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segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P15059: 3 anos nas Forças Armadas (Tibério Borges, ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726) (7): Bedanda


1. Parte VII de "3 anos nas Forças Armadas", série do nosso camarada Tibério Borges (ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726, Cacine, Cameconde, Gadamael e Bedanda, 1970/72).


3 anos nas Forças Armadas (7)

Bedanda

Em Bedanda a companhia era de africanos com excepção da maioria dos graduados. Fui encontrar, imaginem, o Zé Cavaco que é meu conterrâneo. O mundo é pequeno. Apenas fui tapar um buraco durante um mês. Alguém que foi de férias ou que chegou ao fim da comissão. Quem sabe se doente! Pode ser que um dia saiba mais coisas através do Zeca. Sei que o Comandante era o Capitão Ayala Boto. Nesta unidade havia um padre.


Bedanda era um lugar onde os ataques se davam. Num dia de trovoada precisamente no momento do estalar do primeiro trovão sofremos um ataque ao arame. Nas férias antes de vir para este aquartelamento adquiri um gravador de bobines com muita música gravada em casa dos meus amigos Marino Lemos e Maria Teves e estávamos a ouvir boa música clássica quando esse ataque se deu.


Ficamos hesitantes uma fracção de segundo sem saber se era a guerra ou se era trovoada. Mas eram as duas coisas ao mesmo tempo. Larga pés para que vos quero a caminho das valas. Porém as fotos não passam dum momento de boa disposição, treinando, imaginando um ataque.

Mas a guerra tem muitas facetas sendo uma delas a Marinha que pela Guiné andava a desminar rios. E aconteceu enquanto lá estive. O rio Cumbijã que banhava aquela zona foi minado e tivemos sorte porque foi na altura da maré vazia que alguém deu por isso. Era por ele que as LDG’s ou LDM’s abasteciam, via marítima e fluvial, o aquartelamento. Assim vieram os peritos tratar do assunto.


Nesse mesmo rio fui uma vez com o sintex fazer uma caçada ao crocodilo pois disseram-me que esses hidrossáurios apareciam por ali. Apanhei um. Alguém da milícia prontificou-se para tirar a pele e prepará-la para um colega do Porto a levar para ser tratada e que depois ma enviaria de retorno. Até hoje. A carne de crocodilo acho que foi o preço de preparar a pele. A pele de crocodilo dava para fazer malas e sapatos, na altura, e que custavam muito dinheiro. Na altura o exército estava com falta de capitães e arranjou maneiras de cativar civis para esta tarefa.



Que era perigoso andar por ali, era, mas quando somos novos não medimos bem as consequências. A guerra apresentava-nos muitas surpresas e tudo podia ter acontecido. Apanhar material de guerra ao inimigo também aconteceu.


Os nossos obuses não eram rebuçados nenhuns e cada bujarda levava 45kg. E lembro-me uma vez que fui fazer um patrulhamento para uma zona de aldeamento onde andavam pessoas não controladas por nós,  combinando com o artilheiro o lançamento destes rebuçados para pontificar a pontaria do obus. Sei que vi do lado de lá do rio pessoas a andarem de canoa e outras pessoas que ali viviam.



Por vezes o abastecimento dos alimentos nem sempre eram feitos por LDG’s e em alternância os aviões deixavam esse precioso bem cair de paraquedas.


Ir de férias era muito bom, nem que fosse o tal artigo do RDM que nos dava 5 dias. Sair do mato e no meu caso estar em Bissau era fugir do inferno e chegar ao paraíso. Chegava a Bissau completamente descontrolado, desnorteado mas sabia que estava melhor do que no mato. Já não me lembro como sabíamos que era num dia marcado mas o certo é que íamos de avioneta para Bissau. Sei que nos instalávamos no hotel e depois era passear por Bissau. Comprar uma bebida, normalmente cerveja, era o ritual normal e que vinha acompanhado sempre dum pratinho de camarão. Os serões eram passados no QG onde se jogava bingo e saíam bons prémios, como frigoríficos. Estes no mato trabalhavam a petróleo. Foi no QG que encontrei o Capitão Albergaria que conheci em casa do Marino Lemos. Muito isolado e retirado. Lembro-me de ter conversado com ele. Aqui em Bissau ouviam-se todas as histórias passadas em todos os aquartelamentos. O hospital era o centro de todas as notícias más que aconteciam no mato. Soube que muita tropa dos comandos morreram e muitos dos que tiraram a especialidade comigo em Lamego. Era tropa de intervenção juntamente com outra como fuzileiros, rangers, etc. Lembro-me vagamente de ter estado em casa dum militar cuja mulher estava em Bissau.

No mato o tempo era difícil de passar e para distrair um pouco íamos até à tabanca. Éramos rodeados de muito miúdos pois entrar em diálogo com a população não era fácil pois existia sempre uma desconfiança. Outra maneira de viver e estar ocupados por outro povo que não os deixava estar livres e a fazer a sua vida não era fácil.


Outra distracção era o futebol que nos abstraía de tudo o que era guerra. Fazíamos boas partidas deste desporto.


Dentro do quartel as mais diversas situações proporcionavam as mais diversas conversas cavaqueiras ora amenas ora tristes mas tínhamos um médico, o Bravo, com o qual passávamos horas de boa disposição pois ele tinha jeito para as anedotas ou histórias.


Outras vezes vestia-me à civil para fazer crer que não estava no mato.


Por vezes dava uma voltinha fora do arame farpado, também, para distrair.


O General Spínola visitava as suas tropas sem prévio aviso. Metia-se num helicóptero e foi o que nos aconteceu por altura do Natal.


Um certo dia tive uma surpresa. O meu colega Silva que me enviou para Bedanda veio fazer-me uma visita.



Em Bedanda passei por um mau momento em que o meu estado psicológico não foi dos melhores.

Publicado por Tibério Borges
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Nota do editor

Postes da série de:

8 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14850: Tabanca Grande (469): Tibério Borges, ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726 (Cacine, Cameconde, Gadamael e Bedanda, 1970/72)

15 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14879: 3 anos nas Forças Armadas (Tibério Borges, ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726) (2): Passagem pelo BII 18 de Ponta Delgada, IAO no RI 11 de Setúbal e embarque em Lisboa no Ana Mafalda

23 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14921: 3 anos nas Forças Armadas (Tibério Borges, ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726) (3): De Bissau para Cacine

5 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14974: 3 anos nas Forças Armadas (Tibério Borges, ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726) (4): Cacine

15 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15006: 3 anos nas Forças Armadas (Tibério Borges, ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726) (5): Invasão a Conakry e, Entre Cacine e Cameconde
e
23 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15031: 3 anos nas Forças Armadas (Tibério Borges, ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726) (6): Gadamael Porto

domingo, 23 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P15031: 3 anos nas Forças Armadas (Tibério Borges, ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726) (6): Gadamael Porto



1. Parte VI de "3 anos nas Forças Armadas", série do nosso camarada Tibério Borges (ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726, Cacine, Cameconde, Gadamael e Bedanda, 1970/72).


3 anos nas Forças Armadas (6)

Gadamael Porto

Gadamael Porto ficava mais no interior do rio Cacine e mais perto da fronteira, tendo a norte Guileje onde o corredor da morte era o espaço para a passagem de material de guerra dos turras. Eles dominavam a floresta desde a Guiné Konakry passando por Guileje, Bedanda e chegando a Catió depois de atravessarem o rio Cubijam. Toda a zona do Catanhez, a floresta que marginava os rios Cacine e Cumbijã, englobava Cabedú, a Sul, e Bedanda, a Norte.


Este território era fechado tendo apenas carreiros ao logo de toda a floresta e banhado por pântanos onde as sanguessugas se agarravam às nossas pernas sugando-nos o sangue. Para além dos quartéis ficavam as emboscadas, a morte assombrada de terror e as minas. Os quartéis ficavam sujeitos a bombardeamentos às mais diversas horas mas sobretudo ao anoitecer. Aqui em Gadamael fui apanhar uma Companhia no fim da comissão, e como tal tinha o terreno na sua mão, não tendo apanhado neste mês que ali estive acontecimentos de maior. Os bombardeamentos eram o prato do dia e como tal eram-nos muito comuns. Na maioria dos casos não chegavam aos nossos quartéis porque eles bem temiam os nossos obuses. Estes eram direccionados rapidamente para a direcção de onde vinham os clarões e varria-se aquela zona quer em longitude quer em latitude.

Fui parar a Gadamael por ordem do meu capitão que certamente recebeu ordens de Bissau. No caso de haver outra substituição noutro quartel que tivesse de ir alguém da nossa Companhia, certamente já não seria eu. Os nossos serões eram preenchidos com o jogo do bingo. Cada quartel tem o seu cariz próprio dependendo, evidentemente, das pessoas que o criam.

Certo dia alguém se lembrou de se vestir à muçulmano e foi logo à maneira da entidade religiosa. Mal sabíamos nós que ao irmos ter com ele, o mal estar iria fazer parte desse encontro. Por nossa parte nunca foi colocar nesta brincadeira qualquer intenção de crítica ou algo que pudesse nascer um mal entendido. Foi um espaço de tempo sem pensarmos nas consequências. O que é certo é que ele nos disse que apenas se vestiam daquela maneira eles, os dignitários religiosos.





Nota: no meu álbum estas fotos têm a data de 10Out1970

Gadamael não possuía obus 14 mas 10,5 - armas mais maneáveis e adequadas às circunstâncias ou por falta de capital para os obter. Possuía um jipão onde transportava uma metralhadora.
 
Nota: no meu álbum esta foto tem a data de 11Nov1970

Estando o capitão de férias, ficou a comandar as tropas o Alferes Silva. Neste espaço de tempo, Bissau, certamente, dá ordens a que se faça outra substituição, desta vez em Bedanda, dum alferes. Em Cacine era regulamentar estarem dois pelotões e os outros dois em Cameconde. Nesta situação não me lembro se estava ou num ou noutro lugar. O que sei é que o Silva veio ter comigo para eu ir preencher a falta dum alferes em Bedanda. Fui contra esta situação uma vez que já tinha sido incumbido de o fazer e como tal outro estaria na vez. Não sei o que o levou a vir ter comigo mas o que pensei foi que ele não teve coragem de indicar um dos outros dois, uma vez que ele próprio não poderia ser. Pensei que por os outros três serem continentais e eu açoriano ou eles ofereceram resistência a tal ponto que ele optou por me manejar. Apesar de recusar ele insistiu comigo. Fiquei revoltado com esta situação e não estava na disposição de a aceitar. Por outro lado sabia que uma desobediência traria algo de grave.

Como o material de guerra estava por minha conta planeei uma fuga a partir de Portugal para França. Nessa altura e antes de ir para Bedanda tinha as minhas férias planeadas para as passar nos Açores. No regresso de férias do Capitão e na minha ida para férias encontramo-nos em Bissau.

Na minha mala coloquei umas quantas granadas de mão pois falava-se que passar a fronteira de Portugal não era fácil. Contei ao capitão o que estava planeando.

Ele aconselhou-me primeiro ir a Bedanda ver o ambiente, falar com o capitão e tirar informações do que por lá se passava.

Não me lembro bem a sequência dos acontecimentos mas devo ter ido a Bedanda antes de ir de férias porque devolvi de regresso todas as granadas que levava ao Capitão.

A Companhia ali aquartelada era de nativos exceptuando a maioria dos graduados. Não gostei desta situação mas no cômputo geral mudei de ideias.

(Continua)

Texto e fotos: © Tibério Borges
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Nota do editor

Poste anterior da série de 15 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15006: 3 anos nas Forças Armadas (Tibério Borges, ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726) (5): Invasão a Conakry e, Entre Cacine e Cameconde

sábado, 15 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P15006: 3 anos nas Forças Armadas (Tibério Borges, ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726) (5): Invasão a Conakry e, Entre Cacine e Cameconde

1. Parte V de "3 anos nas Forças Armadas", série do nosso camarada Tibério Borges (ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726, Cacine, Cameconde, Gadamael e Bedanda, 1970/72).


3 anos nas Forças Armadas (5)

Invasão à Guiné Konakry

Estava eu de férias em S. Miguel quando ao ler os jornais comecei a ver toda a literatura Salazarista. Histórias rocambolescas. Eu que estava despolitizado, achei ridículo. Eu que estava na Guiné e nada daquilo condizia com a realidade.

Ao regressar a Cacine estava o grupo de comandos africanos que tinha tomado parte na operação. Segundo diziam eles, esperava-se retaliação por parte de Konakry. O que é certo é que o tempo se foi passando e nada aconteceu. Segundo contaram, a operação foi nocturna, em barcos. Não destruíram os Migs, libertaram os militares prisioneiros portugueses mas deixaram lá um pelotão que fugiu para se aliar as tropas de Sekou, e não apanharam Amílcar Cabral. As informações que o General Spínola possuía saíram algumas incertas mas na generalidade foram bem sucedidos.

A Operação Mar Verde é uma acção singular entre todas as realizadas durante a guerra, nos três teatros de operações. Na clássica divisão dos manuais militares, que consideram três grandes grupos de operações - convencionais, especiais e irregulares -, ela pertence ao grupo das irregulares, e foi neste âmbito a de maior envergadura, complexidade e impacte internacional.

Foi realizada para obter efeitos políticos directos através da execução de um golpe de Estado em país estrangeiro, a Guiné-Conacri, por militares portugueses a actuarem com uniformes e equipamentos das forças desse país e em conjunto com elementos estrangeiros oposicionistas ao Governo, prevendo a eliminação de um chefe de Estado, Sekou Touré.

Como escreve o comandante da operação, o capitão-tenente da Marinha Portuguesa Alpoim Calvão, no seu livro "De Conacri ao MDLP", que constitui a base de informações que sobre ela se conhece, a proposta que fez ao Comandante-Chefe das Forças Armadas da Guiné tinha por objectivo principal a execução de um golpe de Estado na Guiné-Conacri, sendo os objectivos secundários a captura do líder do PAIGC, Amílcar Cabral, e a libertação dos militares portugueses prisioneiros que se encontravam em Conacry.

A operação, que nunca foi assumida por Portugal, aproveitou a existência de oposicionistas ao regime de Sekou Touré, disponíveis para participarem numa acção deste género, e visou a instalação, em Conacri, de um regime mais favorável às posições portuguesas. Para atingir este fim, foram equacionadas duas alternativas, uma prevendo a instalação no território da Guiné-Bissau de bases a partir das quais esses oposicionistas pudessem realizar acções de guerrilha no seu país, e a outra considerando o lançamento de uma operação rápida e decisiva. A análise de vantagens e inconvenientes levou os autores da proposta a optar pela segunda alternativa.

Seguiu-se um período de preparação essencialmente de âmbito político e das informações estratégicas, que envolveu o Governo de Lisboa, o Governo da Guiné e os serviços de informações de vários países, com a participação decisiva da DGS.

Por fim, realizou-se a operação militar propriamente dita, com o planeamento, a reunião dos meios, o gizar da manobra e a execução.

Este Comando às refeições comia um peixe grande inteiro e uma terrina de arroz.


Entre Cacine e Cameconde

O patrulhamento diário entre Cacine e Cameconde, passando pela Tabanca Nova, era uma tarefa diária de um dos dois pelotões sediados em Cacine. Esta tarefa abrangia todos os quatro pelotões ao dar-se a rotação mensal de Cacine para Cameconde. O maior perigo era transformar esta obrigação em rotina. Normalmente o perigo aparece durante a rotina e como tal era preciso estar sempre alerta.

O pelotão de milícias era o primeiro neste trajecto pois a picagem da rota estava à sua responsabilidade. Saíam da aldeia, onde moravam, mais cedo do que o pelotão de soldados que depois da formatura tomavam os seus lugares quer nos Unimogs ou Daimlers, quer na GMC que ia com lastro de sacos de areia, não fosse alguma mina rebentar.

A situação estratégica de Cacine era favorável a não acontecer algo de grave a não ser por flagelações e mesmo assim ficava fora do alcance das armas da altura. Aquela zona mais aberta no terreno estreitava para além da Tabanca nova, predominando uma floresta densa e intransponível. No meio duma floresta densa abria-se um círculo no qual residia o destacamento de Cameconde. Este era a defesa da retaguarda de Cacine que virada para o rio tinha como defesa natural as águas. Para entrar em Cacine pela retaguarda teria que se passar por Cameconde que numa hipótese de ataque a Cacine as hostes inimigas ficariam encurraladas. Esta deve ter sido a razão mais forte de Cacine nunca ter sido atacado.




Tabanca Nova ou Aldeia Nova

Entre Cacine e Cameconde existia um pequeno aldeamento que foi denominado Aldeia Nova em virtude da política do General Spínola albergar toda a população em novos modelos de tabancas. Estas eram feitas de blocos, palha misturada com barro ou terra, cobertas com chapas de zinco. Muitos nativos depois cobriram o zinco com a cobertura das suas tão naturais palhotas pois o calor em chapa de zinco dava para esturrar.

Nesta localidade fazíamos sempre uma breve paragem. Aconteceu numa dessas paragens que o soldado que ia na GMC tendo por responsabilidade a metralhadora Browning disparou uma rajada que por sorte não apanhou ninguém.




Cameconde

Cameconde era o último reduto do Sul da Guiné. Para além de Cameconde ficavam uns trilhos que iam dar a terras fora do nosso controlo (Cacoca ou Quitafine). Este destacamento já ficava ao alcance dos morteiros dos turras e como tal ao anoitecer chegava a hora “sexual”. Banho tomado, ouvido à escuta e todos os dias era esta tensão do ser ou não atacado à morteirada. Este destacamento possuía bons abrigos, feitos de betão ou cimento armado, uma boa camada de areia por cima e com troncos de árvores o que de certa forma dava para proteger de granadas que viessem a cair em cima.
Este destacamento ficava no meio do mato numa clareira aberta mesmo para implantar tropas neste ponto estratégico. Num ângulo do trilho que vinha da aldeia nova e que se desviava para o interior, Cameconde era uma autêntica prisão no meio da floresta. A guerra morava nesta zona.
Os patrulhamentos faziam-se no trilho que dava para além de Cameconde. Tudo era verde, um verde bonito, com as mais diversas aves a chilrear, bonitas, com os bandos de macacos que repentinamente nos assustavam e que ao longe pareciam cães a ladrar.
No início todos os ruídos eram estranhos mas aos poucos fomo-nos habituando ao mundo que nos rodeava. Lembro-me uma vez que ao ver um bando de macacos empoleirados nas árvores atirei um tiro acertando na mão dum deles. Toda a gente se atirou para o chão. E como gostava de desvendar fomos sempre em frente até uma zona em que ouvimos gente a falar. Segundo o comandante das milícias era uma aldeia que ficava ali.


Acordando depois de uma noite protegido com o mosquiteiro e a ventoinha ao fundo da cama e por dentro do mosquiteiro, tal era o calor. Muitas vezes acordava repentinamente com a ventoinha a bater-me nos pés. Outras vezes acordava com os pés fora do mosquiteiro e cheios de mosquitos. Sei que tomava os meus comprimidos e nunca apanhei doenças tropicais.


O corte do cabelo era obrigatório e para isso havia barbeiro na companhia. Cercados, sem nada para fazer, as brincadeiras faziam parte do dia a dia. Imitar o barbeiro era uma delas.



Como nem sempre a cerveja sabia bem, dependia do momento, antes de sair para um patrulhamento colocava no congelador do frigorífico, que trabalhava a petróleo, umas três latas de leite, vindos da Holanda.



Em Cameconde havia a artilharia pesada, o obus 14, um meio essencial na nossa defesa e que segundo informações que tínhamos metia muito respeito ao outro lado da barricada. Atingia uma distância muito boa e para bater zonas mais perto dispúnhamos do morteiro 80 e 60, cujas granadas varriam a zona periférica do destacamento. Para colocar a granada no obus 14 eram normalmente dois homens que o faziam. Era um rebuçado com 45 kg. Estas armas de artilharia estavam protegidas com bidões cheios de terra ou areia.
Na nossa companhia os diversos sectores, artilharia, Daimler e companhia que englobava comunicações, mecânica e pelotões, eram independentes na rendição. Evidentemente todos sob o comando do capitão.






Como tinha a especialidade de minas e armadilhas, o paiol estava por minha conta. A requisição de munições era feita na medida das necessidades, com antecedência. Ao chegar a Cacine havia muitas munições fora de prazo e já com ferrugem pelo que adquiri novo material. Com o material velho comecei a minar Cameconde, um nada dentro da floresta.

E chegou a nossa vez de sermos rendidos.

(Continua)

Texto e fotos: © Tibério Borges
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Nota do editor

Poste anterior da série de 5 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14974: 3 anos nas Forças Armadas (Tibério Borges, ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726) (4): Cacine

quinta-feira, 23 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14921: 3 anos nas Forças Armadas (Tibério Borges, ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726) (3): De Bissau para Cacine

1. Parte III de "3 anos nas Forças Armadas", série do nosso camarada Tibério Borges (ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726, Cacine, Cameconde, Gadamael e Bedanda, 1970/72).


3 anos nas Forças Armadas (3)

Cacine

E passamos uma semana em Bissau. Aqui fizemos alguns patrulhamentos nocturnos para nos irmos ambientando ao terreno. Dos Açores ao Continente português a maneira de ser e viver era muito diferente mas muito mais era em África relativamente ao Continente. Mundos diferentes.
Em Bissau ouviam-se histórias tenebrosas de mortes, ataques, bombardeamentos, emboscadas, as mais diversas operações no hospital e sei lá que mais. Mas vivia-se intensamente a vida. A promiscuidade era enorme. A vida dos militares na retaguarda era um luxo. Pobres dos que estavam a chafurdar na frente de combate. Em breve iria saber isso o que era. O que me aconteceu até aqui foi encontrar um oásis no deserto. Daqui por diante iria deixar o oásis e entrar no deserto. Quase dois anos me esperavam na frente de combate. Não fazia a mínima ideia do que me esperava.


Em Bissau, 1970

Não me lembro de muitos pormenores mas recordo-me de estar numa LDG (lancha desembarque grande) rumo a Cacine e penso que de noite. Entramos no rio Cacine onde as águas se misturavam e depois de estudadas as marés para podermos desembarcar na margem esquerda onde estava sediado o quartel de Cacine. Ao longo dos cerca de dois anos que ali permanecemos os nossos abastecimentos vinham por mar nestas lanchas.


 LDGs


Cacine

Fomos render a Companhia de Caçadores 2445 em Maio de 1970.
Cacine era o último reduto do Sul da Guiné onde estavam tropas portuguesas tendo como segurança na retaguarda o lugar de Cameconde, havendo mais a norte dois quartéis, Gadamael e Guileje, onde existia o corredor da morte, corredor esse que dava entrada ao armamento do PAIGC da Guiné Konacry para o interior da Guiné Bissau.

Logo à saída do quartel havia as habitações dos residentes de Cacine para mais perto de Cameconde existir ainda outra povoação, a Tabanca Nova. Entre Cacine e Cameconde com paragem na Tabanca nova fazíamos o trajecto diário, picando o caminho a fim de detectar alguma mina. Era necessário abastecer Cameconde e manter seguro esta picada. Além de cada um estar armado acompanhava-nos as “Daimlers”, Unimogs e a GMCs com sacos de areia como lastro. Todos os meses havia a mudança de pelotões de Cacine para Cameconde e vice-versa.

O lugar de Cacine situado na margem esquerda do rio Cacine era um lugar aprazível e não muito longe do mar. As marés eram muito acentuadas e como tal para navegar neste rio havia que ter em conta as marés. Fora do quartel e na margem do rio havia praia da qual desfrutamos bons momentos. Pena é a guerra ter condicionado o dia-a-dia destas populações que bem podiam desfrutar do seu modo de vida peculiar.


O pôr-do-sol era lindo. Em contraste a vida dura que a população levava derivado aos condicionalismos no terreno imposto pela situação militar portuguesa.


Este Unimog tem uma história que se passou com ele ao ficar uma noite na praia devido a não se conseguir tirá-lo pois as rodas enterraram-se na areia. Seria necessário a GMC para o puxar. E porque isso não aconteceu nesse dia não sei. O que me lembro é que a maré, quando encheu, provocou um curto-circuito no sistema eléctrico do carro e com o movimento das águas a luz começou a acender e a apagar. Isto durante a noite. Uma das sentinelas ao aperceber-se desta alternância de luz começou a disparar. A malta foi logo para os abrigos e foi o descarregar de uma tensão que se vinha acumulando duma notícia que iríamos ter um ataque aos arames. As armas desenferrujaram-se, a tensão desapareceu e tudo voltou ao normal no dia seguinte.

Nestas margens do rio a população apanhava as tão saborosas ostras com as quais nos deliciávamos. Eram bem graúdas. Era uma maneira de enriquecer o PIB local. A pesca era outro meio de sobrevivência. A caça fazia parte do modo de viver e lembro-me bem da carne do animal “monte” que era bem saborosa. A mancarra (amendoim) era outro produto.
A praia era um lugar para mitigar a solidão nestas paragens.

A vertente religiosa era bem acentuada onde em grupo ou em individual a oração fazia parte da vida. Um factor mais forte pesava na religiosidade que era a situação da guerra. Nos tempos difíceis o ser humano agarra-se a algo para além do que é material pois a impotência do humano perante os acontecimentos leva-o a pensar no sentido da vida.

Capela de Nossa Senhora de Fátima

A Capela de Nossa Senhora de Fátima estava ali para nos receber em grupo ou em particular, até os mortos que vinham de dois quartéis mais acima, Gadamael e Guileje. E foram muitos. O Carapeta de tanta pancadaria que apanhou teve que ser rendido mais cedo. Lembro-me dum capitão, de nome Ascensão (penso), dum desses quartéis ter sido morto numa emboscada. Eram notícias que nos congelavam as veias.

 Mesquita

Por outro lado a população que vivia ao lado do nosso aquartelamento era muçulmana e como tal aprendia a sua religião e costumes. E tinham a sua mesquita. Com a sua conjuntura social própria o encarregado de educar as crianças na religião muçulmana reunia-as e sentadas no chão aprendiam o Corão.

Na medida em que o tempo ia passando as saudades das notícias dos nossos entes queridos aumentavam e os aerogramas (envelopes-carta distribuídos pelo MNF) funcionava como meio de comunicação. Mas nem sempre o correio vinha directamente para o nosso quartel mas sim para outro ao lado e mais acima rio, Gadamael. Por isso era necessário lá ir de sintex e saber das marés porque só quando estava cheia era possível atracar no porto. Uma vez a maré já estava em posição avançada de baixar mas mesmo assim aventuramo-nos a lá ir ficando para o outro dia o regresso.

Lembro-me que quando lá chegamos a maré já estava em fase adiantada de abaixamento e por isso tivemos que arrastar o sintex até lugar seguro, amarrá-lo e tiramos as botas, arregaçamos as calças, enterramos os pés no lodo e chegamos a terra firme. Cortei a sola dos pés penso que por causa das conchas das ostras.


Na altura não medíamos a dimensão do perigo que nos rodeava pois a conjuntura política estava longe da nossa noção real da Guiné. Dizia-se que do outro lado da margem do rio, que ficava bem afastada, era mato denso. Portanto o perigo de sermos atacados dali não se avizinhava na nossa realidade. Cacine era o último reduto do sul rodeado de mata e água, havendo apenas uns carreiros pelo lado de Cameconde onde tínhamos o nosso destacamento. Era a retaguarda de Cacine. O enquadramento geo-estratégico de Cacine era bom. Plantado à beira rio com a população mais a interior o nosso quartel estava bem posicionado tendo ligação por um caminho que passava pela Tabanca Nova a caminho de Cameconde. O interior do quartel abrangia a messe dos Oficiais com condições más, vistas em 2009 mas que na altura até não eram más. Hoje ao olharmos para trás é que nos arrepiamos ao vermos onde estávamos instalados. Fazia parte, ainda, a messe dos sargentos, as Transmissões, a secretaria, a oficina mecânica, o refeitório, o local da PIDE, a nora de onde tirava a água, a capela…
Como em todos os quartéis havia a disciplina militar com os seus usos e costumes. Logo de manhã o tocar da alvorada e à noite o arrear da bandeira à qual se prestava homenagem.

Na Guiné penso que todos os quartéis tinham a sua pista para as avionetas. Este meio de transporte servia tanto para civis como para militares. Uma vez fui para Bissau gozar um artigo do RDM que me dava 5 dias longe do mato e comigo iam também civis. Estes monomotores sobrevoavam toda a Guiné, penso e noutra vez o motor, que era posto a trabalhar pegando numa haste da hélice e rodando-a, parou simplesmente dizendo o piloto que no ar não parava.


No isolamento em que vivíamos tudo que era fora do comum era novidade e uma atracção que quebrava a monotonia da nossa existência.
Fora do quartel e para os lados da Praia existia uma viatura fora de serviço, velha e estanque. Ao se passar por ela explorávamos a viatura pois na altura tudo era novidade. Estávamos em 1970. Mas conduzir um jeep sem ter carta era entusiasmante assim como um Unimog. Foi aprendendo assim que numa das férias que fui a S. Miguel tirei carta no quartel em Belém.



Entre Cacine e Cameconde havia diariamente um patrulhamento para assegurar a vigilância na zona e para deslocar toda a gama de material quer alimentício quer de armamento ou outra coisa qualquer.
Para isso um pelotão de 25 homens, 3 furriéis (no meu caso apenas dois), pessoal de transmissões, um pelotão de milícias que seguia na frente a fazer a picagem, as viaturas com os respectivos condutores (Unimog, Daimlers, GMC com a arma “Browning” com lastro de sacos de areia). Munidos de G3, metralhadora HK21, bazuca, não me lembro de morteiro 60 fazíamos o percurso para o qual já tinham seguido a milícia a fazer a picagem.

O obus 14 fazia parte da nossa segurança em que a artilharia fazia uso dele sobretudo em Cameconde. Era uma arma que mandava um rebuçado de 45 kg e que metia respeito.


O sector da “ferrugem”, oficinas de viaturas, era sui generis. Com espírito próprio e adquirido por um grupo pequeno era ali que a folia parecia brotar. Uma viola fazia parte da farra que acompanhada com umas ostras cozidas em meio bidão faziam a delícia de quantos tomavam parte dela. Eram estes uns dos poucos momentos que faziam esquecer o isolamento, o afastamento da família ou da mulher e filhos.

"Ferrugem"

Texto e fotos: © Tibério Borges
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Nota do editor

Último poste da série de 15 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14879: 3 anos nas Forças Armadas (Tibério Borges, ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726) (2): Passagem pelo BII 18 de Ponta Delgada, IAO no RI 11 de Setúbal e embarque em Lisboa no Ana Mafalda