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sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25151: (In)citações (264): Adjarama, Amadu Bailo Djaló, por essa lição de vida (Cherno Baldé).



Lisboa > 2009 > O Amadu Djaló no Cais do Sodré... A solidão de Lisboa, onde apesar de tudo teve camaradas que o ajudaram, a começar pela Associação de Comandos e o Virgínio Briote... No final do seu livro de memórias, publicado em 2010, escreveu: "Deixámos o passado para trás. Por quê o ódio? E a vingança? Qual é o destino da vingança? É a guerra! Qual o destino final da guerra? Estropiados, sangue, lágrimas, pobreza, suor, trabalho. Vai demorar muitos anos para acabar com a pobreza." (In: Amadu Bailo Djaló -  "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, il.,  pág., 286) .

Foto (e legenda): © Virgínio Briote  (2015). Todos os direitos reservados.
[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Comentários ao poste P25147 (*)

(i) Tabanca Grande Luís Graça:

O Amílcar Cabral e o seu partido e os seus comandantes, a começar pelo 'Nino', teriam ficado na História, se tivessem deposto as armas tal como os tugas o fizeram, feito as pazes com todos e lançado as bases da reconciliação e do futuro...

Tinham preparado o seu país para um sociedade democrática, pluralista, pluriétnica, pluripartidária, pacifista, e formado os quadros que não tinham, com apoio da antiga potência colonial (agora um país reconciliado com a sua tradição de sociedade democrática, aberta e plural) e dos novos amigos (a Suécia, etc.), durante um periodo transitório de dez anos...

Ao fim desses dez anos, fariam eleições livres... Mas não, não era essa infelizmente a sua matriz ideológica, baseada no pensamento único de um único homem... (que não conseguiu pòr os outros a pensar pela sua própria cabeça).

Era o modelo do partido único, o que estava "a dar" nos anos 60/70 em África e no resto do chamado Terceiro Mundo... E ainda o é, tragicamente, o que predomina, na maior parte do planeta,  em quse toda a Africa, na Chin, na  Rússia, no Irão, na Arãbia Saudita, e por aí fora...

O poder estava na ponta das espingardas, à esquerda e à direita., e o mundo bipolarizado.. E viu-se: os Cabrais, os 'Ninos', etc., foram um desastre a governar... e acabaram por se trucidar uns aos outros.

De que é que o PAIGC tinha medo ? Se calhar de si próprio... Não era dos fulas nem dos comandos (que podiam perfeitamente ser  integrados num futuro exército nacional)... Claro que era preciso dinheiro ("divisas") para alimentar o povo... O arroz não cai do céu...

(ii) Cherno Baldé:

(...) O PAIGC tinha medo,  sim, tinha medo dos fulas, mas não de todos,  e foi essa particularidade que salvou o nosso Amadu Bailo Djalo que, na verdade, arriscou muito ficando em Bafatá, mas também a desgraça e a morte estavam em todos os lados, muitos que tinham fugido, depois foram recambiados.

A meu ver, o PAIGC tinha medo dos régulos fulas que tinham recusado, na sua totalidade e sistematicamente, aderir às  ideias e à ideologia da luta da libertação nacional, dirigida por uma elite urbana de Cabo-verdianos e de Grumetes de Bissau com os quais não se identificavam e não tinham nenhuma confiança quanto ao futuro do território. 

Não sei e não posso dizer quem teria razão, mas a verdade é que os seus interesses e perspectivas eram divergentes e, logo após a independência, a primeira medida de segurança que tomaram foi decapitar os poderes tradicionais das comunidades (fulas e manjacos) que tinham tido um comportamento recalcitrante em relação a (senão mesmo contra)  a luta do partido libertador.

Sobre a foto da casa Gouveia, sou de opinião contrária (*).Esta foto deve ser dos finais da década de 1970 ou início de 80. Os sinais: não se vê nenhum veículo militar, não se vê nenhum branco, civil ou militar, a circular no largo do mercado, o que não seria normal no período anterior à independência. 

Os edifícios estão um pouco degradados e as paredes parecem sujas com falta de pintura, o parque ao lado tem sinais de degradaçãoo e não se vêm sinais de embelezamento e parece reinar uma certa apatia, abandono e tristeza ao redor. 

Além disso, o camião da marca "Bedford" não é da casa Gouveia,  cujas portas parecem fechadas e há uma aglomeração anormal à frente das portas, o que denota desordem e abandono. 

Não, Luís Graça, esta imagem é dos tempos novos e tristes que se abateram sobre Bafatá e a Guiné no período posterior que eu bem conheci porque acompanhei, entre 1975/79, como estudante do Liceu local.

O camião deve estar à espera de poder ser alugado para cargas ou passageiros assim como o Toyota Hylux noutra berma, adaptada para transporte de pessoas e de cargas porque já não havia colunas militares nem para as localidades próximas e/ou longínquas. Muitos dos antigos soldados condutores na situação de reformados tinham adquiridos meios de transporte como forma de continuar a trabahar e sustentar a família.

O Amadu Djalo diz, no seu texto, que 3 anos depois ofereceu ao Ansumane Injai, o homem que o tinha feito prisioneiro,  20 Escudos, mas na realidade deviam ser Pesos Guineenses (PG), porque em meados de 1978 já não circulavam os escudos do período colonial.

A morte por sufoco dos presos do Senegal em Farim (caso que também já denunciei aqui no Blogue) resultou de um acordo que o regime do Luís Cabral tinha assinado com o Presidente LS Senghor em contrapartida da pesca nas nossas águas territoriais.

 Aquela nota redigida por Luís Cabral a lamentar as mortes de pessoas recambiadas de forma indiscriminada pelas autoridades do Senegal,  não passava de lágrimas de crocodilo, pois dentro do PAIGC ninguém era inocente dos atropelos e crimes que eram cometidos, todos sabiam o que estava a acontecer e todos podem ser considerados cúmplices, porque existia uma espécie de consenso interno desde os tempos de A. Cabral, sobre o destino reservado aos traidores da pátria a que, apesar da ferocidade aparente, no entanto, alguns puderam fazer tábua rasa,  ajudando os seus conhecidos e/ou entes queridos. O Aladje Mané,  deputado da ANP na época colonial,  foi depois membro influente e dirigente do PAIGC, o Cadogo Junior e muitos outros não foram incomodados, estando a viver em grande e em Bissau.

Após a leitura, ontem, de um extrato muito interessante do livro de memórias do comandante Pedro Pires (antigo Presidente de Cabo Verde), descrevendo o seu período de travessia de deserto, quando foi obrigado a sair nas eleições que seguiram à abertura política de 1991,  e, ao ler, hoje, o desabafo do Amadu Djaló, antigo combatente 'comando', sobre o ser humano ("O  povo era falso, não podíamos ter confiança em ninguém. O povo não tem cor, nem medida, nem peso, é tudo falso.”)...

Hoje vou dormir muito tranquilo e sem nenhumas ilusões sobre o ser humano.
Adjarama, Amadu Bailo Djalo por essa lição de vida. (**)

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25147: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - XLIV (e última): Um "pária" na sua terra, humilhado e ofendido pelos novos senhores da guerra: "O povo não tem cor, nem medida, nem peso, é tudo falso" (pp. 280/286)


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bafatá >  A terra de Amílcar Cabral. Foto tirada ainda antes da independência. O edifício da antiga Casa Gouveia, mais tarde  Tribunal Regional de Bafatá; o centro do parque infantil onde estava a estátua do antigo governador Oliveira Muzanty, o 1º ten da marinha (1906-1909), e onde passou a estar depois o busto de Amílcar Cabral; à esquerda do edifício, o célebre e fotogénico pombal, que muito provavelmente pertencia aos armazéns da Casa Gouveia; à direita (não visível na foto, ficava o antigo mercado e a piscina (edifícios coloniais que entraram rapidamente em ruína, tal como a cidadezinha de Bafatá, a "princesa do Geba")... Não sabemos, ainda, com rigor de quem é o autor desta foto nem a data... Mas tudo parece que ainda é da época colonial, a tal ainda se comia arroz em vez de milho para burro (como diz o Amadu)... A viatura automóvel que se vê à frente do edifício da Casa Gouveia não nos parece ser um camião russo GAZ mas uma carrinha de caixa aberta, Mercedes,  da CG (Casa Gouveia). No livro do Amadu Djaló, a foto é atribuída ao Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné e é a última imagem (a petro e branco) do livro (pág. 283).


1.  Últimas páginas (pp. 280/286) das memórias do Amadu Djaló (Bafatá, 1940-Lisboa, 2015), reproduzidas a partir do manuscrito, digitalizado, do seu livro "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, il.,  edição esgotada) (*).

O nosso  camarada e amigo Virgínio Briote, o editor literário ou "copydesk" desta obra ,  facultou-nos uma cópia digital. (O Virgínio, com a sua santa paciência e a sua grande generosidade, gastou mais de um ano a ajudar o Amadua a pòr as suas memórias direitinhas em formato word, a pedido da Associação dos Comandos...). 

O Amadu Djaló, membro da Tabanca Grande, desde 2010, tem cerca de 120 referências no nosso blogue. Tinha um 2º volume em preparação, que a doença e a morte não  lhe permitaram ultimar. As folhas manuscritaas foram entregues ao  Virgínio Briote com a autorização  para as transcrever (e eventualmente publicar no nosso blogue). Desconhecemos o seu conteúdo, mas já incitivámos o nosso coeditor jubilado a fazer um derradeiro esforço para  transcrever, em word, o manuscrito do II volume (que ficou incompleto). E ele prometei-nos que ia começar a fazê-lo, "para a semana"...


Capa do livro do Amadu Bailo Djaló,
"Guineense, Comando, Português: I Volume:
Comandos Africanos, 1964 - 1974",
Lisboa, Associação de Comandos,
2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.



O autor, em Bafatá, sua terra natal,
por volta de meados de 1966.
(Foto reproduzida no livro, na pág. 149)

Síntese das partes anteriores:

(i) o autor, nascido em Bafatá, de pais oriundos da Guiné-Conacri, começou a recruta, como voluntário, em 4 de janeiro de 1962, no Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama;

(ii) esteve depois no CICA/BAC, em Bissau, onde tirou a especialidade de soldado condutor autorrodas;

(iii) passou por Bedanda, 4ª CCaç (futura CCAÇ 6), e depois Farim, 1ª CCAÇ (futura CCAÇ 3), como sold cond auto;

(iv) regressou entretanto à CCS/QG, e alistou-se no Gr Cmds "Os Fantasmas", comandado pelo alf mil 'cmd' Maurício Saraiva, de outubro de 1964 a maio de 1965;

(v) em junho de 1965, fez a escola de cabos em Bissau, foi promovido a 1º cabo condutor, em 2 de janeiro de 1966;

(vi) voltou aos Comandos do CTIG, integrando-se desta vez no Gr Cmds "Os Centuriões", do alf mil 'cmd' Luís Rainha e do 1º cabo 'cmd' Júlio Costa Abreu (que vive atualmente em Amesterdão);

(vii) depois da última saída do Grupo, Op Virgínia, 24/25 de abril de 1966, na fronteira do Senegal, Amadu foi transferido, a seu pedido, por razões familitares, para Bafatá, sua terra natal, para o BCAV 757;

(viii) ficou em Bafatá até final de 1969, altura em que foi selecionado para integrar a 1ª CCmds Africanos, que será comandada pelo seu amigo João Bacar Djaló (Cacine, Catió, 1929 - Tite, 1971)

(ix) depois da formação da companhia (que terminou em meados de 1970), o Amadu Djaló, com 30 anos, integra uma das unidades de elite do CTIG; a 1ª CCmds Africanos, em julho, vai para a região de Gabu, Bajocunda e Pirada, fazendo incursões no Senegal e em setembro anda por Paunca: aqui ouve as previsões agoirentas de um adivinho;

(x) em finais de outubro de 1970, começam os preparativos da invasão anfíbia de Conacri (Op Mar Verde, 22 de novembro de 1970), na qual ele participaçou, com toda 1ª CCmds, sob o comando do cap graduado comando João Bacar Jaló (pp. 168-183);

(xi) a narrativa é retomada depois do regresso de Conacri, por pouco tempo, a Fá Mandinga, em dezembro de 1970; a companhia é destacada para Cacine [3 pelotões para reforço temporário das guarnições de Gandembel e Guileje, entre dez 1970 e jan 1971]; Amadu Djaló estava de licença de casamento (15 dias), para logo a seguir ser ferido em Jababá Biafada, sector de Tite, em fevereiro de 1971;

(xii) supersticioso, ouve a "profecia" de um velho adivinho que tem "um recado de Deus (...) para dar ao capitão João Bacar Jaló"; este sonha com a sua própria morte, que vai ocorrer no sector de Tite, perto da tabanca de Jufá, em 16 de abril de 1971 (versão contada ao autor pelo soldado 'comando' Abdulai Djaló Cula, texto em itálico no livro, pp.192-195) ,

(xiii) é entretanto transferido para a 2ª CCmds Africanos, agora em formação; 1ª fase de instrução, em Fá Mandinga , sector L1, de 24 de abril a fins de julho de 1971.

(xiv) o final da instrução realizou.se no subsector do Xitole, regulado do Corunal, cim uma incursão ao mítico Galo Corubal.

(xv) com a 2ª CCmds, comandada por Zacarias Saiegh, participa, em outubro e novembro de 1971, participa em duas acções, uma na zona de Bissum Naga e outra na área de Farim;

(xvi) em novembro de 1971, participa na ocupação da península de Gampará (Op  Satélite Dourado, de 11 a 15, e Pérola Amarela, de 24 a 28);

(xvii) 21-24 dezembro de 1971: Op Safira Solitária: "ronco" e "desastre" no coração do Morés, com as 1ª e 2ª CCmds Africanos  (8 morts e 15 feridos graves);

(xviii) Morés, sempre o Morés... 7 de fevereiro de 1972, Op Juventude III;

(xix) o jogo do rato e do gato: de Caboiana a Madina do Boé, por volta de abril de 1972;

(xx)  tem um estranho sonho em Gandembel, onde está emboscado très dias: mais do que um sonho, um pesadelo: é "apanhado por balantas do PAIGC";

(xxi) saída para o subsetor de Mansoa, onde o alf cmd graduado Bubacar Jaló, da 2ª CCmds Africanos, é mortalmente ferido em 16/2/1973 (Op Esmeralda Negra);

(xxii) assalto ao Irã de Caboiana, com a 1ª CCmds Africanos, e o cap cav 'cmd' Carlos Matos Gomes como supervisor;

(xxiii) vamos vê-lo a dar instrução a futuros 'comandos' no CIM de Mansabá, na região do Oio, no primeiros meses do ano de 1973, e a fazer algumas "saídas" extras (e bem pagas) com o grupo do Marcelino, ao serviço do COE (Comando de Operações Especiais), que era então comandado pelo major Bruno de Almeida; mas não nos diz uma única sobre essas secretas missões; ao fim de 12 anos de tropa, é 2º sargento e confessa que está cansado;

(xxiv) antes de ir para CCAÇ 21, como sede em Bambadinca, como alferes 'graduado" (e sob o comando do tenente graduado Abdulai Jamanca, ainda irá participar na dramática Op Ametista Real, contra a base do PAIGC, Cumbamori, no Senegal, em 19 de maio de 1973;  esta parte do seu  livro de memórias  (pp. 248-260) já aqui foi transcrita no poste P23625;

(xxv) no leste, começa por atuar no subsetor do Xime, em meados de 1973;

(xxvi) em setembro de 1973, quando estava em Piche, já na CCAÇ 21, recebe a terrível notícia da morte do seu querido irmão mais novo, Braima Djaló, da 3ª CCmds;

(xxvii)  embora amargurado com a morte do seu irmão mais novo, e cansado, ao fim de 12 anos de tropa e de  guerra, o Amadu Djaló mantem-se na CCAÇ 21, como alferes graduado; vemo-lo agora no início de 1974 em Canquelifá, em reforço da CCAÇ 3545 / BCAÇ 3883 (1972/74);

(xxviii) a CCAÇ 21 está no leste, na região de Gabu, ao serviço do CAOP2, e mais exatamente em Canjufa, quando sabe da notícia do golpe de estado do 25 de Abril em Lisboa; só no dia 27, de manhã, regressa a Bambadinca, onde estava sediada;

(xxix)  ainda antes da extinção da CCAÇ 21 e do  Batalhão de Comandos da Guiné, o Amadu Djaló encontra-se com alguns responsáveis do PAIGC, logpo am maio/junho de 1974: o cabo-verdiano Antero Alfama, em Bambadinca e Xima, e depois na fronteira com o Senergal, com o João da Silva e com o Pedro Nazi...

(xxx) em meia dúzia de páginas pungentes, mas ao mesmo de uma grande serenidade e dignidade, relata o calvário da sua vida de 'pária' (por ter servido no exército dos 'tygas') após a extinção da CCAÇ 21, em agosto de 1974, até ao golpe de estado do 'Nino' Vieira, em 14 de novembro de 1980; publicaremos ainda, posteriormente,  os anexos do livro (pp. 287-299), organizados com a ajuda do Virgínio Briote.


 Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XLIV:


Um "pária" na sua terra, humilhado e ofendido pelos novos senhores da guerra: " O povo não tem cor, nem medida, nem peso, é tudo falso" (pp. 280/286)


Agora, 25 de Abril, nova era. Logo nos dias a seguir, ainda em Abril, havia um homem, que sempre que me via vinha falar comigo. Um outro homem tinha-lhe dito para me avisar que tinha ouvido dizer que eu ia ser morto pelo PAIGC. E que,  se eu quisesse fugir para o Senegal, ele tinha francos para me dar. E insistiu que várias pessoas lhe tinham dito que eu ia ser morto. Todos os Comandos vão ser mortos, mesmo os antigos, dizia esse tal homem.

Um dia ouvi chamar pelo meu nome.

 −  Amadu, passa ali na minha casa.

Fui a casa dele. Quando entrei, a primeira coisa que o homem fez foi fechar a porta da rua. Era perigoso falar connosco.

 −  Olha, eu sou fulano, não tenho nada com política da Guiné, mas tu, Amadu,  és meu amigo há muito tempo. Se precisares de sair da Guiné, conta comigo.

Respondi-lhe que ia pensar, que se fugisse quem ia ficar a tomar conta da família, a minha mãe estava muito velha, as minhas mulheres podiam ir para qualquer lado, ir para casa dos seus pais ou voltar a casar, agora os meus filhos, o que ia ser deles? 

E disse que preferia ficar aqui, na Guiné, até ao dia em que me prendessem e me matassem. Nessa altura a minha família ficava a saber. Se eu fugisse, ninguém sabia o que me tinha acontecido.

Eu não queria morrer, como veio a acontecer a companheiros meus, sem a minha família saber onde estava, se tinha fugido ou sido morto.

− Eu não vou fugir, mas muito obrigado, foi a minha resposta.

Antes, as pessoas procuravam-nos para nos conhecerem melhor, para serem nossos amigos.

Depois de 25 de Abril e até 20 de Agosto de 1974, quando entregámos as armas, o comportamento das pessoas mudou, passou a ser diferente. Ninguém queria ser nosso amigo, nem acompanhar os comandos. Agora, a maioria eram nossos inimigos, e outros, a quem antes tínhamos feito favores, começaram a prender as pessoas, Comandos ou não.

Antes de 11 de Março de 1975, foram mortos o tenente Bacar Djassi, o tenente Jamanca, o alferes João Uloma e o 1º sargento Lalo Baio[1], todos Comandos.

Foi uma era muito difícil para todos os que estiveram com os brancos. Poucos falavam connosco, éramos marginalizados completamente pela gente que, antes, estava à nossa protecção e que, depois, passaram a ser os nossos maiores inimigos.

Foi também uma grande experiência, que ajudou quem sobreviveu a viver tranquilo para o resto da vida.

O povo era falso, não podíamos ter confiança em ninguém. O povo não tem cor, nem medida, nem peso, é tudo falso.

Durante esses onze anos, de 1974 a 1985, eu não podia falar do que passei, em nenhum lado da terra onde nasci e cresci. Passei a ser insultado nas reuniões e obrigado a bater palmas aos insultos que me faziam.

Diziam na minha cara que, no dia 22 de Novembro de 1970, na ida a Conacri, os portugueses saltaram os seus cães com dois pés, isto é, nós. 

Chamavam-me "cão" e eu tinha que aplaudir. Suportei tudo, bati-lhes palmas até, aceitei tudo o que me disseram. Nada era mal, tudo parecia ser bom.

Desses tempos, em Bafatá, pouco depois de março de 1975, fui assistir ao funeral de um vizinho. Quando cheguei ao local, estava lá muita gente. Cumprimentei as pessoas, algumas responderam, outras não. Notei que um presente fez um gesto com a cabeça para um militar do PAIGC, que não me conhecia.

O militar deu a volta
 − para outro lado e mandou um miúdo chamar-me. Chegou junto de mim e disse:

 − Tio, um militar mandou chamar-te.

Segui o menino até ao militar do PAIGC. Dois militares, que estavam numa varanda com armas nas mãos, deram-me voz de prisão. Um à esquerda e outro à direita, conduziram-me em direcção ao quartel, onde era antes o esquadrão de Cavalaria. Chegado ao último cruzamento, vi um jipe a aproximar-se de nós. Subimos para o passeio e vi o Suleimane Djaló, 2º comandante do batalhão. Era da minha etnia, embora a gente não se conhecesse.

Quando me aproximei, acompanhado dos dois soldados da sua unidade, perguntou:

− O que é que se passou?

−  Fui eu que o prendi, meu comandante!  
 − respondeu o militar.

 −  Por quê? 
 − perguntou o Suleimane.

 
− Ele é alferes dos Comandos!

 − Então, podemos prender qualquer militar, sem ordem de ninguém? De onde é que vieste? Quem te deu ordem para vir cá prender gente?

 − Desculpe, meu comandante, ninguém me mandou!

Suleimane Djaló, o comandante, olhou para mim:

 −  Onde ele te encontrou, Amadu?

 −  No choro[2]!

O comandante mandou-me embarcar no jipe. O sol estava muito bravo. O chefe que me prendeu também pediu boleia, mas o comandante disse que fosse a pé. Levou-me até à minha casa e,  depois, regressou.

O que me prendeu era beafada, chamava-se Ansumane Injai. Na altura em que me prendeu, estava bem fardado, de oficial, com calça e camisa de terylene e sapatos bem engraxados, fio de ouro e mascote, tudo grosso.

Passados uns anos, um dia, eu estava com o cunhado do meu irmão mais velho, meu conhecido desde muito novo. Andávamos juntos muitas vezes, o pai dele foi meu professor do Alcorão e o meu irmão mais velho tinha casado com a sua irmã mais velha.

Eu e o meu parceiro tínhamos um Peugeot 404, uma station com sete lugares. Ele também tinha sido tropa, foi condutor da 1ª CCmds. O nosso carro estava na oficina a mudar peças e, nós estávamos à porta do mercado de Bafatá.

A certa altura, chegou uma pessoa à minha frente e cumprimentou-me, apertando-me a mão. Era uma pessoa magra, estava suja e cheia de nódoas. Ele olhava para mim mas eu não o conhecia. Perguntou-me se eu não o reconhecia.

 
 − Eu,  não!

 −   Fui eu quem te prendeu! No choro do homem do Bairro de Caibra.

 
− Ah, foste tu?

 
− Sim, fui. Olha, desde que te prendi, nunca mais passei bem. Estive preso um ano e dois meses, libertaram-me, passados alguns dias voltaram para me prender mais dois anos. Saí há 5 dias da prisão.

Antes de eu sair da prisão, faleceu um meu primo em Bambadinca. Não tenho dinheiro para o transporte, foi um amigo que me deu boleia de Bissau até Bafatá. Agora, eu peço-te, por favor, que me arranjes 20 escudos para pagar o transporte para Bambadinca, para ir cumprimentar os familiares do meu falecido primo.

Não lhe disse nada. Meti a mão ao bolso, tirei uma nota de 50 escudos e dei-lhe. Ele agradeceu e foi embora. O meu companheiro disse-me que eu era um burro.

Eu não tenho ódio, Deus pagou-lhe o que merecia. Ele prendeu-me durante uma hora, esteve preso mais de três anos. O que é que eu vou querer mais dele ? Nada!

Aqueles anos foram de fome, não havia arroz. No governo de Luís Cabral, desembarcou um barco com rações de milho para os burros para dar à população. Fizemos tudo por tudo para comermos aquele milho, mas não conseguimos, era ração para burros. Mas,  vendo bem, o Luís Cabral não devia ser o único culpado. O ministro do Comércio era filho da Guiné e o 1º ministro também.

Depois de 14 de Novembro [de 1980],
acabaram-se as perseguições. Até esse dia fui perseguido dia e noite. Estava cadastrado no aeroporto, como todos os africanos que tinham sido militares portugueses. Todos os cadastros foram levantados. Dentro do meu coração, não deixo de louvar o 'Nino' Vieira[3], Presidente da Guiné-Bissau.

Nunca esquecerei os primeiros anos do governo de Luís Cabral, desde 1 de janeiro de 1975 até janeiro de 1976. A partir de 11 de março, a emissão do rádio acabava à noite com a frase “a pena de morte continua”, o recolher era obrigatório, a partir das 20h00 tínhamos que fechar as portas e apagar as luzes. Acendíamos as lanternas, algumas fabricadas por nós próprios. Era assim até ao nascer do novo dia.

Lembro-me de ouvir falar de um acontecimento passado em Farim[4]. Noventa e tal pessoas, Comandos e outros militares e milícias, que viviam na região de Casamansa, foram presos no Senegal pela polícia e por militantes do PAIGC. Trouxeram-nos em viaturas até à fronteira e depois, em viaturas do PAIGC, para Farim.

Depois, meteram-nos nas covas, que durante a guerra serviram de depósitos das granadas de artilharia. Ficaram lá presos. Não havia nenhum buraco, nem nenhum furo, por onde entrasse ar. Fechados lá dentro bateram à porta, gritaram, ninguém ouviu nada. 

No outro dia, de manhã, quando abriram a porta, encontraram-nos mortos, só um ainda respirava. Deram-lhe água para beber e quando acabou de beber também descansou e foi para junto dos companheiros. Não ficou nenhum sobrevivente daquela prisão subterrânea.

Quando 'Nino' fez o 14 de novembro, não admitiu no seu governo o autor deste massacre, mas mandou dar-lhe uma carrinha para governar a sua vida, que ficou como a sua reforma.

Com o golpe de 14 de novembro, a Guiné mudou muito. Começou livre e a fome acabou. Passou a haver arroz, não milho para burros, chegaram mais mercadorias para a Guiné, o aeroporto ficou aberto para todos os guineenses, que estavam na Europa. Os guineenses podem agradecer tudo isto a 'Nino' Viera, um filho da Guiné.

Deixámos o passado para trás. Por quê o ódio? E a vingança? Qual é o destino da vingança? É a guerra! Qual o destino final da guerra? Estropiados, sangue, lágrimas, pobreza, suor, trabalho.

Vai demorar muitos anos para acabar com a pobreza.

FIM do I Volume (Publicar-se-ão a seguir os Anexos)
______________________

Notas do autor ou do editor VB:

[1] Lalo Baio, mandinga, sobrinho do chefe da tabanca de Morucunda, em Farim, tinha pertencido ao PAIGC, nos primeiros anos da luta. Por qualquer motivo, tomou a decisão de se apresentar às autoridades portuguesas, trazendo com ele dez elementos e as respectivas armas.

[2] O morto. antes de ser enterrado, é embrulhado num pano e envolto numa esteira. As mulheres põem luto, vestindo-se de branco, sem qualquer enfeite ou adorno, a não ser um lenço branco. 

Ao fim de quarenta dias faz-se a cerimónia do choro, que consiste na reunião da família e amigos, orações na mesquita local, abate de uma ou mais cabeças de gado, sendo depois repartido por todos, depois de cozinhado. Não têm cemitérios. A sepultura é no local mais conveniente, ficando o corpo com a cabeça para oriente.

[3] Nota do editor: João Bernardo Vieira, 'Nino' Vieira, 'Nino' ou 'Kabi Nafantchammma' como também era chamado, nasceu em Bissau, em 27 de Abril de 1939.
[ Tem 165 referências no nosso blogue.] 

Em Janeiro de 1961 partiu para a República Popular da China, integrado num grupo de dez camaradas escolhidos por Amílcar Cabral, a fim de receber treino militar. Com 25 anos apenas, 'Nino' já era o Comandante Militar da zona sul, que abrangia a região de Catió até à fronteira com a Guiné-Conakry. Foi quase sempre no Sul que actuou durante a luta, transformando esta zona, que abrangia o Cantanhez e o Quitafine, num dos mais duros, senão o mais duro, de todos os teatros de operações em que as forças portuguesas estiveram empenhadas e do qual ainda restam nomes míticos como Guilege, Gadamael, Gandembel, Cacine, Catió, Cufar, Cadique, Bedanda e tantos outros. 

Embora se tenha dedicado principalmente à actividade operacional, como comandante de unidades de guerrilheiros, 'Nino' Vieira ocupou os mais altos cargos na estrutura do PAIGC, sendo membro eleito do bureau político do seu Comité Central desde 1964, vice-presidente do Conselho de Guerra presidido por Amílcar Cabral em 1965, acumulando com o comando da Frente Sul, e ainda comandante militar de todo o território a partir de 1970.

Foi eleito deputado em 1973 e, posteriormente, Presidente da Assembleia Nacional Popular, que proclamou no Boé a República da Guiné-Bissau, em 24 de Setembro de 1973.

Após a independência foi Comissário do Estado para as Forças Armadas. 

Em 1980, 'Nino' chefiou o golpe que levou à destituição do Presidente da República, Luís Cabral, e assumiu os cargos de secretário-geral do PAIGC e a Presidência da República. 

As consequências deste golpe levaram ao fim do projecto de Amílcar Cabral, a união dos povos guineense e cabo-verdiano. Em 1984 foi aprovada uma nova Constituição e só em 1991 terminou a proibição dos partidos políticos.

Com o novo regime, as primeiras eleições tiveram lugar em 1994. 'Nino' Vieira, concorrendo contra Kumba Yalá, foi eleito Presidente da República à 2ª volta, tomando posse em 29 de Setembro de 1994. Quatro anos depois, ainda conseguiu suster um golpe que visava a sua destituição. Mas não por muito tempo.

A propósito de um nunca esclarecido fornecimento de armas para a guerrilha de Casamansa, em Junho de 1998 travou-se uma violenta guerra civil entre partidários de Ansumane Mané e forças fiéis a 'Nino'. Mané destituiu-o em 7 de Maio de 1999 e 'Nino' Vieira foi obrigado a refugiar-se na Embaixada Portuguesa em Bissau, de onde só saiu em Junho para Portugal.

Fazendo jus à sua antiga imagem de combatente, 'Nino' regressou a Bissau em 2005 para anunciar a candidatura às presidenciais de Junho de 2005, que venceu à 2ª volta contra Malan Bacai Sanhá. Mas a sorte, que tantas vezes o protegeu, estava prestes a abandoná-lo.

Há Guineenses que dizem que, depois do regresso de Portugal, 'Nino' nunca conseguiu recuperar os poderes políticos e militares, que antes detivera. Que o poder militar se mantinha nas mãos dos que o tinham exilado e que, apesar das várias tentativas para fazer e compor alianças, o poder político se mantinha longe dele. Outros afirmam que 'Nino' foi tão bom combatente como mau político.
De herói da luta de libertação nacional a vilão e tirano, é como o retratam alguns camaradas, depois de o verem à frente dos destinos da Guiné-Bissau durante 22 dos 36 anos de Independência.

Companheiros cabo-verdianos na luta pela libertação, não esquecem que foi 'Nino' que, em 14 de Novembro de 1980, matou o sonho de Amílcar Cabral de unir os dois países. E não se coíbem também de referir que, com o golpe militar que derrubou Luís Cabral, 'Nino' abriu caminho a uma violência que durou até aos nossos dias. 

Outros contrapõem que a violência e os ajustes de contas começaram ainda antes do 1º Congresso do PAIGC, em Cassacá, Cacine, e fizeram sempre parte da vida do partido. Certo é que, nos últimos trinta anos, 'Nino' esteve sempre no centro das muitas crises que afectaram a vida da jovem República. E na sequência de mais um grave conflito político-militar, 'Nino' Vieira morreu, em 2 de Março de 2009, às mãos de alguns militares das Forças Armadas de que foi um dos principais criadores.

Ironias do destino dos antigos camaradas de luta e adversários depois: os corpos de “Nino” Vieira e o do general Tagmé Na Waié, também vítima, um dia antes, de uma explosão violenta no seu gabinete e ambos companheiros na luta pela independência, repousaram juntos, bem perto um do outro, na morgue do Hospital Simão Mendes, em Bissau, antes de serem sepultados no cemitério de Bissau, em extremos opostos.

[4] Nota do editor: em depoimento a Nelson Herbert, editor-sénior do serviço em português para a África, da Radio Voice of Amrrica (Voz da América), Luís Cabral refere-se assim ao acontecimento: 

(...) “Houve um acidente gravíssimo, acidente que todos nós lamentamos imenso. Foi numa altura em que numa prisão subterrânea deixada em Farim pelas autoridades coloniais, puseram-se lá indivíduos que nos foram entregues na fronteira do Senegal, indivíduos em número bastante elevado e houve à noite uma asfixia, falta de ar, e morreram pessoas nessa prisão. Quando tivemos conhecimento desse desastre, desse acidente, ficámos altamente perturbados e isso nem os homens que estavam directamente ligados a esses prisioneiros nem nenhum dos outros elementos da direcção do País deixaram de sofrer, sofrer mesmo, com esse acidente que vitimou várias pessoas. Isso foi uma coisa que lamentei muito e que gostava imenso que nunca tivesse sucedido.” (...) 

(Seleção, fixação / revisão de texto, negritos, links, fotos, notas adicionais entre parènteses retos, título, subtítulo, síntese das partes anteriores: LG)
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Nota do editor:

Último poste da série  > 1 de fevereiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25126: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XLII: No rasto do PAIGC, a última saída da CCAÇ 21: apanhada de surpresa, em Canjufa, pela notícia do golpe de estado do 25 de Abril (pp. 272/276)

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25143: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XLIII: Nuvens negras (maio / junho de 1974): ameaças e promessas do PAIGC em relação aos 'colaboracionistas'


Casa Comum | Instituição: undação Mário Soares |  Pasta: 05222.000.069 | Título: João Bernardo Vieira, João da Silva e Maximiano Soares da Gama | Assunto: João Bernardo Vieira [Nino], membro do Conselho de Guerra e do Bureau Político do PAIGC, João da Silva e Maximiano Soares da Gama| Data: 1963 - 1973 | Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral | Tipo Documental: Fotografias 

Citação: (1963-1973), "João Bernardo Vieira, João da Silva e Maximiano Soares da Gama", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43797 (2024-2-6) (Com a devida vénia...Há um primeiro elemento, à esquerda do 'Nino' Vieira,  que não está idenmtificado... O João da Silva é o terceiro elemento.



Casa Comum | Instituição: Fundação Mário Soares|  Pasta: 07198.169.175 | Título: Guia de remessa | Assunto: Envio de 20 caixas com obuses de RPG 7 da delegação do PAIGC em Boké para o depósito de Candjafara. Guia assinada por Antero Alfama | Data: Quarta, 27 de Dezembro de 1967 | Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Guias de remessa (armas, viaturas, etc.) 1967-1971.| Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral | Tipo Documental: Documentos.

Citação: (1967), "Guia de remessa", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40398 (2024-2-6) (Com a devidfa vénia...)


1.  Estamos a chegar ao fim. Estas são algumas das derradeiras páginas ("Depois do 25 de Abril, outros encontros", pp. 276/280) das memórias do Amadu Djaló (Bafatá, 1940-Lisboa, 2015), reproduzidas a partir do manuscrito, digitalizado, do seu livro "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, il., edição esgotada) (*).

O nosso  camarada e amigo Virgínio Briote, o editor literário ou "copydesk" desta obra,  facultou-nos uma cópia digital. O Amadu Djaló, membro da Tabanca Grande, desde 2010, tem já perto de 120 referências no nosso blogue. Tinha um 2º volume em preparação, que a doença e a morte não  lhe permitaram ultimar. As folhas manusctrias foram entregues ao  Virgínio Briote com a autorização para as transcrever. Desconhecemos o seu conteúdo, mas já incentivámos o nosso coeditor jubiliado a fazer um derradeiro esforço para  transcrever, em word, o manuscrito do II volume (que ficou, naturalmente,  incompleto). O Virgínio Briote deu-nos "luz amarela" a esta nossa sugestão... Vamos estar atentos à nossa caixa de correio...


Capa do livro do Amadu Bailo Djaló,
"Guineense, Comando, Português: I Volume:
Comandos Africanos, 1964 - 1974",
Lisboa, Associação de Comandos,
2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.



O autor, em Bafatá, sua terra natal,
por volta de meados de 1966.
(Foto reproduzida no livro, na pág. 149)

Síntese das partes anteriores:

(i) o autor, nascido em Bafatá, de pais oriundos da Guiné-Conacri, começou a recruta, como voluntário, em 4 de janeiro de 1962, no Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama;

(ii) esteve depois no CICA/BAC, em Bissau, onde tirou a especialidade de soldado condutor autorrodas;

(iii) passou por Bedanda, 4ª CCaç (futura CCAÇ 6), e depois Farim, 1ª CCAÇ (futura CCAÇ 3), como sold cond auto;

(iv) regressou entretanto à CCS/QG, e alistou-se no Gr Cmds "Os Fantasmas", comandado pelo alf mil 'cmd' Maurício Saraiva, de outubro de 1964 a maio de 1965;

(v) em junho de 1965, fez a escola de cabos em Bissau, foi promovido a 1º cabo condutor, em 2 de janeiro de 1966;

(vi) voltou aos Comandos do CTIG, integrando-se desta vez no Gr Cmds "Os Centuriões", do alf mil 'cmd' Luís Rainha e do 1º cabo 'cmd' Júlio Costa Abreu (que vive atualmente em Amesterdão);

(vii) depois da última saída do Grupo, Op Virgínia, 24/25 de abril de 1966, na fronteira do Senegal, Amadu foi transferido, a seu pedido, por razões familitares, para Bafatá, sua terra natal, para o BCAV 757;

(viii) ficou em Bafatá até final de 1969, altura em que foi selecionado para integrar a 1ª CCmds Africanos, que será comandada pelo seu amigo João Bacar Djaló (Cacine, Catió, 1929 - Tite, 1971)

(ix) depois da formação da companhia (que terminou em meados de 1970), o Amadu Djaló, com 30 anos, integra uma das unidades de elite do CTIG; a 1ª CCmds Africanos, em julho, vai para a região de Gabu, Bajocunda e Pirada, fazendo incursões no Senegal e em setembro anda por Paunca: aqui ouve as previsões agoirentas de um adivinho;

(x) em finais de outubro de 1970, começam os preparativos da invasão anfíbia de Conacri (Op Mar Verde, 22 de novembro de 1970), na qual ele participaçou, com toda 1ª CCmds, sob o comando do cap graduado comando João Bacar Jaló (pp. 168-183);

(xi) a narrativa é retomada depois do regresso de Conacri, por pouco tempo, a Fá Mandinga, em dezembro de 1970; a companhia é destacada para Cacine [3 pelotões para reforço temporário das guarnições de Gandembel e Guileje, entre dez 1970 e jan 1971]; Amadu Djaló estava de licença de casamento (15 dias), para logo a seguir ser ferido em Jababá Biafada, sector de Tite, em fevereiro de 1971;

(xii) supersticioso, ouve a "profecia" de um velho adivinho que tem "um recado de Deus (...) para dar ao capitão João Bacar Jaló"; este sonha com a sua própria morte, que vai ocorrer no sector de Tite, perto da tabanca de Jufá, em 16 de abril de 1971 (versão contada ao autor pelo soldado 'comando' Abdulai Djaló Cula, texto em itálico no livro, pp.192-195) ,

(xiii) é entretanto transferido para a 2ª CCmds Africanos, agora em formação; 1ª fase de instrução, em Fá Mandinga , sector L1, de 24 de abril a fins de julho de 1971.

(xiv) o final da instrução realizou.se no subsector do Xitole, regulado do Corunal, cim uma incursão ao mítico Galo Corubal.

(xv) com a 2ª CCmds, comandada por Zacarias Saiegh, participa, em outubro e novembro de 1971, participa em duas acções, uma na zona de Bissum Naga e outra na área de Farim;

(xvi) em novembro de 1971, participa na ocupação da península de Gampará (Op  Satélite Dourado, de 11 a 15, e Pérola Amarela, de 24 a 28);

(xvii) 21-24 dezembro de 1971: Op Safira Solitária: "ronco" e "desastre" no coração do Morés, com as 1ª e 2ª CCmds Africanos  (8 morts e 15 feridos graves);

(xviii) Morés, sempre o Morés... 7 de fevereiro de 1972, Op Juventude III;

(xix) o jogo do rato e do gato: de Caboiana a Madina do Boé, por volta de abril de 1972;

(xx)  tem um estranho sonho em Gandembel, onde está emboscado très dias: mais do que um sonho, um pesadelo: é "apanhado por balantas do PAIGC";

(xxi) saída para o subsetor de Mansoa, onde o alf cmd graduado Bubacar Jaló, da 2ª CCmds Africanos, é mortalmente ferido em 16/2/1973 (Op Esmeralda Negra);

(xxii) assalto ao Irã de Caboiana, com a 1ª CCmds Africanos, e o cap cav 'cmd' Carlos Matos Gomes como supervisor;

(xxiii) vamos vê-lo a dar instrução a futuros 'comandos' no CIM de Mansabá, na região do Oio, no primeiros meses do ano de 1973, e a fazer algumas "saídas" extras (e bem pagas) com o grupo do Marcelino, ao serviço do COE (Comando de Operações Especiais), que era então comandado pelo major Bruno de Almeida; mas não nos diz uma única sobre essas secretas missões; ao fim de 12 anos de tropa, é 2º sargento e confessa que está cansado;

(xxiv) antes de ir para CCAÇ 21, como sede em Bambadinca, como alferes 'graduado" (e sob o comando do tenente graduado Abdulai Jamanca, ainda irá participar na dramática Op Ametista Real, contra a base do PAIGC, Cumbamori, no Senegal, em 19 de maio de 1973;  esta parte do seu  livro de memórias  (pp. 248-260) já aqui foi transcrita no poste P23625;

(xxv) no leste, começa por atuar no subsetor do Xime, em meados de 1973;

(xxvi) em setembro de 1973, quando estava em Piche, já na CCAÇ 21, recebe a terrível notícia da morte do seu querido irmão mais novo, Braima Djaló, da 3ª CCmds;

(xxvii)  embora amargurado com a morte do seu irmão mais novo, e cansado, ao fim de 12 anos de tropa e de  guerra, o Amadu Djaló mantem-se na CCAÇ 21, como alferes graduado; vemo-lo agora no início de 1974 em Canquelifá, em reforço da CCAÇ 3545 / BCAÇ 3883 (1972/74);

(xxviii) a CCAÇ 21 está no leste, na região de Gabu, ao serviço do CAOP2, e mais exatamente em Canjufa, quando sabe da notícia do golpe de estado do 25 de Abril em Lisboa; só no dia 27, de manhã, regressa a Bambadinca, onde estava sediada;

(xxix)  ainda antes da extinção da CCAÇ 21 e do  Batalhão de Comandos da Guiné, o Amadu Djaló encontra-se com alguns responsáveis do PAIGC, logpo am maio/junho de 1974: o cabo-verdiano Antero Alfama, em Bambadinca e Xima, e depois na fronteira com o Senergal, com o João da Silva e com o Pedro Nazi...



Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XLIII

Nuvens negras (maio / junho de 1974): ameaças e promessas do PAIGC em relação aos 'colaboracionistas' (pp. 276/280)


Nunca mais vou viver dias assim. Depois de sabermos que tinha havido um golpe militar em Lisboa, aqueles dias a seguir não sei bem como os descrever. Nos últimos dias de abril ou princípios de maio de 1974, encontrei-me frente a frente com o PAIGC, com o cabo-verdiano Antero Alfama, um bom homem. [Em finais de 1967, era delegado do PAIGC em Boké.] 

Na altura ainda todos, brancos e pretos, tinham armas nas mãos.

O Antero Alfama perguntou-me quem eu era, como me chamava. Eu estava acompanhado por um furriel da nossa companhia, a CCaç 21, e no grupo também se encontravam alguns furriéis, cabos e soldados de Bambadinca, negros, da nossa companhia africana.

Abri a conversa assim:

 − A nossa maior preocupação é que nós somos irmãos, andámos na guerra durante muitos anos, houve um muro entre nós que foi agora derrubado. Precisamos de falar com vocês, para nos aproximarmos.

No local estava muita gente e cada vez se juntavam mais pessoas. Então fomos para outro lado, com aquela gente toda atrás de nós.

Antero olhou-me e disse:

 − Olha, Amadu, nós não temos militares, o que temos é guerrilheiros. Amanhã, para formar o Exército da Guiné vocês vão ser precisos. Têm formação militar completa, o que os nossos homens ainda não têm.

O que acabava de me dizer podia ser verdadeiro, mas pareceu-me mais uma saída política. E a conversa, que foi muito amigável, terminou com a promessa de nos voltarmos a encontrar.

No segundo contacto fui com o alferes Sada Candé 
[da CCAÇ 21] ao Xime [onde estva aquartelada a CCAÇ 12], tivemos conhecimento que o Antero Alfama ia lá estar e fomos procurá-lo. Encontrámo-lo, falou connosco e recebeu-nos com boas maneiras.

Depois Alfama foi para Bafatá fazer reuniões com a população e pediu-me, a mim e a outro companheiro meu, que servíssemos de intermediários entre ele e a população. Não tinha ainda suficiente confiança no povo, desconfiava que podia estar gente ligada à DGS que o pudesse matar.

Quatro anos depois, já depois da independência, Antero disse-me que não podia fazer nada por nós, que o Buscardini[1] e o Constantino Teixeira não estavam de acordo com as ideias dele e que tinha pedido transferência para Cabo Verde.

Cassama, um soldado nosso do esquadrão de Bafatá, tinha tido a sorte de, tempos atrás, ter ganho a lotaria nacional e pediu para sair da tropa. Com o dinheiro que lhe saiu,  comprou uma carrinha
[ de caixa aberta]  aberta e passou a utilizá-la no transporte de pessoas e cargas entre Bafatá e Cambajo, na fronteira.

Um dia encontrou o alferes Demba Chamo Seca e disse-lhe que tinha estado com o comandante João 
 [da] Silva[2] e que ue lhe tinha dito que precisava de falar com alguns oficiais dos Comandos africanos. 

Por mim, não via inconveniente, tinha até interesse em ouvir o que tinha para nos dizer. O Demba concordou e ficou combinado encontrar-nos no dia seguinte à noite.

Um problema familiar imprevisto impediu a ida do Demba, mas ele apareceu à hora combinada, entregou-me a fotografia dele e disse que o que eu combinasse ele assinava também, que procedesse como se ele estivesse presente. 

Vesti-me à civil, tomei lugar na carrinha e rumámos a Cambajo. Daqui fomos a pé até a uma tabanca senegalesa.

À minha frente estava um homem de aspecto afável, mais ou menos da minha idade, o comandante João Silva, um balanta muito prestigiado entre o PAIGC. Apertámos as mãos e convidou-me a acompanhá-lo.

Antes de mais, disse-lhe que me representava a mim e ao Demba, que por impedimento familiar não podia estar presente e entreguei-lhe a fotografia, conforme o Demba me tinha pedido. 

 − Faça de conta que o Demba está aqui comigo  − acrescentei.

Entrámos numa sala, eu, Cassama, o motorista que me tinha levado, o Maude Embaló, conselheiro, um comissário político que não me lembro do nome, o comandante João da Silva, o Pedro Nazi, responsável pela segurança da zona,  e vários soldados armados do PAIGC.

Depois de ter dito o meu nome, que era alferes dos Comandos africanos, feita a minha apresentação, o João da Silva virou-me para o Pedro Nazi e disse-lhe:

 
 − Então, já ouviste?!   − e  convidou-o a falar.

Durante alguns momentos houve ali uma hesitação, o militar, o João da Silva, queria que fosse o segurança a falar primeiro, o homem da segurança, o Pedro Nazi, queria que fosse o militar a abrir a conversa. 

Resolvida esta cerimónia, o Pedro Nazi começou assim:

 
− Está bom. As minhas palavras… eu não tenho muito a dizer. Este camarada que está aí sentado nunca se lembrou que este dia chegava. Para mim, Pedro Nazi, um trapo no ombro não me engana para matar os meus irmãos. Branco não me enganava com dinheiro na mão para eu matar os meus irmãos. Os Comandos fizeram grandes crimes nas zonas libertadas. Se os Comandos entravam numa dessas zonas, essas zonas andavam a chorar três ou quatro meses, um pai que perdeu um filho, o filho que perdeu o pai, uma mulher que perdeu o marido, um homem que perdeu a esposa. Foram matanças, crimes! Os brancos têm número de militares superiores a nós, os brancos têm carros, carros de combate, aviões, mas Deus deu-nos razão e os brancos perderam a guerra, agora hoje está aí sentado para falarmos de Guiné! Ele nunca pensou, nunca passou pela cabeça dele que algum dia viria ter connosco para falarmos da nossa terra, da Guiné. Eu já falei o que tinha a falar.

Então quando João da Silva se estava a preparar para falar, eu, que fiquei muito chocado com as palavras do Pedro Nazi, disse:

 
− Desculpa, João, eu quero responder às palavras que ouvi. 

E enfrentei os olhos do Pedro Nazi:

 Camarada Pedro, é ainda muito cedo para falar da maneira que o camarada falou agora. Muito cedo. Nós não viemos cá saber o que se passou. Porque se nas zonas libertadas vocês apresentam mil órfãos,  nós também vos mostramos órfãos aqui na zona. O chicote da guerra é comprido, muito comprido. Quando quer bater no inimigo também pode tocar em inocentes. Não levámos em consideração os órfãos e as viúvas que vocês fizeram cá. Foi a guerra. Tenho a certeza que as bombas que vocês lançaram em Bafatá, aquelas bombas mataram população inocente. A vossa ideia era matar militares, mas mataram civis. Nós, quando entrámos nas zonas libertadas, quando havia disparos contra nós, disparámos também e matámos civis. O povo das zonas libertadas não nos pode julgar porque sempre considerou os militares como criminosos e por isso quando viam tropa fugiam. E o povo das zonas urbanas também não vos pode julgar, nem considerar o PAIGC criminoso. Por isso, vamos deixar esta parte de lado, camarada.

Logo, João da Silva, gritou: "Viva PAIGC, viva PAIGC!" e as pessoas que estavam com ele gritavam: "Viva PAIGC!"...

E João da Silva continuou:

Hoje fiquei satisfeito, já sei que nós vamos ter a independência [estavam a decorrer as negociações de paz, bilaterais, primeiro em Londres e depois em Argel] .

Temos homens como este no Exército Português, que reconhece o passado, porque nós não somos militares, somos guerrilheiros. Exército são eles. Este irmão esteve onze anos num lado, eu estive no outro, um contra o outro. Ele não morreu até hoje, eu também não, estamos aqui sentados a conversar, o que nós pedimos é que não haja mais motivos para ele ou eu fazermos mais guerra. Fiquei muito satisfeito. A única coisa que peço ao camarada é coragem, é coragem que eu te peço.

Com as palavras do comandante João da Silva fiquei mais satisfeito, mais aliviado, mas houve uma altura, quando estava a falar o Pedro Nazi, eu perguntei a mim próprio, por que é que eu tinha vindo. O Cassama, o motorista que me tinha levado e que estava sentado ao meu lado num banco comprido, quando comecei a falar,  vi-o escorregar do banco para o chão e enfiar a cabeça entre as mãos.

No fim do encontro, Cassama estava com pressa de sair dali.

- Vamos embora, vamos regressar. Tenho que levar os sapatos que o João da Silva me encomendou porque não lhe servem, tenho que trazer o outro número ainda hoje. Vamos, Amadu.

João da Silva, o Pedro Nazi e a comitiva acompanharam-nos até à fronteira. Apertámos as mãos e abraçámo-nos. Recordo que Pedro me recomendou coragem.

Este encontro ocorreu em fins de maio ou nos primeiros dias de junho 
[de 1994] .

(Continua)
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Notas do autor ou do editor literário, Virgínio Briote:

[1] Nota do editor: António Buscardini, depois da Independência, foi considerado por muitos como um dos principais responsáveis (juntamente com Constantino Teixeira) pelas prisões e pelos fuzilamentos sumários que ocorreram durante 1975, de militares e civis que tinham colaborado com as tropas portuguesas.

Na sequência do golpe de 1980, que levou 'Nino' Vieira ao poder, esteve preso dois anos. Na altura em que foi detido, era o Secretário-Geral do Comissariado de Estado do Interior. Morreu de doença, pouco tempo depois. 

(Virgínio: esta informação é falsa; o Buscardini morreu na noite do golpe de Estado de 14/11/1980. LG)

[2] Do PAIGC, que tinha feito a guerra na zona nordeste, na fronteira com o Senegal.

(Seleção, fixação / revisão de texto, negritos, links, fotos, notas adicionais entreparènteses retos, título, subtítulo, síntese das partes anteriores: LG)
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quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25104: Casos: a verdade sobre... (42): O "making of" do livro do Amadu Djaló (1940 - 2015), "Guineense. Comando, Português" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, il.) (Virgínio Briote)



Leiria > Monte Real > Ortigosa > Quinta do Paul > IV Encontro Nacional da Tabanca Grande > 20 de Junho de 2009 > Em primeiro plano, o Virgínio Briote e o Amadu Djaló, um e outro muito acarinhados por todos. Não sei o que é o que Virgínio, um homem sábio, europeu, estava a pensar, mas possivelmente estava a organizar a sua resposta à questão, pertinente, levantada pelo Amadúnico,    outro homem sábio, africano: 

"Os portugueses, a alguns povos, deram-lhes novos nomes e apelidos, livros para estudar e consideraram-nos civilizados. Desta civilização não precisávamos, mas faltava-nos a cultura, porque a cultura, de onde sai não acaba e de onde entra não enche. E no nosso Alcorão está tudo, moral, comportamento cívico e civilização e nós não precisávamos de ser civilizados, o que nos faltava era escola para aumentar os nossos conhecimentos"...




Projecto de capa do livro do Amadu Djaló, membro da nossa Tabanca Grande, já entretanto alterado... Finalmente, e depois de um longo calvário, chegam ao fim os árduos trabalhos do "making of"  do livro, da história de vida do Amadu que teve, no Virgínio Briote, mais do que 'copy desk', um editor literário, um amigo, um camarada, um confidente, um cúmplice, um advogado de defesa, um verdadeiro defensor dos seus interesses, editoriais, morais  e materiais. (...Na edição do 1º volume, que esteve cargo da Associação de Comandos, estava-se então, em fevereiro de 2010,  na fase final de revisão de provas tipográficas. O Virgínio referiu nessa altura a excelente colaboração de dois camaradas nossos, o Carlos Silva e o Manuel Lema Santos. (...)  (LG) (*)


Lisboa >  Museu Militar >  15 de Abril de 2010 > Lançamento do livro do Amadú Bailo Djaló,  membro da nossa Tabanca Grande, "Comando, Guineense, Português" (Lisboa: Associação dos Comandos, 2010, 229 pp., 150 fotos, preço de capa: 25 €). 

O Amadu e a seu lado a filha (e o neto, que não se vê na foto)...  Foi pena que, entretanto,  não tenha saído em vida o 2º volume, com as aventuras e desvanturas do autor, a seguir à independência do seu pais. Vivia então em Portugal, na Amadora. Acabou a sua carreira militar como alf comando graduado, na CCAÇ 21, comandada pelo ten cmd grad Jamanca, um dos primeiros camaradas guineenses a ser fuzilado pelo PAIGC.


Lisboa > Museu Militar > 15 de Abril de 2010 > Lançamento do livro do Amadu Bailo Djaló, membro da nossa Tabanca Grande, aqui na foto com o presidente da Associação de Comandos, dr. José Lobo do Amaral... 

Nas suas palavras de abertura, Lobo do Amaral  fez questão de, em nome da associação,  agradecer "ao sócio comando Virgínio António Moreira da Silva Briote a disponibilidade, competência e dedicação com que acompanhou esta Memória, sem a qual não teria sido poossível esta edição"... 

No final, também nos agradeceu a divulgação dada pelo nosso blogue e manifestou o seu regozijo pela entusiasmo com que foi recebida o 1º volume das memórias do Amadu bem pelo pluralismo das abordagens dos oradores.

Fotos (e legendas): © Luis Graça (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


1. Comentário de Virgínio Briote ao poste P25087 (**):

O Amadu depois do fim do Gr Cmds  "Fantasmas",  do Maurício  Saraiva, voltou para o QG e foi o Luís Rainha que, sentindo que o seu grupo tinha poucos guineenses experientes, o foi lá buscar e trouxe também o Kassimo. 

O Amadu distinguia-se pelas maturidade e pelo bom senso na análise das situações.

Quando o reencontrei em Lisboa, aí por 2005 (o meu anos da reforma), falou-me das recordações que tinha da sua Guiné, da sua família. Pouco tempo depois o Presidente da Assocaição de Comandos  telefonou-me, convidando-me a visitar as instalações na Duque d'Ávila. 

No contacto que tivemos pediu-me um artigo sobre os Gr Cmds do CTIG dos anos 1965/66. Foi pouco depois da publicação do artigo que me voltou a telefonar para novo encontro na Associação. E foi nesse encontro que me falou dos dois maços de folhas A4, que eram uma espécie de diário do Amadu Jaló. 

E depois, foi a leitura ou tentativa de leitura porque havia muitas partes ilegíveis para mim, o reencontro com o Amadú, a visita a casa dele, e o programa que estabelecemos para o esboço do livro. 

Seguiu-se o trabalho, encontros em minha casa, almoçávamos juntos, esclarecíamos dúvidas e andávamos para a frente. Ele fazia questão do livro ser "exactamente" o que tinha escrito, sem nenhum desvio. Foi um trabalho muito longo, por vezes ele adoecia ou tinha alguém em casa doente ou visita da Guiné, o que fez com que dessemos o trabalho pronto para entrega, quase um anos depois. 

O que se passou depois foram divergências, talvez o acordo entre as partes não tenha ficado bem claro, o que levou o Amadú a ficar um tanto queixoso da Associação de Comandos..

Amadu Djaló
Ficou no meu espírito a ideia que era um Homem. Adorava a sua Família e a sua Guiné. E estava numa fase de grande tristeza pela falta de rumo da vida política na sua Terra. Nos últimos meses da sua vida as dificuldades respiratórias acentuaram-se. Levei-o várias vezes ao Hospital Amadora-Sintra, deram-lhe alta e não havia ninguém para o ir buscar. Era inverno, peguei no sobretudo e fui buscá-lo ao hospital para o levar para casa. Não tinha roupa, deixei-o ficar em casa bem agasalhado.

Tempos depois foi novamente internado no Hospital de Belém e lá encontrei o cor Raul Folques em visita a um familiar muito chegado e lhe disse que ia visitar o Amadú. 

Vários episódios se repetiram até que ele queria escrever outro livro, eu disse-lhe que não contasse com a minha ajuda por motivos facilmente compreensíveis.  Ofereceu-me um molhe de folhas A4 e disse para eu fazer o que quisesse com elas. Morreu dias depois e, conforme nos tinha pedido, queria ser enterrado em Bafatá junto aos Pais.

Para finalizar este comentário que já vai longo, o Amadu Djaló, amava a sua Família, a Guiné e Portugal.
V Briote

Nota: este comentário vai sem revisão. Desculpem.


2. Comentário adicional de Joaquim Luis Fernandes ao poste P25087 (**)

Não sei porquê, mas ao acabar de ler o comentário do camarada Virgínio Briote, fui acometido por um sentimento de profunda dor, que me arrasou os olhos de água.

A dor e os dramas que a guerra tece! Quem nela andou e sofreu jamais os esquece.

Para o Amadu Djaló que partiu, que descanse em paz. Para todos nós ainda vivos, que não nos falte a paz.

Que saibamos optar sempre pela concórdia e pela paz E a exemplo dos Maiores, amar a Família e a Pátria Mesmo sentindo que algumas vezes nos é ingrata.

Abraços Fraternos
JLFernandes


3. Em complemento deste importante esclarecimento feito pelo Virgínio Briote, e que editamos na série "Casos: a verdade sobre..." (***): comentário do editor LG ao blogue criado em dezembro de 2010 pelo filho do Amadu Djaló, que vivia em Londres, Idriça Djaló, e que infelizmente não teve continuidade, embora ainda se mantenha "on line" (****)


Meu camarigo (camarada e amigo) Amadu:

Soube pelo teu mano Briote que estavas agora em Londres, ao pé dos teus filhos. Nós estamos bem onde estão os nossos entes queridos. Desejo-te boa estadia e boa saúde. Esse clima não é o melhor para os teus problemas respiratórios. 

Em contrapartida, tens o carinho e o amor da tua família. Na vida nunca temos tudo. Sei também do teu desejo de ainda voltar à tua terra, à nossa querida Guiné. Vamos manter acesa a chama da esperança. Isso vai concretizar-se, esse teu sonho. 

Até lá ficamos também a aguardar a publicação do teu 2º livro de memórias. É importante que o completes. Confia no Briote, que tem sido mais do que teu amigo e irmão. E confia em nós, os membros do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, onde tens muita gente que te estima, admira e leu o livro. (...) . 

Parabéns por este blogue que te abriu o teu filho Adriça. Mas é preciso alimentá-lo... Prometemos vir cá de vez em quando... 

Um Alfa Bravo (ABraço). Mantenhas para toda a família. Luís Graça
 
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 25 de fevereiro de  2010 > Guiné 63/74 - P5883: Biliografia de uma guerra (55): Lançamento, previsto para fins de Março, do livro do Amadu Djaló, Guineense, Comando, Português: 1º Volume: Comandos Africanos, 1964-1974 (Virgínio Briote)


(***) Último poste desta série > 17 de janeiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25079: Casos: a verdade sobre... (41): "Canquelifá era o seu nome" - Uma batalha de há 50 anos (José Peixoto, ex-1º cabo radiotelegrafista, CCAÇ 3545 / BCAÇ 3883, 1972/74) - IV (e última) Parte: O nosso batismo de fogo, na bolanha do Macaco-Cão, em 29 de agosto de 1973

(****) Vd. poste de 6 de dezembro de  2010 > Guiné 63/74 - P7391: Blogues da nossa blogosfera (40): Amadu Bailo Djaló, agora em Londres: Guineense, Comando, Português (Idriça Djaló)

sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25087: S(C)em Comentários (26): Os últimos anos do Amadu Djaló foram de amargura e arrependimento? (António Graça de Abreu / Joaquim Luís Fernandes / Cherno Baldé / João Crisóstomo)


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > O autor, em Bafatá, sua terra natal, por volta de meados de 1966. (Foto reproduzida no seu livro de memórias, na pág. 149).


1. Estamos quase a acabar a publicação das memórias do Amadu Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015)... Sem nos queremos antecipar ao que nos falta ler, e perceber melhor o fim da sua hstória de vida como militar e como homem, aqui ficam as últimas três ou quatro linhas com que encerra o livro, "
 Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada).

(...) "Deixámos o passado para trás. Por quê o ódio? E a vingança? Qual é o destino da vingança? É a guerra! Qual o destino final da guerra? Estropiados, sangue, lágrimas, pobreza, suor, trabalho.

Vai demorar muitos anos para acabar com a pobreza." (...)


Entretanto, fizemos uma seleção de comentários ao Poste P25009 (*), em que o Cherno Baldé escreveu: "os últimos anos do Amad Djaló (...) devem ter sido de uma grande amargura e de arrependimento", afirmação que deu origem a vários comentários, de que aqui vai uma seleção (**). Falta-nos o testemunho fundamental do seu editor literário, camarada e amigo, o nosso coeditor jubilado Virgínio Briote:

(i) António Gaça de Abreu:

Conheci o Amadu Djaló, aqui em Lisboa, pouco antes dele partir, na viagem definitiva, e não me pareceu ser uma pessoa marcada por grande amargura e arrependimento, coisas que também não transparecem nos seus textos que o Virginio Briote alinhou.

Não estará aqui o Cherno Baldé a dar uma no cravo e outra na ferradura?

Abraço | António Graça de Abreu | 28 de dezembro de 2023 às 22:38



(i) Joaquim Luis Fernandes:

Este comentário, do respeitável amigo Cherno Baldé, não é de fácil compreensão.

Que havia oficiais, alguns superiores, que deixavam muito a desejar, no seu caráter humanista e de militares exemplares, nada a dizer! Até eu, disso me apercebi, infelizmente.

Que os Soldados Comandos da Guiné eram homens destemidos, leais e valorosos, ao serviço do exército português na Guiné, com várias motivações para se alistarem no BCMD da Guiné, é um facto bem evidenciado.

Agora dizer, que ficariam melhor ao lado do PAIGC, por troca com os guerrilheiros do PAIGC, que atentaram contra a vida de Amílcar Cabral... não entendo!

O que tinham de comum, com o exército português, Inocêncio Kanie e os seus companheiros, que vindos da base naval no Mar Negro, da antiga União Soviética, e regressados a Conákri se encontraram com Momo Turé e outros seus camaradas, para se constituirem como grupo conspirador?

29 de dezembro de 2023 às 11:32



(iii) Cherno Baldé:

Caros amigos,

Vocês, na qualidade de antigos combatentes, veteranos, que sentiram no coração, na carne e no osso as agruras da guerra da Guiné, estão melhor colocados para ajuizar dos desabafos e sentimentos de um ex-colega embora esteja convencido que poucos pudessem estar na sua pele de ex-soldado 'comando', a quem podiam atirar em zonas quase desconhecidas e de perigo extremo como o aqui relatado caso da Caboiana onde até os bravos comandos não estiveram à altura de cumprir com o seu lema sagrado de " nunca deixar ninguém para trás". Muito triste.

Também, parece que a política de reformas no caso dos militares na Guiné contrasta com a portuguesa, pois o mais frequente é promoverem o candidato a um escalão superior de forma a atenuar as condições de vida, embora saibamos que não há termos de comparação entre os dois países, mas pelo menos o tratamento parece mais humano e aceitável.

Em 1998, durante a guerra civil em Bissau, desloquei-me à cidade fronteiriça de Kolda em visita familiar e, ao constatar as deploráveis condições sócio-económicas em que viviam, sem luz, sem água, eu disse-lhes: "Vocês têm todo interesse em se juntarem aos rebeldes da MDFC". 

No dia seguinte agradeceram-me educadamente e pediram-me para regressar ao meu país, o que fiz sem hesitar, mas sem quaisquer remorsos.

Cordialmente | Cherno Baldé | 29 de dezembro de 2023 às 12:16



(iv) Joaquim Luis Fernandes

Caro amigo Cherno, acredita que aceito e compreendo o teu desabafo! É um facto que nem sempre as chefias do exército português respeitaram e protegeram os seus soldados, e de forma mais evidente. os oriundos do território guineense.

Nem todos honraram a farda que envergavam e a bandeira que juraram defender. Tal como no PAIGC havia traidores à causa que defendiam, também os havia infiltrados nas Forças Armadas Portuguesas na Guiné. A forma como se abandonaram os seus soldados guineenses, diz muito dessa atitude de desrespeito e mesmo de traição.

Para ti, a tua família e os amigos da Guiné-Bissau, faço votos de um novo ano de 2024, com boa saúde, paz e prosperidade.

Abraços fraternos | JLFernandes | 30 de dezembro de 2023 às 22:47



(v) João Crisóstomo:

Nova iorque, às 04.58 da manhã do dia 17 de Janeiro de 2024.

Ler os comentários de posts é uma das coisas que gosto de fazer, pois eles de alguma maneira nos transmitem os sentimentos muito pessoais de quem os escreve.

Estes e outros comentários deixam-me triste pela amargura e sofrimento evidentes em muitos de nós ainda hoje existentes passados 50 anos.

Não sei o que dizer para tentar "suavizar" os corações e mentes de quem escreve estas palavras. É que também eu choro quando me lembro do muito que se sofreu , especialmente daqueles que dum lado ou outro acreditavam que deviam lutar, prontos a dar a sua vida por aquilo em que acreditavam, incluindo a amizade que unia muitos de nós. Dum modo especial os que o sofreram em circunstancias trágicas, fora e longe de momentos de luta armada , mas barbaramente mortos em momentos fora de combate, como sucedia por vezes durante os muitos anos que a luta durou, especialmente em situações de vinganças e represálias.

É com respeito e dor que vivo também estes momentos de dor e me associo a todos os que escrevendo e lembrando, como estou fazendo agora, estejam aida hoje à procura de paz.
"Estou convosco" é tudo que posso dizer.

João Crisóstomo | 17 de janeiro de 2024 às 10:02

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Notas do editor LG:

(*) Vd. poste de 28 de dezembro de 2023 > Guiné 61/74 - P25009: S(C)em Comentários (24): Os últimos anos do Amadu Djaló (1940-2015) devem ter sido de uma grande amargura e de arrependimento (Cherno Baldé, Bissau)

(**) Último poste da série > 17 de janeiro de 2024 > Guné 61/74 - P25078: S(C)em Comentáios (25): Salvemos a nossa correspondência de guerra, e nomeadamente os aerogramas que escrevemos (amarelos) e que recebemos (azuis)