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domingo, 3 de abril de 2011

Guiné 63/74 - P8040: Carta Aberta a... (6) Sr. Presidente da República: o 10 de Junho, Dia dos Combatentes (Joaquim Mexia Alves)

1. Mensagem do nosso camarigo Joaquim Mexia Alves:


Data: 31 de Março de 2011 15:42
Assunto: Carta Aberta ao Presidente da República



Meus caros camarigos editores:

Hoje mesmo enviei via site da Presidência da República, a carta que anexo, ao Senhor Presidente da República. Esta carta surgiu das ideias ontem apresentadas pelo António Martins Matos no Encontro da Tabanca do CentroA ele enviei o primeiro esboço desta carta, tendo-me dado conselhos preciosos para chegar ao texto final, que como acima afirmo, já foi enviado pelo site da Presidência.

Já recebi aliás a informação de que tinha sido recebida. O texto da carta envolve-me obviamente a mim, mas julgo que expresso, mais coisa menos coisa, o sentir da grande maioria dos Combatentes.

Fica à vossa disposição para publicação na Tabanca Grande e quem sabe, poder posteriormente receber a assinatura de todos aqueles que nela se revejam. Poder-se-á perguntar porque não a submeti à anterior apreciação de todos? Eu respondo, pela experiência que tenho e todos vós também, que tão cedo não teríamos um texto final que pudéssemos enviar. Assim, como acima refiro, a carta envolve-me a mim, mas pode ser expressão de todos aqueles que a ela queiram a aderir.

O modo de fazer essa adesão deixo-o ao cuidado de quem sabe mais do que eu dessas coisas.

Um abraço camarigo para todos do
Joaquim Mexia Alves

2. Carta aberta ao Presidente da República

Exmo. Senhor Presidente da República
Professor Doutor Aníbal Cavaco Silva

Escrevo esta carta aberta a V. Exa., pois na sua qualidade de Presidente da República é também o Comandante Supremo das Forças Armadas de Portugal.

Aproxima-se o dia 10 de Junho, e como sempre acontecerão as respectivas celebrações e actividades, que se vão tornando no tempo e na história, cada vez mais afastadas daquilo que deveriam efectivamente ser.

Com efeito, hoje já não faz sentido o chamado “Dia de Camões e das Comunidades”, por razões tão óbvias que nem precisam ser enumeradas

O dia 10 de Junho, que deveríamos entender como o Dia de Portugal, esteve sempre ligado, na sua mais original génese, aos Combatentes de Portugal, que ao longo da História da Nação foram dando o melhor de si para a servir.

E é perfeitamente legitimo que assim seja, porque uma Nação que se honra da sua História, sempre deve homenagear os seus filhos que por essa História se entregaram com risco, e muitas vezes entrega da própria vida.

A maior parte das nações que de um modo geral Portugal considera aliadas ou amigas, têm em cada ano, um dia especialmente dedicado aos seus Combatentes, independentemente das razões ou legitimidade das guerras travadas.

Assim, em nações como a Grã-Bretanha ou os Estados Unidos da América, (para citar apenas estas duas), esse dia é comemorado com “pompa e circunstância” e os Combatentes são a figura principal das celebrações desse dia, sem distinção, conotações políticas, ou quaisquer outras, mas apenas respeitando e homenageando aqueles que serviram a Pátria com as suas próprias vidas.

Se o 10 de Junho não é entendido nesta dimensão, (e é óbvio pelo passado recente que o não é), duas coisas há a fazer:

- Ou fazer do 10 de Junho esse dia de homenagem e respeito aos Combatentes.

- Ou criar um novo dia específico para essa homenagem, na certeza porém, de que o 10 de Junho nos moldes em que é celebrado agora, perderá rapidamente a anuência e empenho dos Portugueses que agora, apesar de tudo, ainda minimamente tem.

Não se perguntarão as autoridades de Portugal, o porquê de, ainda havendo tantos Combatentes das guerras recentemente travadas por Portugal, ser tão diminuta a afluência às celebrações do 10 de Junho?

A resposta é sem dúvida muito fácil. É que os Combatentes não se revêem na forma como esse dia é celebrado e muito menos ainda na forma como são tratados nesse dia e em todos os dias.

Escrevo a V. Exa. por mim, mas também por muitos que ouço e pensam como eu.

Não se trata agora de subsídios, ou outras “compensações” financeiras, seja por que motivos forem, mas sim, única e exclusivamente, de respeito e consideração por aqueles que, tendo deixado tudo, (voluntária ou involuntariamente), não deixaram de servir Portugal, a maior parte das vezes em condições de terrível sobrevivência.

Foram gerações sacrificadas, mas generosas, como V. Exa. muito bem disse no seu recente discurso na “Cerimónia de Homenagem aos Combatentes no 50º Aniversário do início da Guerra em África”, e que, mesmo não tendo na sua maior parte “ido à guerra” de modo voluntário, não deixaram de cumprir até á exaustão com tudo o que lhes foi exigido, e em condições de inigualáveis dificuldades, prestigiaram Portugal e todos aqueles que pela Nação combateram desde a sua própria Fundação.

Pode parecer uma escrita épica, ou desajustada das “realidades” de hoje, mas é verdadeira para todos aqueles que se orgulham de ser Portugueses e se orgulham da sua História.

E isto, repito, nada tem a ver com política, ou formas de interpretar as guerras, mas sim como o respeito que sempre deve existir por aqueles que se deram pelos outros.

Nós, Combatentes, não queremos ser anónimos, nem envergonhados, (que o não somos), mas queremos sim, (tal como nos países acima referidos), desfilar, de pé, de cadeira de rodas, ou conduzidos por outros, seja qual for a nossa condição, acompanhados pelos estandartes e símbolos, sob os quais servimos Portugal.

Não nos movem quaisquer razões político/partidárias, nem conotações com qualquer regime, mas sim, a razão de querermos desfilar em Belém, pois queremos desfilar em homenagem e honrando aqueles que estão inscritos naquele Monumento aos Combatentes, e que deram tudo o que tinham a Portugal, ou seja, a sua própria vida.

Não queremos discursos de circunstância que ninguém ouve, nem queremos discursos de instituições mais ou menos estatizadas, queremos sim ouvir algum ou alguns de nós, que nos encham a alma, o coração, bem como o Comandante Supremo das Forças Armadas, para nos sentirmos vivos, para nos sentirmos respeitados, para sentirmos que a «Pátria nos contempla», não para nosso orgulho, mas para nosso respeito, e para que as gerações vindouras saibam que Portugal honra os seus filhos.

Senhor Presidente da República, está nas suas mãos ouvir os Combatentes!

Não, como acima refiro, as instituições mais ou menos “estatizadas” de Combatentes, mas ouvindo os Combatentes, que até pela força do seu passado, com muita facilidade se organizarão para responder a um seu convite.

Estamos, como V. Exa bem sabe, pois também fez uma comissão em Moçambique, a ficar cada vez mais velhos, já para além dos 60 anos, pelo que é tempo de se corrigir o desprezo a que foram e são votados os Combatentes de África.

E não só os de África, mas os de todos os tempos que serviram Portugal.

Desfilaremos, transportando com tanto orgulho o estandarte das nossas unidades militares da guerra em África, como com o estandarte dos nossos irmãos mais velhos da guerra na Europa, ou em qualquer parte do mundo.

Portugal precisa, mais do que nunca, de se olhar, de olhar as suas gentes, de redescobrir a generosidade com que os Portugueses sempre se deram pela sua Nação, para não corremos o risco de cada vez mais nos fecharmos em nós próprios apenas para “lambermos as nossas feridas”.

Homenageando, respeitando e enaltecendo os Combatentes, homenageamos, respeitamos e enaltecemos a vontade inabalável dos Portugueses.

Homenageando, respeitando e enaltecendo aquelas gerações, fazemos também com que as gerações de agora e as vindouras, sintam orgulho e vontade de pertencerem à Nação que «deu novos mundos ao mundo».

Está nas suas mãos, Senhor Presidente da República, marcar uma viragem importante e imprescindível nas celebrações do 10 de Junho, e assim, dar aos Portugueses e ao mundo, uma nova imagem de Portugal que honra os seus filhos, porque só por eles existe e é Nação.

Com os meus respeitosos cumprimentos

Joaquim Manuel de Magalhães Mexia Alves
Alferes Miliciano de Operações Especiais na disponibilidade.
Guiné 1971/1973

3. Nota dos editores:

Amigos/as, camaradas, camarigos/as:

Se quiserem manifestar o vosso apoio  a esta "carta aberta", podem fazê-lo directamente no sítio da Presidência da República Portuguesa... Cliquem em Escreva ao Presidente.  Têm à vossa frente um formulário que oferece uma interface gráfica para o envio da vossa mensagem, que não pode excer dos 10 mil caracteres (tomem como termo de comparaação a carta do JMA que tem cerca de 6600 caracteres com espaços).

Não se trata de nenhum abaixo assinado nem de nenhum petição pública. Trata-se apenas de informar os serviços da PRP que, a título pessoal, apoiam o conteúdo da carta do nosso camarada (sugerindo que seja repensado o tradicional formato das comemorações do 10 de Junho, em que os ex-combatentes não se revêem). Pode ser uma mensagem do seguinte teor: "Subscrevo a Carta Aberta ao Presidente da República Portuguesa, enviada em 31 de Março de 2011, por esta via, pelo cidadão e ex-combatente Joaquim Manuel de Magalhães Mexia Alves"...

Preencham os campos de resposta obrigatória, assinalados com asterisco (nome, e-mail, morada, etc.). Em relação ao motivo do envio da mensagem, podem responder o seguinte: Motivo=Informação. Temática= 10 de Junho, dia dos Combatentes.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7294: Carta aberta a... (5): Professores António de Oliveria Salazar e Marcello Caetano (António Graça de Abreu)


República Popular da China > 2009 > O nosso camarada mais "sínico (mas não "cínico"...) da Tabanca Grande, cruzando o famoso Rio Yangtsé, na província de Sichuan, o maior rio da Ásia com os seus cerca de 6400 km de comprimento...


Guiné > Região do Oio > Mansoa > CAOP 1 > Março de 1973 > O Alf Mil António Graça de Abreu junto ao obus 14.... Antes estivera em Teixeira Pinto. Terminará a sua comissão em Cufar, no sul, nas vésperas do 25 de Abril de 1974.

A 8 de Abrild e 1974, em Cufar, escreve no seu diário: "De Lisboa a minha mulher continua a dizer-me coisas de espantar. Ao fim deste tempo todo, por exemplo: 'Não contas senão o superficial, a tua vivência aí chega a mim só pela rama'. Como é possível?!... Em vinte e um meses e meio fui três vezes a Portugal,  da Guiné escrevi-lhe trezentas e quarenta e sete (347, tenho tudo numerado!) cartas e aerogramas, desdobrei-me na narrativa, na descrição minuciosa do meu quotidiano e desta guerra, desde os muitos pormenores aparentemente insignificantes aos contextos maiores em que vivo. 'Não contas senão o superficial'. Como é possível ?!..." (in Diário da Guiné..., 2007, p. 211).



Fotos: © António Graça de Abreu (2009). Todos os direitos reservados.


1. Texto que o António Graça Abreu me mandou, com pedido de publicação, em 21 de Maio de 2009... Entretanto, ele seguiu para uma longa visita à China (e à família da sua mulher, que é médica), regressou,  passou-se o verão e, contrariamente ao que eu tinha prometido, a famosa carta aberta aos Senhores Professores António de Oliveira Salazar e Marcello Caetano não foi metida no correio nem chegou aos seus destinários...

Nunca saberia como pedir desculpa ao António, pessoa e escritor, além de camarada, que eu muito prezo, por este lapso (monumental)... Mas, por outro lado, ele tem todo o direito de estar zangado comigo. Por muito que já tenha incorporado, nestes anos todos,  alguns dos valores, atitudes e comportamentos típicos da milenar cultura chinesa (por ex., dizer de maneira impassível e elegantérrima o quão está zangado comigo), ele também tem uma boa costela nortenha... Na melhor altura sai bordoada. E antes que isso aconteça, eu faço o meu jogo de cintura... E venho aqui, humildemente, em público,  pedir aos deuses para aplacarem  a sua ira...

Uma coisa eu sei: o António (não) é homem de (res)sentimentos...

Por fim mas não menos importante, quem verdadeiramente deve estar zangado comigo é o nosso caro leitor a quem foi negada a possibilidade, neste ano e meio, de ler e fruir este documento de belo recorte literário e de mordaz ironia, sob a forma de carta aberta aos dois políticos que formataram este país e este povo, durante mais de meio século... Não é um documento panfletário, é uma reflexão relativamente serena sobre oportunidades perdidas por e para todos nós...

Mas é também uma carta de confiança no futuro (que bem precisamos dela, nos tempos que correm), de confiança em Portugal, e nos portugueses, de confiança e de ORGULHO na geração, a nossa,  que soube fazer a guerra e a paz: "Penso que não combatemos pela Pátria salazarista e marcelista mas por um Portugal e uma Pátria que nos circulava no sangue e no entendimento. Essa Pátria não nos pode ser negada. Era, é a nossa terra, eram, são as nossas gentes".

Finalmente,  a carta vai chegar ao seu destino (*)... LG


2. Carta aberta aos Profs. António de Oliveira Salazar e Marcello Caetano


Introdução


António Graça de Abreu, ex-alferes miliciano na Guiné-Portuguesa, humilde cidadão que teve a ventura de nascer no ano de 1947, durante a longa jornada autocrática de V. Exª., Sr. Presidente do Conselho Dr. António de Oliveira Salazar, e depois de viver extremadamente os últimos anos da ditadura mole e pouco iluminada de V. Exª., Sr. Prof. Marcello Alves Caetano, também Presidente do Conselho, confessa, do fundo das circunvoluções do seu desgastado coração, que anda há um ror de anos com vontade de vos escrever.

A primeira dificuldade, para além da minha inabilidade e ausência de qualidades para me dirigir a tão excelsas e ilustres figuras da nossa História Contemporânea, tem a ver com o embaraço de enviar esta carta para o espaço adequado. Qual o lugar onde hoje se encontram, Excelentíssimos Dr. Salazar e Dr. Marcello Caetano? No fofo azul do Céu, nas agruras amarelas de uma passagem prolongada pelo Purgatório, nos calores vermelhos do Inferno?

Como não sei qual foi o destino que para vós Deus escolheu (dependente por certo de tudo quanto executaram ou mandaram fazer na vossa breve/longa vida terrena), envio esta carta para o blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné, na certeza de que terá um molho bem cheio de leitores, gente de excelente qualidade, e que V. Exªs., onde quer que estejam, a irão ler.

Este blogue do Luís Graça na Internet  -- coisa que não existia no tempo de vossas vidas-- é um imenso sucesso de comunicação. São testemunhos de ex-combatentes da guerra na antiga Guiné Portuguesa, trocas de opiniões, entendimentos, desentendimentos, desabafos, uma espécie de terapia colectiva, muitos anos após o regresso dessas paragens quentes e amargas que nos marcaram a todos.

A segunda dificuldade, ao escrever esta carta, prende-se com o modo de vos tratar. “Excelências, Senhores Presidentes do Conselho, Prof. Dr. Salazar, Prof. Dr. Marcello Caetano”? Todas estas denominações vos pertencem, associadas à importância e dignidade dos cargos que, em ditadura, ocuparam ao longo de tantos anos.

Ora, há uns três meses atrás, o António Lobo Antunes, ex-oficial miliciano médico em Angola, 1971/1973, na crónica que assina na revista Visão, escreveu um texto algo zangado com Deus que, no início de 2009, lhe levou dois dos seus melhores amigos. E António Lobo Antunes resolveu tratar Deus por tu. Ele é um pouco, ou muito despassarado, mas enfim…

Eu também tenho as minhas guinadas e manias, mas pairo baixo, a razoável distância do autor de Os Cus de Judas. E os Profs. Salazar e Marcello também não são deuses.

Não me levem a mal por, em bicos de pés no alto do meu banquinho de escritor pequeno e medíocre, (mas com quinze livros publicados), desejar tratar-vos igualmente por tu, com todo o respeito. Mas acho que não sou capaz.


A História

O nosso Portugal é uma das nações mais antigas da Europa. Fechados neste rectângulo, de costas voltadas para Espanha, tínhamos o oceano diante de nós. E, a partir do século XV, antes de quase todos os outros povos, embarcámos na ousadia e na loucura de navegar o mar. Áfricas, Américas, Índia, China, Japão, Austrália, nada do que eram então os grandes mares e as imensas terras desconhecidas parece ter escapado às quilhas das naus, ao calcorrear português, ao entendimento, nem sempre esclarecido, das gentes da pequena pátria lusitana. Demos “novos mundos ao mundo”, é verdade. E fixámo-nos em muitos desses lugares. Fomos ficando. Em meados do século XX ainda estávamos em Macau e Timor, na Índia, em Moçambique e Angola, nas ilhas de S. Tomé e Cabo Verde, na Guiné.

Depois de descobrirmos mais de meio mundo, face à pequenez do Portugal europeu, alimentámos naus e naus carregadas de mitos e sonhos. O bom do padre António Vieira (1608-1697) acreditava ainda num impossível Quinto Império lusitano espalhado pelo mundo e falava de nós como os que “têm a terra portuguesa para nascer e toda a terra para morrer”.

No século XIX construímos a ideia irrealista de um mapa “cor-de-rosa” a unir, sob domínio português, as terras de Angola e Moçambique. Na I Guerra Mundial (1914-1918) enviámos forças expedicionárias para França, para a Flandres, entre outras razões, para mostrar que tínhamos força (não tínhamos!..) e que outras potências europeias seriam mal sucedidas se algo fizessem para se assenhorearem das nossas colónias. Tivemos quinze mil mortos, (corrijam-me se estou enganado!),  bons filhos da terra portuguesa, nessa guerra estúpida e inútil. Como quase todas.

Em 1953, escrevia o general Norton de Matos, em choque aberto com V. Exª., Dr. Salazar, e que mais tarde haveria de se candidatar a Presidente da República pela chamada Oposição: “Que a vossa principal tarefa seja o engrandecimento da Pátria, dignificando-a (…). Não deixais que ninguém toque no território nacional. Conservar intactos os territórios de Aquém e Além-Mar é o vosso principal dever.” (in Norton de Matos, A Nação Una, Lisboa, Ed. Paulino Ferreira e Filhos, 1953).

Tudo isto V. Exª. conhecia, Dr. Salazar e, na linha do pensamento tradicional português e até do de alguns dos vossos opositores, Portugal afirmava-se “uno e indivisível”, estender-se-ia do Minho a Timor, eram “muitas raças, uma só nação”. Uma utopia, um sonho lindo e perigoso, inevitavelmente condenado pelos ventos e avanços da História.

A partir dos anos sessenta do século XX, quase todas as colónias das nações europeias em África transformaram-se em países independentes. Sabemos hoje que muitas dessas independências foram prematuras e constatamos como muitos dos pobres povos dessas terras, libertos do nada meigo jugo colonial, têm sido tratados pelos seus governantes africanos e chefes associados ao tribalismo, à incompetência, à corrupção, ao esmagamento dos mais elementares direitos humanos.

No que a Portugal diz respeito, naquele fatídico ano de 1961, perdíamos a Índia e logo de seguida iniciava-se a luta armada em Angola, com o massacre pela UPA (União dos Povos de Angola) de milhares de portugueses inocentes. O ódio racial era real e antigo, ao contrário do que a propaganda do regime de V. Exª., Dr. Salazar, queria esconder. A tese das “muitas raças, uma só nação” continuava a ser enganosa e iria provocar imensos sofrimentos ao povo português e aos povos de Angola, Guiné e Moçambique.

A Guerra

“Orgulhosamente sós” embarcámos aos milhares, de armas na mão para lutar contra o “terrorismo” em Angola. Em 1963, com o eclodir dos conflitos armados na Guiné e em Moçambique, novos espaços de guerra se abriram para os portugueses. Os chamados Movimentos de Libertação organizavam-se, contavam com poderosos auxílios externos (União Soviética, China, etc.) e Portugal fez um esforço tremendo para combater, com algum êxito, esses guerrilheiros que acreditavam lutar por um futuro melhor para a Pátria deles e queriam pôr fim a quatro séculos de mau colonialismo. O sangue, a dor, a morte passaram a fazer parte do quotidiano de Angola, Guiné e Moçambique.

Sempre na senda de um “passado glorioso”, da exaltação da nossa História, e também por razões económicas -- Angola era, é, talvez o país mais rico de África – V. Exª, Dr. Salazar, insistia na “defesa da Pátria”, e V. Exa., Dr. Marcello Caetano, excelente professor na Faculdade de Direito de Lisboa, não discordava uma linha da política ultramarina seguida por Salazar.

Em 1968, eu não era nada de especial, tinha vinte gloriosos anos, vivera já durante um ano em Hamburgo, na Alemanha e, na Faculdade de Letras de Lisboa, fazia parte da Direcção da Pró-Associação de Estudantes e do Grupo de Poesia e Canção da Faculdade. Muitas vezes eram da nossa responsabilidade as primeiras partes dos espectáculos semi-clandestinos do Zeca Afonso, do Adriano, do Fanhais, do Zé Jorge Letria. Eu dizia poemas do Pessoa, da Sophia, do António Gedeão. Deste último, ainda sei de cor a Lágrima de Preta. Ignoro se V. Exas, Salazar e Marcello, são muito dados a estas coisas da poesia, mas aí vai:

Encontrei uma preta que estava a chorar
Pedi-lhe uma lágrima para analisar,
Recolhi a lágrima com todo o cuidado
Num tubo de ensaio bem esterilizado.
Mandei vir as bases, os ácidos, os sais,
As drogas usadas em casos que tais.
Nem sinais de negro, nem vestígios de ódio,
Água, quase tudo, e cloreto de sódio.


Podem pois adivinhar de que lado político eu me situava. A PIDE já me tinha debaixo de olho e o meu processo na PIDE (podem consultar, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, PIDE/DGS, procº. 9175 C7 NT 7555) é muito interessante e equivale às medalhas que, por bem, não ganhei na Guiné Portuguesa.

Os tempos tinham mudado, em finais dos anos sessenta do século passado cada vez mais pessoas e muita juventude, sobretudo a que frequentava as universidades, começava a contestar a vossa autoridade e a justiça das guerras em África.

E o vosso erro foi não terem entendido, para bem de Portugal e dos povos africanos, que a era gloriosa da Pátria portuguesa espalhada pelos quatros cantos do mundo pertencia a uma História de que nos podemos e devemos orgulhar, mas era apenas isso, o passado.

V. Exª., António de Oliveira Salazar e depois, a partir de 1969, V. Exª., Marcello Caetano, descartavam as hipóteses de negociações com os movimentos de libertação. E os conflitos não tinham solução. Não conseguíamos vencer os guerrilheiros em luta, nem éramos vencidos por eles.

O povo português, os povos africanos sofriam barbaridades. Em nome de quê, porquê, para quê? Vocês estavam a adiar o inadiável, o inevitável.

Em 1968, V. Exº., Dr. Salazar nomeia o então brigadeiro António de Spínola para governador e comandante-em-chefe das tropas na Guiné. Spínola, que fora tenente-coronel em Angola, apercebe-se da impossibilidade de se ganhar militarmente a guerra. A questão era política, sempre foi política e ao lançar a estratégia política de Uma Guiné Melhor António de Spínola pretende transformar o “inimigo em nosso amigo”. Consegue alguns resultados e o PAIGC treme. Spínola começa progressivamente a alicerçar a ideia de uma muito maior autonomia para os territórios ultramarinos, uma espécie de federação lusófona, e inicia estranhas negociações com o “inimigo” que, em 1970, se viriam a saldar pelo cruel e cobarde assassínio de três majores portugueses por guerrilheiros do PAIGC.

V. Exª., Dr. Salazar, tinha caído da cadeira de lona no forte de Santo António do Estoril, batido com a cabeça no chão e incapacitado, ainda sem acreditar, terminava o seu longo consulado ditatorial ao leme dos destinos tortos de Portugal.

V. Exª., Dr. Marcello Caetano, era um homem mais aberto e moderno. Mas não acabou com a ditadura, nem com a polícia política, nem com a asfixia da sociedade portuguesa. No que às guerras de África dizia respeito, foi muito mais “continuidade” do que “evolução”. Portugal permanecia num doloroso beco sem saída.

Até que em 1973, de início por razões reivindicativas e corporativistas que tinham a ver com promoções na carreira, um grupo de capitães, oficiais do quadro permanente, todos marcados pela inutilidade, irracionalidade e impossível solução das guerras de África, decide avançar para um golpe militar e depor o regime que governara Portugal a partir de 1926.

V. Exª., Dr. Salazar, desde 1970, dormia o definitivo sono dos injustos na sua campa térrea de Santa Comba Dão. E V. Exª., Dr. Marcello, foi exilado para o Brasil. As guerras de África iam acabar porque o problema tinha solução, era, sempre foi político.

O que veio a seguir já não é da vossa responsabilidade, sois apenas culpados por ter protelado, adiado até ao impossível, uma necessária solução política para os conflitos em África.

A descolonização, como sabem, foi um inenarrável desastre, as tragédias da guerra civil em Angola, os conflitos em Moçambique, os massacres em Timor, o fuzilamento de centenas de militares e civis africanos na Guiné, homens que tinham combatido ao nosso lado ou apoiado as tropas portuguesas, enfim todo um rosário de mágoas, dor e morte que não terminou com a independência desses territórios. Como foi possível, pós independência, que quase todos os mais destacados e heróicos comandantes da guerrilha do PAIGC também tenham sido mortos em lutas intestinas entre eles? Como é possível que hoje, ano de 2009, quase metade das mulheres da Guiné-Bissau estejam ainda sujeitas à excisão do clitóris, uma prática bárbara, atentatória dos mais elementares direitos da mulher, direitos humanos? Como é possível que hoje, 2009, em Bissau não exista uma única livraria?

Mas não foi para me debruçar sobre estes temas que vos escrevi. Vamos falar de nós.

Combatentes

A minha mulher é chinesa [, foto à esquerda], criada na Xangai comunista, República Popular da China, onde nasceu em 1961. Há dois anos atrás, quando resolvi ir buscar o meu diário de guerra na Guiné, mais uns aerogramas da época [, foto à direita], e comecei a passá-los ao computador prevendo uma possível publicação em livro, a minha mulher zangou-se comigo. Via-me sofrer ao reescrever os textos, constatava como aquele diário ainda bulia comigo, houve dias em que, na escrita, algumas lágrimas me rolavam pela face, e ela não gostava. Fala bem português, está em Portugal há 24 anos e disse-me mais ou menos o seguinte:

“Então que prazer estúpido tens em mexer nesses papéis, tu afinal pertenceste a um exército colonial que andou a matar os pobres dos pretos. Não é melhor tentar esquecer tudo isso e dedicar o teu labor a trabalhos mais saudáveis”?!...

Em Julho de 2008 tentei e consegui convencê-la a ir comigo a Fátima, ao segundo encontro dos camaradas da CCaç 4740, com quem estive em Cufar, sul da Guiné, durante dez meses. Fomos à missa (o que raramente acontece!) com muitos dos homens da companhia 4740 e ao almoço com eles e famílias. E a minha mulher entendeu por fim o que une estes antigos militares da Guiné. Compreendeu, em palavras simples, como somos amigos, entendeu a alegria que temos em nos reencontrar, em recordar, em nos sentirmos irmãos.

[ À esquerda, capa do livro do nosso camarada António Graça de Abreu, Diário da Guiné: Lama, Dangue e Água Pura.  Lisboa: Guerra e Paz, Editores. 2007.... Em cima, à direita, um original aerograma, escrito em linhas concêntricas, reproduzido no livro].


É isto, senhores Dr. Salazar e Dr. Marcello Caetano, que vos quero dizer, dar-vos a conhecer a evolução das nossas vidas. A guerra marcou-nos a todos, mas somos hoje companheiros fraternos, camaradas de armas recordando um duro passado comum, em terras que não eram as nossas, mas que continuam a exercer sobre nós todos os fascínios. Fomos obrigados a fazer uma guerra, é verdade, mas a grande maioria de nós também sabia fazer a paz, quase todos tiveram a humanidade e a dignidade de sair de cabeça levantada dessa guerra.

Centenas de milhares de homens passaram pelas guerras de África. Quase nove mil combatentes, no melhor dos seus vinte anos, lá perderam a vida. “Malhas que o império tece”, ou melhor, malhas cerzidas por uma política cega, de que vocês os dois foram os principais fautores.

Os meus heróis são os soldados portugueses que tombaram para sempre numa guerra injusta tendo por horizonte as bolanhas, o tarrafo e o verde e vermelho da bandeira portuguesa, os meus heróis são esses guerrilheiros anónimos do PAIGC que caíram no seu campo de luta.

A Guiné

O velho Confúcio, nascido na China antiga no ano de 551 a.C., disse mais ou menos o seguinte: “Se conheces, actua como homem que conhece, se não conheces, reconhece que não conheces. Isso é conhecer”.

Como, apesar dos meus 62 anos, conheço ainda tão pouco, devo confessar-vos, Drs. Salazar e Marcello, que neste blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné tenho aprendido muito sobre o que aconteceu nos onze anos de guerra na Guiné e sobre esta essência tão obtusa de sermos portugueses.

Os testemunhos dos homens que viveram o conflito é sempre e naturalmente plural. Os nossos dois anos de Guiné tiveram cenários e tempos diferentes, as terras fulas de Bafatá e Nova Lamego (Gabú), o chão manjaco, com o Cacheu e Teixeira Pinto (Canchungo), Mansoa e o Morés, no sul, as terras do Tombali e do Cantanhez. Diversos espaços de luta, de excelente, extraordinária camaradagem e também de sofrimento. Ora, a Guiné dos anos 1964, 1967, 1970, 1972 ou 1974 não corresponde exactamente a um mesmo enquadramento logístico e estratégico. A guerra prolongou-se por onze anos. Depois, hoje escrevemos de memória, trinta e tal, quarenta e tal anos transcorridos. E a memória esquece, distorce, obscurece, exalta o entendimento.

Mesmo assim, muitos dos testemunhos dos ex-combatentes neste blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné assumem-se como marcos fundamentais das nossas vidas, imprescindíveis para entender quem fomos e somos.

Recomendo-vos vivamente a leitura do blogue, Profs. Salazar e Marcello.

Transparece, no entanto, em alguns dos textos publicados no blogue, reflexo também de falsas ideias feitas em estratos da sociedade portuguesa, uma constante ideológica de assumir culpas, de lançar culpas para o parceiro do lado, de subestimar as forças militares portuguesas e, lógico, de sobrevalorizar o poder dos guerrilheiros do PAIGC. Política, má política.

Fomos obrigados a combater contra povos pobres que acreditavam lutar por um futuro mais risonho para as suas pátrias. Não fomos militarmente derrotados. Porque, quase sempre fomos bravos, “forte gente” com “fracos reis”, como diria o nosso Camões.

Mas, V. Exª., Dr. Marcello Caetano, com algum fundamento, estava assustado com o que acontecia na Guiné, a partir de Abril de 1973, com os mísseis Strela e com a debandada de Guileje. Em Lisboa, com censura nos jornais, sem liberdade de imprensa, corriam extravagantes boatos. Dizia-se de boca bem aberta, mas à boca calada, que os aquartelamentos portugueses no sul da terra guineense caíam uns após outros. Contava-se que um quartel, a 30 quilómetros de Bissau, havia sido tomado pelo PAIGC, com centenas de mortos. Em Junho de 1973, à noite, às escondidas, em muros da cidade de Coimbra, alguém escrevia : “se tem o seu filho na Guiné, considere-o morto.”

Em V. Exª., Dr. Marcello Caetano, a preocupação crescia. Em Junho de 1973, mandava chamar o Chefe do Estado Maior das Forças Armadas, general Costa Gomes, recentemente regressado da Guiné e perguntava-lhe:

--A Guiné é defensável e deve ser defendida?
(…) A resposta do General Costa Gomes foi categórica:

-- No estado actual, a Guiné é defensável e deve ser defendida.”

(in Marcello Caetano, Depoimento, Rio de Janeiro, Ed. Record, 1974, pag.180.)


A menos de um ano do 25 de Abril, Costa Gomes considerava a Guiné “defensável”, o que era verdade em termos militares. Sim, mas à custa de tantos sacrifícios!… Quanto ao “deve ser defendida” era a perpetuação da tese política da defesa cega das terras africanas do império.

A Guiné-Bissau tornou-se um país independente a 23 de Setembro de 1974 e logo depois Costa Gomes chegou a Presidente da República portuguesa. As malhas rotas que o império tece.

Conclusão

António de Oliveira Salazar e Marcello Caetano, Excelências

Espero que tenham lido com atenção esta minha despretensiosa carta. É apenas um desabafo do coração, mas espero que, graças ao fantástico e extra-terreno blogue do Luís Graça, tenha chegado ao vosso mundo.

Nós hoje, somos ainda uns duzentos mil ex-combatentes da Guiné. Sexagenários e septuagenários, jamais esquecemos esses cada vez mais distantes dois anos das nossas vidas. Penso que não combatemos pela Pátria salazarista e marcelista mas por um Portugal e uma Pátria que nos circulava no sangue e no entendimento. Essa Pátria não nos pode ser negada. Era, é a nossa terra, eram, são as nossas gentes.

Com vinte e poucos anos, quase todos nós demos o melhor de nós próprios (às vezes a própria vida) numa guerra que não desejámos. Mas temos orgulho na nossa bandeira e nesse estranhíssimo sortilégio de se nascer português.

Homens, ex-militares da Guiné, somos hoje duzentos mil irmãos.

Saúda-vos, com pouca amizade, o

António Graça de Abreu
____________

Nota de L.G.:

(*) Poste anterior desta nova série > 25 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7034: Carta aberta a... (1): Camarada (de armas) António Lobo Antunes (António Graça de Abreu)

sábado, 25 de setembro de 2010

Guiné 63/74 - P7034: Carta aberta a... (4): Camarada (de armas) António Lobo Antunes (António Graça de Abreu)



República Popular da China > Agosto de 2010 > O nosso camarada António Graça Abreu em locais facilmente reconhecíveis pelo leitor ocidental  (com  excepção talvez do segundo a contar de cima): (i) a Grande Muralha da China, (ii) o oásis de Dunhuang, no deserto de Gobi, província de Gansu, (iii) a Praça de Tiananmen, em Pequim.

Fotos: António Graça Abreu (2010). Direitos reservados



1.Carta aberta ao Camarada António Lobo Antunes

Areias, Estoril, 5 de Setembro de 2010

Herdei alguma coisa dele (o pai): A solidão feroz, a capacidade de ser horrivelmente desgradável para os outros, (…) a agressividade injusta.

António Lobo Antunes, revista Visão, 2 de Setembro de 2010

António Lobo Antunes: Quando o Benfica jogava, púnhamos os altifalantes virados para a mata, e assim não havia ataques.

Jornalista: Parava a guerra?

António Lobo Antunes: Parava a guerra. Até o MPLA era do Benfica…

(Entrevista à revista Visão, Maio de 2005)



Camarada António Lobo Antunes

Comecemos pois pela bola.

Nós lá em Cufar, no sul da Guiné, 73/74, era mais para o verde, a Companhia de Caçadores 4740 até se denominava “Os Leões de Cufar.”

Quando o Sporting jogava, fazíamos quase o mesmo que vocês no leste de Angola, voltámos os nossos rádios (éramos pobrezinhos, não dispúnhamos de altifalantes!...) para a floresta e era certo, sabido e garantido que os guerrilheiros do PAIGC, todos sportinguistas, não nos atacavam. Vinham até ao arame farpado e por ali se quedavam, do outro lado, entusiasmados, embevecidos, felizes ouvindo os relatos do Nuno Brás e do Artur Agostinho, e os golos do Yazalde.

Mas escrevo-te não por causa do futebol. Questões mais momentosas e importantes têm trazido o teu nome para a ribalta sofrida dos ex-combatentes das guerras de África.

Tu não sabes, -- também como honestamente confessas, não vês televisão, não ouves rádio, não lês jornais, não tens net, enfim vives numa torre de ébano voltada para o lado opaco do quotidiano das gentes --, tu não sabes, dizia eu, mas no último fim de semana de Agosto reuniram-se em Monte Real, Leiria, um tantos ex-combatentes do Ultramar, com o objectivo de tentar entender e explicar as estranhas, as nebulosas afirmações do António Lobo Antunes sobre a sua guerra no leste de Angola, 1971/73.

Como deves recordar, o ano passado, em entrevista ao Céu e Silva, referiste as 150 baixas do teu batalhão e os pontos ganhos pelos teus soldados, conforme iam abatendo inimigos para, infatigáveis matadores, conseguirem ser mudados para regiões de Angola menos flageladas pela guerra.

Não foi fácil para os ex-combatentes chegarem a um consenso definitivo no que às tuas palavras diz respeito. Reunidos na clareira de uma mata junto ao o pinhal de Leiria, gentilmente cedida pelos herdeiros do Lúcio Tomé Féteira, os representantes dos ex-militares portugueses agrupados na ACNMNVAPC (Associação dos Combatentes Nem Mortos, nem Vivos, antes pelo Contrário) acabaram por concluir:

Primeiro:

150 baixas por batalhão não é uma boa média. Os nossos valentes e garbosos soldados gostavam de ter tido mais baixas. O problema é que quase não as havia. O leste de Angola como tu bem sabes, caro António, era o cu de Judas, terras do fim do mundo pouco povoadas, onde até os elefantes se esqueciam que possuíam uma prodigiosa memória de elefante.

As mulheres do leste de Angola não eram baixas, mas sim espigadotas, altas, secas de carne, peitos pequenos e encolhidos. Uma baixa constituía uma raridade. Estas baixas, sim, eram uma tentação para qualquer soldado, português, angolano, cidadão do mundo. De nádegas redondas e brilhantes, de peitos alteados e firmes, romãs suculentas cobertas de chocolate, estas baixas eram a perdição dos nossos excelentes mocetões. Fiéis aos ensinamentos do vetusto Salazar, tipo “muitas raças, uma só nação”, aquelas baixas portuguesas de Angola, pestanudas, roliças transformavam-se com facilidade, aos olhos da nossa tropa, na tão desejada namorada, a companheira, a vizinha, a menina branca que ficara lá longe, nostálgica, desamparada na aldeia lusitana de Vila Meã, Bensafrim, Antuã ou Cernache do Bonjardim.

O batalhão do alf. mil. médico António Lobo Antunes, lá por Angola, em Gago Coutinho, no Chiúme teve, segundo dados fornecidos por ti próprio, 150 baixas. Foi o que pôde ser, o que se pôde arranjar, e o que os deuses e os sobas do leste de Angola concederam aos nossos excelsos mancebos. Que hoje morrem de saudades – estamos todos mortos, falecidos, moribundos, semi-defuntos, etc., não é António? – por aquelas deliciosas baixas angolanas, de olhos de mel e frenéticos rabinhos empinados.

Segundo:

Quanto à procelosa questão do sistema de acumulação dos pontos obtidos com a mortandade feita sobre o IN, a fim de se obterem transferências para zonas de paz, os ex-militares das guerras de África na reunidos na tal ACNMNVAPC (Associação dos Combatentes Nem Mortos, nem Vivos, antes pelo Contrário, repito) tiveram grande dificuldade em entender tão radicais pressupostos apresentados por ti, camarada António Lobo Antunes.

Depois de muita deliberação, chegaram-se a conclusões.

Assim:

Os soldados, nos ócios da guerra, jogavam à sueca. Por jogo ganho, marcava-se uma bolinha preta na cruz de cada equipa. As cruzes iam-se enchendo de pontos negros que, por brincadeira de mau gosto, os nossos homens, associavam a cabeças de guerrilheiros. Como bem recordaste na entrevista ao jornal Expresso, a 28 de Agosto, “ninguém desce vivo da cruz”, nem sequer numa suecada à antiga. Podes pois imaginar a razia nas hostes inimigas que, jogando à sueca, provocávamos.

Mas há mais.

Os soldados jogavam à sueca, os sargentos e oficiais jogavam mais à batalha naval. Nesta última variante lúdica, como sabes, o objectivo era afundar contra-torpedeiros, submarinos, até porta-aviões. Também por brincadeira de mau gosto, os homens do teu batalhão diziam que os navios iam carregados de velhos, mulheres e crianças oriundas do Leste de Angola. Embarcavam em Luanda e depois, mar alto com eles… Cada barco ao fundo, era um morticínio atroz.

A tropa portuguesa jogava a dinheiro. Marcavam-se pontos e fizeram-se boas maquias, houve muito patacão arrecadado que os nossos militares, de férias, iam patrioticamente gastar em zonas onde a guerra estava ausente, no Luso e até em Luanda.

Está tudo explicado.

Saudações de camarada de armas,
António Graça de Abreu, alf mil infantaria, Comando de Agrupamento Operacional nº. 1, Guiné, 1972/1974.

[Fixação / revisão de texto / título: L.G.]


2. Comentário de L.G.:

O António acaba de regressar de mais  uma das suas viagens "sínicas" (leia-se: à China)... Julgo que desta vez foi também em trabalho. No regresso mostra estar em boa forma, a avaliar por esta carta aberta ao António Lobo Antunes que, antes de ser escritor famoso, foi nosso camarada de armas... em Angola.

A carta é uma peça, notável, de fino humor, deliciosa, inteligente, civilizada, irónica. Não sei se o destinatário é o ALA. Tenho dúvidas... De qualquer modo, sabemos, à partida, que o ALA não a vai ler, pela simples razão de que ele é um público e notório info-excluído (segundo a imprensa escrita, o ALA não tem computador, nem e-mail, nem página na Net, nem conta no Facebook, nem nenhum dessas tretas das chamadas TIC - Tecnologias de Informação e Conhecimento, que são obrigatórias para se ser membro deste blogue, por exemplo).

O António Graça de Abreu, além do mais, vem cheio de energia: no próximo dia  2 de Outubro a 18 de Dezembro, vai dar início, no Museu do Oriente / Fundação do Oriente, de um curso, de 12 sessões, sempre aos sábados, das 10h00 às 12h30, com o título Introdução à História da China. O preço de inscrição é de 100 euros. Esta iniciativa já foi divulgada internamente na nossa Tabanca Grande.

Desejamos-lhe que tudo corra bem e que, entre os inscritos, haja malta nossa, interessada em aprofundar os seus conhecimentos sobre a civilização e cultura chineses...

É explicitamente objectivo do curso ao longo de 12 sessões  "pontuar os períodos de crescimento, apogeu, estabilidade e decadência do velho Império do Meio. E caminhar, com todo o rigor possível, pela História, as mentalidades, a cultura, a construção dos quotidianos na China Clássica e Contemporânea. Macau e os Portugueses na China estarão naturalmente presentes, tal como o nosso Museu do Oriente".

segunda-feira, 30 de março de 2009

Guiné 63/74 - P4105: Carta aberta a... (3): Sr. gen Almeida Bruno (3): Agradecimento ao gen Almeida Bruno e a outros almeidas brunos (Pedro Neves)

1. Mensagem de José Pedro Neves, ex-Fur Mil Op Esp da CCaç 4745/73 - Águias de Binta, Binta, 1973/74, com data de 29 de Março de 2009:

Caro Luís Graça

Cumprimentos a todos os camaradas, principalmente aos que passaram os meses de comissão na Guiné, em resorts pagos pelos nossos governantes de então e que em vez de termos vedações com arbustos e jardins floridos, piscinas e bares, suites e outros confortos a que tínhamos direito, fomos colocados dentro de vedações com arame farpado, barracas e barracões para dormirmos, em vez de camas normais, tinhamos colchões de ar, água da bolanha e água de furos, na maior parte salobra, comida liofilizada, ração de combate e tudo o que só nós sabemos, porque fomos nós que aguentámos meses e meses, todos os luxos com que nos contemplaram. Assim, com todas essas mordomias, quem é que queria sair do arame farpado, ninguem!!!

Mas tenho que agradecer ao sr. gen Almeida Bruno e aos muitos Almeidas Brunos, que por lá andavam, a preciosa ajuda que me deram, por ficar a saber passados tantos anos, que apesar de andarmos a fazer patrulhamentos, emboscadas, protecção aos trabalhos de abertura de estradas, sofrermos flagelações no mato e nos destacamentos, emboscadas e outros brindes, é que eramos BANDOS, porque ficávamos à espera que o IN viesse ao arame farpado, acordar o pessoal e isso chateava a malta.

Pura ignorância, Sr. Gen., porque para falar e dizer o que disse, o Sr. teria que, no mínimo, ter passado meses no mato e não em Bissau, no Q.G. e à noite no bar dos oficiais, a congeminar a estratégia no papel, junto dos seus acólitos, para que os BANDOS, vos guardassem as costas.

Os BANDOS não fomos nós, foram vocês, porque, quando foram visitar o destacamento em Binta, no norte da Guiné (este é apenas um exemplo e eu estava lá), a minha CCaç 4745 e outra que estava reduzida a metade e que pertencia ao Batalhão de Farim, andámos a dormir no mato (fora do arame), para que pudessem aterrar, mandar "bitates" e levantar rumo ao ar condicionado, de Bissau, nos ALOUETTS da comitiva, isto para que vossas senhorias, pudessem estar (dentro do arame), em segurança!!!

Tenho mais exemplos, mas mais uma vez agradeço ao Sr. Gen, ter divulgado o termo que eu andava à procura, pois não sabia se tinha sido combatente, guerrilheiro, herói, cobarde, assassino ou outros apelidos, que procurei durante estes anos todos, mas afinal fui chamado, juntamente com os outros camaradas, na sua maioria, de BANDOS.

Sr. Gen, tenha mais respeito por aqueles que tudo deram pela Pátria, alguns a própria vida e muitos sem saberem a razão do porquê de ali estarem e mesmo assim, defenderam com todas as suas energias, as costas de muitos, como o Sr. Gen, ou não foi assim?

Finalmente e nunca desprestigiando, as forças especiais tais como, Pára-quedistas, Fuzileiros e Comandos, até porque eu pertenci aos Rangers (Operações Especiais), devo dizer que essas forças "eram chatas como tudo", porque por duas vezes tivemos que fazer a cobertura das operações deles, na mata do CHANGALANA, (quando estávamos a fazer a protecção aos trabalhos da abertura da estrada JUGUDUL - BABADINCA) e por isso tivemos que "sair do conforto do arame farpado". Assim, tenho que concluir, que o Sr. Gen Almeida Bruno, andou na Guiné, apenas a ler possíveis relatórios, em vez de passar uns tempinhos connosco, noutros "arames farpados", que não os de Bissau!!!

Tenho muito mais a dizer, sobre alguma elite de iluminados dos oficiais generais, mas como a maior parte deles devem ter algumas luzes partidas e as que estão inteiras devem estar fundidas, dou desconto a essa gente, que não soube e não sabe dar o devido valor, a quem aguentou meses e meses de angústias, medos, desconforto, sem serem profissionais da guerra, (vocês sim, são profissionais) para que hoje possam estar vivos e dizer as baboseiras que lhes dá na gana. Por isso vemos hoje em dia, cada vez mais essa gente como "ASPORN" (Acessores de Porra Nenhuma)!!!

Luís Graça, possivelmente estamos a dar-lhe (ao Sr. Gen.) demasiada importância, ou talvez não?

Atentamente
José Pedro Neves
Ex Fur Miliciano de Op Esp
CCaç 4745 - Águias de Binta
GUINÉ
__________

Nota de CV:

Vd. último poste de 29 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4104: Carta aberta ao sr. gen Almeida Bruno (2): Tinha pelo Gen João Almeida Bruno a maior consideração e respeito (J. Mexia Alves)

domingo, 29 de março de 2009

Guiné 63/74 - P4104: Carta aberta a... (2): Sr. gen Almeida Bruno (2): Tinha pelo Gen João Almeida Bruno a maior consideração e respeito (J. Mexia Alves)

1. Mensagem de J. Mexia Alves, ex-Alf Mil Op Esp, CART 3942 (Xitole), Pel Caç Nat 52 (Mato Cão / Rio Udunduma) e CCAÇ 15 (Mansoa), com data de 29 de Março de 2009:

Caros camarigos Luís, Carlos, Virgínio e todos os Atabancados

Tinha pelo Gen João Almeida Bruno, Major no meu tempo, a maior consideração e respeito.

O Maj Almeida Bruno foi a pessoa a quem pedi para sair da zona operacional do Batalhão de Bambadinca, por achar que tinha uma nítida incompatibilidade com o comando do Batalhão, e assim fui colocado na CCaç 15 dos Balantas de Mansoa.

O Maj Almeida Bruno era ou é ainda, também, amigo de um dos meus irmãos mais velhos que foi piloto da Força Aérea nos anos cinquenta.

Tudo isto para dizer que algo me ligava ao Gen Almeida Bruno, para além do respeito e consideração que me merecia.
Pois tudo isso desapareceu com esta frase do referido senhor.

Não foi uma frase infeliz!
Só o podia ser, se este militar não tivesse conhecimento do que se passava na Guiné, mas ele sabia bem e tinha acesso a toda a actividade operacional das companhias de quadrícula da Guiné.
Se havia algumas unidades, poucas, muito poucas, que se fechavam no arame, a maior parte delas cumpriam com grande risco a sua missão, indo muitas vezes para além dela.
Basta perceber que se Bissau nunca teve quaisquer problemas, era porque as unidades militares estacionadas na Guiné cumpriam o que lhes era exigido e elas se exigiam.
Aliás, a maior parte das pouquíssimas companhias que se fechavam no arame acabavam normalmente por pagar caro essa atitude.

A frase do Gen Almeida Bruno ofende-me mais que o recente artigo da Visão que fez levantar a nossa indignação.
Um jornalista, se pode ter conhecimento das coisas, pode não as ter vivido e portanto não poder aferir daquilo que notícia.

O Almeida Bruno tinha conhecimento e sabia das condições em que a maior parte das unidades militares viviam e cumpriam a sua missão, pelo que tinha de elogiá-las e ser-lhes profundamente agradecido.

Talvez Almeida Bruno devesse ter passado 9 meses no Mato Cão, enterrado num buraco no chão, sem luz e sem água, tendo por companhia a enormidade da mata envolvente e como meio de transporte um sintex a remos.
Talvez então percebesse! Mas a verdade é que ele sabia isto tudo e mesmo assim não se coibiu de proferir a aleivosia que proferiu.

Espero que o Almeida Bruno se retrate do que disse, e peça desculpa aos militares que deram as suas vidas na guerra da Guiné.
Assim talvez volte a ser na minha memória o homem que respeitei e pelo qual tinha consideração.

Julgo que deveriam ser enviadas ao Almeida Bruno todas estas mensagens de indignação dos ex-combatentes desta Tabanca Grande.
Mas também, não é pelo que um senhor militar diz, que a nossa honra e dignidade é afectada.
Quando as coisas ditas são tão longe da realidade e tão acintosas, o seu veneno acaba por cair em cima de quem as proferiu.

Abraço camarigo a todos do
Joaquim Mexia Alves
__________

Nota de CV:

Vd. primeiro poste da série de 29 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4103: Carta aberta ao sr. Gen Almeida Bruno (1): Sinto-me muito honrado em ter pertencido a um dos tais bandos (José Teixeira)

Guiné 63/74 - P4103: Carta aberta a... (1): Sr. Gen Almeida Bruno (1): Sinto-me muito honrado em ter pertencido a um dos tais bandos (José Teixeira)

1. O nosso camarada Zé Teixeira, ex-1.º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70, que nos honra de vez em quando com as suas fabulosas estórias cheias de humanidade, enviou-nos hoje esta mensagem em tom que não é de todo o seu habitual.

Camaradas:
Como o Sr. General podia estar calado e assim não corria o risco de dizer baboseiras que nos ofendem, eu correndo o mesmo risco, mas em sentido contrário, também não me calo, porque quem cala consente.

Um abraço para toda a tabanca.
José Teixeira
Esquilo Sorridente


CARTA AO sr. GENERAL ALMEIDA BRUNO

Senhor General:

Eu sinto-me muito honrado em ter pertencido a um dos tais “bandos” que vaguearam pela Guiné e se “escondiam” atrás do arame farpado muito calmamente à espera que o inimigo nos viesse visitar. Outros, com muito mais categoria e responsabilidade o faziam no ar condicionado e longe do perigo, escondidos em Bissau.

As suas afirmações foram a resposta à questão que me perseguia desde o dia em que pisei o “tchão” da Guiné. Agora entendo o porquê de durante dois longos anos que por lá andei em bando (felizmente não era de malfeitores – provam-no a forma como tenho sido recebido pelas populações que tenho visitado ultimamente ). Porque é que os oficiais do Q.P. eram aves muito raras no teatro profunda da guerra?

Lá nos locais por onde andávamos, e lutávamos em nome de uma Pátria, e chorávamos de desespero ao vermos os camaradas caírem, e partirem para a eternidade ou feridos gritarem pela mãe e se agarrarem a pagela da Mãe do Céu última esperança de salvação, ou, de medo por sentir que o próximo podia ser qualquer um de nós.

Lá nesse inferno conheci poucos. O Capitão Rei (dos Lenços Azuis) e os Majores Carlos Azeredo e Carlos Fabião de quem guardo, e, creio mesmo muitos camaradas dos tais bandos estarão de acordo comigo, as melhores recordações e o Capitão da 15 .ª de Comandos que fazia jus em partir com os seus homens para o mato, tropa especialista que me habituei a admirar, pela coragem e abnegação, mas que pelos vistos também fazia parte dos tais bandos.

Constou-me que havia um capitão do Q.P. em Gandembel, mas estranhamente nas vezes que lá fui (o bando às vezes fazia umas pequenas saídas para se divertir) estava sempre para Bissau.

Havia ainda um outro, o senhor mesmo, com a patente de capitão, que apareceu algumas vezes, vindo do céu, a acompanhar o Comandante Geral. Estou a ver a sua imagem de óculos escuros tipo James Bond, luvas brancas, botas a brilhar e de camuflado ainda virgem. Isto é, ainda cheirava a novo, nunca tinha passado pelas águas fétidas e sujas da bolanha e dos tarrafos. Não estava manchada pelo suor que nos derretia nas longas caminhadas à caça do inimigo, em operações que os senhores do Q.P controlavam e comandavam, mas, de avião. Nem surrado dos dias e noites passados em emboscadas, colado à terra vermelha e quente, onde expectantes observávamos o terreno na mira de alguém desprevenido que ousasse por ali passar... Havia ainda as colunas, que o Senhor não fazia e a massacrante e arriscada segurança na construção de estradas e depois... o descanso no serviço à segurança da Unidade.

Pode crer que fazíamos isto tudo para nos divertirmos. A prova está nos cerca de 10.000 mortos e muitos mais, feridos fisicamente nestas diversões e os que ainda hoje sofrem as mazelas físicas e psíquicas daquelas andanças.

Era este o trabalho que estes bandos de que o senhor falou com tanto desdém faziam na Guiné, mas para quem estava em Bissau, nas bolanhas de alcatrão e casernas de ar condicionado, não era nenhum trabalho especial. Pelo menos servíamos para isolar Bissau do perigo da presença armada do Inimigo por perto, podendo os senhores da guerra, dormir descansados. Dê-nos pelo menos esse mérito, senhor general.

Deixe-me dizer-lhe ainda, que agora entendo porque razão a classe militar e a classe politica, dá o mais profundo desprezo aos combatentes que tanto deram pela Pátria, abandonando-os à sua sorte.

Quantos de nós ainda sofre na pele as mazelas do que viveram na guerra.

Quantos de nós não consegue dormir uma noite em paz, perseguido pelos fantasmas que ganhou (as medalhas) na guerra.

Quantos de nós tem uma vida destabilizada, pessoal e familiar, pelas doenças do foro psicológico que persistem e os inibe, por exemplo, de trabalhar de se relacionarem como pessoas com pessoas.

Quantos de nós procuram no álcool e nas drogas um lenitivo que faça esquecer.

E os que ficaram no terreno em campas perdidas no mato. Esquecidos de todos, menos dos camaradas e da família que não consegue fazer o luto e mantém a dúvida.

Agora entendo senhor general, nas suas palavras a razão de tantas perguntas que, nós os combatentes, fazemos a nós mesmos e para as quais não tínhamos resposta – Afinal éramos uns bandos armados a mamar o sangue da Pátria.

Que tristeza ouvir da sua boca, da boca de um distinto general de óculos escuros, tanta baboseira.

Até o General Spínola, que me habituei a respeitar como um comandante dos que há poucos, por este mundo fora e tanta consideração expressava por nós a tropa macaca, deve ter dado umas voltas no caixão e se pudesse lhe arrancaria os galões, como fez a alguns que considerava indignos de os usar.

José Teixeira
1.º Cabo enfermeiro
Guiné 1968/1970
__________

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2006

Guiné 63/74 - P519: Carta aberta a... Ao Luís (Jorge Cabral)

Mensagem do Jorge Cabral (ex-Alf Mil Art, comandante do Pel Caç Nat 63, Bambadinca, Fá e Missirá, 1969/71). Esta carta (aberta), dirigida à minha pessoa, honra-me e sensibiliza-me. Prendem-me, ao Jorge, laços de amizade e de cumplicidade.
Orgulha-me tê-lo cá, nesta tertúlia, entre amigos e camaradas. Obrigado, Jorge, pela tua (corrosiva) lucidez e sobretudo pela tua (generosa) abertura de espírito à aventura humana e à descoberta do outro bem como pelo teu arreigado anti-etnocentrismo. Poupa-me as palavras. Por mim, disseste tudo... LG

Caro Luís,

Nunca será demais enaltecer o teu blogue, o qual nos tem permitido, principalmente recordar.

Como tu dizes, fui um tropa desalinhado, marginal e quase sempre provocador, características que mantive ao longo da vida. Sempre procurei realçar os aspectos ridículos das pessoas e situações, gozando e criticando, às vezes com um humor um demasiado ácido…

Sobre a Guerra Colonial na Guiné, sei que lá estive, e procurei ver.

Não sinto nem orgulho, nem vergonha.

Não fui herói, nem cobarde, limitei-me a garantir a minha sobrevivência, bem como a dos que comigo se encontravam.

Tratava-se obviamente de uma guerra absurda e previsível, logo evitável, para a qual nos mandavam mal preparados, num estado de absoluta ignorância sobre o país, sua gente e cultura (contei-te daquele soldado-periquito, que apresentado em Missirá, me pediu para ir ver o jogo do Sporting que dava na televisão naquela note, na Tasca da Muda, ali mesmo à esquina…).

Se alguma qualidade intelectual possuo é a curiosidade, que me leva a tentar compreender tudo e todos, ciente que as diferentes formas de estar e ser são legítimas e sempre explicáveis.
Assim, na Guiné, quer em Fá, quer em Missirá, procurei entender, e através de longas conversas com Homens e Mulheres Grandes aprendi alguma coisa. Dessa forma me inteirei da excisão (a qual depois presenciei) e do infanticídio ritual, dois temas que há mais de vinte anos, falo nas minhas aulas.

Percebi que uma Guiné idílica e pacífica, de negros portuguesismos, nunca existira… Todo o território ao longo dos séculos foi palco de imensas guerras, sangrentas repressões e alguns desastres das nossas tropas. Perante o meu espanto, indicaram-me em Fá, o local onde no tempo, dos avós, dos avós deles, havia sido aprisionado o Governador, que teve de pagar resgate aos beafadas (1). E em Missirá levaram-me a conhecer o campo onde as forças portuguesas e seus ajudantes estiveram longo tempo entrincheirados, preparando a conquista de Madina/Belel, na luta contra o grande guerreiro Unfali Soncó, no princípio do século XX (2).

Foram também os velhos que me falaram de Abdul Injai, régulo do Cuor e do Oio, companheiro de Teixeira Pinto, herói tão amado quanto odiado, caído em desgraça no fim da vida, e degredado para Cabo Verde.

Chegado a Lisboa, e desde então tenho tentado estudar, convicto que é impossível compreender a guerra colonial e o que se seguiu, sem reflectir na história do país e nas múltiplas acções de resistência armada contra os Portugueses.

Claro que o PAIGC, ao iniciar a Luta Armada pretendeu aglutinar todas essas resistências sectoriais, num projecto global de Libertação, que simultaneamente edificasse o Estado Nação. Pelo menos a Libertação foi conseguida…

Tendo estado sempre com tropa africana e milícias, não fiquei indiferente ao que aconteceu aos meus soldados, uns obrigados a fugir e outros fuzilados.

Alguns ainda hoje lutam por uma pensão, e há poucos anos, tive de confirmar por escrito, que um servira no exército português.

Discutir agora quem foi o responsável pelos fuzilamentos, se foi o Nino ou o Luís Cabral, parece-me supérfulo. A responsabilidade cabe por inteiro aos Portugueses, que não souberam garantir a segurança dos militares africanos. Procederam como os seus antepassados, pois o destino dos aliados dos portugueses, foi sempre o mesmo. Abandonados à sua sorte, vitimas das represálias dos vencedores… Ás autoridades negociadoras competia proteger todos os que lutaram integrados no Exercito Português e mesmo assegurar aos que quisessem, a nacionalidade portuguesa. Isso sim, teria sido uma atitude revolucionária. Foram conservadores. Contradições características de uma descolonização tardia e apressada…

Desculpa a seriedade deste arrazoado, mas considero importante contribuir para a destruição de certos mitos e equívocos, naturalmente persistentes numa ex-potência colonial.

Um grande abraço
Jorge
_________

(1) – ocorreu em 1861 no âmbito de uma “campanha” contra os Beafadas de Badora, os quais prenderam o Major Correia Pinto, encarregado da Administração da Província na ausência do Governador. Também nessa altura foram hasteadas bandeiras britânicas, em Bambadinca, Fá e Ganjara.

(2) – tratou-se de uma das mais importantes "operações" ocorridas antes da Guerra Colonial. Os efectivos das N.T. eram para a época impressionantes. Estando 50 marinheiros destacados em Bambadinca, a coluna comandada pelo Governador Muzanty, compreendia:
- 7 oficais do estado maior,
- uma companhia da marinha (4 oficiais e 132 marinheiros),
- uma companhia de infantaria metropolitana (5 oficiais e 251 sargentos e soldados),
- uma companhia mista de infantaria (3 oficiais e 101 atiradores),
- uma bateria de artilharia (3 oficiais e 69 sargentos e soldados),
- mais sete oficias (médicos veterinários e de intendência),
- a que é preciso acrescentar o “exército” de Abdul Injai (2 oficiais, 2 chefes e 100 cavaleiros) e
- ainda a nona companhia indígena de Moçambique.

Pois toda esta tropa, atravessou o rio frente a Bambadinca, tendo conquistado todas as tabancas, até junto de Missirá, onde em Carenquecunda, acampou, cavando trincheiras, e preparando a conquista de Madina, que veio a ser tomada em 9 de Abril de 1908, tendo tido papel determinante Abdul Injai e os seus 100 cavaleiros.

Também eu entrei em Madina em 1971, sem cavaleiros, mas à custa de um decisivo apoio aéreo.

P.S. – o desastre do Cheche, tem um antecedente histórico ocorrido em 30 de Dezembro de 1878 na Ponta de Bolor, entre os Felupes. Porém deste, em que morreram mais de 50 militares, conhecem-se os que pela sua incompetência, foram responsáveis: o Governador António José Cabral Vieira e o Tenente Calisto dos Santos.