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sábado, 14 de junho de 2008

Guiné 63/74 - P2941: A guerra estava militarmente perdida? (17): E. Magalhães Ribeiro

Guiné - Vitória ou Derrota?


Eduardo José Magalhães Ribeiro
Ex-Furriel Miliciano de Operações Especiais (Ranger)
da CCS do BCAÇ 4612/74 (Mansoa)


Da esquerda para a direita, os rangers Capitão Sampedro e os Furriéis Chapouto, Ribeiro, Reis e Casimiro. Montemor-o-Novo > Ameira >Hotel da Ameira > 14 de Outubro de 2006 > 1ª reunião da tertúlia Luís Graça & Camaradas da Guiné.


Uma questão polémica que se levanta nas conversas, de vez em quando, entre aqueles que de algum modo se interessam pelo tema -"Guerra do Ultramar: rente da Guiné", é se a tínhamos perdido militarmente no terreno, ou não.

Felizmente, são vários os intervenientes neste conflito que têm vindo a participar com as suas experiências e os seus testemunhos, escritos e fotográficos, com o estudo e análise literária de relatos, estórias, fotos, etc., na catarse desta face da guerra que atravessámos em África.

Na minha modesta opinião pessoal, atrevo-me a dizer que qualquer esboço de uma resposta a esta dúvida permanecerá eternamente inconclusiva. Felizmente para mim, por motivos óbvios (caso a guerra continuasse eu estava condenado a estar na Guiné pelo menos nos anos de 1974 e 1975), já que, como todos sabemos, todas as hostilidades, naquela pequena parcela de terra, terminaram com o 25 de Abril de 1974.


Cópias do jornal O Diabo, de data não referenciada. Entrevista ao Comandante da Marinha Rebordão de Brito.


Para basear a afirmação contida no parágrafo anterior, junto cópias de um documento que faz parte da diversa documentação que eu possuo no meu arquivo pessoal, sobre este famoso, mítico e inconclusivo capítulo da recente História de Portugal.

Muito agradecido ficava que me comunicassem, se alguém conhece algum desmentido oficial e escrito, sobre as afirmações contidas no dito documento, pelas entidades máximas da Guiné pós-libertação.

Deixo, à análise e conclusão pessoal de cada um, a evidência histórica dos factos relatados, pouco ou nada explorados nos debates, colóquios e seminários a que tenho assistido.

O artigo foi publicado no jornal O Diabo.
___________

Nota de vb:


Vd. artigos relacionados em:
13 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2937: A guerra estava militarmente perdida? (16): António Santos,Torcato Mendonça,Mexia Alves,Paulo Santiago.
12 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2932: A guerra estava militarmente perdida? (15): Uma polémica que, por mim, se aproxima do fim (Beja Santos)
12 de Junho de 2008> Guiné 63/74 - P2929: A guerra estava militarmente perdida? (14): Estávamos fartos da guerra e a moral nã era muito elevada. A. Graça de Abreu.

3 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2913: A guerra estava militarmente perdida? (13): Henrique Cerqueira.
31 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2907: A guerra estava militarmente perdida? (12): Vítor Junqueira.
^
29 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2899: A guerra estava militarmente perdida? (11): Correspondência entre Mexia Alves e Beja Santos.

28 de Maio de 2008 >Guiné 63/74 - P2893: A guerra estava militarmente perdida? (10): Que arma era aquela? Órgãos de Estaline? (Paulo Santiago)

27 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2890: A guerra estava militarmente perdida? (9): Esclarecimentos sobre estradas e pistas asfaltadas (Antero Santos, 1972/74)

25 de Maio > Guiné 63/74 - P2883: A guerra estava militarmente perdida ? (8): Polémica: Colapso militar ou colapso político? (Beja Santos)

[Por lapso, houve um salto na numeração, não existindo os postes nº 7 e 6 desta série ]

22 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2872: A guerra estava militarmente perdida ? (5): Uma boa polémica: Beja Santos e Graça de Abreu

15 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2845: A guerra estava militarmente perdida ? (4): Faço jus ao esforço extraordinário dos combatentes portugueses (Joaquim Mexia Alves)

13 de Maio de 2008 > Guiné 73/74 - P2838: A guerra estava militarmente perdida ? (3): Sabia-se em Lisboa o que representaria a entrada em cena dos MiG (Beja Santos)

30 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2803: A guerra estava militarmente perdida ? (2): Não, não estava, nós é que estávamos fartos da guerra (António Graça de Abreu)

17 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2767: A guerra estava militarmente perdida ? (1): Sobre este tema o António Graça de Abreu pode falar de cátedra (Vitor Junqueira)

quinta-feira, 5 de junho de 2008

Guiné 63/74 - P2917: Com os páras da CCP 122/BCP 12 no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (2): Quase meia centena de mortos... Para quê e porquê ?


Capa do livro de Carmo Vicente - Gadamael: memórias da guerra colonial. 2ª ed. Lisboa: Caso. 1985. 110 pp. Prefácio de Manuel Geraldo.


Foto: ©
Jorge Santos (2007). Direitos reservados.


1. Continuação da publicação de um excerto do livro Gadamael (Edições Ré: Cacém, 1982), de Carmo Vicente (*), ex-1º sargento paraquedista da CCP 122/BCP 12, destacado para Gadamael em Junho de 1973 (**):


1. Extracto de VICENTE, Carmo - Gadamael. Cacém: Edições Ró. 1982. pp. 97-105. 

Excerto enviado pelo historiador guineense Leopoldo Amado. De acordo com a nossa orientação editorial, optámos por não publicar as passagens em que o autor faz críticas ao comportamento humano, disciplinar ou operacional de camaradas seus... As passagens omitidas (incluindo aquelas em que o autor indentifica pelo apelido camaradas que tê, direito à reserva de privacidade e ao anonimato] vêm assinaladas com parênteses rectos: [...].

 Com devida vénia ao autor e à editora. Revisão e fixação do texto, comentários e subtítulos: LG.




(Continuação)


(ix) Mais de duas dezenas de mortos já tinham ido para as salgadeiras


O dia da chegada [a Gadamael], gastámo-lo abrindo novas valas para nos enterrarmos e aprofundando as já existentes a fim de melhorar aqueles abrigos rudimentares. Foi um trabalho difícil. Tivemos que cavar de rastos, com granadas e foguetões rebentando por todo o lado, por vezes às seis e sete de cada vez, o que não deixava dívidas sobre o poder de fogo que o PAIGC tinha no local e estava disposto a empregar contra aquele objectivo.

Encolhidos dentro das valas, procurávamos não deixar nenhuma parcela do corpo à vista, pois todo o terreno no exterior era zona de morte. Viam-se por todo o lado, animais mortos, que pertenciam à população e que deambulavam por ali, indiferentes à metralha. Mas não eram só os animais que morriam. Dentro das valas, caíam granadas que matavam homens.

Mais de duas dezenas de mortos tinham já ocupado outros tantos caixões, os mesmos que nessa manhã tinham viajado connosco de Bissau. Havia também vários feridos graves que foram evacuados para Cacine em botes de borracha ou sintex (barcos de fibra semelhantes a banheiras completamente inadequados a qualquer tipo de evacuação e só usados por ser um material extremamente barato, concebidos por alguém incapaz de pensar no bem-estar do seu semelhante), onde os esperava o helicóptero que os transportaria ao hospital Militar de Bissau.

O trajecto Gadamael-Cacine em tal transporte devia de ser terrível para os feridos. Eram mais de vinte quilómetros aos saltos pela crista das ondas. Nunca cheguei a saber se algum dos feridos graves morreu devido à maneira como fora evacuado. A nossa missão terminava no momento em que o metíamos no bote. A partir daí perdíamos-lhe completamente o rasto.

Os bombardeamentos continuavam. Os guerrilheiros faziam alguns intervales de dez, quinze minutos, começando e acabando quando menos se esperava, mantendo-nos numa tensão permanente. Era uma táctica desgastante utilizada em qualquer luta de guerrilha, que os combatentes do PAIGC muito bem conheciam, tentando tirar dela o maior partido possível.

O local que calhou ao meu pelotão era o pior de todo o quartel. Junto de nós caiam granadas de perfuração e superfície, à direita e à esquerda da vala, com as primeiras a enterrarem-se profundamente no solo para depois rebentarem, levantando aluviões de terra que nos ia cair em cima, deixando-nos parcialmente soterrados.

É difícil explicar, a quem nunca viveu a guerra, o que significa estar dentro de uma vala e por vezes fora dela, ouvindo cair granadas de morteiro de cento e vinte milímetros, sem poder evitar de pensar que a próxima nos vai cair em cima da cabeça. Só quem viveu esses momentos pode avaliar o medo que se sente a aproximação de um desses projécteis, caindo de uma altura superior a dois mil e quinhentos metros: é uma granada de dezoito quilos que ao cair produz um som agudo e prolongado que se vai acentuando à medida que se aproxima do solo. Só o autodomínio e a experiência evitam que nos levantemos e fujamos para outro local, o que poderia ser fatal. Foi assim que pereceram a maior parte dos soldados, mortos em Gadamael.

Pior do que aguentar dentro das valas, eram porém, as saídas que a companhia tinha de efectuar para patrulhar a zona. A qualquer passo, podíamos rebentar uma mina ou tropeçar numa armadilha e, o que era bem pior, apanhar com um grande grupo de guerrilheiros do PAIGC pela frente, superior a nós em número e armamento.



(x) Sem helicópteros para evacuações, e o apoio dos Fiat só acima dos seis mil pés



Por essa altura, não se fazia a evacuação de feridos através de héli. Era perigoso arriscar uma máquina que custava alguns milhares de contos, sabendo nós que a juntar a isso havia o medo do piloto que não estava disposto a entrar naquele vespeiro para livrar da morte um indivíduo qualquer. Era uma troca de que não estava disposto a fazer, mesmo só no campo das hipóteses.

Assim qualquer de nós que fosse ferido gravemente, apenas lhe restava morrer, já que o único transporte que podia contar para a sua evacuação, eram as costas dos seus companheiros até ao quartel e daí o bote de borracha dos fuzileiros até Cacine e pelo qual tinha de esperar, o que chegava a levar várias horas. Foi desta maneira que o Martins, quase morreu, apesar de ter sido ferido ligeiramente numa perna. Não era um ferimento grave, mas levou um tempo infinito para chegar ao hospital.

O apoio aéreo era quase nulo e de nenhum efeito. Os pilotos de jactos, na sua grande maioria de patente elevada, não arriscavam a descida para baixo dos seis mil pés (dois mil metros, aproximadamente). Altura que tornava o bombardeamento ineficaz, sem outro efeito para além do barulho com o qual os guerrilheiros do PAIGC não se impressionavam mesmo nada, continuando impávidos e serenos o ataque ao quartel enquanto os seis G-91 se afadigavam a largar bombas ou a metralhar lá do alto. [...] 


(xi) Uma tremenda emboscada de 45 minutos, com 18 feridos graves


Chegávamos dos patrulhamentos completamente arrasados de cansaço e com os nervos a estoirar, para de seguida metermo-nos nas valas. Era um verdadeiro inferno. Os bombardeamentos eram cada vez mais intensos e já não podíamos sair da vala para fazer as nossas necessidades fisiológicas sem correr o risco de levar com algum estilhaço ou, na melhor das hipóteses, ter de fugir para a vala com as calças na mão. A maioria adoptava então o sistema menos perigoso: fazia tudo dentro da vala e mandava depois pela borda fora, até ter possibilidade de fazer desaparecer, definitivamente, os detritos.


Um RPG-2, com o respectivo porta-granadas. Em russo: Ruchnoi Protivotankovii Granatomet (RPG-2). Uma arma temível que data do princípio dos anos 50. Deixou, entretanto, de ser usada pelo exército russo. Mas foi muito popular entre os exércitos de guerrilha em todo o mundo. Era a bazuca dos pobres... É uma arma muito leve (tubo= 2,86kg.; tubo + granada= 4,48 kg.) e de fácil manobra, ideal tanto para a guerrilha urbana como para o combate no mato. Alcance efectivo= 100 metros (LG).

Fonte: ©
The Sword of Motherland Foundation (2005), com a devida vénia.


Foi num desses patrulhamentos, quando já estávamos a menos de duzentos metros do arame farpado do quartel, que sofremos uma grande emboscada, em que a companhia ficou toda dentro da zona de morte. O contacto deu-se paralelo à coluna e a menos de vinte metros. Foi tremendo. Os guerrilheiros com armamento mais sofisticado e em maior quantidade. Os RPG-7, os RPG-2, as Degtyarev com tambores de cento e vinte munições (que nunca encravavam), os morteiros de sessenta milímetros, batiam-nos com uma precisão incrível.

No que diz respeito a esta última arma, era verdadeiramente fenomenal. Só um perito muito bem treinado poderia fazer fogo certeiro a tão curta distância, sem correr o risco de a granada cair na sua posição. Foi no entanto, o RPG-2 (***) que mais feridos nos provocaram.

Durou cerca de quarenta e cinco minutos este dilúvio de fogo e metralha. De repente a batalha acabou deixando de se ouvir qualquer ruído. Como se nunca por ali tivessem passado, os guerrilheiros retiraram em boa ordem, cumprindo à risca os princípios da guerrilha de Mao: atacar, ter o melhor êxito possível com o menor número de baixas e retirar sem deixar rasto.

Para nós, o rescaldo da emboscada foi terrivelmente desanimador: dezoito feridos graves. E só não tivemos nenhum morto por um desses simples acasos da sorte que, por vezes, acontecem em combate.

O PAIGC deve ter exultado com esta vitória, conseguida em pleno dia, quase dentro de uma base inimiga com um efectivo de mais de quatrocentos homens, entre os quais duas companhias de tipo especiais. Isto tudo sem sofrerem qualquer baixa. Esta última certeza advém do facto de, dois dias depois destes acontecimentos, termos passado pelo local e não virmos o mais leve indício de sangue, coisa que deixa sempre marcas no solo ou nas folhas inferiores dos arbustos, por mais que se deseje ocultar a sua existência.


(xii) Enfiados nas valas, com o moral em baixo


Os feridos resultantes da emboscada foram evacuados para Cacine, nos tais botes de borracha e daí para o Hospital Militar de Bissau. Nós ficámos outra vez dentro das valas com o moral ainda mais em baixo. A emboscada tinha actuado também nesse sentido, nenhum de nós acreditou até aquela dia que os guerrilheiros se atrevessem a atacar uma coluna nossa, em pleno dia, e a tão pequena distância do quartel onde nos encontrávamos.

No dia seguinte, sentado na vala como de costume, preparava-me para comer mais uma vez as habituais sardinhas em lata, quando ouvi, vindo da mata, o forte crepitar de varias espingardas metralhadoras e o rebentar de granadas. Achei estranho, porque não tinha conhecimento de haver qualquer força a patrulhar a zona. Estava a comentar o facto com um dos meus camaradas que se encontrava perto de mim, quando chegou o comandante de companhia que me disse para preparar rapidamente o meu grupo e ir socorrer um pelotão do exército que tinha sido atacado e sofridos vários mortos.

[...] Saímos rapidamente das valas e correndo dirigimo-nos para o local (guiados por um dos fugitivos), que ficava a pouco mais de um quilómetro do quartel.


(xiii) Quarto mortos do exército, três soldados e um alferes, terrivelmente desfigurados


O espectáculo que se nos deparou era deveras terrificante. No solo três soldados e um alferes jaziam mortos e irreconhecíveis com os rostos parcialmente desfeitos por rajadas disparadas à queima-roupa. Havia ossos e tecidos sangrentos espalhados pelo chão. Um dos soldados enrolara-se nos seus próprios intestinos estando os restantes parcialmente queimados pelo fogo que, acidentalmente, por acção das balas incendiárias, ou deliberadamente fora ateado ao capim.

Eu conhecia o alferes. Chegara a Gadamael três ou quatro dias antes, ido directamente da Metrópole e eu encontrara-o por acaso e estivera a falar com ele. Com os olhos dilatados pelo medo havia-me dito que abominava a guerra, que estava aterrorizado e iria fugir para longe da guerra o mais depressa possível, fosse para onde fosse, pois não podia aguentar por mais tempo aquele inferno. Agora, ao vê-lo morto pensei: «Afinal conseguiste o que querias, alferes.... Vais sair daqui... da única maneira que o recusarias fazer, se te tivesse sido dado escolher, enquanto vivo».

Carregámos com os mortos às costas e regressámos ao quartel. Ao chegarmos começou novo bombardeamento e toda a gente se atirou para o chão tentando encontrar abrigo. O soldado C [...]  que carregava o cadáver do alferes, seguindo o exemplo dos outros ou obedecendo ao seu instinto de conservação, também se atirou para o chão ficando com o morto em cima, que, por ter caído a capa impermeável onde o tínhamos embrulhado, o cobriu de sangue. Levantou-se como se tivesse sido picado por uma cobra e ficou a olhar-me de olhos esgazeados. O seu aspecto era terrível. O sangue do morto cobria-o da cabeça aos pés: tinha sangue na boca e nos olhos. Pastas de sangue coagulado caiam do camuflado. Olhou as mãos e vendo-as ensanguentadas entrou em pânico. [...]

Havia que evacuar os mortos e um ferido muito grave com um estilhaço num pulmão, que apanhara dentro do quartel. E o meu pelotão foi encarregado desse trabalho. Atirámos com os mortos para cima de uma «Berliet», única viatura que ainda funcionava em toda a Unidade e arrumámos o ferido o melhor que pudemos junto dos mortos. A altura era má para nos prendermos com ninharias e não podíamos transportá-lo de outra maneira. Imaginem o que terá sentido aquele homem ferido gravemente, mas consciente, ao ver-se no meio de quatro mortos horrivelmente desfigurados.





Cópia do título (e da primeira página) do trabalho de investigação jornalística da autoria de Eduardo Dâmaso, publicado no Público, sobre a batalha de Gadamael , em princípios de Junho de 1973, e o papel da LFG Orion, cujo imediato era então o nosso camarada Pedro Lauret, hoje capitão de mar e guerra na situação de reforma o > "A naves dos feridos, mortos, desaparecidos e enlouquecidos: a história secreta do navio Orion, que há 32 anos salvou centenas de soldados na Guiné contra as ordens de Spínola" (****).

Fotos: ©
Pedro Lauret (2006). Direitos reservados.


(xiv) Os fuzileiros, com botes de borracho, vêm fazer as evacuações de mortos e feridos


Partimos para o cais de recurso a cerca de quatro quilómetros do quartel a toda a velocidade que a picada cheia de calhaus e buracos dos rebentamentos nos permitia, debaixo de um bombardeamento intenso de foguetões [,de 122 mm,] que caíam à direita e à esquerda da picada e que só por sorte não nos atingiram.

Chegámos ao cais mesmo a tempo de ver os botes de borracha dos fuzileiros que vinham proceder à evacuação, darem meia volta e desaparecerem pelo mesmo caminho em direcção a Cacine. Isto transtornou-me de tal modo que desatei a chamar  nomes [...] .


Mas que podiam fazer os fuzileiros? O bombardeamento era muito forte e o medo de serem atingidos era ainda maior. Talvez que eu no lugar deles tivesse feito precisamente o mesmo. Porém, naquela altura eu queria ver-me livre dos quatro mortos e do ferido grave já quase moribundo. Por isso toda a minha revolta, o meu fechar de punhos que infelizmente não fizeram voltar os botes dos fuzileiros [...].

Pela rádio entrei em contacto com o comandante da Companhia e contei-lhe o sucedido. Este, no entanto, nada podia fazer, o problema transcendia-o em absoluto. Restava-me pois esperar e foi o que fiz, enchendo-me de uma grande dose de paciência. Passadas duas horas, os fuzileiros apareceram com dois botes.

A maré tinha baixado, entretanto, deixando a descoberto um lamaçal de mais de seiscentos metros por onde, enterrando-nos até a cintura, tivemos de carregar com os mortos e o ferido. Este esforço durou mais de meia hora e quando finalmente chegámos junto dos fuzos metemos dentro dos botes cinco mortos e não os quatro iniciais. O ferido morrera ali mesmo, a meia dúzia de metros dos botes que o deviam transportar ao hospital.


(xv) Desertores do exército tomam de assalto os zebros


Os botes que evacuaram os mortos foram literalmente assaltados por uma avalanche de desertores que começaram a aparecer de todos os lados e que tentavam fugir àquele inferno. Alguns conseguiram o seu intento pois os tripulantes dos zebros foram impotentes para se livrar de imediato de toda aquela gente que sobre eles se precipitou. Valeu-lhes sair rapidamente dali, de contrário não sei o que poderia ter acontecido aos barcos e mesmo aos próprios tripulantes.

Todos estes factos vieram fazer transbordar a taça e, se já havia muitos de nós com os nervos a estoirar, a partir destes acontecimentos, ficaram ainda pior. Os soldados já não queriam sair do quartel. Preferiam ficar ali dentro das valas, aguentando os bombardeamentos mas onde sabiam ter algumas probabilidades de escapar, a ir para o mato onde a incógnita do que poderia acontecer era demasiado grande. O medo tomou pouco a pouco conta de alguns espíritos e tornou-se mais forte do que qualquer outro sentimento.[...]

 (xvi) Proibido aos paraquedistas adoecer...


Em dada altura o meu pelotão recebeu ordem de marchar para uma missão de patrulhamento em que iria estar envolvida toda a companhia. Tínhamos de dormir no mato e regressar no dia seguinte. Transmiti as ordens do capitão aos meus homens e alguns deles disseram-me que não podiam ir para o mato porque se encontravam doentes, o que na realidade acontecia com alguns deles, e um pouco com todos nós. Que havia mais de um mês comíamos sardinhas e atum em lata e dormíamos enrolados dentro das valas, quase sem pregar olho.

Naquela porca guerra era, no entanto, proibido aos soldados adoecer. Tinham de marchar para o mato de qualquer maneira. [...] 


Segui para junto do meu pelotão e limitei-me a informar que, por ordem do capitão, toda a gente iria para o mato e, sem esperar qualquer resposta, equipei-me e mandei equipar o pelotão.

A companhia possuía quatro pelotões e o meu recebeu ordem de tomar o último lugar na coluna. Coloquei-me à frente dos meus homens e iniciei a marcha sem olhar para trás, confiante que todos me seguiriam, como lhes ordenara. Penetrámos na mata cerrada e ao olhar para trás verifiquei que nem todos me tinham acompanhado. Fiz a contagem e faltavam-me quatro homens, aqueles mesmos que, antes de partir, me tinham informado, estarem doentes. Como não podia deixar de ser, transmiti essas faltas ao comandante que, como resposta, me disse para mandar esses homens comparecer na sua presença, mal terminasse a operação. [...]


 (xviii) Quase meia centena de mortos em Gadamael em quarenta dias


E a guerra de Gadamael continuou. Foram mais de trinta dias de bombardeamentos, com muitos mortos e feridos. Os soldados aguentavam como podiam, uns com maior ou menor coragem, outros entrando em pânico e que fugiam para o cais e tentavam meter-se nos barcos que nos vinham trazer víveres e munições.

Foram quarenta longos dias, quase sem comida, deitados nas valas sem dormir mais que uma ou duas horas por noite, batendo-nos contra um adversário invencível que nos matava sem sofrer uma única baixa.

Mas Gadamael foi também a certeza de que jamais poderíamos vencer os guerrilheiros do PAIGC. Gadamael serviu sobretudo para a tomada de consciência de muitos de nós, e não me desviarei da verdade se afirmar que em Gadamael o PAIGC travou a batalha decisiva na sua luta pela independência, que quer tivesse havido ou não o 25 de Abril teria conduzido o povo da Guiné a uma rápida vitória.

Em Gadamael tombaram, para sempre, quase cinquenta irmãos nossos, que não queriam combater e que abominavam a guerra. Quase cinquenta homens que, se o pudessem ter feito, teriam gritado antes de morrer:
-Entreguem a Guiné aos Guineenses!...


________________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 11 de Fevereiro de 2007 >
Guiné 63/74 - P1515: Antologia (58): A batalha de Bissau em Janeiro de 1968: boinas verdes contra boinas negras... Saldo: 2 mortos (Carmo Vicente)

(...) "1º Sargento Paraquedista Carmo Vicente (...) participou em três comissões de serviço nas frentes de combate da Guiné e Moçambique.

"O testemunho do Sargento Carmo Vicente [sobre os tristes acontecimentos de Bissau, em Janeiro de 1968,] consta na obra Gadamael de sua autoria, das Edições Caso (2ª edição), de Julho de 1985 (páginas 25 a 30).

"Para além da referida obra, Carmo Vicente é também autor de Grades de Novembro, Gritos de Guerra, A Sentença, Era uma vez... 3 guerras em África, entre outras.

Na badana do livro pode ler-se:

"Carmo Vicente é 1º sargento paraquedista, tem 38 anos, e participou em 3 comissões de serviço nas frentes de combate da Guiné e Moçambique. Gadamael é uma narrativa apaixonada, mas profundamente crítica, dessa experiência, constituindo mais uma achega importante para a construção histórica do itinerário colonial de parte significativa da juventude portuguesa, entre 1961 e 1975.

"Sobre Carmo Vicente escreve em prefácio Manuel Geraldo: Ao contrário de vários autores que até agora se debruçaram sobre o mesmo tema, Carmo Vicente possui a vantagem de ter sido mobilizado pela 1ª vez como soldado, acabando por chegar a 1973 na situação de 1º sargento, no comando de um pelotão, precisamente em Gadamael. Logo, viveu o conflito em toda a sua plenitude, como 'actor' em escalões progressivos e com graus de sensibilidade diversa. Embarcado para a Guiné em 1966, com a mentalidade de 'cruzado', Carmo Vicente acabaria por descobrir a verdadeira face dos interesses em jogo e do papel que lhe tinham reservado no palco das operações.

(**) Vd. poste anterior de 4 de Junho de 2008 >
Guiné 63/74 - P2915: Com os páras da CCP 122/ BCP 12, no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (1): Aquilo parecia um filme do Vietname


(***) Certamente por lapso ou gralha, no texto (digitalizado) que recebemos do Leopoldo Amado, vem RPG 3 quando, na minha opinião, deve ler-se RPG 2... Mas não tenho a certeza: no meu tempo (1969/71), na zona leste, nunca ouvi falar do RPG 3... Só havia o RPG 2 e o RPG7.  No blogue já apareceram mais referências ao RPG 3 (Nuno Rubim, Manuel Lema Santos). Será gralha ? É também possível que seja uma versão superior do RPG 2, existente em 1973. Possivelmente com mais alcance, fiabilidade e poder destrutivo... Se alguém puder esclarecer, agradeço.


(****) Vd. poste de 14 de Junho de 2006 >
Guiné 63/74 - P876: É revoltante o silêncio em torno da guerra colonial (Pedro Lauret, imediato do NRP Orion, 1971/73


(*****) A Ordem da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito é a mais alta condecoração portuguesa, podendo ser conferida em três casos: (i) Por méritos excepcionalmente relevantes demonstrados no exercício de funções dos cargos supremos que exprimem a actividade dos órgãos de soberania ou no comando de tropas em campanha; (ii) Por feitos de heroísmo militar e cívico; ou (iii) Por actos excepcionais de abnegação e sacrifício pela Pátria e pela Humanidade.

quarta-feira, 16 de abril de 2008

Guiné 63/74 - P2764: Simpósio Internacional de Guileje: Comunicação de Pedro Lauret: O papel da Marinha em Guidaje e Gadamael, Maio-Junho de 1973

Guiné-Bissau > Região de Tombali > Cacine > 2 de Março de 2008 > Visita de um grupo de participantes do Simpósio Internacional de Guileje, depois de um almoço em Cananime, na margem direita do Rio Cacine. É hoje uma povoação com evidentes sinais de abandono e decadência.

Guiné-Bissau > Bissau > Hotel Azalai > 7 de Março de 2008 > Simpósio Internacional de Guileje > O último dia da nossa estadia > Três companheiros de uma jornada inesquecível: O Capitão de Mar e Guerra, na situação de reforma, Pedro Lauret, Iva Cabral, historiadora, primeira filha de Amílcar Cabral e da portuguesa Maria Helena Ataíde Vilhena, e o Cor Comando, na situação de reforma, Carlos Matos Gomes (também conhecido e celebrado autor de obras de ficção sobre a guerra colonial e as vivências de África, sob o pseudónimo de Carlos Vale Ferraz).

Fotos e legendas: © Luís Graça (2008). Direitos reservados.

Guiné > Região do Cacheu > Rio Cacheu > A LFG Orion a navegar no Cacheu em Janeiro de 1967.

Foto: © Lema Santos (2006). Direitos reservados.

"A revolta do navio Orion, da Marinha portuguesa, no dia 2 de Junho de 1973 foi decisiva para salvar a vida de centenas de soldados e população que fugiram dos bombardeamentos do PAIGC na batalha de Gadamael. Este episódio de desobediência a ordens de Spínola, desconhecido até hoje, é indissociável da resistência travada por meia dúzia de soldados no interior do aquartelamento de Gadamael. As suas histórias são aqui contadas por alguns dos seus protagonistas, como o comandante da Marinha Pedro Lauret, o coronel dos comandos Manuel Ferreira da Silva e o grumete Ulisses Faria Pereira. Eles são, com outros, os heróis desconhecidos de Gadamael". (In: "A nave dos feridos, mortos, desaparecidos e enlouquecidos. Uma investigação de Eduardo Dâmaso". Público, nº 5571, 26 de Junho de 2005).


1. Mensagem do Pedro Lauret (1), com data de 8 de Abril, respondendo ao meu pedido para publicar, no blogue, a sua comunicação ao Simpósio Internacionald e Guileje:


Caro Luís,

Tens toda a autorização para publicares a minha comunicação no Simpósio, que agradeço.

A gala da A25A [- Associação 25 de Abril ] foi espectacular muita emoção, muitas recordações… [Gala Vozes de Abril, no dia 4 de Abril de 2008, no Coliseu dos Recreios, em Lisboa]

Tenho acompanhado, [no nosso blogue,] as reportagens da Guiné, que estão excepcionais. É muito bom que um acontecimento histórico, como foi o Simpósio, esteja devidamente documentado e divulgado.(...)

Brevemente teremos que falar sobre o nosso site da Guerra Colonial, que penso que estará pronto no último trimestre deste ano.

Um abraço

Pedro Lauret


2. Comunicação do Capitão de Mar e Guerra, na situação de reforma, Pedro Lauret, no Simpósio Internacional de Guileje: Bissau, Hotel Palace, de 5 Março de 2008, Painel 2. Título da comunicação: A Marinha no Teatro de Operações da Guiné. Guileje Gadamael, Maio Junho de 1973, o papel da Marinha.



A Marinha no Teatro de Operações da Guiné. Guileje Gadamael, Maio-Junho de 1973, o papel da Marinha (2)

por Pedro Lauret (3) . Subtítulos de L.G.


(i) Imediato da LFG Orion, em fim de comissão: subordinando as suas convicções políticas à vida dos seus subordinados


Tentei até agora dar uma visão sintética da História da Marinha após a II Guerra Mundial, seu enquadramento político, e a realidade que emergiu do início da Guerra Colonial.

Sinteticamente também pretendi transmitir o que era a Marinha no teatro de operações da Guiné.

Para terminar vou abordar os acontecimentos ocorridos em Maio e Junho de 1973 em que participei. Será uma narrativa muito mais pessoal e opinativa, embora, obviamente baseado em factos reais por mim vividos.

Fui imediato do NRP Orion uma LFG, de Setembro de 1971 a Julho de 1973 (4), o meu navio esteve sempre operacional pelo que tive oportunidade de conhecer bem todos os rios com água suficiente para o meu navio passar.

Quando em 1971 cheguei a Bissau, jovem guarda-marinha de 22 anos, já tinha sobre a guerra uma visão clara da sua natureza, já tinha uma visão clara da natureza do regime ditatorial em que nascera e logicamente sabia que iria combater por uma causa que não considerava justa. Era uma situação difícil, que aceitei lucidamente com a noção das dificuldades que iria encontrar. Tinha também uma certeza: uma vez que optara por ir, a prontidão e operacionalidade do meu navio nunca poderia estar em causa. A vida dos meus subordinados e o meu compromisso com eles sobrepunham-se às minhas convicções.

Nas muitas milhas que naveguei tive oportunidade de desembarcar em muitos aquartelamentos do Exército, apreciei o modo de vida dos soldados, o seu dia-a-dia, as casernas, os abrigos. Vi jovens como eu, condenados a passar dois anos fora das suas terras, das suas famílias e amigos, vivendo dias de tensão e de perigo, mal comidos, mal fardados, mal armados. Vi muitas companhias comandadas por jovens capitães milicianos, com início de carreira interrompida, completamente desmotivados e incapazes de conduzir satisfatoriamente os 170 homens que comandavam. Aqueles homens, além do mais, estavam também mal comandados.

Quando à noite no meu navio, fundeado no Cumbijã, ou Cacine, atracado em Bigene ou em Binta ou em qualquer outro local, via e ouvia os rebentamentos, ora dos morteiros ou foguetões de 122, ora a resposta dos obuses do exército, era um espectáculo inesquecível de uma beleza cruel. Por detrás de cada um daqueles rebentamentos e clarões poderia naquele momento ter acabado de morrer ou ficar ferido algum ser humano.

Todas estas situações me levavam a pensar: que regime era aquele que durante tantos anos atirava gerações sucessivas de jovens para aquela situação, uma guerra votada ao insucesso e à derrota.

(ii) Gudaje, a ferro e fogo, e três aeronaves abatidas no dia 8 de Maio de 1973

Foi já em fim de comissão, no início de Maio de 1973, propriamente no dia 8, que estando atracado em Bigene logo pela manhã sinto em terra, onde estava aquartelado o Destacamento de Fuzileiros nº 8 (DFE 8), movimento fora do comum, indiciando que algo de grave se passava ou iria passar.

Guidaje fora atacada logo aos primeiros alvores com enorme intensidade tendo feito um elevado número de feridos. Um Dornier tinha levantado de Bissau e dirigia-se a Bigene para recolher o médico que aí se encontrava para, posteriormente, ir socorrer os feridos. Logo após ter levantado e a meio caminho de Guidaje foi abatido.

O DFE8 estava em preparativos para se deslocar para o local. O destacamento devia embarcar no meu navio e ser largado, por botes, junto à foz do pequeno Rio Jagali. Neste meio tempo começa um movimento de helicópteros como em 2 anos nunca vira. A princípio não me apercebi do que se passava, depois fui informado que uma companhia de Páras fora transportada de Bissau para Bigene para a partir daí seguir ao encontro do DFE 8 e ambos tentarem resgatar o que fosse possível.

Entretanto vindos de Bissau dois T6 foram bombardear a zona e um deles foi de imediato abatido.

Conseguimos desembarcar o DFE8 conforme previsto, que conseguiu chegar ao local onde os aviões se encontravam, sem incidentes. O mesmo não aconteceu à companhia de Páras que à saída de Bigene fora emboscada e tivera um morto.

Algumas horas depois reembarcámos os fuzileiros que só encontraram destroços carbonizados, e entre eles um pedaço do míssil que abatera o avião. Esse pedaço de míssil foi por nós trazido para Bissau, poucos dias depois. Serviu para confirmar, com certeza, que se tratava de um míssil Strella.

Viemos posteriormente a saber que, nesse mesmo dia, tinha levantado um outro Dornier rumo a Guidaje para socorrer os feridos da manhã, conseguira aterrar, mas ao levantar, após ter embarcado os feridos, desaparecera sendo dado por abatido.

Três aviões no mesmo dia foram abatidos, o que levou a Força Aérea a interromper as suas missões, só as retomando algum tempo depois com perfis de voo defensivo e uma eficácia global muito reduzida.

Esta situação de perda da superioridade total do ar, como sempre tivéramos, teve de imediato duas muito graves consequências:

- As evacuações de feridos por helicóptero não se faziam;
- Não havia apoio aéreo próximo que permitisse interromper ataques às nossas tropas.

Estas circunstâncias vão permitir ao PAIGC cortar a estrada de Binta a Guidaje e montar-lhe um cerco que, apesar de muitos esforços, só consegue ser totalmente levantado através da Operação Ametista Real que envolve a totalidade do Batalhão de Comandos Africanos.


(iii) 1 de Junho: no sul, no Rio Cumbijã, para embarcar uma companhia de páras em Cafine

Após alguns dias de estadia em Bissau para pequenas reparações e reabastecimento, sigo para o Rio Cumbijã, render a LFG que aí se encontrava em missão. Tínhamos como força, além da própria LFG, duas LDM e transportávamos 8 botes e respectivos motores com elementos da companhia de fuzileiros para o seu manuseamento e condução.

No dia 1 de Junho ao jantar sou alertado pela cabine de TSF que estava a chegar uma mensagem “O” – designativo para mensagem de muito elevado nível de precedência – dirigi-me à cabine e assisti ao final da decifração da mensagem.

O teor da mensagem era preocupante: Dirigir-se a Cafine na margem esquerda do Cumbijã e embarcar uma companhia de Páras que aí se encontrava estacionada e de imediato seguir para Cacine.

Só o facto de efectuar o embarque no navio àquela hora e naquelas circunstâncias denotava uma situação grave e urgente.

Demos ordem às 2 LDM para seguirem para Cacine pelo Canal do Melo o que abreviava em muito a viagem. Nós não podíamos seguir aquele itinerário devido ao nosso calado.

Conseguimos embarcar a companhia sem incidentes e dirigimo-nos para Cacine, onde chegámos aos primeiros alvores do dia seguinte. Aí, após termos desembarcado a companhia, entrou a bordo o Major pára-quedista Pessoa que nos informou:
- Que Guileje, após intensos bombardeamentos, fora evacuada e o contingente aí instalado seguiu para Gadamael;
- Que o Major Coutinho e Lima, comandante do COP, que tinha dado a ordem, seguira para Bissau sob prisão;
- Que Gadamael estava sob fogo intenso e a grande maioria dos militares tinha fugido para as margens do rio Cacine;
- Que o General Spínola tinha estado em Cacine e tinha dado ordem explícita para ninguém ir socorrer o pessoal que andava fugido nas margens do rio, apelidando-os de cobardes.

O Major Pessoa ainda nos informou que, se nós não fossemos recuperar o pessoal, ele próprio iria nem que fosse de canoa.

Pela minha cabeça, de imediato, passou a imagem dos generais que em Nuremberga justificaram as atrocidades que cometeram por terem recebido ordens para as executar. Sem obviamente querer comparar a gravidade relativa do caso, foi isto que pensei. Pensei que há ordens que não se cumprem, apesar de nós, militares, sermos formados para obedecer. A recusa ao cumprimento de tal ordem era uma exigência de honra, era uma exigência moral.

(iv) No Rio Cacine, recolhendo o pessoal fugido de Guileje e de Gamadael


O navio por sua inteira responsabilidade, e sem nada comunicar ao Comando da Defesa Marítima, decidiu de imediato ir recuperar o pessoal. Foram dadas indicações aos patrões das LDM para seguirem nas águas da Orion.

Passámos o rio Meldabon junto a uma marca radar (marca Lira), a qual já não era passada por uma LFG há muito, não se conhecendo a situação dos fundos.

Conseguimos seguir até ao rio Dideragabi, para montante era impossível navegar pois já não tínhamos fundo.

Foram colocados botes na água que passaram revista à margem esquerda do Cacine bem como as duas LDM. Foram recolhendo pessoal que traziam para bordo da Orion onde os feridos passaram a ser tratados, os mais ligeiros no convés, os mais graves foram para a coberta das praças. Foi fornecida alguma alimentação ao pessoal. Como já havia muito pessoal a bordo as LDM passaram a levar o pessoal para Cacine.

Já de noite a Orion dirigiu-se a Cacine, não podendo desembarcar os feridos mais graves pois estávamos em baixa-mar e a pista de lodo impedia-o.

Nesse dia a coberta das praças funcionou como navio hospital. O soro, compressas e outra material de primeiros socorros esgotaram. Foi pedido reabastecimento urgente a Bissau. Na manhã seguinte o material chegou num pequeno avião da Marinha.

O ambiente na coberta das praças estava de tal forma carregado de vapores de éter, que, tendo entrado uma praça a fumar, provocou uma explosão que fez disparar os disjuntores dos geradores, colocando o navio, por breves momentos às escuras.

Não sei descrever a situação moral e psicológica daqueles homens, as palavras não eram muitas, só os seus olhares denunciavam, sem margem para dúvidas, os sofrimentos porque passaram.

Esta operação continuou nos dias seguintes, não sei quantos homens evacuamos naquele dia 2 de Junho, mas certamente entre militares e população ultrapassou o milhar (confirmei na visita a Guileje que da população eram mais de 600 pessoas).

Continuámos nos dias seguintes a dar apoio aos pára-quedistas que entretanto tinham desembarcado em Gadamael.

Após alguns dias fomos rendidos e regressámos a Bissau. A bordo, deixadas de lado, algumas dezenas de G3 abandonadas pelos soldados. O princípio de nunca abandonar a própria arma já não tinha qualquer sentido.

(v) A controversa ordem de Spínola, ditada pelo desnorte militar, prenúncio do 25 de Abril
Quero concluir com duas notas.

A ordem do general Spínola não corresponde, em minha opinião a uma intenção sincera, revela antes um desnorte pela situação militar que então se vivia e pela incapacidade de a debelar.

Revela ainda que uma derrota militar na Guiné se podia aproximar rapidamente, com consequências, em termos de sacrifícios humanos, imprevisíveis, e que o Estado Novo se preparava, como fez na Índia para culpar os militares pela derrota, lavando com sangue a sua i ncapacidade para encontrar soluções políticas para os conflitos.

O 25 de Abril estava em marcha.

______________
Notas de L.G.:

(1) Vd. poste anterior: 13 de Março de 2008 >
Guiné 63/74 - P2629: Fórum Guileje (3): A Marinha esteve como peixe dentro de água no CTIG, e teve um papel logístico fundamental (Pedro Lauret)

(2) Também está disponível, em formato.pdf, no blogue da A25A,
Avenida da Liberdade.

(3) No nosso blogue, também já está disponível a comunicação do Cor Art Ref Coutinho e Lima:

23 de Março de 2008 >
Guiné 63/74 - P2677: Simpósio Internacional de Guileje: Comunicação de Coutinho e Lima (1): Comandante do COP 5, com 3 comissões no CTIG

23 de Março de 2008 >
Guiné 63/74 - P2678: Simpósio Internacional de Guileje: Comunicação de Coutinho e Lima (2): A dolorosa decisão da retirada de Guileje

(4) Sobre o Pedro Lauret, vd os postes:

1 de Outubro de 2006 >
Guiné 63/74 - P1137: Do NRP Orion ao MFA: uma curta autobiografia (Pedro Lauret, capitão-de-mar-e-guerra)

Sobre o desempenho da LFG Oiron e outros navios da nossa Marinha no TO da Guiné, vd.:


21 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXIII: Apresenta-se o Imediato da NRP Orion (1966/68) e 1º tenente da reserva naval Lema Santos

5 de Maio de 2006 >
Guiné 63/74 - DCCXC: Os marinheiros e os seus navios (Lema Santos)

15 de Junho de 2006 >
Guiné 63/74 - P878: Antologia (42): Os heróis desconhecidos de Gadamael (Parte I)

15 de Junho de 2006 >
Guiné 63/74 - P879: Antologia (43): Os heróis desconhecidos de Gadamael (II Parte)

5 de Outubro de 2006 >
Guiné 63/74 - P1151: Resposta ao Manuel Rebocho: O papel do Orion na batalha de Guileje/Gadamael (Pedro Lauret)

31 de Outubro de 2006 >
Guiné 63/74 - P1231: Estórias avulsas (5): Rio Cacheu: uma mina aquática muito especial (Pedro Lauret)

7 de Março de 2007 >
Guiné 63/74 - P1571: A Operação Larga Agora, o Tancroal / Porto Batu e as cartas náuticas do Instituto Hidrográfico (Lema Santos)

18 de Março de 2008 >
Guiné 63/74 - P2659: Histórias da Marinha (1): Um ataque à LFG Lira em 1967, em Cadique, no Rio Cumbijã (Manuel Lema Santos)

27 de Janeiro de 2008 >
Guiné 63/74 - P2483: Estórias de Guileje (3): Devo a vida a um milícia que me salvou no Rio Cacine, quando fugia de Gadamael (ex-Fur Mil Art Paiva)

(...) "Por obra do acaso, deparei hoje com alguns blogues sobre os acontecimentos ocorridos em Guileje e Gadamael no período de 1972 a 1974 (2). Porque na oportunidade desempenhava funções de furriel miliciano afecto à Unidade de Artilharia localizada inicialmente em Guileje, e posteriormente retirada para Gadamael (após o abandono do primeiro daqueles aquartelamentos), tomei parte nos referidos acontecimentos.

(...) "Este pelotão de artilharia retirou na totalidade para Gadamael quando foi dada ordem de abandono do aquartelamento de Guileje. Para além dos graduados e oficial acima referidos, retiraram ainda os cabos e praças (estes últimos naturais da Guiné).

"Em Gadamael, a artilharia passou efectivamente muito maus bocados mas não ficou totalmente inoperacional, tanto quanto me recordo. O seu alferes teve aliás um comportamento de bravura pois foi ferido e continuou a desempenhar as sua funções, embora numa situação bastante precária.

(...) "Já agora poderia acrescentar que uma parte dos militares que se deslocaram para Gadamael, acabaram por abandonar também este aquartelamento, acompanhados de parte da população. Porém uma parte dos militares conseguiu aguentar este aquartelamento até à chegada de reforços que entretanto para ali foram enviados.

"Alguns oficiais, sargentos e praças (acompanhados de parte da população) - nos quais me incluía eu -, iniciaram uma retirada para Cacine que foi efectuada debaixo de fogo e que se processou em botes dos fuzileiros. Já agora poderei acrescentar que a evacuação não foi totalmente conseguida nesse dia porque entretanto as operações de resgate foram suspensas por ter começado a anoitecer.

(...) "Eu próprio iniciei a travessia antes de se ter completado o vazamento da maré e, porque não era um nadador exímio, e por outro lado com o peso das botas e da G3 e a força da corrente, tive que a meio da travessia me desembaraçar da minha arma (foi para o fundo do rio) para não morrer afogado. E fiquei a dever a minha vida a um milícia guineense que na outra margem do rio - e a partir do lodo onde se encontrava e para onde eu pretendia arrastar-me - me estendeu a coronha da sua arma a que eu, num esforço titânico, consegui agarrar-me. Fiquei a dever-lhe a minha vida e, no meio da confusão e do caos, sem saber a quem concretamente (ainda hoje...)" (...)

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Guiné 63/74 - P2532: Tabanca Grande (56): José J. Macedo, ex-2º tenente fuzileiro especial, natural de Cabo Verde, imigrante nos EUA

José J. Macedo, quando era cadete da Escola Naval, em Portugal... Foi FZE (fuzileiro especial na Guiné, 1973/74, DFE 21)
  O José Macedo, natural de Cabo Verde, ex-tenente fuzileiro especial, vive nos Estados Unidos desde 1977. É advogado, segundo informação telefónica que deu ao nosso co-editor Virgínio Briote. 

Fotos: José Macedo (2008). Direitos reservados 


1. Em 19 de Janeiro de 2008, recebemos uma mensagem de José J. Macedo, natural de Cabo Verde, e que vive nos Estados Unidos, desde 1977. Esteve na Guiné, em 1973/74 "como oficial do Destacamento de Fuzileiros Especiais 21 (DFE21) (...), o primeiro Destacamento de Fuzileiros Especiais africano e que tomou parte, entre outras, na célebre Operação Mar Verde de que muito se fala no blogue". 

O José J. Macedo esteve , com o seu destacamento, em Vila Cacheu, Bolama e em Cacine "para as evacuações que foram feitas aos aquartelamentos do Sul". Faz questão de dizer que , "como Cabo-verdiano, nado e criado, tive e continuo a ter uma perspectiva diferente dos bloguistas do seu blogue sobre o que se passou na Guiné durante a Guerra Colonial". 

Define-se como "um leitor diário do blogue e muitas das crónicas me fazem viajar no tempo a Susana, São Domingos, Canchungo e outros locais da Guiné". Tem, no entanto, reservas em participar no blogue devido ao tipo de linguagem que muitas vezes usaríamos. O Macedo acha-a, por vezes, "racista", com uso e abuso de "expressões de caserna" que ele não aprecia nem aprova. "Parece que há membros da tertuúlia que têm prazer especial em usar nharro, preto pu** e outros termos pejorativos quando se referem aos Guineenses , inclusive aqueles que estiveram ao lado de Portugal". 

Em contrapartida, das "poucas vezes que li intervenções que Guineenses e/ou Cabo-verdianos que participaram na luta de libertação nacional pelo PAIGC, nunca vi nenhuma referência pejorativa em relação aos soldados Portugueses que lutaram na Guiné". 

Em suma, para o nosso visitante José Macedo e antigo camarada de armas não se trata de ser politicamente correcto , como está na moda dizer, mas tão apenas de "não chamar aos outros o que não gostaramos que nos chamassem a nós". Manda-nos "um abraço amigo". 


2. Em 21 de Janeiro, voltou a mandar-me um mail, que passo a transcrever (em parte): 

Luis: 
Espero que ja tenha recebido o meu e-mail com a minha apreciação do blogue. Estive a ler as normas de conduta e apenas gostaria de fazer um reparo: a norma (ix) garante a todos os tertulianos a "liberdade de expressão", razão porque, na minha opinião, aparecem expressões como as que mencionei no meu e-mail anterior. Contudo, parece-me que o Artigo (ix) está em colisão com o (iv), "Carinho e Amizade Pelos Nossos Dois Povos" e o (v), "Respeito Pelo Inimigo de Ontem." Acho que quando a Liberdade de Expressão serve para negar "Carinho, Amizade e Respeito", a mesma deveria ser cerceada. O exemplo típico para os constitucionalistas é que ninguém tem a liberdade de gritar FOGO num cinema cheio de espectadores (...). 


3. Na qualidade de fundador e editor do blogue, mandei-lhe a seguinte mensagem, em 22 de Janeiro: 

Meu caro José Macedo: 
Antes de mais, obrigado pela sua crítica ao nosso blogue. Vou, naturalmente, publicá-la. O seu ponto de vista merece-me todo o apreço e consideração que é devida a um antigo camarada de armas, e para mais cabo-verdiano, terra que amo desde pequenino, e onde tenho bons amigos. Tenho pena que não queira entrar para esta Tabanca Grande, e partilhar connosco as suas memórias dos fuzileiros e das suas emoções da Guiné... 

Farei, eu ou os meus co-editores, algumas apreciações às suas críticas, naquilo em que elas nos parecem injustas: por exemplo, nunca fizemos aqui a apologia do racismo ou publicámos relatos de violação de crianças ou adolescentes... São questões factuais: se achar que sim, diga-me onde e quando... Isto tem que ser dito, e com veemência. Somos gente com valores, aliás basta ver a nossa preocupação com as questões éticas... 

O seu reparo sobre eventuais contradições entre as nossas normas de conduta e a nossa prática editorial tem razão de ser... Mas isso acontece com tudo na vida... Como sabe, há várias questões fracturantes entre nós, amigos e camaradas da Guiné: por exemplo, os desertores, os fuzilamentos dos nossos camaradas guineenses, o 25 de Abril... Mas até agora temos sabido viver com as nossas diferenças... 

Quanto à linguagem de caserna, bom... O que é que eu posso dizer-lhe ? Não somos um blogue de meninos de coro... Mas prometo estar vigilante ao uso e abuso de expressões que eventualmente possam ter conotações racistas e sexistas... Felizmente não tenho nem formação nem mentalidade de censor...Naturalmente que tenho que assumir a minha responsabilidade como fundador e editor deste blogue (que é colectivo e onde coexistem muitas sensibilidades e idiossincrasias)...Irei procurar manter a coerência com as nossas normas de conduta... 

Obrigado por nos ler e criticar. Mas apareça mais vezes, que hoje já não temos o Atlântico a separar-nos. E, claro, fica sempre de pé o nosso convite para franquear o pórtico da nossa Tabanca Grande. 

Um Alfa Bravo. 
Luís Graça 


4. O nosso co-editor Virgínio Briote, que foi Alferes Comando da 1ª geração (Guiné, Brá, 1965/66), superior hierárquico do Justo e do Marcelino da Mata, entre outros, mandou-me a seguinte apreciação: 

Estou surpreendido com a leitura que o José Macedo faz. Não me lembro de ler as expressões com sentido pejorativo. A preocupação com o políticamente correcto, a nós, não se aplica porque não sentimos necessidade de pensar nesses termos. Falo por mim, mas não só, falo pelo que tenho lido até à data. (...) 

Puta é conversa de caserna e fora da caserna, é uma expressão menos corrente aqui que nos USA. É fuck para aqui fuck para acolá, presidentes americanos incluídos. Nharros? Só se for. 

E para uma observação isenta, é necessário não excluir os conhecimentos da língua de quem lê, os hábitos de leitura e tantas outras coisas. É assim que obras louvadas por muitos são apelidadas de pastelões por muitos outros também. 

Mas, esta não esperava. 

Um abraço, 
vb 


5. Resposta do José Macedo, com data de 21 de Janero: 

Luis: 
Obrigado pela sua resposta. Tenho seguido as vossas iniciativas e a divulgação da história de todos nos que passámos pela Guiné-Bissau. Através do blogue recordo os momentos (bons e maus) que por lá passei. Como falo o crioulo de Cabo Verde, muito semelhante ao da Guiné-Bissau, tive a sorte de poder compartilhar do dia a dia dos fuzileiros do meu destacamento, nas minhas viagens a São Domingos e São José no Chão Felupe e com os Manjagos de Canchungo. 

Também convivi com os Comandos de Brá, nomeadamente o Justo, o Folques, o Sicri Vieira e muitos outros. Com o Zicky Saiegh convivi de perto, pois era afilhado do meu tio Agnelo Macedo, que foi chefe de posto em Catió e esteve preso na Ilha das Galinhas, por alegadamente ter tido uma reunião em casa com o Aristides Pereira e outros quadros do PAIGC. 

Quando vou de férias a Portugal, um dos highlights da minha visita é encontrar-me nos Restauradores com o Sino Uie Cambe e o Saco Sano, fuzileiros do DFE 21, especialistas no MG-42 e na bazuca respectivamente, que se deliciam em contar e recontar as peripécias da Operacao Mar Verde e a veneração que têm pelo Comandante Rebordão de Brito. Também me contam o destino triste (fuzilamento) de alguns elementos do 21. 

Um abraço amigo 
Jose J. Macedo 


6. Novo mail do José Macedo: 

Luís: 
Obrigado pela sua resposta. Deve ter havido um mal entendido sobre ser apologista de atitudes racistas ou sexistas. Houve sim, não me lembro bem a data, em que um dos camaradas escreveu um texto a rondar o racismo e o o Luís disse que "sabia que ele não era racista" ou algo parecido. 

Se calhar por ser imigrante e viver numa sociedade multicultural, sou mais sensível a certas abordagens do blogue. Tambem eu sofri perdas de amigos e camaradas africanos do meu destacamento que foram fuzilados na Guiné. Sei que o blogue não faz , ou pelo menos tenta não fazer, juízo de valores; contudo, idolatrar (como alguns o fazem) o Marcelino da Mata... Please

Um abraço amigo, 
José J. Macedo. 


7. Zé Macedo: 

Estamos de acordo em relação ao Marcelino da Mata (...). Não o conheço sequer pessoalmente. Mas não posso impedir que haja pessoas, no nosso blogue, que com ele conviveram na Guiné e que escrevam sobre ele (...). 

Peço-lhe que, ao analisar o nosso blogue, veja a floresta e não apenas a árvore (centenas de pessoas que já cá escreveram, cerca de 2500 postes, meio milhão de visionamentos, vários milhares de fotos e outros documentos publicados, etc.), e sobretudo o reforço da amizade entre os nossos povos, o exorcismos dos nossos fantasmas, o direito à memória, etc....Você não tem muitos blogues deste tipo no mundo: infelizmente, os nossos amigos guineenses que combateram, tanto do nosso lado como do lado do PAIGC, não têm os mesmos meios (tecnológicos e outros) que nós temos... 

Mas, deixe-me que lhe diga, que temos incentivado e apoiado, através do nosso amigo Pepito e do seu/nosso Projecto Guileje, a preservação da memória dos antigos combatentes do PAIGC... Muito provavelmente, sem a nossa existência (colectiva, como blogue e como grupo) não seria possível a realização, no próximo mês de Março de 2008, do Simpósio Internacional: Guileje na Rota da Independência da Guiné-Bissau... (...) 

Gostaria de publicar, no nosso livro de visitas, alguns das suas observações e críticas em relação ao nosso blogue...Mas parte da nossa correspondência é privada... Já limámos algumas arestas, desfizemos alguns equívocos... Enfim, gostaria de o receber na nossa Tabanca Grande como um ex-camarada da Guiné e, porque não, como um amigo... Em suma, o que quer que eu publique (ou não) das suas mensagens anteriores ?... Não me interessa criar polémica (com os meus co-editores e com outros camaradas...) por questões de lana caprina... E quero que você entre pela porta grande... Pode ser ? Estou a fazer-lhe um convite. 

Um Alfa Bravo. 
Luís 


8. A resposta do nosso camarada não podia ser mais clara: 

Podes publicar a nossa comunicação. Acho que não será tão polémica como pensamos, pois como disse, ja limámos as arestas dos possíveis conflitos. (...) Publicar no blogue a nossa correspondência pode ser que ajude algum camarada a não usar a chamada conversa de caserna quando se refere a outros camaradas. 

Um abraco amigo, 
 Jose Macedo 


9. Nova mensagem a 5 de Fevereiro: 

Luis: (...) 
Depois de ter viajado ultimamente pelo blogue e com a próxima realização do Simposio de Guiledge, recordo-me que o meu destacamento, o DFE 21 de Fuzileiros Africanos, esteve em Cacine a montar segurança e a ajudar com a evacuação o para uma LDG de uma companhia do exército, na sua maioria soldados Açoreanos. 

Até me lembro de um triste episódio que aconteceu durante o transbordo em que um soldado, com armas e bagagens caiu ao rio e desapareceu. Como era noite, nada se pode fazer. Ele, que de certeza tinha sobrevivido ao infernos de Guiledge ou talvez do de Gadamael, para vir morrer nas margens do rio Cacine. 

Tambem gostaria de contactar alguém que tivesse estado na Companhia do Exército em Cacheu de 73-74. Se não me engano, o comandante era Capitão Rodrigues, de Aveiro. Também me lembro de ir a São Domingos, onde havia uma Companhia do Exército, a Suzana e São José, no Chão Felupe. Tinha formado uma equipe de futebol com miúdos do Cacheu e jogávamos contra os soldados. 

Gostaria que alguém que tivesse estado em Vila Cacheu, São Domingos ou Cantchungo (Teixeira Pinto), nessa altura, aparecesse no blogue

Um abraco amigo. 
José Macedo 
Tenente FZE DFE21-Guine 

PS - Mandei-lhe uma foto recente. Junto lhe envio uma dos meus tempos de cadete da Escola Naval. Se encontrar uma do meu tempo de fuzileiro, vou-lha enviar. 


10. Mensagem do editor do blogue, com data de 6 de Fevereiro: 

Obrigado, Zeca: 
Isto quer dizer que passarás a ser membro de pleno direito da nossa Tabanca Grande... E já agora, manda-nos uma estória (ou mais, as que quiseres) sobre o teu tempo de Guiné e sobre os teus fuzileiros... A actividade dos fuzileiros tem sido muito pouco abordada no nosso blogue... 
Fica bem. 

Aquele abraço. 
Luís

sábado, 28 de outubro de 2006

Guiné 63/74 - P1220: Guidaje, Maio de 1973: o depoimento do comandante de um destacamento de fuzileiros especiais Alves de Jesus (Pedro Lauret)

1. Mensagem de Pedro Lauret:

Caro Luís,

Envio-te o email do Alves de Jesus, hoje capitão-de-mar-e-guerra, na altura 1º tenente comandante do DFE4 [Destacamento de Fuzileiros Especiais, nº 4]. Trata o texto conforme entenderes, com a sabedoria que te é conhecida.

Envio-te tal qual o recebi pois é preferível não ser mexido por mais que uma pessoa, se for caso disso. Falei com ele por tm que me autorizou a publicar o que quiséssemos. Penso que ainda não estará disponível para pertencer à tertúlia, o tempo poderá fazê-lo mudar de ideias.

Um abraço
Pedro Lauret


2. Mensagem de Alves de Jesus:

Caro Pedro Lauret:

De facto já lá vão uns largos anos que o nosso contacto se perdeu, mas a vida é mesmo assim e cada um tem de percorrer a sua.

Relativamente à minha passagem pela Guiné (73/74), comandando o DFE 4, ela foi uma etapa da minha carreira militar bem marcante e indelével. As diversas situações de perigo porque passámos jamais serão esquecidas, muito embora compreenda que as mesmas tenham sido enfrentadas, por quem as protagonizou, de modo muito diferente.

Tudo aquilo ficou dependente da sensibilidade de cada um… pela minha parte sofri bastante e os pesadelos ainda surgem durante a noite e já vão escasseando à medida que o tempo passa.

Portugal enfrentou a guerra colonial em várias frentes e, sem menosprezo por aqueles que combateram em Angola e Moçambique, a guerra levada a cabo na Guiné, pelas suas características, foi, na minha opinião, a mais difícil e perigosa de enfrentar.

Nós, os que escolhemos, por vocação, a carreira das armas, não nos podemos queixar face aos milhares de cidadãos que partiram compulsivamente para combater nas ex-colónias.

Reflectindo sobre a minha vida militar e pelos diversos cargos que ao longo da mesma fui chamado a desempenhar, confesso que o Comando do DFE 4 foi, de longe, o que mais me marcou. Senti, de modo inequívoco, o peso da responsabilidade nas decisões a tomar e a noção das consequências que as mesmas poderiam ter sobre a vida dos comandados.

Senti uma aproximação que, presumo única entre o Comandante e o militar mais moderno da Unidade, ambos seres humanos, sofrendo as mesmas carências, executando o mesmo esforço físico e sujeitos de modo igual ao mesmo perigo.

Nestas condições a acção de comando é mais vulnerável, mas quando bem desempenhada, tem uma apreciação mais justa e respeitada por parte dos subordinados.

Sobre o que me solicitas, vou limitar-me a transcrever a parte do livro Guiné 1968 e 1973 (pág. 82/84) do Cor. Nuno Mira Vaz com a qual me identifico e por nela ter tido intervenção directa na tentativa do rompimento do cerco a Guidaje:


" (...) Na manhã de 22 de Maio partiu de Binta para Guidaje nova coluna logística, com a missão de, na volta, evacuar os militares e os civis feridos que ali tinham vindo a acumular-se por impossibilidade de evacuação. O deslocamento dos feridos parecia finalmente possível, face aos resultados alcançados no decurso da operação Ametista Real, a qual, de acordo com prognósticos generalizados, teria provocado uma grande desorientação nas fileiras do inimigo.

"Conforme planeado, a CCP 121 (1) encarregava-se da protecção próxima, a oeste da estrada Binta – Guidaje, cabendo a um Destacamento Misto de Fuzileiros (quarenta e dois elementos dos DFE´s nº 1 e nº 4), sob o comando do 1º Tenente AN/FZE Albano Alves de Jesus, a protecção imediata, a leste. A responsabilidade pela picagem do troço de itinerário entre Binta e Genicó foi atribuída a um grupo de combate da Companhia de Caçadores nº 14, da guarnição de Farim; daí para a frente, a missão ficaria a cargo de um pelotão reduzido (treze elementos) da Companhia de Caçadores nº 3.

"O deslocamento iniciou-se pelas sete horas e trinta minutos, tendo-se desenrolado sem incidentes até Genicó, embora em marcha lenta, justificada pela necessidade de se proceder a uma picagem cuidadosa do itinerário. Além disso, foi também necessário utilizar um desvio com cerca de mil metros de extensão, para contornar o local onde se encontravam completamente destruídas e calcinadas várias viaturas, testemunhas silenciosas da violência registada em anteriores tentativas de reabastecimento a Guidaje.

"Transposto o desvio e percorridos menos de cem metros sobre o itinerário normal, um elemento da Companhia de Caçadores nº 3 accionou uma mina anti pessoal, reforçada com uma mina anti carro, que lhe causou morte imediata. A relutância com que os picadores vinham procedendo à picagem do itinerário, e que tem de se compreender face à sucessão de acontecimentos dramáticos ocorridos nas últimas semanas, tornou-se mais viva, forçando o 1º tenente Alves de Jesus e o alferes Gomes Rebelo, da Companhia nº 3, a deslocarem-se para a testa da coluna, onde podiam acompanhar de perto a picagem – um dos trabalhos mais perigosos e desgastantes em qualquer acção terrestre.

"Dez metros adiante, foi accionada outra mina. A explosão provocou a morte do picador, tendo além disso ferido com gravidade dois elementos e projectado pelo ar, embora sem consequências pessoais, ambos os oficiais e radiotelegrafista da coluna.

"Informado, em Guidaje, da ocorrência, o tenente coronel Correia de Campos deu instruções para que se retomasse a progressão logo que estivesse concluída a assistência aos feridos, se possível com maior celeridade e de preferência utilizando um desvio, uma vez que o itinerário normal aparentava estar abundantemente minado. Porém, no decurso do tratamento dos feridos, deflagrou nova mina, desta feita colocada fora do itinerário, que provocou mais um ferido muito grave. Durante o atendimento a este ferido, foi detectada mais uma mina na orla do itinerário, a qual não foi levantada por não existir na coluna pessoal habilitado para o efeito.

"Atendendo ao desgaste sofrido pela coluna, foi decidido reforçá-la com um grupo de combate que saiu de Genicó e se lhe juntou cerca das 12H00. A disposição geral era de grande desalento, sendo especialmente preocupante a situação de um dos feridos, o qual perdia muito sangue por ter a perna esquerda decepada um pouco abaixo do joelho, além de ferimentos nos braços e no olho direito. Tendo reavaliado a situação, o comandante do COP 3 deu ordem para abortar o reabastecimento, pelo que a coluna regressou ao ponto de partida, que atingiu cerca das 17H45" (...).

O ferido muito grave atrás referido, com a perna decepada, após ter sido devidamente assistido em Bissau, foi evacuado para Lisboa para tratamento especializado e colocação de prótese. Recordo tê-lo encontrado há alguns anos em pleno Rossio (Lisboa). Referiu-me que já ia na 3ª prótese de adaptação e desempenhava actividade profissional num armazém.

Para selar o nosso reencontro fomos beber alegremente uma ginginha.


Caro amigo e camarada


Para finalizar: aprendi que a amizade nascida das vivências resultantes do perigo e das vicissitudes da vida são eternas!


Forte abraço do

Alves de Jesus

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Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 25 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1212: Guidaje, de má memória para os paraquedistas (Victor Tavares, CCP 121) (1): A morte do Lourenço, do Victoriano e do Peixoto