perspetiva do canhão (Coleção Serrano Rosa)
Os Alouette III em linha, na Base Aérea 12 (Coleção Alberto Cruz)
Os Fiat (os “Tigres”) estavam integrados na Esquadra 121 conjuntamente com os T-6 e os Do-27 (Coleção Alberto Cruz)
Organograma da Zona Aérea de Cabo Verde e Guiné (novembro de 1966)
Forças do Exército Popular em patrulhamento (Reg Lancaster/Express Hulton Archive/Getty Images)
Milícia popular em vigilância num posto avançado rebelde, perto de Cacine (UPI)
Amílcar Cabral, o carismático Secretário-Geral do PAIGC (Ben Martin/Getty Images)

(continua)

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Notas do editor

Poste anterior de 22 DE DEZEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24987: Notas de leitura (1651): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (4) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 25 DE DEZEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P25000: Notas de leitura (1652): Notas do diário de um franciscano no pós-Independência da Guiné-Bissau (1) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24971: Notas de leitura (1650): "Comandante Pedro Pires, Memórias da luta anticolonial em Guiné-Bissau e da construção da República de Cabo Verde - Entrevista a Celso Castro, Thais Blank e Diana Sichel"; FGV Editora, Brasil, 2021 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Junho de 2022:

Queridos amigos,
Entrevistado na dimensão ainda em voga da História Oral, o comandante Pedro Pires fala da sua vida ao serviço do PAIGC e do PAICV. Confesso que me toca positivamente o que ele comenta quanto à dedicação às causas pela luta da independência dos dois países, não há para ali nem charamelas nem o vemos atrelado a nenhuma carro triunfal, resistiu a muita insídia e comentários soezes por parte da oposição, quando perdeu em 1991, faz-nos ver que Cabo Verde caminha saudavelmente como uma democracia liberal, é um verdadeiro farol africano. Não se entenderá, à luz dos conhecimentos históricos, que continue a dar como certo e seguro que Spínola e a PIDE/DGS mandaram matar Amílcar Cabral, foi mantra de grande conveniência durante algum tempo, acontece que não há nenhum, absolutamente nenhum, documento que comprove qualquer ligação do Governo de Bissau, da delegação da polícia política com o assassinato de Cabral, houvesse e dele se teria feito a devida publicitação, mas não há, não houve marinha portuguesa à espera do barco de Inocêncio Kani, e é preciso ter um grande estômago para pôr como coordenador do complô Momo Touré, não sei como pessoas com pesadas responsabilidades históricas ainda têm e tanta desfaçatez, e parecem aliviadas quando propalam tais inverdades.

Um abraço do
Mário



Comandante Pedro Pires, memórias da sua vida e da sua luta na Guiné-Bissau (2)

Mário Beja Santos

Pedro Verona Pires, após a sua deserção das Forças Armadas portuguesas juntou-se ao PAIGC em Conacri, foram-lhe atribuídas múltiplas missões, acompanhou a luta da libertação da Guiné-Bissau e de Cabo Verde. Após a independência de Cabo Verde, foi Primeiro-ministro entre 1975 a 1991 e seu Presidente de 2001 a 2011. Este livro sobre o Comandante Pedro Pires é o resultado de uma longa entrevista realizada em Cabo Verde por uma equipa da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas: Comandante Pedro Pires, Memórias da luta anticolonial em Guiné-Bissau e da construção da República de Cabo Verde, entrevista a Celso Castro, Thais Blank e Diana Sichel, FGV Editora, Brasil, 2021. O entrevistado regista a história da sua vida, mediada pelo método da História Oral. Obviamente que nos vamos circunscrever das suas declarações até à independência da Guiné-Bissau e sequelas da rutura Guiné-Cabo Verde.

Pedro Pires assume elevadas responsabilidades na luta da Guiné-Bissau, é um quadro político de peso e é nessa altura que é questionado pela equipa entrevistadora sobre o assassinato de Amílcar Cabral em 20 de janeiro de 1973. Começa por referir que Amílcar Cabral já tinha alertado sobre a probabilidade desse risco, a partir da recolha de várias informações de amigos no seio do exército português. Considera ter havido falhanço nos serviços de segurança, o próprio Amílcar Cabral não teria dado o valor necessário a tais informações. Nesse dia, 20 de janeiro, Pedro Pires encontrava-se na base de Kandiafara, na Frente Sul, as informações pareciam suspensas, só quase ao anoitecer é que alguém lhe veio dizer que ouvira na BBC a notícia do assassinato. Através de um emissário enviado a Boké receberam-se pormenores dos acontecimentos pelo responsável local, José Pereira, fora em Boké que Inocêncio Kani fora detido.

Uma semana depois, na companhia de outros líderes, como Nino Vieira e Cármen Pereira, estão em Conacri, assistem às cerimónias de homenagem a Amílcar Cabral, o ambiente encontrado era pesado e de muita tristeza. Pedro Pires propõe aos seus colegas do Comité Executivo de Luta a realização de uma reunião extraordinária para análise da situação, fez-se a reunião e traçaram-se novas linhas de orientação, todos voltaram para as frentes de luta, ele regressou à Frente Sul. Dá-se a sua visão sobre o apuramento das responsabilidades sobre os acontecimentos do assassinato, justifica a importância da operação Amílcar Cabral que tinha como objetivo geral a intensificação e multiplicação da ação militar nas três frentes, era necessário tornar a vida insuportável aos militares portugueses. Associa tais acontecimentos ao golpe de Estado de 25 de Abril, detalha ao pormenor o cerco a Guileje, e não deixa de ressalvar a diferença introduzida na luta pelos mísseis Strela. Fala num embate que teria tido lugar em território manjaco da qual um tenente dos Comandos africanos se passou para as forças do PAIGC.

A explicação para o assassinato do líder fundador do PAIGC pôde dar muito alívio a Pedro Pires, mas não tem qualquer consonância com factos documentais e elementos de prova. Que era urgente travar Amílcar Cabral antes que fosse tarde demais para a sobrevivência do Império português; que no plano interno português tinha crescido a oposição e o descontentamento pelos sacrifícios humanos, económicos e financeiros impostos ao país; que o prestígio e a credibilidade internacional de Amílcar Cabral atingira a sua quota máxima e estava em andamento uma dinâmica que devia conduzir à emergência do Estado soberano da Guiné-Bissau; que as autoridades coloniais, num esquema de guerra antissubversiva, aproveitara-se de alguns traidores que fomentaram a divisão do PAIGC entre guineenses e cabo-verdianos; refere antecedentes como a Operação Mar Verde, em que se procurara liquidar Amílcar Cabral; que Inocêncio Kani era o principal responsável pelo crime de traição.

Este mantra fez o seu percurso útil para liquidar os elementos do complô que os tribunais revolucionários decidiram, fez-se um hábil desvio histórico da fundamentada e multisecular tensão entre guineenses e cabo-verdianos, hoje é argumento de venda para puros nostálgicos, faz deliberadamente esquecer que não se podem entender os acontecimentos de novembro de 1980 e o afastamento da liderança cabo-verdiana na Guiné sem ter em conta a tensão existente em Conacri e mesmo nas bases do PAIGC no interior da Guiné, Pedro Pires nem refere que no dia do assassinato Inocêncio Kani esteve sempre na companhia de Osvaldo Vieira, e que este assistiu à distância ao assassinato do líder – pormenor de pouca importância, claro. Para consolo de nostálgicos e permanente enigma para a história é a destruição de todo o material que se acumulou sobre os julgamentos dos elementos associados ao assassinato. Há explicações que são de farsa, pôr o Momo Touré a liderar uma sedição de centenas de pessoas é por de mais caricato, não tinha nem envergadura nem credibilidade para tal cometimento. E penso que não se tem feito qualquer pressão para ouvir as figuras que participaram nos julgamentos (caso de Joaquim Chissano), que disseram ter lido toda a documentação (caso de Ana Maria Cabral), os testemunhos de quem compareceu em tribunal e não sofreu da pena capital, etc. São de presumir razões fundadas para manter esta pesada barreira de silêncio.

Pedro Pires fala do segundo congresso do PAIGC, da eleição de Aristides Pereira, a líder do PAIGC, e descreve-se o processo da Independência da Guiné-Bissau e tudo quanto aconteceu até ao reconhecimento de Portugal da Guiné-Bissau como Estado independente.

Não se pode desdizer que Pedro Pires não seja um homem de consciência tranquila sobre o seu comportamento político como Primeiro-ministro de Cabo Verde, e ele próprio explica os insultos miseráveis que sobre ele proferiram elementos de oposição. Teria tudo a ganhar em mostrar de corpo inteiro que soubera perder as eleições em 1991, que as calúnias proferidas ficaram por demonstrar, responde aos seus entrevistadores com elevado nível de tolerância, escusava de dizer qual era, no seu entender, a origem do MpD:
“Muitos foram militantes do PAICV. Por outro lado, houve gente de boa-fé entusiasmada com a abertura política que quis uma alternativa ao PAICV. Era um grupo heteróclito. Constituía uma autêntica frente dos contra. Faziam parte desta aliança ex-militantes do PAICV dececionados, os trotskistas, os herdeiros do colonialismo, os despromovidos socialmente que tinham perdido privilégios de classe, funcionários desonestos sancionados, os imediatistas à espera de resultados milagreiros em curto prazo, gente que discordava da Independência, também pessoas de boa-fé que queriam uma mudança do Governo e, ainda, os fiéis que acreditaram nas intrigas veiculadas pelo clero católico, pela rádio e pela imprensa escrita de inspiração católica. Foi mais ou menos isso. Era esse o contexto sociopolítico em que lutou o PAICV, naquela altura, e os adversários contra os quais se tinha batido”.

Comentários completamente escusados, diga-se em abono da verdade. Ao comandante Pedro Pires saem por vezes comentários que não o dignificam. Já aqui repontei com aquela sua tirada de que os Comandos Africanos cobiçavam trazer artigos das bases do PAIGC, eram artigos que eles não tinham à sua disposição no mercado da colónia, escreveu num prefácio do livro O PAIGC Perante o Dilema Cabo-Verdiano (1959-1974), de José Augusto Pereira, Campo da Comunicação, 2015. Enfim, dislates pouco abonatórios para um líder do seu tamanho.


Pedro Pires no serviço militar em Portugal
Pedro Pires na Guiné-Bissau
Entrevista de Pedro Pires a uma equipa da Escola das Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas, junho de 2019: (https://www.youtube.com/watch?v=A7eXvPIwie8)
Ilha do Fogo, Cabo Verde
Pedro Pires nas cerimónias da Independência da Guiné-Bissau
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Notas do editor

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Último poste da série de 15 DE DEZEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24960: Notas de leitura (1649): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (3) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24949: Historiografia da presença portuguesa em África (398): "Viagem ao arquipélago dos Bijagós", 1879, por Maximin Astrié (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Maio de 2023:

Queridos amigos,
Digamos que esta história do comerciante francês em Orango tem um final feliz para quem julgava que lhe ia acontecer o pior, o que penso ser bastante útil, repito, é termos aqui um testemunho de como no exato momento em que a Guiné se autonomizava de Cabo Verde a nossa presença no arquipélago dos Bijagós nem chegava a ser discreta, isto fora de Bolama, o presidente dos Estados Unidos resolver a nosso contento o diferendo com a Grã-Bretanha quanto à posse da ilha, aí fazia-se imenso comércio e havia ligações com as feitorias do Rio Grande de Buba. Há aqui acontecimentos de caráter antropológico, como as práticas de Justiça baseadas em feitiçaria e superstição e ouvindo nós relatos que afinal se revelam não comprovados de matriarcado, temos aqui um rei déspota. Como é evidente, este mundo aqui descrito deverá ter-se mantido pelo menos até à ocupação efetiva de todas as ilhas dos Bijagós, o que aconteceu em 1936.

Um abraço do
Mário



Viagem ao arquipélago dos Bijagós, 1879 (3)

Mário Beja Santos

A Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa possui um exemplar de "Viagem ao Arquipélago dos Bijagós", por Maximin Astrié, negociante francês em Bolama, Luchon, 1880, o exemplar foi uma oferta de Godefroy Gairaud, vice-cônsul de Portugal em Carcassonne. Lembro-me perfeitamente de ter deitado uma vista de olhos a este texto, mas não me recordo de o ter traduzido no essencial, tem elementos até de caráter antropológico do maior interesse. E ficamos claramente a perceber que em 1878 a nossa presença nos Bijagós era por demais ténue. Vamos então ao essencial do texto. Maximin Astrié é convidado a avaliar as potencialidades económicas dos Bijagós, aceita e entende começar a sua viagem de reconhecimento pela ilha de Orango. Chega, o déspota local manda fazer um sacrifício sobre a conveniência de tal relacionamento, é degolado um galo, ele afasta-se do visitante antes de sucumbir, o régulo manda prender Maximin, este percorre as florestas que o deslumbram, assiste a um julgamento depois da morte de um homem acometido da doença do sono, num contexto de feitiçaria e pura superstição a mulher do morto é considerada culpada, foi levada para a prisão, metida num buraco, onde seguramente morrerá ruída pela febre e pela fome.

Estamos agora na parte final da narrativa, Maximin irá tomar conhecimento do que o régulo Oumpané guarda nos seus armazéns, tinham decorridos seis dias desde a sua chegada à ilha, tinham sido dias preenchidos com excursões na floresta e conversa com os indígenas, o comerciante não escondia a sua preocupação em saber como ia terminar aquela odisseia, se sairia dela com vida, assim começa o relato na primeira pessoa do singular.

Um dia, Oumpané ordenou ao ministro da Justiça para me pedir alguns galões de aguardente. A ocasião pareceu-me a ideal para lançar as bases de um tratado amigável e comercial com o rei. Dirigi-me à sua residência acompanhado do meu intérprete e falei-lhe nestes termos após o ter informado que lhe oferecera os últimos galões de aguardente:
“Vim a estas terras para comerciar contigo os produtos da ilha de Orango, dando guinéus, tabaco e aguardente. Até agora não me falaste das tuas intensões nem quais os produtos que eu podia comprar. Dei-te toda a minha aguardente e se tu desejas mais é necessário que autorizes ir abastecer-me junto dos brancos de Bolama. Trarei nessa altura todas as mercadorias que me peças.”

Oumpané ficou uns minutos sem responder; depois, pareceu ter tomado uma resolução. Levantou-se, tirou de um cofre um maço de cavilhas de caju de pontas encurvadas e fez-me sinal para o seguir. Atravessámos a povoação em todo o seu comprimento e ficámos diante de uma casa que estava fechada. O rei introduziu uma dessas cavilhas, abriu-se a porta e vi que estávamos num vasto armazém cheio de amêndoas de palma, que avaliei em 10 mil francos. O rei, cheio de orgulho, mostrou-me uma enorme quantidade de curtumes cuidadosamente empilhados. Nos depósitos seguintes, vi também milhares de esteiras, muita borracha, arroz, milho-miúdo, amendoim; num outro espaço, e confesso que fiquei verdadeiramente estupefacto dei com peças de navios, tais como velas, âncoras, vergas, cordame de todas as dimensões, barómetros, pêndulos, até a fotografia do capitão inglês John Peens, em corpo inteiro. Ora este capitão desaparecera 15 anos antes, pensava-se que tinha naufragado nas costas do Gabão. O rei parecia admirado com a atenção que eu dedicava ao exame desta fotografia. Fechou a porta e levou-me a um novo depósito onde estavam classificadas peças de vestuário, fuzis e sabres. Vi também numa prateleira capacetes, chapéus altos, quépis e um soberbo uniforme de oficial da Marinha. O ministro da Justiça informou o meu intérprete que os objetos guardados neste último depósito eram os preferidos do rei. Segundo usos e costumes de Orango, seria este uniforme o que o rei usaria no seu funeral.

Após esta última visita o rei conduziu-me à sua casa, sentámo-nos e mostrou-me uma peça de carpintaria onde estavam vários deuses. E disse-me: “As mercadorias que viste nos depósitos e que são produtos nossos, estou pronto a vendê-las. Vou, pois, autorizar-te a regressar a Bolama para procurares aguardente, tabaco, guinéus, fuzis e metralhadoras, sobretudo metralhadoras, isto na condição de que os deuses te sejam favoráveis. Guardarei aqui até ao teu regresso as mercadorias que já trouxeste. A tua chalupa está na enseada há já algum tempo. Vais encontrá-la repleta de amendoim que levarás para Bolama.” Dito isto, virou-me as costas, o que me fez pensar que a audiência terminara.

Dirigia-me para a porta quando os ministros vieram prevenir-me que ia ter lugar um novo sacrifício aos deuses. Temi que a prova me fosse novamente desfavorável, procurei corromper o sacerdote oferecendo-lhe 10 jardas de tecido de algodão e 50 folhas de tabaco que Samba Salla foi rapidamente buscar às provisões que restavam. Desta vez o galo degolado veio cair aos meus pés, o povo não escondia o seu contentamento e o rei ofereceu-me 22 porcos e 1 boi.

Qual não foi a minha deceção quando verifiquei que todo o amendoim que encontrei na chalupa estava avariado. O que ele me dava valia apenas 600 francos, eu perdera 1200. A operação não era brilhante! Veio-me então uma ideia cuja execução teria alguns meses mais tarde terríveis consequências. Ordenei a Samba Salla que reunisse imediatamente toda a gente da minha equipagem. “Meus amigos, disse-lhes, o rei quer obrigar-me a abandonar todas as minhas mercadorias. Em troca, dá-me 22 porcos, 1 boi e um carregamento de amendoim sem valor. Não podendo resistir-lhe pela força, quero pregar-lhe uma partida. Vamos aos depósitos dele e vocês executam rapidamente as ordens que vos irei dar.”

Regressámos à povoação e esvaziámos todas as caixas que me pertenciam. Tinha agora a minha vingança!

Os porcos e o boi já tinham embarcado e no último momento o reio quis juntar aos presentes uma magnífica tartaruga com 1 metro de diâmetro e cerca de 50 esteiras. Como eu lhe tivesse agradecido calorosamente estes novos presentes, o rei pediu-me que lhe oferecesse o meu revólver. Retirei as balas e entreguei-lhe a arma. A brisa era-nos favorável, estava tudo pronto para a partida. Oumpané teve a deferência de me acompanhar à chalupa não sem ter deitado uma olhadela às caixas que eu lhe deixava.

Temendo que a substituição fosse rapidamente descoberta, apressei o embarque, levantou-se a âncora, acenei um adeus ao rei e partimos imediatamente.

Não era sem tempo. Ouviam-se gritos na povoação, vi uma multidão a correr à praia, à frente vinham os ministros. Tendo descoberto que tinha sido ludibriado o rei lançava autênticos urros, apontou-nos o revolver, puxou em vão pelo gatilho.

Pusemo-nos ao largo, o vento soprava de feição, os bijagós que se tinham lançado à água para nos prender cedo perceberam que era inútil a perseguição. Felizmente que tudo acabou bem para nós.

Aqui finda o relato de Maximin Astrié.

Costumes bijagós, imagem publicada em Panorama, revista portuguesa de arte e turismo, Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo, n.º 10/11, 1954
Régulos bijagós, fotografia de Luís Paulo Ferraz, com a devida vénia
Escultura bijagó
Máscara bijagó, Museu Nacional de Etnologia, com a devida vénia
Rapaz bijagó em cerimónia de iniciação

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 6 DE DEZEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24924: Historiografia da presença portuguesa em África (397): "Viagem ao arquipélago dos Bijagós", 1879, por Maximin Astrié (2) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24943: Notas de leitura (1648): "Comandante Pedro Pires, Memórias da luta anticolonial em Guiné-Bissau e da construção da República de Cabo Verde - Entrevista a Celso Castro, Thais Blank e Diana Sichel"; FGV Editora, Brasil, 2021 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Junho de 2022:

Queridos amigos,
É nos dada a oportunidade de ouvir na primeira pessoa a trajetória de um líder que viveu desde de 1961 missões de que Amílcar Cabral o incumbiu, uma das mais importantes terá sido a formação de um grupo que iria desembarcar no arquipélago de Cabo Verde, missão depois considerada inviável e que leva este grupo cabo-verdiano preparado em Cuba a ir combater no interior da Guiné. O comandante conta-nos a sua história desde a infância na Ilha do Fogo, as lembranças que ele guardou da vida do arquipélago até chegar a Lisboa, pensava tirar um curso na Faculdade de Ciências para ser professor, foi oficial da Força Aérea, desertou em 1961 e chegou a Conacri. É um discurso sereno, não há arroubos nem farroncas, uma crença inquebrantável no pensamento de Cabral, tem lugar de destaque na hierarquia do PAIGC, foge sempre com subtileza à questão tensional Guiné-Cabo Verde, ou defende-se com o mantra de que foram os colonialistas quem acirrou esse ódio, que não tinha fundamento. Não se entende como este octogenário, cioso para que haja uma história feita pelos independentistas africanos, não tenha documentação suficiente para saber que a questão cabo-verdiana se tinha naturalmente agudizado com a ocupação dos lugares chaves da administração colonial guineense por cabo-verdianos, desde administradores de circunscrição, a notários, a professores, a empresários, situação que se vivia essencialmente desde a separação da Guiné de Cabo Verde, em 1879. Não sei o que ganham estes homens que exerceram altos cargos no PAIGC e no PAICV a fugir à realidade, está tudo documentado. E, como veremos a seguir, Pedro Pires vai ter a desfaçatez de considerar que o assassinato de Cabral foi perpetrado a partir de Bissau, pela entidade colonial e a PIDE-DGS.

Um abraço do
Mário



Comandante Pedro Pires, memórias da sua vida e da sua luta na Guiné-Bissau (1)

Mário Beja Santos

Pedro Verona Pires, após a sua deserção das Forças Armadas portuguesas juntou-se ao PAIGC em Conacri, foram-lhe atribuídas múltiplas missões, acompanhou a luta da libertação da Guiné-Bissau e de Cabo Verde. Após a independência de Cabo Verde, foi Primeiro-ministro entre 1975 a 1991 e seu presidente de 2001 a 2011. Este livro sobre o Comandante Pedro Pires é o resultado de uma longa entrevista realizada em Cabo Verde por uma equipa da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas: "Comandante Pedro Pires, Memórias da luta anticolonial em Guiné-Bissau e da construção da República de Cabo Verde, entrevista a Celso Castro, Thais Blank e Diana Sichel", FGV Editora, Brasil, 2021. O entrevistado regista a história da sua vida, mediada pelo método da História Oral. Obviamente que nos vamos circunscrever das suas declarações até à independência da Guiné-Bissau e sequelas da rutura Guiné-Cabo Verde.

Pedro Pires nasceu na Ilha do Fogo em 1934, origem eminentemente rural, filho de pais médios proprietários rurais. Fala da sua família e do Fogo, onde viveu até aos 7 anos; depois fez a escola primária em São Filipe; aos 12 anos foi fazer a admissão aos liceus em São Vicente, estudo com interregnos, o dinheiro da família não chegava para tudo; inevitavelmente fala das fomes e da condição atroz da vida cabo-verdiana, da muita emigração, refere também a revolta dos famintos; em 1956, com 21 anos, terminado o liceu, vem para Portugal, inscreve-se na Faculdade de Ciências, frequenta a Casa dos Estudantes do Império, mas em 1957 vai prestar serviço militar obrigatório, depois de Mafra, fez a formação na área de controlo aéreo, tornou-se oficial controlador aéreo de radar, colocado em Montejunto. Assume que é por esta época que começa o seu crescimento político, a sua condição de colonizado, fala das suas leituras, recorda "Geografia da Fome", de Josué de Castro e as obras de Jorge Amado. Confessa que não fez parte de nenhuma organização comunista. Decide fugir de Portugal em 1961, vai com uma enorme leva de companheiros africanos, sobretudo angolanos, lembra outros companheiros de viagem, como Manuel e Lilica Boal, Amélia Araújo, Elisa Andrade e Osvaldo Lopes da Silva. Em Paris, o grupo foi visitado por Mário Pinto de Andrade e por Dulce Almada Duarte, ligada ao PAIGC. Viaja para o Gana, em Acra tem o primeiro encontro com Amílcar Cabral. Em Conacri recebe como missão ficar agregado ao secretariado da CONCP - Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas, depois foi destacado para trabalhar em Dacar no seio da comunidade cabo-verdiana residente no Senegal. Fez depois formação na União Soviética. Tece elogios à personalidade de Amílcar Cabral.

Descreve os inícios da luta armada, os primeiros líderes revolucionários formados na China, depois um grupo formado em Marrocos, onde aliás Pedro Pires esteve em missão, os envios de armas e até incidente resultantes do envio de munições de Marrocos de que Sékou Touré suspeitou que pudessem ser munições para um golpe de Estado. Considera que a obsessão pela luta armada era inevitável. “Portugal não estava em condições de seguir uma via pacífica e negociada. Não estava em condições de negociar com quem quer que fosse, porque o regime dependia política e economicamente do colonialismo. Ele só tinha futuro, tal como existia, aliado ao regime colonial”. E explica o pensamento de Cabral relativamente à natureza da luta armada que se ia fazer na Guiné. “Para Amílcar Cabral, era fundamental evitar que se transformasse numa guerra de fronteiras, que dizer, estar do outro lado da fronteira e fazer ataques armados a partir do exterior. E escolheu uma localidade do centro-sul da Guiné, Tite, para começar a luta armada. Mas já tinha havido um trabalho prévio de mobilização dos camponeses, de mobilização dos guineenses, quer em Bissau, que no interior do mundo rural”. Considera que no espírito de Amílcar Cabral esteve sempre presente a ideia de que Pedro Pires devia trabalhar prioritariamente no quadro do desenvolvimento da luta em Cabo Verde.

Pedro Pires visita pela primeira vez a Guiné-Bissau em 1968, foi destacado para a Frente Leste, em substituição do secretário-geral e na companhia de Osvaldo Vieira. Refere-se ao Congresso em Cassacá e da necessidade de jugular as arbitrariedades de líderes assumidamente criminosos. Fará parte da delegação do PAIGC à Conferência Tricontinental que se realizou em Havana, no início de 1966. Fez formação militar em Cuba. Na impossibilidade de fazer desembarque em Cabo Verde, e após completar nova formação militar na União Soviética, volta para Conacri, o grupo de que ele faz parte irá instalar-se na base Kambéra, na região de Madina de Boé. “A minha incumbência era criar as condições de acolhimento e distribuir os recém-chegados pelas três frentes, buscando, sobretudo, tirar benefício dos mais bem qualificados, e que entrariam especialmente no corpo de artilharia das FARP, com o objetivo de melhorar a eficácia da nossa artilharia. O que se conseguiu grandemente, e viria a constituir o pilar principal da derrota do exército colonial.” Faz alusão à africanização da guerra e à política da “Guiné Melhor”.

Os entrevistadores pretendem apurar qual o grau de tensão entre os dirigentes cabo-verdianos e os guineenses. “Suponho que talvez pudesse existir alguma coisa, provavelmente inveja, preconceito retrógrado, mas não dava para afirmar que houvesse tensão”. Não teve conhecimento de que houvesse conflito expresso com os cabo-verdianos. “O certo era que a presença cabo-verdiana nas FARP perturbava as autoridades coloniais e militares porque sabiam que constituíam uma mais-valia importante do ponto de vista militar e ameaçavam a sua segurança”. Da sua análise, em 1968, a guerra encontrava-se numa fase equilíbrio entre as forças opositoras, nem o movimento de libertação estava em condições de expulsar as tropas colonialistas e estas não estavam em condições de derrotar a guerrilha. Falava-se da Operação Mar Verde, da resposta do PAIGC à campanha da “Guiné Melhor” com a criação dos “Armazéns do Povo”. Considera que a rutura do equilíbrio é dada pela chegada dos mísseis Strel
a, Manecas Santos, da Frente Norte, fora o chefe da missão do grupo que se formou na União Soviética. E acrescenta:
“Os combatentes do PAIGC dispunham de uma outra arma de artilharia, ligeira e muito prática, com bom alcance, também de fabrico soviético, o 3P132GRAD-P. Numa guerrilha em que as armas e as munições são carregadas pelos combatentes, é importante que não sejam pesadas. Ora, o GRAD-P respondia a esses critérios operacionais. Além do mais, podia ser empregado com um só tubo de lançamento ou com vários tubos, em bateria, em que era mais eficaz e com menor dispersão de tiro. Trata-se de uma versão reduzidíssima da arma pesada que o exército soviético tinha usado na II Guerra Mundial, conhecida por órgãos de Estaline, é uma versão mini.”

E inopinadamente, os entrevistadores orientam a conversa para o assassinato de Amílcar Cabral.

(contínua)

Pedro Pires no serviço militar em Portugal
Pedro Pires na Guiné-Bissau
Entrevista de Pedro Pires a uma equipa da Escola das Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas, junho de 2019: (https://www.youtube.com/watch?v=A7eXvPIwie8)
Ilha do Fogo, Cabo Verde
Pedro Pires nas cerimónias da Independência da Guiné-Bissau
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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE DEZEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24931: Notas de leitura (1647): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (2) (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24926: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (13): O cruzeiro das nossas vidas

Foto do álbum de Luís Henriques (1920-2012), que foi 1º cabo inf, 3º Companhia, 1º Batalhão, RI 5, Mindelo, São Vicente, Cabo Verde, 1941/43, entretanto integrado no RI 23. Sem legenda no verso. Com toda a probabilidade, a autoria é da famosa Foto Melo.


O N/T Serpa Pinto, com as cores da CCN - Companhia Colonial de Navegação. Fonte:  Blogue Restos de Colecção >  7 de outubro de 2015 > Paquete "Serpa Pinto" (com a devida vénia...)

O N/T Serpa Pinto foi uma das glórias da nossa marinha mercante. Era um navio de passageiros, com  cerca de 142 metros de comprimento e cerca de 8,3 mil toneladas de arqueação bruta,  operado, desde 1940 (e até 1954), pela Companhia Colonial de Navegação na Carreira da América do Norte (Lisboa–Nova Iorque), na Rota do Ouro e Prata (Lisboa–Rio de Janeiro–Buenos Aires) e na Rota das Caraíbas (Lisboa–Havana), entre 1940 e 1955... Era originalmente  um navio inglês, da Royal Mail.  Em 1944 esteve na iminência de ser afundado por um submarino alemão. Foi salvo "in extremis"...

Para mostrar aos beligerantes da II Guerra Mundial, que pertenciam a um país neutral, os  nossos navios (bem como os barcos de pesca, incluindo a "frota branca")  eram pintados de negro,  com o nome de Portugal, bem visível, pintado a branco,  tal o nome do navio. Toda as as tripulações da nossa marinha mercante, bem como da nossa frota bacalhoeira,  sem esquecer a marinha de guerra, foram verdadeiros heróis, naquela época. E não poucos, bravos marinheiros e pescadores, perderam a vida, engrossando a lista de vítimas da nossa história trágico-marítima

De facto, e embora com pavilhão de um país neutral, os nossos navios e barcos da frota pesqueira  eram frequentemente intercetados tanto pelos Aliados como pelas potências do Eixo (e em especial pelos alemães, cujos submarinos "infestavam" o Atlântico...) e alguns foram atacados e afundados. Por exemplo, o  barco de pesca "Exportador primeiro" foi cobardemente atacado a tiro de canhão por um submarino italiano, a sul do Cabo de São Vicente, em 1/6/1941... Ou o navio de carga  e passageiros, da CCN, o "Ganda", afundado, "por engano", por um submarino alemão, ao largo da costa de Marrocos, em 22/6/1941... Estes são apenas 2 dos 11 navios, de pavilhão português,  afundados durante a II Guerra Mundial. 

Diz a Wikipedia a propósito do N/T  Serpa Pinto: 

 "Foi o navio de passageiros que, durante a Segunda Guerra Mundial mais viagens transatlânticas realizou entre Lisboa, Nova Iorque e Rio de Janeiro, transportando refugiados da guerra em geral, e particularmente judeus em fuga do nazismo, trazendo de volta à Europa, cidadãos de origem germânica expulsos dos países americanos. Adquiriu assim popularidade, ficando conhecido pelos epítetos de "Navio da Amizade", "Navio Herói" e "Navio do Destino". (...)

O incidente mais grave ocorreu na noite de 26 de maio de 1944 quando se encontrava 600 milhas a leste das Bermudas, a caminho de Filadélfia. Depois de examinada a documentação e feito refém o primeiro imediato do navio português, um submarino alemão, U-2, ordenou a evacuação total dos 500 passageiros para as baleeiras (em 15 minutos!) e solicitou a Berlim o torpedeamento do Serpa Pinto. Durante toda a noite, a tripulação e os passageiros aguardaram nos escaleres pela decisão do Estado-Maior da Marinha Alemã.

Depois dessa noite de angústia, só pelas 3 horas da tarde do dia seguinte chegou a resposta do almirante Karl Dönitz (1891-1980), a de não autorizar o afundamento... Recorde-se que, na altura, a Marinha Alemã já em estava em pleno declínio. (No final da guerra, a Alemanha terá perdido mais de metade da sua frota de submarinos. )

Na operação de abordagem do N/T Serpa Pinto, faleceram três passageiros, o médico do navio (vítima de um ataque cardíaco), um cozinheiro (que se atirou ao mar), e um bebé polaco de 16 meses de idade (que seguia acompanhado pelos pais judeus).

Fonte: NovoMilénio > Rota de Ouro e Prata, página de José Carlos Rossini > 7 de julho de 2013 > Navios: o Serpa Pinto

O cruzeiro das nossas vidas  

por Luís Graça


"Sobre a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia" 
(Eça de Queiroz, A Relíquia, 1887) 


A bordo do Niassa
Quarta feira,  28 de Maio de 1969. 


Eis-te nos tristes trópicos, parafraseando o título brasileiro do livro de viagens e de etnografia do  francês Lévi-Strauss,  que levas na babagem que está no porão. (Trazes uma mala de cartão cheia de livros, convencido de que vais passar umas férias a um país exótico com extensas praias de areia branca e fina, bordejadas de palmeirais, e bar aberto.)

Atravessaste hoje o Trópico de Câncer, com velocíssimos peixes voadores e alguns alegres e endiabrados  golfinhos a acompanhar-nos. Quem sabe se não vieram do estuário do Tejo a "escoltar-te"... Deviam pressentir o nosso destino e queriam consolar-nos e quiçá proteger-nos...

Lembraste-te, por outro lado, do romance escaldante do Henry Miller, também em edição brasileira (não havia edição portuguesa), mais tarde proibida pela ditadura militar. (Ditadura e erotismo parecem que não combinam bem; mas as grandes democracias norte-americana e britânica, para não falar do Vaticano, puseram  também o livro no  Index Librorum Prohibitorum).

Lembraste-te sobretudo do "teu velho", que esteve em Cabo Verde, como "expedicionário" (adoras a palavra!), com o posto de 1º cabo, em plena II Guerra Mundial, mobilizado pelo RI 5, das Caldas da Raínha. (Ironia da história, também foi lá que fizeste a recruta, era o quartel mais perto da tua casa.)

Mas a ti não te chamam "expedicionário", indivíduo que faz parte de uma "expedição", o mesmo é dizer, "enviamento de tropas a determinado ponto e com determinado fim".  Sabes, isso sim,  que vais para a Guiné.  Mas não exatamente para fazer o quê: a tua reduzidíssima companhia (um terço do que seria normal),  leva um capitão, quatro alferes, um primeiro sargento, dois segundos sargentos, "todos chicos", mais 13 furriéis milicianos (5 especialistas e 8 atiradores de infantaria, e umas cinco dezenas de praças, entre cabos e soldados, todos especialistas em qualquer coisa, condutores,  mecânicos, operadores de transmissões, enfermeiros, cozinheiros,  etc.)

Segredo de polichinelo... Alguém, na véspera de desembarcares em Bissau, irá dar com a língua nos dentes, e dizer, numa rodada de uísques, que a malta iria dar formação a uma companhia... da "nova força africana" do Spínola!... Ninguém gostou da "sorte grande"... E ficou a pairar no ar a dúvida sobre o nosso próximo destino...
 
E enquanto ainda estavas a bordo do T/T Niassa (que navegava ao largo da costa de Marrocos, sem qualquer escolta visível...),  vieram à tona de água da memória as histórias de tubarões que o "teu velho" te contava, ainda quando criança. Ele gostava de fazer mergulho e nadar, na baía do Mindelo, do Porto Grande, mas tinha medo que se pelava dos tubarões! E dava-te exemplos arrepiantes: de um que ficou com o peito todo marcado pela dentadura de aço de um tubarão: de um outro, abocanhado, que conseguiu escapar mas sem uma perna; de um terceiro tipo, que ele salvou de morrer afogado, tinta-se atirado do cais, desesperado, depois de lhe ter sido amputado o  pilau (por "venéreo", acrescentava pudicamente o teu velho, sem te explicar que raio de doença era essa).

Trazes contigo uma das suas fotos. Lês no verso: "No dia em que fiz 22 anos tirei esta fotografia em Mindelo, celebrando as minhas vinte e duas primaveras felizes.   Em 19/8/942. S. Vicente, C. Verde. Senti neste dia muitas saudades dos meus, dos amigos e também da minha terra (...)".

"Vinte e duas primaveras felizes", com todo o mundo em guerra, em plena II Guerra Mundial!...  E o Atlântico , cemitério de centenas de navios e dezenas e dezenas de milhares de vidas.

Em 28 de maio de 1969 (data aziaga!), na véspera de chegares a Bissau, tu tinhas 22 anos e 4 meses. Do fundo da memória, vêm-te à superfície fotos amareladas de barcos e tubarões. Barcos ingleses, italianos, alemães, portugueses, ancorados na baía do Mindelo, ou ao largo, numa entente cordiale... Grandes navios de cruzeiro italianos transformados em hospitais, e que traziam doentes, refugiados e diplomatas... Acabada a grappa a bordo, bebiam álcool puro, os diplomatas ao serviço do "Duce", contava-te o teu pai...

Lembraste-te de um desses navios da nossa frota da marinha mercante, o Mouzinho de Albuquerque, que tomou o nome de um trágico herói colonial... Dizem que o Mouzinho, o herói de Chaimite, o "carrasco do Gungunhana" (dizia-te a tua professora da 4ª classe) se suicidou por não suportar o boato que corria nos mentideros de Lisboa de que era o amante da rainha Dona Amélia, fidelíssima esposa do seu amado rei D. Carlos... (Ele era o precetor de um dos principes; por outro lado o rei estava longe de ser um exempo de virtudes.)

E o mítico Serpa Pinto (cento e quarenta e tal metros de comprido, um pouco menos que o Niassa), que na Jugoslávia escapara, em 1940, de cair nas garras dos nazis,  para passar a ostentar o pavilhão português... Estará no periscópio  de um U-2 para ser abatido quatro anos depois.

A bordo do Niassa perguntavas-te a ti próprio:

– E se Cabo Verde tivesse sido invadido, em 1941, 42 ou 43, como ao que parece chegou a estar nos planos dos Aliados ou até das potências do Eixo ? 

Muito provavelmente tu nunca terias nascido, ou se tivesses nascido falarias hoje alemão,  e não estarias agora a caminho da Guiné, a bordo do Niassa, um navio da carreira colonial fretado pelo exército… O teu pai só tinha barco (e correio) de três em três meses, mas escrevia todos os dias, compulsivamente (as cartas dele e as dos camaradas que não sabiam ler nem escrever).

Alguém se lembrou, entretanto, de abrir uma garrafa de "champagne" (um espumantezeco nacional, de cabaré) como se a malta tivesse atravessado o Equador ("ali mais abaixo"),  em alegre cruzeiro de meninos ricos de colégio fino pelo Atlântico Sul. Era o sargento Vidigal que também já andara noutros  "cruzeiros", a caminho de Angola e Moçambique.  Com um sorriso verde-amarelo, também participaste estupidamente, a contra-gosto,  nesse ritual de iniciação, erguendo a tua taça:

– Afinal, estamos todos no mesmo barco! – comentaste para o teu parceiro do lado, o furriel miliciano enfermeiro..., a quem desde cedo, desde Santa Margarida, tinham posto a alcunha do Pastilhas... (Todos os enfermeiros eram Pastilhas.)

Não chegaste a saber se ele terá percebido o teu humor negro. Não era tipo para achar piada às tuas piadas, ali deslocadas. Recorda-lo,  ainda hoje, como um homem simples, sensível, tímido, reservado, com ar bonacheirão mas assustado, a par de uma calvície precocemente galopante:

– Estamos todos no mesmo barco, camarada!... Quero eu dizer: estamos fo...didos, quilhados, lixados,  embarcados numa aventura que pode ser sem regresso… –  repetias-lhe tu, em vão.

Tu que te julgavas um tipo bem educado e civilizado, começaste a falar mal, a praguejar como o carroceiro que, na tua terra, fazia o serviço combinado com a CP, e tinha quatro possantes cavalos pretos que puxavam a sua galera.  Rosnavas, entre dentes, desde que soubeste da tua mobilização para a Guiné, em finais de fevereiro de 1969. A falar mal, a beber e a fumar. Falava-se mal, na tropa. Bebia-se e fumava-se, em demasia, no teu tempo de tropa. Como se o Niassa fosse uma extensão marítima do Cais do Sodré e das suas espeluncas. 

O enfermeiro, por seu turno,  era incapaz de dizer uma asneira: constava-se que já era enfermeiro na vida civil… Mas tu sabias pouco ou nada dele. Em boa verdade, sabíamos muito pouco uns dos outros.  Nem valia a pena fazer perguntas: nunca tinhas ido às terras deles, nem eles à tua... Para ti, Freixo de Espada à Cinta era no Cu de Judas... Viajava-se ainda muito pouco nos anos 60...  Portugal, todavia, estava bem representado, de Norte a Sul, na tua minicompanhia: dos alferes e furriéis milicanos, havia gente de todo o lado, do Algarve a Trás-os-Montes, da Estremadura  ao Minho, sem esquecer  a Madeira e o Alentejo. 

Tinha piada, as voltas que o mundo dará: o Pastilhas, que voltarás a encontrar muito mais tarde, em 1991, na Anadia, no 1º encontro do pessoal da companhia, vinte anos após a "peluda", virá  depois a fazer o curso de medicina.   E o ranger Azevedo, transmontano, tinha-se tornado empresário e autarca. 

A bordo comia-se e sobretudo bebia-se o dia todo, pelo menos os privilegiados dos graduados, para matar o tédio, para suportar a angústia da viagem, para fazer lastro e sobretudo para não dar parte de fraco e andar a chamar pelo Gregório pelos cantos do navio. 

Não há gaidjas, queixava-se o Vidigal, o 2º sargento do quadro, também ele transmontano, que à última hora ainda havia desafiado alguns gajos da corda   para ir fazer a despedida ao Bairro Alto. Um safado que, à conta da úlcera no estômago, iria depois arranjar maneira de escapar à dura vida no mato.  Um 1º cabo irá tomar conta da sua secção... Sempre era mais novo, com pelo menos 15 anos de diferença... Aquela guerra só podia ser feita por putos com 20 anos... Pobre do capitão que tinha 38 e estava à bica para ser promovido a major.

Era a velha tradição das rotas da navegação colonial, o álcool.  Havia os viciados da lerpa e do king. Como haveria depois, no teatro de operações da Guiné (no TO da Guiné, para utilizar a nossa linguagem de código), os viciados do álcool, da comida, do sexo, da caça, da guerra, da escrita diária de aerogramas (ou "bate-estradas")... 


Os oficiais superiores (eram poucos, e iam em rendição individual), esses, divertiam-se com o tiro ao alvo na popa do navio, enquanto a malta da classe turística escrevia cartas, aos pais, namoradas, noivas, mulheres, madrinhas de guerra..., cartas que tu imaginavas já molhadas de lágrimas salgadas e de saudades.

As praças, essas, vomitavam nos porões. (Só uma vez tiveste "estômago" para  "ir lá baixo".) Eram a "carne para canhão",  transportada como gado, queixava-se o nosso cripto, o Joselito. Um riacho de água verde-escura, fedorenta,  escorria pelo convés. Todo o navio fedia, tresandava a merda,  e no meio do cheiro nauseabundo havia um desgraçado de um desertor  que ia a ferros, qual gado levado para feira. Diziam que fora apanhado pela Pide na fronteira de Vilar Formoso, e recambiado para Santa Margarida, ainda a tempo de apanhar o comboio-fantasma até ao Cais da Rocha Conde de Óbidos onde o esperava o Niassa. (Enfim, uma história mal contada, como tantas outras, com que nos entretinhamos para aliviar a angústia da incerteza sobre o nosso destino, uma vez desembarcados em Bissau.)

– De mal o menos, ó Peniche , vais como básico, para a Guiné. Melhor do que seres atirador ou ficares a apodrecer no presídio militar de Elvas ou Penamacor…– consolaste-o tu e Oliveira, que estava de sargento de dia.

O pobre do desertor era alvo da chacota da maralha: alguém insinuara que o gajo era maricas e que não teve tomates (sic) para ir para a guerra… Faltosos, refractários e desertores eram a "escória da Nação", opinava o Gravata... Era um velho truque da velha instituição militar que das tripas sabia fazer coração, que da merda fazia nervos de aço, e dos cagarolas heróis... Só para manter o moral das tropas, só para aguentar a guerra, de vitória em vitória até à derrota final…

– Até quando ? – interrogavas-te tu, em silêncio.

– Lembrem-se, seus cabrões, que vocês são a fina flor da nação! – massacrava-te o tenente da tua companhia, na parada em Tavira, no Curso de Sargentos Milicianos…

Dentro de um dia desembarcaríamos na Guiné da qual espantosamente tu não sabias nada a não ser aquilo que te haviam impingido nos bancos da tua velha escola do Conde de Ferreira (onde o teu velho e o teu avô também andaram, e se calhar ainda o avô do teu pai) e que tu terias reproduzido, como um papagaio, no exame da 4ª classe ou da admissão no Liceu Passos Manuel:

– Descoberta pelo navegador português Nuno Tristão, que viria a ser morto pelos indígenas ao tentar desembarcar numa das ilhas do arquipélago dos Bijagós, a Guiné tem mais do que um terço da superfície de Portugal Continental...

E acrescentavas tu,  de acordo com o livro de leitura:

–  O clima é tropical húmido, e o território muito plano e baixo, com vastas regiões alagadiças e pantanosas, o que torna difícil a adaptação do europeu. Quanto à vegetação, predomina a floresta tropical e a savana arbustiva. A população – um pouco mais de meio milhão de almas – divide-se por uma grande variedade de grupos da raça negra, sendo os mais importantes os balantas, animistas, e os fulas, muçulmanos. 

E finalizava com a informação sobre a agricultura da província que dava tudo, era só semear e adubar com sol e chuva... Tão rica que até exportava arroz... para a o faminto arquipélago de Cabo Verde.

Desde que deixáramos as Canárias, que tu não suportavas aquele calor pegajoso, aquela angústia difusa que destilavas através dos poros da pele. Tinhas sintomas de febre e já não sabias distinguir onde acabava a realidade e começava o delírio. O Pastilhas deu-te um LM para baixar a febre. LM, o comprimidinho milagroso , a panaceia do Laboratório Militar, que o nosso Pastilhas  irá distribuir, às centenas, todos os dias, à população indígena , e que sofria de todos os males, do paludismo à lepra, da desnutrição à desinteria, das doenças venéreas à tuberculose...

De facto tudo fora tão brutal: a ordem de mobilização recebida em Castelo Branco, aonde davas instrução de recruta; a ressaca dos primeiros copos na noite do tremor de terra, em 28 de fevereiro de 1969; a apresentação no Campo Militar de Santa Margarida; a Escola Preparatória de Quadros e a Instrução de Aperfeiçoamento Operacional (IAO)  com os rocambolescos assaltos nocturnos aos bivaques do inimigo para sacar tudo o que fosse bebível e comestível; os breves dias, tristes, vazios, de licença antes do embarque, em que decidiste não te despedir de ninguém; a viagem directa, nocturna, quase clandestina, em comboio especial até ao cais de embarque, no porto de Lisboa; os capacetes brancos dos polícias militares; os nossos familiares e amigos de rosto tenso, alguns, poucos,  de gravata preta; as gaivotas, agoirentas,  estranhamente pousadas nos mastros dos navios; as fragatas do Tejo, silenciosas mas tensas, polvilhando o estuário; os guindastes, o Tejo, a ponte que, de Almada, tu viras elevar-se das águas nos primeiros anos de 60; o Cristo-Rei, de braços abertos como um espanta-pardais numa tela de Dali; o apito breve mas pungente do navio, breve como um tiro, arrepiante como o sentimento indefinível de quem em Lisboa partia e de quem em Lisboa ficava; o marinheiro que soltava as amarras, um vulto, uma mão, um lenço…

E, já no mar alto, ao largo da costa da África Ocidental, entre o Senegal e Cabo Verde, tu próprio tiveras a sensação de ter atravessado o pórtico do tempo e entrado num barco-fantasma, sobrevivente da odisseia dos antigos nautas, à deriva nos medonhos mares de que nos falavam as velhas histórias trágico-marítimas…

Que fazia tu, que fazíamos nós – o Pastilhas, o Vidigal, o Joselito, o Tony, o Ranger Azevedo,  o Zé Neves, o Campanhã, o Meia Leca, o Vagomestre,  o Vat 69, o sacana do Gravata, e tantos outros, que ainda mal conhecias, mais o desgraçado do Peniche, e centenas e centenas de homens, milicianos ou do contigente geral, estes último acondicionados como gado em beliches, nos porões nauseabundos, ali naquele barco da carreira colonial, vogando fora do tempo e do espaço, como se o Gil Eanes nunca tivesse dobrado o temido Cabo Bojador, desfeitas as lendas do Mar Tenebroso e assim aberto o caminho marítimo para o longínquo sul, para o fim do mundo, e para os eldorados que havia por achar?!...

– Duplamente embarcado, meu velho. Fo...dido, quilhado! – repetias tu, de novo para o Pastilhas ao avistarem ao longe algumas  luzes trémulas 
Ilha do Rei, à entrada do Porto de Bissau, no estuário do Geba,  e ao ouvirem pela primeira vez uma tempestade tropical que, no meio do alvoroço provocado pelo grito Terra à Vista!, alguém confundira com o tão temido ribombar dos canhões.

– As principais exportações são o amendoim, o coconote, as madeiras exóticas e o óleo de palma. A capital e a residência do Governador é a linda e moderna Bissau... Blá-blá, blá-blá...

Foi a pensar nas zonas pantanosas e alagadiças da Guiné, nos seus mil e rios e braços de mar, nas suas margens lodosas, nos seus tentáculos traiçoeiras, que tu encomendaste ao teu velho
 um par de botas de cano alto, à cavaleiro... Coitado do teu velho que nunca passará da cepa torta,  pomposamente colectado nas finanças como industrial de sapataria, e dando trabalho a um série de mânfios (sapateiros eram às carradas na tua terra, antes do grande éxodo do país... Julgavas tu, na tua santa ignorância ou ingenuidade, que ficarias melhor protegido contra as temíveis sanguessugas e víboras, crocodilhos e outra bicharada... Felizmente, tiveste  o bom senso de cancelar a encomenda à última hora, com as medidas e a forma do pé já nas mãos de um dos oficiais de sapateiro que trabalhavam para o teu pai...

– Tite, Fulacunda, Jabadá! - alguém alvitrava nomes, como se fosse o cicerone daquele estranho tour by ngiht de aproximação à capital de um país em guerra...


Bissau. 
Quinta feira, 29 de Maio de 1969... 


De manhã, a malta desembarcava numa cidadezinha plana,  desenhada a régua e esquadro no tempo da República (a avenida principal, a única avenida digna desse nome, chamava-se "da República"),  de casas térreas, de adobe, rachas de cibe e chapas de zinco, com quintais cheios de mangueiras, papaieiras, bananeiras e trepadeiras, e onde em dois ou três quarteirões  se concentrava a administração, o comércio,  a tropa e a religião (católica, apostólica e a romana).

Nas ruas, sujas das primeiras enxurradas de fim de maio, putos vendiam mancarra e tu começavas a aprender as minhas primeiras palavras de crioulo. Gilas, de balandrau branco, óculos de sol e transistor a tiracolo, mercadejavam bugigangas de contrabando, falando um estranha mistura de francês, crioulo e dialectos locais. Os sons, os sabores e as cores de África baralhavam-te os sentidos e as emoções.


Nunca esquecerás aquela baforada de ar quente quando, nos primeiros dias, saímos dos Adidos e púnhamos o pé em cima da terra vermelha escaldante ou do asfalto quase líquido... E dos primeiros pesos gastos em bebidas em lata  bem geladinhas... Foi em Bissau que tu pela primeira vez viste bebidas em lata que se bebiam dum sorvo, à sombra de uma mangueira ou debaixo de uma ronceira ventoínha... E quanto nais bebias, mais a sede aumentava, devido o teor de açúcar... Foi em Bissau que descobriste a Seven-Up, a Orange ou a Coca-Cola, em lata...

Em relação à Cola-Cola, confessarias mais tarde que não te tornaste fã, talvez por uma razão tão estúpida como  político-ideológico: partilhavas dos preconceitos da época segundo a qual a Coca-Cola era a água suja do imperialismo norte-americano... O ódio ao imperialismo estava na moda, por causa da guerra do Vietname  e da velha doutrina Monroe segunda qual a América era dos americanos, explicava-te o Zé Neves, que era jornalista,  o mais politizado de todos nós.

As imagens que tu tens de Bissau, entre 30 de maio e 2 de junho de 1969, são fugidias, impressionistas, estereotipadas... Logo de manhãzinha, já as esplanadas estavam cheias de tropa à civil, beberricando cerveja, enquanto no mastro da fortaleza oitocentista da Amura flutuava uma descolorida bandeira verde-rubra. Indiferente aos velhos canhões de bronze e aos poilões pintados com uma barra branca, uma mulher passava com o filho às costas e um balaio à cabeça. Canoas talhadas em grossos troncos de poilão partiam do lodoso cais do Pijiguiti, sulcando as águas lamacentas da ria, em busca de mafé...

Tinhas uma vaga ideia do que se passara naquele cais, 10 anos atrás, em 3 de agosto de 1959, pelo que leras ou escutaras da pouca propaganda clandestina do PAIGC que  chegava à capital do império, ou que era difundida pelas emissões que se ouviam, às tantas da noite, das rádios afetas aos forças oposicionistas: a Rádio Portugal Livre, a emissora clandestina dos comunistas, e a Rádio Voz da Liberdade, que emitia partir de Argel, ligada à Frente Patriótica de Libertação Nacional.

Ronceiros aviões levantavam voo de Bissalanca e, no meio da praça do Império, em cima de um Unimog, de pé e de braços abertos, frente ao mamarracho do monumento "Ao Esforço da Raça", há um sacana que exclama, histriónico (seria o Azevedo, o Ranger, que ia no UNimog da frente):

– Camaradas, cinco séculos de honra e glória vos contemplam! 

E toda a gente teve de gramar a formatura de boas vindas, no dia seguinte em Brá, e o discurso do "ventríloquo" do  general Spínola:

– Bem vindos à Spinolândia! – ironizava o Zé Neves, que não ia à bola com o com-chefe. 

Estragado com o calendário do fim-de.semana ficara o Vidigal que, não tendo arranjado transporte nem guarda-costas, desistira da ideia de ir ao Pilão... "mudar o óleo" (sic). 

Nos Adidos, três ou quatro topónimos eram pronunciados com um misto de temor e de respeito:  Gandembel, Madina do Boé, Guileje... Os dois primeiros aquartelamentos tinham sido "retirados" no princípio do ano de 1969...


Pelo Geba acima, na LDG 101 Alfange... 
Segunda feira, 2 de junho de 1969. 

Três dias depois iriam dar-te uma G-3, novinha em folha, e uma ração de combate, para de seguida te porem no fundo duma LDG, a caminho do Leste, Rio Geba acima, escoltados por uma equipa de fuzileiros navais que, à medida que o rio estreitava, batiam com fogo de morteirete a cerrada vegetação das margens (o tarrafe) até às proximidades do Xime, em Ponta Varela… Uma ração de combate e dois cantis de água mais ou menos potável:

– Seus sacanas – vociferava  o Ranger, ao lado do capitão, de lencinho preto ao pescoço, era o seu "amuleto"  – aprendam desde hoje a gerir a auguinha. E ficam a saber que neste barco de cruzeiro, rio Geba acima, não há bar aberto a estas horas...

Íam dois, tu e o Pastilhas, sentados em cima de uns colchões de espuma, empilhados numa Berliet, à mistura com centenas de malas de viagem, algumas já rebentadas e atadas por cordões… O fogo de morteirete dos fuzileiros apanhou-te de surpresa… E qual não é o teu espanto quando o enfermeiro, à saída da primeira granada se lançara de cabeça para o fundo da LDG!… 

Tu, que era de armas pesadas de infantaria, não tiveste felizmente reflexos tão rápidos como os dele que, na queda, acabou por ser a  primeira vítima da Companhia na Guiné.

– Vítima do fogo amigo! – comentaste, entre a risota, a compaixão e a  apreensão, ao vê-lo de olho inchado, e o sobrolho a sangrar.

Com um olho-à-Belenenses e com contusões no rosto, o pobre do Pastilhas, por ironia enfermeiro, foi o primeiro de nós a testar a competência dos nossos cabos auxiliares de enfermagem, seus subordinados dos serviços de saúde militar, que, noutras circunstâncias bem mais dramáticas, irão salvar a vida a alguns de nós: pelo menos sabiam aplicar um garrote e administrar o soro... a um desgraçado, atingido por tiro ou estilhaço n0 mato ou na picada.

 Como um cão apanhado na rede! –  resmungavas tu sentado na capota da Berliet, prescrutando a linha do horizonte, a bordo da LDG Alfange...

Pobre do Olho-à-Belenenses, pobre do Pastilhas!... A alcunha, as alcunhas, ficaram-lhe para sempre coladas à pele. 

Hoje, reconstituindo os acontecimentos em retrospectiva, pensas que ele foi o o teu  primeiro herói, ou melhor, o teu primeiro anti-herói: nunca o viste  a pegar uma arma, nunca deu um tiro (nem sequer contra um jagudi),  nunca matou ninguém, duvidas até que fosse capaz de pôr a G-3 em posição de tiro; nunca alinhara com a malta em operações, mesmo nas grandes operações; recorda-lo sempre de bata branca, na palhota que servia de enfermaria, no posto médico de Bambadinca, e onde todos os dias uma interminável fila de mulheres, crianças e velhos aguardava a sua consulta de enfermagem (alguns seguramente gente de Nhabijões, Mero, Santa Helena, Fá Balanta, etc.,  quiçá até vivendo no mato, sob controlo do PAIGC, ou do IN, como se dizia eufemisticamente)...

Como enfermeiro, era um tipo competente, despachado, lesto, e a quem de resto recorríamos, com frequência, para picar as nossas bolhas de água nos pés, curar os nossos  esquentamentos, com umas valentes doses de penicilina, ou aliviar os febrões do nosso paludismo, ou pintar o cu com uma estranha poção à base de tintura de iodo quando chegávamos lá, de pernas arqueadas, com a flor do Congo estampada no cu...

Ele foi o talvez o mais útil de todos nós, soube cuidar de nós e da população local... Em contrapartida, gostávamos de lhe pregar partidas, algumas de mau gosto, gratuitas e até perigosas: recordas-te de um dia, às tantas da noite, no regresso de um patrulhamento ofensivo com emboscada até à meia-noite,  dois ou très chanfrados, "apanhados do clima", o terem acordado, com uma pistola Walther apontada à cabeça; ou de o termos obrigado, com a cumplicidade do comandante da companhia (qwue até era um homem bonacheirão), já na parte final da comissão, a vestir o camuflado, a pegar na G-3 e a pôr ao ombro a mochila dos primeiros socorros... 

Simularam uma ida ao mato, soprando-lhe ao ouvido temíveis nomes como Ponta Varela, Poindom, Ponta do Inglês, Baio, Burunbtoni, Fiofioli, Curobal... Dissemos-lhe que ele não nunca poderia voltar connosco a Lisboa, virgem, sem o baptismo de fogo... 

Cinquenta metros depois de termos passado a porta de armas a caminho do objectivo, o Pastilhas teve um colapso, um ataque de pânico, vomitou por cima e por baixo, acabou por ser ele a pregar-nos um grande susto... Levámo-lhe de urgência ao posto médico...

No dia seguinte lá estava ele a servir as suas pastilhas e a dar as suas picas e os co,primidos LM, os "mezinhos",  aos doentes africanos da tabancas em redor... Era aí que ele se sentia gente, e sobretudo enfermeiro a tempo inteiro... Um homem absolutamente deslocado na tropa e na guerra...

Voltarás a encontrá-lo, muitos anos mais tarde, vinte anos depois, na Anadia no "Zé dos Leitões": era o dr. Andrade, médico de clínica geral em Aveiro, e médico do trabalho, numa fábrica de automóveis em Cacia.

Voltaste a encontrá-lo mais tarde e lembras-te de ele me ter falado, sem ressentimentos, com muito orgulho, com um brilhozinho nos olhos, dos seus dois filhos, um deles médico e professor na NOVA e outro engenheiro aeroespacaial, a trabalhar em Montepellier, França
.. 

Perdeste-lhe entretanto o rasto,   mas confessaste ao Zé Neves que gostaria de voltar a encontrá-lo,  para lhe dizer que ele agora fazia parte da tua "galeria de heróis", a ele que tinha sido vítima  de  algumas das nossas brincadeiras mais estúpidas, praxes de mau gosto, que ele suportou com a sua proverbial bonomia... Na realidade, sermpre houve "bullying" na caserna, e não apenas na esccola, na catequese, no liceu, ou no local de trabalho.

– A guerra é estúpida e cruel, e torna os homens estúpidos e cruéis. E o homem, 
 primata social, territorial e predador,  tem, além disso, a particularidade comportamental de ser o único animal do mundo que mata ou humilha as suas presas por mero prazer, usando a violência gratuitamente, sem necessidade... – comentataste tu para o Zé Neves, agora jornalista reformado, profundo conhecedor do Bairro Alto, em Lisboa, e que tu reencontravas com alguma frequência na Cervejaria Trindade, nos idos anos de 1975.

O Pastilhas tivera o azar de ter sido marcado, desde muito cedo, como alguém que parecia transmitir medo, fraqueza, vulnerabilidade, insegurança  sinais a que qualquer predador está atento, quando observa uma potencial presa. O enfermeiro era um verdadeiro animal acossado nos primeiras semanas ou meses na Guiné: ainda antes do lusco-fusco era frequente vê-lo a rondar os abrigos como se estivessemos na iminência de um ataque...  

Por outro lado, ele cometera, ainda a bordo do Niassa, um erro tático ao relacionar-se, de maneira preferencial, com o grupinho do 1º sargento Gravata, com quem de resto tinha mais afinidades ... Os furriéis milicianos, sobretudo os operacionais, em conflito com Gravata, marcaram o Pastilhas e às vezes faziam-lhe a vida negra...

 Não tens qualquer esperança que ele te leia este "conto com mural ao fundo"... Há uma conversa que tu e ele começaram  no Niassa e  se prolongou  pela LDG Alfange, mas que ficou por terminar... Nunca gostaste de conversas interrompidas a meio... De qualquer modo,  vais ter de lhe perguntar: 

–  Afinal, em que ponto é que a gente ia, depois daquele incidente na LDG quando  seguíamos rio acima até ao Xime ?... Ainda te lembras, em 2 de junho de 1969?"... 

Claro que ele não se vai lembrar de coisa nenhuma: terá sido o primeiro de todos nós a esquecer a Guiné... para sempre! 

– Guiné ?!, um pesadelo de um noite de verão!... Esquece, não sejas masoquista!... – arrematava-te o Zé Neves, entre duas imperiais e um bife à Trindade, no verão quente de 75 .

© Luís Graça (2006). Nova versão, revista e melhorada, em 1/12/2023. 
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Nota do editor:

Último poste da série > 31 de outubro de 2023 > Guiné 61/74 - P24808: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (12): de Montemuro a Montmartre ou uma história de vida "casapiana"