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segunda-feira, 23 de abril de 2012

Guiné 63/74 - P9790: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (14): O cap mil grad António Andrade, açoriano, terceirense, da 35ª CCmds... (ou a confirmação de que o Mundo é Pequeno e a Nossa Tabanca... é Grande)

Foto à direita: O BI militar, no CTIG, do António Graça de Abreu, ex-alf mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74.

Foto: © António Graça de Abreu (2010). Todos os direitos reservados


1. Que o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande, a gente já sabe. Ou melhor: é um trocadilho, uma das nossas boutades de caserna... Mesmo assim, a gente vai comprovando, uma vez por outra, a ver(aci)dade da nossa palavra... de ordem. 

Eu, por exemplo, no dia 21 de abril de 2012,  estava em Monte Real e fui lá encontrar três conterrâneos meus, lourinhanenses ou a residir na Lourinhã, e todos eles antigos camaradas de armas da Guiné: o Eduardo Jorge Ferreira, o João Marcelino e o Luís Mourato Oliveira. Só o Eduardo é que é, formalmente, membro da nossa Tabanca Grande. Quanto ao João, já o tinha encontrado algures, em Oeiras, e falado sobre uma coincidência engraçada que nos une, para além da Guiné e da Lourinhã: os nossos pais estiveram na mesma altura, em 1941/43, como expedicionários,  em Cabo Verde, na Ilha de São Vicente, mobilizados pela mesma unidade, o RI 5, das Caldas da Rainha. E ele até me prometeu escrever sobre isso, para a série Meu Pai, Meu Velho, Meu Camarada

Ele não é lourinhanse de nascimento, mas é de coração, vivendo em Fonte de Lima, é um homem afável, de espírito aberto, franco e brincalhão. O Luís Mourato Oliveira, por sua vez, é filho de uma lourinhanse, e temos amigos comuns na Marteleira... (Foi o último comandante do Pel Caç Nat 52 e teve dissabores, em agosto de 1974, com a malta da CCAÇ 21, em Bambadinca, do mesmo tipo que os do J. Casimiro Carvalho, em Paunca - enfim, uma história que eu espero que um dia destes nos conte, aqui, em público)...

Vem esta(s) história(s) a propósito de quê ?... No domingo seguinte, dia 22, de manhã, estou  eu com a Alice, no Mercado da Lourinhã, à volta da fruta e do peixe, e quem é que eu encontro ? O jovial João Marcelino, fresco como uma alface, acompanhado de um amigo, que ele me apresenta nestes termos:
- António Andrade, de Angra do Heroísmo,  somos como dois irmãos, eu vou a casa dele, ele vem à minha... Foi comandante da 35º de Comandos, esteve no CAOP1 com o António Graça de Abreu, em 1972... Foi capitão graduado. Podia ter ido ontem a Monte Real comigo, se não estivesse na ressaca de 4 implantes dentários... Mas hoje está melhor...

Conversa puxa conversa, lá falámos do livro do AGA, o Diário da Guiné. E logo o João Marcelino e o António Andrade aproveitaram para esclarecer que o número de mortos da 35ª CCmds no TO da Guiné não foram cinco mas apenas dois. O AGA já fora informado do lapso, tendo  prometido corrigir a informação numa eventual 2ª edição... 

Em homenagem ao João Marcelino e ao seu amigo e nosso camarada António Andrade - esperando que os dois um dia possam e queiram entrar para a nossa Tabanca Grande,  pela porta principal - aqui vai o excerto do Diário da Guiné onde se fala de uma ida a Bula, em coluna, com malta da 35ª CCmds... 

Com a devida vénia ao autor... (e, de certo modo também, uma maneira algo habilidosa de, "malgré lui",   associar o AGA, nosso tabanqueiro de longa data e bom camarigo, às comemorações do nosso 8º aniversário). (LG)

(...) Canchungo, 16 de Setembro de 1972

Meti os pezinhos ao caminho, estreei o camuflado e a minha espingarda, bala na câmara e aí fui eu, numa coluna com os Comandos, cerca de cinquenta homens com fitas de balas enroladas em volta do corpo, granadas, espingardas, metralhadoras, enfim não tínhamos o aspecto de quem ia para um piquenique. Avançámos na estrada de alcatrão para dentro da zona onde já há, ou pode haver, guerra a sério, onde os guerrilheiros se movimentam no TO da PU - ou seja Teatro de Operações da Província Ultramarina, - montam emboscadas, lutam contra esta tropa branca que lhes invadiu a terra. 

O caminho era até Bula, quarenta quilómetros atravessando as aldeias e os aquartelamentos do Pelundo e Có, lugares onde já correu sangue inocente em abundância, onde matas e bolanhas foram retalhadas pelos instrumentos que matam pretos e brancos.

Os meus companheiros eram os homens que trazem um crachá vermelho e negro ao peito, a 35ª. Companhia de Comandos. São gente da minha fornada, mais corajosa e melhor preparada. Por isso, senti-me seguro e protegido. Viajei no primeiro jipe, à frente da coluna com o comandante da Companhia, conduzido pelo capitão miliciano António Andrade, um excelente rapaz de Angra do Heroísmo, meu companheiro de conversas por dentro da noite no bar do CAOP 1. 

Não levámos divisas, se caíssemos debaixo de fogo éramos todos iguais. Mentalizei-me, pensei numa possível emboscada. Os primeiros tiros são os mais perigosos, depois é preciso rastejar rapidamente para fora da estrada e arranjar um lugar abrigado, não ao alcance do fogo do IN. No fundo, sou atirador de Infantaria e na Guiné começo a comprovar a justeza da frase que aprendi em Mafra, e que na altura me pareceu ridícula, um rotundo disparate: “Suor derramado na instrução é sangue poupado no campo de batalha”.

Correu tudo bem, almoçámos com os oficiais do quartel de Bula, o Andrade foi lá combinar uma operação com a tropa da região. Regressámos a meio da tarde. Eu adivinhava os guerrilheiros negros, de coração vermelho como nós, a espreitar na mata, mas não houve nenhum problema, sem contactos.

Estou a exagerar a perigosidade do itinerário até Bula. É esta a estrada que depois conduz a Bissau, há colunas militares com veículos civis todas as terças e sextas e é raríssimo registarem-se emboscadas. Mas nunca fiando. Regressámos em paz. Acompanhei os Comandos porque queria sair de Canchungo e conhecer. Fez-me bem.

Esta 35ª. Companhia de Comandos (#) já teve cinco mortos em combate (*). Vieram para a Guiné comandados pelo capitão António Ribeiro da Fonseca. Ora este homem, foi meu instrutor de táctica e guerrilha quando fiz a especialidade como Atirador na Escola Prática de Infantaria, em Mafra. Ele era então alferes Comando, conhecido como o “Bala Real” porque andava sempre com uma espingarda Kalashnikov que trouxera de Moçambique munida de balas reais. De vez em quando, tinha o gosto de disparar sobre as nossas cabeças para nos habituar às balas e fazer perder o medo. Nunca esqueci uma cena delirante.

Estávamos na Tapada a descansar após uma caminhada, perto do Portão Verde, do lado da Murgeira. Um dos cadetes do pelotão foi urinar e plantou-se diante de um pinheiro. Rápido, o “Bala Real” pegou na espingarda, fez pontaria à pila do rapaz e, a mais de vinte metros, disparou. O moço que estava meio de costas a mijar para a árvore, não viu o gesto do alferes Comando mas ouviu o disparo e sentiu o impacto da bala no pinheiro, a centímetros da sua pila. Voltou-se para nós, ainda com a pila na mão, branco, a tremer. O “Bala Real” perguntou-lhe: “Veja lá se a bala furou ou não furou o pinheiro!...” Ele não conseguia ver coisa nenhuma mas era verdade, a bala tinha atravessado a árvore de lado a lado.

O capitão Ribeiro da Fonseca foi o primeiro comandante da 35ª. de Comandos que está connosco no CAOP 1. Em Janeiro, numa operação na Caboiana foi ferido com um estilhaço que lhe perfurou um braço, evacuaram-no para Portugal e já não voltou.

Mas deixou boa fama por aqui. Disse-me um furriel Comando que, com ele, atacavam o IN ao som de um trompete.(##)

O António Andrade, alferes miliciano com a melhor classificação de curso na 35ª, foi graduado em capitão e tem comandado a companhia, a contento de todos. (...)
___________

Notas do autor:

(#) Para uma história breve da 35ª. Companhia de Comandos, ver Resenha, 7º. Vol., tomo II, pag. 535.

(##) Sobre a carreira militar do capitão António Joaquim Ribeiro da Fonseca ver o seu depoimento em Os Últimos Guerreiros do Império, Amadora, Editora Erasmos, 1995,  pp. 145-162.

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sexta-feira, 30 de março de 2012

Guiné 63/74 - P9681: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (13): Mansoa, 30 de Março de 1973: Faço hoje vinte e seis anos...




Carta da província da Guiné) > Escala 1/ 500 mil > Pormenor > Posição relativa de Mansoa, com Binar e Bula a oeste, e Porto Gole e Bambadinca, a leste.



1.  Com comissões de serviço militar de 2 anos, inicialmente, e depois de 21 meses, muitos de nós celebraram (!) dois ou até três aniversários natalícios no TO da Guiné... O mesmo aconteceu ao nosso camarada António Graça de Abreu (abreviadamente, AGA, nascido em  23 de março de 1947, no Porto, ex-Alf Mil do CAOP1, 1972/74, aqui na foto à esquerda, ): fez os 26 anos em Mansoa (região do Oio) e os 27 em Bissau ou em Cufar (região de Tombali), tendo regressado a Portugal, nas vésperas do 25 de abril de 1974... Em Mansoa já não era "pira", com 9 meses. 

Essa efeméride (a do aniversário natalício de 1973) é a única que consta do seu diário. (Os seus 27 anos deve tê-los passado em Bissau, regressando a 31/3/1974 a Cufar, de avioneta). Com a devida vénia, vamos reproduzir - para conhecimento da generalidade dos nossos leitores - esse excerto do Diário da Guiné, 1972/74, da autoria do AGA, de que temos um ficheiro em word, o mesmo que serviu de base à edição do seu livro Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp) (*). 

 Mas primeiro chamamos a atenção para algumas excertos  do prefácio, em que explica o como surgiu e decidiu publicar este documento diarístico... E hoje, como é dia do seu 65º aniversário, fica bem a um amigo e camarada da Guiné, e seu leitor, como eu, congratular-me por esta efeméride, e desejar ao AGA cem anos de ventura(s)!... Que a ta vida tenha sempre a beleza de flor de lótus, a consistência do jade,  o conforto e a fantasia da sede!... E, claro, sempre, sempre, sob a proteção do irã acocorado no sagrado poilão da nossa Tabanca Grande (LG)



Apesar de tudo, a vida é bela quando se tem 26 anos (celebrados em Mansoa, em 1973)... E continua a sê-lo, aos 65, em Portugal, nesta parte do planeta, que é a nossa casa!... Parabéns, meu amigo AGA, camarada, escritor, poeta, tradutor, sinólogo! "Sínico, mas não cínico", como ele gosta de se definir...


2. Excertos do diário  > Prefácio

(...) "Não sendo propriamente um operacional, o facto de estar integrado num comando de operações [, CAOP 1,] e de contactar todos os dias homens e lugares onde ocorriam acções militares, possibilitou diluir-me no quotidiano da guerra, vivê-lo por dentro, ser testemunha e actor de um drama real que se desenrolava diante de nós, camaradas de armas e desdita.


"Tinha então vinte e cinco, vinte e seis, vinte e sete anos e, tal como muitos outros milhares de soldados enviados para as guerras de África, escrevi um 'diário secreto', redigi centenas de aerogramas e cartas endereçadas a familiares, a amigos em Portugal.

"Três anos depois de regressar da Guiné, os acasos da fortuna levaram-me outra vez para distantes paragens, agora o Extremo Oriente, a China onde – depois de todas as guerras - me embebi num quotidiano de paz, sortilégios, alvoroços e fascínios a povoar o respirar célere da passagem dos anos. Quase esquecia o tempo da Guiné.

"Os anos passaram. De novo em Portugal, sabia que continuavam comigo o 'diário secreto' e muitas das cartas que escrevera em África. Mas considerava esses textos uma herança demasiado pessoal. Publicar, dar a conhecer o 'diário' corresponderia talvez a um confessado exercício de auto-complacente contemplação do umbigo, de narcisismo. Eu, eu e mais eu.


"Os anos passaram. Até que, em finais de 2005, a publicação dos aerogramas e cartas escritas em Angola por António Lobo Antunes, entre 1971 e 1973 - e que li de um fôlego, - me recordou o 'diário', os meus textos da Guiné. Ainda somos algumas centenas de milhares de portugueses que, como militares, vivemos as guerras de África, no entanto a memória desses anos vai-se inevitavelmente esbatendo, esquecendo. 

"Que conhecem os nossos filhos, os nossos netos do dia a dia dos seus pais e avós combatentes na Guiné, em Angola e Moçambique? Que sabem do que comíamos, onde dormíamos, como nos deslocávamos, o que sentíamos, como eram as emboscadas, as flagelações, a morte, o medo, as bebedeiras, a alegria? Como era a guerra por dentro? Os meus escritos dos dias da Guiné respondiam a algumas destas questões e, longe de qualquer comparação com a prosa exuberante do autor de Os Cus de Judas, acabei por considerar que valia a pena recuperá-los e publicar". (...).



Guiné > Região do Oio > Mansoa > CAOP 1 > Março de 1973 > O Alf Mil António Graça de Abreu (1972/74) junto ao obus 14.... Antes, e desde finais de junho de 1972,  estivera em Teixeira Pinto (Canchungo). Terminará a sua comissão em Cufar, no sul, regressando a Portugal nas vésperas do 25 de Abril de 1974.


Foto:  © António Graça de Abreu (2010). Direitos reservados


(...) Mansoa, 30 de Março de 1973

Faço hoje vinte e seis anos, de certeza também complementarei os vinte e sete nesta santa Guiné. Tantos dias ainda a percorrer, tanto vazio a preencher! Se tudo correr bem, daqui a um ano estarei em Bissau à espera do avião para regressar a casa e deixar de vez a guerra.

Ninguém sabe que eu faço anos e não foi para recordar a data que às seis da manhã os obuses começaram a bater a zona, a mandar granadas de canhão para os possíveis locais onde os guerrilheiros se estariam a levantar da cama.

Às oito, foram os combatentes do PAIGC a flagelar à distância a frente de trabalhos da estrada Jugudul-Porto Gole-Bambadinca, sem resultados. É a quarta vez nestes últimos três dias, o que só serve para criar insegurança e fazer barulho. Os nossos obuses começam a ripostar e lá se vai o sossego, o nosso e o do IN.

O meu coronel, o meu major P. e um tenente-coronel que está aqui emprestado ao CAOP, foram esta manhã de jipe, com uma pequena escolta, a Bula e Binar, tratar de assuntos relacionados com ofensivas sobre o IN. Os guerrilheiros sabiam que gente importante ia chegar a Binar e estavam à espera, emboscados junto à pista de aviação. Falharam a recepção porque os 'homens grandes' brancos não chegaram de avião, viajaram por estrada. Foram e regressaram em paz. (...)

(...) Cufar, 31 de Março de 1974

Prometi que só regressava a Cufar depois de ter resolvido o problema do meu substituto. Pois agora é verdade, já desencantaram o homem. É o alferes Lopes, apenas com quinze dias de Guiné. Tem a especialidade de Secretariado, estava exactamente destinado à 1ª. Repartição, em Bissau, e ou porque têm gente a mais ou porque eu os chateei demasiado nestes últimos dez dias, desviaram-no para Cufar. Encontrei-o na piscina do Clube de Oficiais, almocei com ele, animei-o – está um bocado abalado com a vinda para o mato, - disse-lhe que Cufar é mauzinho mas se ele fosse atirador de Infantaria e tivesse sido colocado em Cadique ou Jemberém ou Gadamael, seria bem pior. (...)

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Nota do editor

(*) Último poste da série > 23 de março de 2012 > Guiné 63/74 - P9642: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (12): Os infelizes que estão em Cobumba...


sábado, 10 de março de 2012

Guiné 63/74 - P9594: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (11): A PIDE/DGS, a repressão estudantil em Lisboa, Portugal e o Futuro...

1. Um diário de guerra, para mais escrito como este com base em documentos pessoais da época, e publicado,  sem censuras nem rasuras, em 2007, é um "livro aberto", um documento com maior ou menor interesse em termos de informação e conhecimento  sobre o autor e a sua circunstância, neste caso o Teatro de Operações da Guiné, entre meados de 1972 e as vésperas do 25 de abril de 1974, visto por um alferes miliciano, não operacional, de um CAOP (Comando de Agrupamento Operacional), ligeiramente mais velho do que a generalidade dos milicianos (que integravam as unidades combatentes), e para mais com formação universitária. 

No seu diário, o António Graça de Abreu (nascido em 1947, no Porto, ex-Alf Mil do CAOP1, 1972/74) dá-nos notícias do que se passa nas guarnições onde esteve (Canchungo, Mansoa, Cufar) assim como das informações, classificadas, a que tem acesso privilegiado, sobre o IN e sobre as NT... 

Falámos também dele, das suas preferências,  dos seus gostos, dos seus amores, das suas leituras... Falá-nos da metropóle e do que lá se passa, da repressão estudantil, dos seus sonhos e projetos futuros...  Fala-nos também da PIDE/DGS, do seu papel, e da relutância que alguns de nós tinham em relacionar-se com os seus agentes no TO da Guiné... Enfim, fala-nos dos tempos que estão a mudar e inquieta-o, também, o futuro da sua/nossa querida pátria, a propósito da publicação do livro do gen António Spínola, Portugal e o Futuro... 

Com a devida vénia, ficam aqui mais alguns excertos do seu Diário da Guiné, 1972/74, de que temos um ficheiro em word, o mesmo que serviu de base à edição do seu livro Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp) (*). (LG)

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(…) Canchungo, 13 de Julho de 1972


Recebi carta do Bolhé da Silva, um dos meus alunos de Português nas aulas para adultos que dei quase até embarcar para a Guiné na Cooperativa Vis, no bairro do Bosque, Amadora. Escrevera para lá um aerograma perguntando como haviam corrido os exames. Estes meus ex-alunos de Português são quase todos alentejanos e operários da Sorefame. Voltaram a estudar para concluir o ciclo. Fiquei satisfeito por saber que a maioria deles dispensou às orais.

O meu trabalho e o dos outros professores, todos a dar aulas sem ganhar um tostão, não foi em vão. Tive gosto em ensinar, em aprender. Mas continuo convencido que vim parar à Guiné por causa destas aulas. Há dois meses a PIDE/DGS foi visitar a Cooperativa – que creio ter relações clandestinas com o Partido Comunista –  e pediu o nome e profissão de todos os professores dos cursos do Ciclo Preparatório. Três semanas depois, já com quase dois anos de tropa em Portugal, fui estranhamente mobilizado para a Guiné.

[ Nota de rodapé: A polícia política seguia os meus passos desde Outubro de 1967. É curioso o meu processo consultado só agora em 2006: Arquivo Nacional da Torre do Tombo, PIDE/DGS, Procº. 9175 C7 (2) – NT 7555.]

(...) Teixeira Pinto ou Canchungo, 26 de Julho de 1972

Abro muito os olhos e os ouvidos, meto tudo dentro de mim, falo pouquíssimo, quase não reajo, não demonstro nada. Mas sinto que em Portugal é que o PAIGC vai ganhar a guerra, aqui não a perde e no terreno não a consegue ganhar.

No labor quotidiano no Comando de Operações, passam pelas minhas mãos documentos fundamentais para se entender a guerra na Guiné. Chegam de Bissau e são as informações diárias e semanais, os relatórios mensais de operações com todos os dados, bombardeamentos, flagelações, ataques, emboscadas, os números dos milhares de quilos de bombas lançadas pelos nossos aviões, o número de mortos e feridos, NT e IN, dias, horas, particularidades dos ataques, etc.

Esta documentação tem a classificação de confidencial e secreta. Vêm também as informações da PIDE/DGS com dados sobre a movimentação dos guerrilheiros, natureza dos acampamentos IN e outros elementos. Um exemplo, pela PIDE de Canchungo soubemos que neste momento estão dentro da Guiné sete jornalistas de nacionalidade checa, búlgara e russa. Entraram, vindos do Senegal, pela fronteira junto a S. Domingos, uns oitenta quilómetros a norte daqui.

O meu major P. não gosta muito do Sr. Costa, o agente da PIDE/DGS em Canchungo, que tem uma vivenda aqui na avenida. O major diz que o Costa, para mostrar serviço, de vez em quando inventa factos e notícias. Parece-me bem possível. Estive em casa dele a semana passada e, no desempenho de funções, tive de lhe apertar a mão. Coisas impensáveis em Lisboa. (…)

Dia 3 de Agosto vai ser data quente na Guiné. É o aniversário do PAIGC e por isso estão planeadas para esse dia diversas acções de guerrilha, encontrando-se Canchungo no rol das terras a atacar. A informação chegou pela PIDE/DGS de Bissau.

No caso de um ataque, já estive a preparar a minha defesa. Como não sou operacional, fico no meu aposento (se estiver lá no momento da flagelação!) e vou para o pequeno quarto de banho que é interior e tem paredes duplas de tijolos. O problema é o tecto que é de lusalite e não resiste a um impacto, de cima para baixo, de um foguetão ou granadas de grande calibre, mas o quarto de banho resiste ao resto. E é altamente improvável que o fogo do IN vá logo acertar nos três metros quadrados de telhado do meu quarto de banho.

Ainda estou virgem quanto a flagelações, emboscadas, bombardeamentos. Vou perder a virgindade em breve, tenho a certeza.

(…) Canchungo, 5 de Agosto de 1972

Canchungo não foi atacada, a informação do tipo da PIDE/DGS de Bissau era falsa.

Mas foram outros aquartelamentos NT. Leio os relatórios quotidianos das acções na Guiné e vejo os lugares onde os militares portugueses levaram (e deram) porrada. Os guerrilheiros fazem o que têm a fazer, eu compreendo, é a luta deles. Mas também é verdade que não gosto de ver as NT serem flageladas. Eu estou deste lado da barricada, com os homens iguais a mim expatriados nesta pequena África suja e quente. São meus amigos, é a minha gente. Não merecemos ser atacados, nenhum de nós merece sofrer, morrer por uma causa que quase ninguém sente.

(...) Mansoa, 1 de Maio de 1973

Não sei quem é que disse que “cada português traz um polícia dentro de si”. E além dos polícias “dentro” existem muitos “fora”, à nossa volta. (…)

Mansoa, 8 de Maio de 1973

Leio na Presse, um boletim informativo para militares que nos chega de Bissau, que houve zaragatas entre estudantes e polícia na Cidade Universitária, em Lisboa. Desta vez os polícias não foram nada meigos, dispararam mesmo mas, segundo a Presse, dispararam para o ar. Curioso terem atingido um estudante que voava. (…)

(...) Cufar, 22 de Fevereiro de 1974

Regressei no Nordatlas, na viagem certinha até cá abaixo. Tudo calmo em Cufar. No nordeste da Guiné, em Copá junto à fronteira, é que tudo vai mal. Mal para as NT, bem para o IN. Ouvi falar num ataque com cem foguetões, valha-lhes Deus! Começa a ser insustentável aguentar Copá.

Em Portugal as coisas também aquecem, com manifestações contra a carestia de vida organizadas pelos maoístas do MRPP. Houve pancadaria da grossa, três polícias feridos, um deles levou uma pedrada na cabeça. O povo não anda bom.

Em Bissau rebentou uma bomba no quartel-general. E que dizer do novo livro de António de Spínola Portugal e o Futuro? O antigo Caco Baldé, meu ex-comandante-em-chefe, propõe soluções federalistas para a resolução dos conflitos do Ultramar. O livro vai ter sucesso entre os liberais, o grupo do Balsemão e do Expresso, e também entre alguma da Oposição. Abençoadamente, agitará os espíritos de muitos portugueses.

O Marcello Caetano começa a ficar exasperado. No essencial, o mestre de Direito limitou-se a dar continuidade à política de Salazar e não sabe, ou esqueceu-se, como diz o Bob Dylan que “the times, they are a’changin”. O general Spínola aponta caminhos enviesados, é verdade, mas indica possíveis saídas para o pântano fétido em que vivemos.

Que futuro para Portugal? (…)
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Nota do editor: 

(*) Vd. último poste da série > 25 de fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9531: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (10): As vozes da nova música popular portuguesa (incluindo o Zeca Afonso) que chegavam ao CAOP1 através das ondas hertzianas da rádio

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Guiné 63/74 - P9531: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (10): As vozes da nova música popular portuguesa (incluindo o Zeca Afonso) que chegavam ao CAOP1 através das ondas hertzianas da rádio

1. Pela rádio chegavam ao TO da Guiné vozes, música, notícias... de todo o mundo. Captava-se, em onda curta,  a BBC, mas também-se a Emissor Nacional, a Voz da América, a Rádio Moscovo... Pelo menos, em Teixeira Pinto, Mansoa, Cufar, que foram sucessivamente sede do CAOP1...

 No seu diário, o António Graça de Abreu (ex-Alf Mil do CAOP1, 1972/74) dá-nos conta de alguns desses encontros hertzianos com o mundo... A internet ainda estava para nascer, dali a 20 anos, mas o mundo já era cada vez mais global. E em 1973 acabava a época dos 30 gloriosos, os trinta anos de crescimento económico ininterrupto, os anos do milagre económico do Ocidente... A primeira grande crise petrolífera, a de 1973,  era também o primeiro grande sinal de alarme sobre o esgotamento de um certo modelo de produção e de consumo... 

 José Afonso (1929-1987), que morreu fez agora  25 anos, em 23 de fevereiro de 1987, é referido pelo AGA como tendo passado na emissora nacional (Bissau) com o seu belíssimo Traz Outro Amigo Também, um verdadeiro hino à amizade e à camaradagem (Do álbum do mesmo nome, gravado em Londres, nos estúdios da PYE, e editado em 1970; o que muita gente não sabe é a forte ligação, emocional e musical, do Zeca Afonso, a Africa, e em especial a Angola e Moçambique).

Por gentileza, generosidade e camaradagem do AGA, aqui ficam aqui mais quatro excertos do seu Diário da Guiné, 1972/74, de que temos um ficheiro em word, o mesmo que serviu de base à edição do seu livro Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp) (*).



(....) Canchungo, 17 de Julho de 1972

Soube pelo “Diário Popular” de anteontem, que traz fotografia e tudo, que em Cabo Ruivo foram postas bombas em treze camiões Berliet destinados ao nosso exército que sofreram assinaláveis estragos. É um protesto contra a política bélica do Marcello Caetano.

Na rádio, ouvi também o relato do sucedido. Tenho no meu quarto uma ligação a uma antena com 40 metros de altura, montada pelo meu companheiro, alferes Tomé, o chefe das transmissões do CAOP. Com o rádio em onda curta captam-se inúmeros postos com uma nitidez sensacional, é a BBC, Moscovo, a Voz da América, Tirana, a Rádio Voz da Alemanha, Argel, etc. Mais um entretenimento útil de que benificio e sou rapidamente informado do que acontece nos quatro cantos do mundo.

(...) Canchungo, 31 de Agosto de 1972

Na Guiné existe apenas uma emissora de rádio, prolongamento da Emissora Nacional. É divertida, tem anúncios locais, passa discos pedidos, acção psicológica, etc.

Há dias ouvi por várias vezes o seguinte mimo, mais ou menos nestes termos: “A Casa Pinto lamenta informar os seus excelentíssimos clientes que a aguardada remessa de camisas Lacoste foi mais uma vez desviada entre a origem e a cidade de Bissau pelo que não poderá ainda desta vez satisfazer as encomendas dos seus estimados clientes e amigos.” Onde foram parar as Lacoste, desviadas para onde e por quem?

Ao fim de quase dois meses a ouvir música fraquíssima, fui hoje surpreendido ao ouvir o meu bom amigo e colega de faculdade António Macedo cantar o “Cavaleiro cavalgando no meu sonho” e o José Afonso, o homem da “Grândola”,  a cantar “Traz outro amigo também”. Quer isto dizer que os discos existem em Bissau, só que os passam pouco. Deve ser por causa do calor e dos mosquitos que pousam no vynil dos LPs.

Outra surpresa nas minhas leituras de hoje, foi encontrar uma citação do Antigo Testamento. Diz: 'Os teus seios são semelhantes a dois filhotes de gazela pastando no meio de lírios'. Isto foi escrito há dois mil e novecentos anos pelo rei Salomão, no Cântico dos Cânticos e publicado, quem diria!, no Jornal do Exército português, número de Junho de 1972.

(....) Mansoa, 1 de Março de 1973

Escrevo deitado na cama, a prancha de contraplacado a servir de escrivaninha, por cima tenho a ventoinha a mandar vento.

Ouvi o Festival da Canção em directo de Lisboa, via rádio de Bissau. Ganhou a “Tourada” do Fernando Tordo e do Ary dos Santos, e muito bem. Se há reacções dos reaccionários é sinal de que vale a pena espetar “as bandarilhas da esperança” na fera cavernosa que há tantos anos decide o destino político de Portugal, este regime velho e caduco. Seremos um dia livres, na “Praça da Primavera”.

A poesia do Ary dos Santos, “poeta castrado, não!”, mas engordado e feminino, parece-me por vezes demasiado fácil, demagógica. É inferior a muita outra poesia aparentemente “chata” que se escreve em Portugal, mas a do Ary tem uma vantagem, chega facilmente à compreensão de grande número de pessoas. É importante porque abala as gentes, intervém.


(...) Cufar, 7 de Março de 1974

Neste exacto momento em Portugal, há milhões de pessoas especadas diante do televisor à espera do Festival da Canção.

Aqui na guerra do sul da Guiné, acabou de morrer um homem, outro está moribundo. Oiço o roncar dos motores do Nordatlas que, com a pista iluminada acabou de aterrar e vai levar gente ferida para Bissau.

Lá longe, satisfeitos, os portugueses deliciam-se com melodias, músicas capazes de enternecer uma mula ou um burro. Neste pequeno lugar do mundo, em África, um homem retalhado tem o corpo a arfar nos estertores da morte. Vim há pouco da enfermaria, vi tudo, continuo a ver demais.

Foi em Caboxanque, os nossos vizinhos do outro lado do rio Cumbijã. (...)  Na noite de luar, os barcos sintex trouxeram os feridos para Cufar. Neste momento o Nordatlas levanta de voo levando os homens de Caboxanque para o hospital de Bissau. No rádio, no Festival da Canção, o Artur Garcia canta a “Senhora Dona da Boina”. (...)

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 20 de fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9511: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (9): Circo... e bombas que não eram de carnaval ... em 1974

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Guiné 63/74 - P9511: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (9): Circo... e bombas que não eram de carnaval ... em 1974


Guiné > Região de Tombali > Guileje > CART 1613 (1967/68)> Alguns dos quadros da companhia, vestidos com trajes fulas... Presume-se que fosse uma brincadeira de Carnaval... Dois militares parodiam a PM - Polícia Militar... O Eurico Corvalho † podia ser o terceiro a contar da esquerda,  pelo menos é alguém que parodia a figura do capitão. "Aqui de certeza é o Corvacho, um bom amigo", garantiu-me uma vez o Nuno Rubim, que foi seu camarada da academia (O Nuno era de um curso anterior ao do Eurico)... Mas o Zé Brás,  que também o conheceu, em Mejo e Guileje,  diz que não... (LG).

Foto: © Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). (Fotos do José Neto † , reeditadas por Albano Costa). Todos os direitos reservados.


Guiné > Zona leste > Sector L1 (Bambadinca) > Xime > CART 1746 (Bissorã e Xime,1967/69) > A RTX - Rádio Televisão do Xime, em ação, no Carnaval de 69...  


 Foto: © Manuel Moreira (2011)/ Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.


1. Que a guerra não rima com carnaval, isso toda a gente sabe. Na Guiné, em tempo de guerra não se limpavam armas...No carnaval de 1970, 9 de fevereiro, lembro-me de ter levado porrada da grossa.  No mesmo dia, embarcava para a Guiné o Cap Mil Art Jorge Picado, deixando mulher e quatro filhos... 

Outros, eram capazes de se desenfiar por umas horas, em dia de carnaval (ou noutro dia qualquer), por uma boa causa como a de ajudar os camaradas a comer um cabritinho assado:  estou-me a lembrar do Tomás Carneiro, o nosso camarigo açoriano, que no Carnaval de 1973  fez Jugudul-Polibaque sozinho, com o seu Unimog ou  Berliet e a sua G3, só para matar saudades dos amigos de Polibaque...

Em suma, não sobrava tempo (e muito menos ainda disposição) para "brincar ao carnaval"... É possível que, num ou noutro sítio, num ou noutro tempo, houvesse quem arranjasse tempo e pachorra para se mascarar, reinar, parodiar, brincar... Estou-me a lembrar dos foliões da CART 1613 (Guileje) ou da CART 1746 (Xime) de que publicamos  fotos acima... O ser humano é imprevisível... Tragédia, drama e comédia, podiam acontecer no mesmo dia, e até em dia de carnaval...

Fui ao Diário do António Graça de Abreu (AGA) mas lá não há referências ao Carnaval. Minto: há uma, mas é irónica... Em contrapartida, um mês antes, tinha passado por  Cufar o circo!.. Podem achar surreal, mas houve pelo menos uma companhia de circo, em deambulação pela Guiné, no 1º trimestre de 1974... Esteve em Cufar, no dia 25 de janeiro de 1974... Nesse ano o carnaval, foi a 26 de fevereiro... 

Por gentileza e generosidade do nosso camarigo AGA, aqui ficam aqui mais dois  excertos do seu Diário da Guiné, 1972/74, de que temos um ficheiro em word, o mesmo que serviu de base à edição do seu livro Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp) (*).


(...) Cufar, 25 de Janeiro de 1974

A companhia do “Circo Sevilha” chegou a Cufar para um grande show destinado às nossas Forças Armadas e à população nativa. De manhã cedo, o Nordatlas trouxe os artistas e os adereços, veio buscá-los à tardinha, de regresso a Bissau. O exército pagou aos talentosos artistas, deu-lhes cabrito assado para o almoço, forneceu o público.

O circo serviu para distrair, dar fantasia à dureza dos dias, adoçar-nos a boca cheia de temores e angústias amargas.

O que é um circo? Quem são os homens que fazem um circo? Para que serve um circo?

Juntam-se as pessoas num grupo, cada uma delas capaz de executar um truque ou habilidade, ou de colaborar na realização de diferentes números, difíceis, fantásticos, surpreendentes. Os artistas, o prestidigitador, o músico do trompete, a “partenaire” do equilibrista, o carregador de aparelhos para dentro e fora da pista, os animais, os palhaços.

O circo. Música de tchim-pó-pó, o movimento e a cor, os saltos no ar, lantejoulas, garridice, a fantasia, alegria com vislumbres de verdade, tristeza com laivos de exultação e festa.

O circo. Momentos de espanto e de magia, mas o gato com rabo de fora. Gente que ganha e gasta a vida. Povo real, os trajes coçados pelo uso, os corpos deselegantes e cansados, as meias rendadas rotas, os truques velhos, o espectáculo pobre.

Boquiabertos, assistimos ao retrato original do que também somos.


(...) Cufar, 25 de Fevereiro de 1974

Véspera de Carnaval e houve grande folia pelas terras do sul da Guiné. Foram rebentamentos uns atrás dos outros, de manhã à noite. São agora nove horas, às oito ainda os Fiats largavam bombas e mais bombas sobre os refúgios do PAIGC. Os guerrilheiros resolveram atacar Bedanda, três vezes ao longo do dia, mais Caboxanque, duas vezes, Cadique, Jemberém e Cameconde. Em Caboxanque houve três feridos entre a população, nos outros, apenas os estragos materiais do costume. (...)

[Foto acima: Máscara bijagó, Bubaque, 13 de dezembro de 2009. Foto de João Graça]

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 12 de fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9475: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (8): Boatos, em Lisboa, de ameaças de ataques a aviões da TAP... e de bombardeamentos aéreos aos nossos aquartelamentos

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Guiné 63/74 - P9475: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (8): Boatos, em Lisboa, de ameaças de ataques a aviões da TAP... e de bombardeamentos aéreos aos nossos aquartelamentos

1. Na guerra o boato também é (ou pode ser utilizado como) uma arma... De referências a boatos também é feito o Diário do nosso amigo e  camarada António Graça de Abreu (AGA)...  

Por gentileza e generosidade suas, aqui ficam mais uns excertos do seu Diário da Guiné, 1972/74, de que temos um ficheiro em word, o mesmo que serviu de base à edição do seu livro Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp) (*).
 
(...) Cufar, 27 de Junho de 1973

De Lisboa, contam-me as “bocas” que por lá correm. E “bocas” falsas.

Fala-se em evacuar da Guiné mulheres e crianças. Mas onde e porquê? É verdade que a população nativa, os africanos das aldeias de Guidage, Guileje e Gadamael, abandonou essas tabancas por causa do perigo nas flagelações constantes do IN. Mas não houve nenhuma evacuação nem sei se tal está previsto pela nossa tropa. Também é verdade que muitos milhares de habitantes da Guiné Portuguesa procuraram fugir à guerra e refugiaram-se quer no Senegal quer na Guiné-Conacri, no entanto esta procura de um lugar mais pacífico para habitar não é novidade, começou há já alguns anos com o agravamento do conflito armado.

De Lisboa, dizem-me também que o Eng. Vaz Pinto se demitiu de presidente da TAP por causa de um ultimato do PAIGC, mais ou menos nestes termos: se os aviões da TAP voarem para a Guiné, serão abatidos, se transportarem militares dentro da Guiné, também serão atingidos pelos mísseis terra-ar. Ora isto nada tem a ver com as realidades que aqui vivemos. Deve ser invenção.

Os aviões da TAP vindos de Lisboa e de Cabo Verde entram e saem da Guiné voando sobre as ilhas dos Bijagós e a chamada ilha de Bissau. Com 99,9% de certeza posso garantir que os guerrilheiros não controlam nem têm efectivos militares nessas regiões. São as zonas mais seguras de toda a Guiné. Os aviões da TAP também não fazem qualquer transporte de tropas dentro da Guiné. Os transportes via aérea são assegurados pelos três Nordatlas e pelos dois DC 3 da Força Aérea. Nada têm a ver com a TAP, nem sequer quanto à manutenção. Depois, creio que os homens do PAIGC não estão interessados em atacar aviões civis, grandes ou pequenos. Não atacam os TAGP (Transportes Aéreos da Guiné Portuguesa) e vão atacar a TAP?... 



Os TAGP são a linha civil, comercial da Guiné. Têm quatro avionetas Auster de cinco lugares e transportam sobretudo civis. Em Abril e Maio, no período crítico a seguir à queda das cinco aeronaves militares, os TAGP ajudaram na evacuação de feridos porque a Força Aérea Portuguesa não voava. Os pilotos dos TAGP não são suicidas, também voam ou muito alto ou muito baixo, mas as suas avionetas vermelhas e brancas, mais pequenas do que as DOs, são facilmente referenciáveis cá de baixo. Quem sabe se os TAGP, mesmo colaborando com as NT, não são também úteis ao IN?

Agora em Cufar, volto a lidar diariamente com os pilotos, almoçam comigo, conversamos bastante. Creio estar bem informado do que se passa na Guiné, em termos de aviões.

Em Portugal, as “bocas”, os boatos são galopantes. Pela ponta de um dedo, toma-se o braço todo.

(...) Cufar, 13 de Agosto de 1973


O Chugué já não “embrulha” há dezassete dias, Cufar há quatro meses. Estamos felizes.

Mas fala-se em aviões para o PAIGC, Migs e tudo! Pelo sim, pelo não estou a arranjar, ou melhor, a mandar os soldados arranjar o abrigo subterrâneo nas traseiras da minha tabanca. No caso de guerra aérea, Cufar pode ser um alvo importante, temos uma grande pista de aviação e reabastecemos os aquartelamentos no sul da Guiné. 


Se o PAIGC, a partir do Senegal ou da Guiné-Conacri, conseguir meter aviões dentro desta sagrada parcela da Pátria, vai ser um sarilho monumental, inclusive a nível internacional. Há quem diga que o domínio português na Guiné está por um fio. Eu digo que está por uma corda. Os guerrilheiros lá vão roendo a corda, no entanto são incapazes de a transformar num fio.

O evoluir da situação depende de Portugal e do maior auxílio internacional dado ao PAIGC. As coisas tendem cada vez mais para o lado dos guinéus, mas os guerrilheiros não vencem contando apenas com umas ajudazinhas externas. Se receberem umas ajudazonas, por exemplo, aviões equipados com o que de mais moderno existe, o caso muda de figura. Os nossos Fiats não são capazes de responder a aviões do topo da tecnologia, têm raios de acção curtos, só com dificuldade poderiam ir bombardear bases aéreas do PAIGC no Senegal ou na Guiné-Conacry, correndo ainda o risco de serem abatidos.

Se vêm aviões IN, será talvez a debandada das nossas tropas, com muitos mortos, muito medo, uma desmoralização ainda maior. Abandonaremos a Guiné com os fundilhos das calças todos rotos e um buraco fechadinho ao fundo das costas.

(...) Cufar, 14 de Janeiro de 1974

Por aqui, a nossa insegurança e incerteza face ao futuro próximo gera boatos e mais boatos.


Diz-se que o PAIGC mais a República da Guiné-Conacri vão lançar um ultimato. Ou começam negociações de paz para se acabar com a guerra ou eles avançam com aviões e bombardeiam os nossos aquartelamentos. Diz-se também que o general Bethencourt Rodrigues pediu a demissão ao Marcello e vai embora em Fevereiro. Enfim, bocas, o cagaço, a imaginação a bulir dentro das pessoas, talvez sobre fundos de verdade.

A minha vida na Guiné, eu, o móbil, o centro. Não apenas eu. Tudo o que vejo e sinto começa e acaba no meu eu pessoal, limitado, egoísta. Os olhos são meus, o coração é meu. E escrevo. Há muita gente em meu redor, interveniente, que também escreve cartas, não sei se diários secretos. O que sinto é que a minha caneta pode talvez ser a voz de muitos outros. Porque eles é que são o todo, o fulcro dos dias. (...)

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 2 de fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9437: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (7): Andava-se de sintex, com motor de 50 cavalos, no Cumbijã, nas barbas do PAIGC... e fazia-se esqui aquático no Cacine... 

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Guiné 63/74 - P9437: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (7): Andava-se de sintex, com motor de 50 cavalos, no Cumbijã, nas barbas do PAIGC... e fazia-se esqui aquático no Cacine...



Carta de Cacine (Escala 1/25000) > Posição relativa de Cadique, Jemberém e Cacine, em pleno Cantanhez




Carta de Bedanda (Escala 1/25000) > Posição relativa de Cufar, Bedanda e Caboxanque


1. A propósito da aventura do Pedro Vaz, irmão do Luís Vaz, que durante as férias do Natal de 1973 acompanhou o pai até Cufar, de avião,  e depois foi até Cadique, de sintex... e que terá dormido, na noite seguinte [ou noutra ocasião, ele não pode garantir], numa LFG no Rio Cacine, onde viu fuzileiros a fazer esqui aquático, tivemos curiosidade em espreitar, de novo, o diário do António Graça de Abreu (AGA) (*)... 

No diário não há vestígios da família Vaz, nem em Cufar nem em Cadique. Também não se fazia esqui, lá em baixo, pelo menos no Cumbijã... Em contrapartida, o sintex era um transporte popular, rápido e relativamente segundo. Tanto servia para o Coronel do CAOP1 ir a Cadique dar apoio moral às NT na véspera de Natal ou para evacuar feridos até a Cufar, como servia para a malta ir a Caboxanque destilar a adrenalina e beber um copo... 

O Pedro Vaz  (nem o irmão Luís) tem a certeza sobre a data exata em que ocorreu a aventura... Pode ter sido antes ou depois do Natal ou até mesmo nos primeiros dias do novo ano. Para o Pedro ("que tem uma memória seletiva", diz o mano mais novo) foi seguramente nas férias de Natal de 1973, não nas férias da Páscoa de 1974 (A Páscoa nesse ano foi a 14 de abril). 

De 13 a 21 de dezembro,  o AGA está em Bissau, onde foi ao dentista. Se o CEM do CTIG, o cor cav Henrique Gonçalves Vaz,  esteve lá pode ter sido nesta altura. E não terá lá ido fazer turismo, que aquilo não era propriamente um destino paradisíaco como Bubaque.  Ao ler o diário do AGA,  sabe-se que se estava a preparar, para a época natalícia,  a grande Op Estrela Telúrica, envolvendo o batalhão de comandos africanos (3 companhias), a 38ª CCmds, os fuzileiros (de Cacine), a tropa de Cadique... Houve grande movimentação de meios aéreos, conforme se pode ler diário do AGA (Vd. Cufar, 26 de dezembro de 1973).


Cufar era a Bissalanca do sul... E as NT lá andavam também de sintex (pequenos barcos de fibra com potentes motores de 50 cavalos)... E lá estava o CAOP1... O António Graça de Abreu esteve lá de Junho de 1973 até Abril de 1974... Ele próprio foi a Cadique de sintex com o comandante dele, coronel, no dia 24 de dezembro... Mais uma razão para se pensar que esta aventura do filho do CEM do CTIG é perfeitamente verosímil...  

Selecionei uma série de excertos do do diário do AGA, com referências ao sintex, usado no Cumbijã, ligando Cufar aos vários aquartelamentos (Cadique, Caboxanque)... Reproduzimos aqui, mais uma vez, com, a devida vénia ao autor e ao editor...(LG).


(...)  Cufar, 26 de Junho de 1973

Adapto-me, moldo-me a um novo quotidiano ingrato. Podia ser pior, pode sempre ser pior.
Estou no sul da Guiné em zona de muita guerra. Os guerrilheiros continuam a dispor de boas hipóteses para vir a Cufar chatear quem cá vive, de resto, eles também não moram longe. De momento creio que têm mais com que se preocupar mas qualquer dia voltam cá, de certeza.


Em Cufar não existe propriamente um quartel, as instalações militares são pouco mais do que uma dezena de pequenas casas separadas umas das outras, vivemos praticamente misturados com a população o que é uma vantagem em caso de flagelação. Os africanos, das etnias balanta, beafada, mandinga, fula coexistem com a tropa, nem muito, nem pouco amigos. São frequentes pequenos sarilhos entre as NT e as gentes da terra mas sem gravidade, cada um trata de si.

Ao contrário do que acontecia em Canchungo e Mansoa, a tropa especial, comandos, pára-quedistas e fuzileiros não vivem aqui connosco. Sinto a sua falta, não estou tão seguro. Até Novembro [de 1973] a guerrilha não deve aumentar, estamos na época das chuvas.

Em termos de ligações com o resto da Guiné, Cufar está muito isolada. Existe a estrada asfaltada para Catió, nove quilómetros que só se fazem com escolta, e a estrada para o porto grande no rio Cumbijã, dois quilómetros por onde nos deslocamos à vontade. Depois, há umas picadas em péssimo estado que conduzem à terra de ninguém, ou melhor aos lugares habitados pelos guerrilheiros. Quem se mete por aí? Ninguém. De Cufar a Bissau serão uns cento e trinta quilómetros, em linha recta, mas não há estradas. 

É pelo rio e pela ramificação dos seus afluentes que Cufar se liga aos novos aquartelamentos da região. Existem os sintex, pequenos barcos de fibra sintética – em Cafal e Cafine, os fuzileiros têm os zebros -, com motores de 50 cavalos que sobem e descem os rios a boa velocidade com grupos NT, sempre armados, garantindo a comunicação entre todos nós. 

Temos ainda a pista de aviação com os aviões e os hélis. Hoje chegou uma DO, um Nordatlas – o avião é conhecido entre a tropa por Horácio -  e dois helicópteros. Vêm de Bissau e para lá regressam. Trazem víveres, correio, pessoal, pequenas cargas. Os helicópteros redistribuem os géneros pelos aquartelamentos da região, frangos e peixe congelado, carne, batata, farinha, couves frescas.

Se os homens do PAIGC voltam a mandar um avião ou héli abaixo, estamos todos lixados porque suspende-se outra vez o apoio aéreo. Mas agora já não é fácil que tal aconteça. Os pilotos conhecem as características dos mísseis terra-ar, os Strela ou Sa 7 que são eficazes entre os 200 e os 2.000 metros de altitude, e tomam as devidas precauções. As DOs e os hélis voam muito baixo, a rapar, rente às árvores, às bolanhas e aos rios, e os Nordatlas ou os DC 3 voam muito alto, com tectos de mais de 2.500 metros. Descem e sobem sobre a pista de Cufar, onde montamos sempre segurança, voando em círculos ou espirais para evitar sobrevoar as florestas, as zonas IN. Em quarenta minutos de voo, uma pessoa põe-se em Bissau. É seguro? Até hoje tem sido.

As LDG, Lanchas de Desembarque Grandes, são o outro meio para se chegar e partir. As viagens são mais seguras do que de avião, mas incómodas e demoradas. Há uma semana atrás, experimentei o luxo da Alfange, uma das três LDG que navegam nos mares e rios da Guiné. O navio vinha carregado com tudo, víveres, cimento e muitos outros materiais de construção, um obus, munições, três unimogs e dois jipes do CAOP 1 atravancados com os nossos haveres e cerca de 150 pessoas, não apenas soldados, também população negra que aproveita a boleia das NT e se desloca utilizando os meios possíveis. 

Largámos de Bissau às três da tarde em direcção ao mar, chegámos a estar aí a uns quinze quilómetros da costa. Vim com os condutores auto que já enfrentaram a morte, estiveram em Guidage quando morreu o Viegas que também teria viajado connosco para Cufar se não tivesse morrido. Arranjámos o jantar que comemos em cima da minha mesa-secretária, composto por pão, atum, cebola e vinho. Por volta das dez da noite, a LDG ancorou no mar à espera da maré da manhã seguinte para então poder subir os vinte e cinco quilómetros do rio Cumbijã até Cufar, com paragem nos aquartelamentos da margem para descarregar materiais e pessoas. Dormimos na Alfange em condições péssimas, em cima de mercadorias, no chão de ferro do barco, onde calhava e havia espaço. Nós trazíamos as nossas viaturas e colchões e eu lá me safei porque coloquei um colchão dentro da cabina de um Unimog e consegui dormitar. Para azar de toda a gente, às duas da manhã começou a chover em grande, as pessoas não tinham onde se abrigar, foi o encharcanço total. Também me molhei porque os Unimog não têm janelas e a lona grossa que cobre as viaturas não é impermeável. Mas já esqueci. 


De manhã, foi a subida do rio Cumbijã passando por Cafine, Cafal e Cadique, lugares críticos de guerra. Mal se entrou no rio, fomos avisados de que a LDG ia disparar sobre as margens para testar as metralhadoras pesadas. O armamento, colocado a bombordo e estibordo, sossega quem viaja no barco e põe os guerrilheiros em sentido. Eles não possuem armas semelhantes e é raríssimo flagelarem uma LDG. Existe a hipótese de minas aquáticas, já rebentaram algumas, mas não têm feito mossa nos navios maiores, de aço compacto e pesadíssimo.


(...) Cufar, 5 de Julho de 1973

À tarde, evacuámos no Nordatlas para o hospital de Bissau um soldado de Cobumba que pisou uma mina e ficou sem uma perna, esfarrapado, retalhado até aos testículos. O médico diz que ele não se salva. Veio pelo rio Cumbijã de sintex até Cufar e perdeu muito sangue. Fui à pista e todo o seu corpo era ligaduras e sangue. A minha passividade a olhar para o moço, os olhos parados. Não sou o mesmo António que desembarcou na Guiné há um ano atrás.

(...) Cufar, 1 de Setembro de 1973

Sábado tombou mais um Fiat sobre o Morés, ao lado de Mansoa. Fala-se de avaria técnica, o avião entrou em perda e pumba! Também se fala em mísseis do PAIGC. O piloto teve sorte, ejectou-se e na altura passavam por perto dois helicópteros que viram o pára-quedas no ar e o foram buscar ao solo.


Também sábado ao entardecer, tivemos em Cufar as consequências da guerra. Às quatro e meia da tarde, um Unimog pisou uma mina anticarro em Cobumba. Os seis pobres desgraçados que iam na viatura ficaram feridos, três em estado grave. De Cufar, pedimos a evacuação para Bissau, vinham dois hélis a caminho mas voltaram para trás devido ao mau tempo. Um Nordatlas que seguia de Bafatá para Bissau foi desviado para aqui e chegou já de noite. Entretanto, os feridos de Cobumba, a perder muito sangue, vieram para Cufar nos sintex, descendo o rio Cumbijã. A pista de aviação foi iluminada pelo usual processo artesanal, as garrafas de cerveja cheias com petróleo e as mechas acesas distribuídas lateralmente ao longo da pista. Com os feridos seguiu para Bissau o furriel enfermeiro que fez de capelão quando daquela brincadeira no desembarque dos periquitos há quinze dias atrás. Os feridos de Cobumba estiveram na sala de operações do hospital de Bissau até às quatro horas da manhã, não morreu nenhum. Tanto esforço, mas salvaram-se as vidas.


(...) Cufar, 19 de Novembro de 1973

A guerra, os efeitos da guerra. África pobre, quente, medos, suores, sangue e tudo o mais que as palavras não dizem, mas sentimos e vivemos.


Sábado chega a notícia de que na foz do Cumbijã, a uns trinta quilómetros de Cufar, caíra uma DO, ou melhor fizera uma aterragem forçada no tarrafo da margem do rio. Avançaram logo meios para se recuperarem os tripulantes, o piloto, e duas enfermeiras pára-quedistas. Tiveram muita sorte, três horas depois os fuzileiros de Cafine descobriram-nos no lodo do tarrafo.[++] Embora a avioneta tivesse caído numa região libertada, os guerrilheiros não apareceram e os fuzileiros trouxeram o pessoal aqui para Cufar nos zebros, ainda meio assustados e cobertos de lama. Dois helicópteros levaram-nos depois para Bissau. A DO não foi abatida, tratou-se mesmo de acidente.


Ontem foi dia de ataque a Cadique, o aquartelamento a sul mais perto de Cufar. Às seis e meia da tarde, estavam a jantar, mal tiveram tempo para fugir para as valas e levaram com canhão sem recuo, RPG e morteirada. Houve um pobre soldado que corria para um abrigo e foi atingido por um estilhaço de canhão sem recuo que lhe perfurou o crâneo. Contaram-se mais meia dúzia de feridos. Era já noite quando os sintex trouxeram o ferido grave para Cufar e aqui aguardámos duas longas horas por um avião que transportou o rapaz para o Hospital Militar de Bissau. Como de costume, iluminámos a pista com as garrafas acesas e os faróis das viaturas. Quando o avião desceu, já o soldado estava a oxigénio, a caminhar para a morte. Na madrugada de hoje, no hospital, não resistiu. Tinha perdido massa encefálica, o estilhaço apanhara-lhe o cérebro.

Podia ter acontecido a qualquer um de nós, um destes dias posso ser eu.

(...) Cufar, 24 de Dezembro de 1973

Tempo de Natal. Paz na terra aos homens de boa vontade, na Guiné em guerra.


Fui a Cadique com o meu coronel, de sintex, dez quilómetros descendo o rio Cumbijã. Os pobres de Cadique, que tiveram dois mortos na terça-feira passada, estão a entrar na engrenagem da loucura. Já houve soldados que se recusaram a sair para o mato. Outros, ou os mesmos, na confusão de uma flagelação, atiraram com uma granada de mão ao tenente-coronel comandante do batalhão que não o atingiu por pura sorte. O tenente-coronel não tem culpa do sofrimento e da morte dos seus homens, limita-se a cumprir ordens, não pode pegar no batalhão e marchar sobre Bissau, ou sobre Lisboa. De resto, entre os muitos oficiais do QP que tenho conhecido, este tenente-coronel é um dos homens mais humanos e sensíveis ao sofrimento dos seus subordinados.

A zona de Cadique é terrível, os guerrilheiros deixaram construir a estrada para Jemberém e agora passam o tempo a dinamitá-la e a emboscar as NT. Sabotaram os sete pontões do trajecto, abriram enormes brechas no asfalto, em vários sítios. Para arranjar a estrada, a tropa de Cadique avança com camionetas carregadas de terra e troncos de árvore. Depois dos primeiros dois quilómetros, começam a ser flagelados. Quem quer caminhar para a morte?

Os dias estão tão bonitos! Frescos, serenos, com pouca humidade, manhãs de sol que abrem os braços para os homens, o fumo a sair das tabancas e a espalhar-se sobre os campos, como em Portugal. A natureza não tem culpa da insensatez, do desvairo da espécie humana.


(...) Cufar, 26 de Dezembro de 1973

Graças ao Natal, umas tantas iguarias rechearam as paredes dos nossos estomagos. Houve bacalhau do bom, frango assado, peru para toda a gente e presunto, bolo-rei, whisky e espumante à discrição, só para oficiais. Fez-se festa, fados, anedotas, bebedeiras a enganar a miséria do nosso dia a dia.

 Hoje, 26 de Dezembro, acabou o Natal e, ao almoço, regressámos às cavalas congeladas com batata cozida e, ao jantar, ao fiambre com arroz. Isto não tem importância, importante é a ofensiva contra os guerrilheiros do PAIGC desencadeada na nossa região com o bonito nome de Estrela Telúrica. Acho que nunca ouvi tanta porrada, tantos rebentamentos, nunca vi tantos mortos e feridos num tão curto espaço de tempo. E a tragédia vai continuar, a Estrela Telúrica prolongar-se-á por mais uma semana.

Tudo começou em grande, com três companhias de Comandos Africanos, mais os meus amigos da 38ª., fuzileiros e a tropa de Cadique a avançarem sobre o Cantanhez. O pessoal de Cadique começou logo a levar porrada, um morto, cinco feridos, um deles alferes, com certa gravidade. Ontem de manhã, dia de Natal, foi a 38ª de Comandos a embrulhar, seis feridos graves entre eles os meus amigos alferes Domingos e Almeida, hoje foram os Comandos Africanos comandados pelo meu conhecido alferes Marcelino da Mata, com dois mortos e quinze feridos. Chegaram com um aspecto deplorável, exaustos, enlameados, cobertos de suor e sangue. Amanhã os mortos e feridos serão talvez os fuzileiros… No dia seguinte, outra vez Comandos ou quaisquer outros homens lançados para as labaredas da guerra. O IN, confirmados pelas NT, só contou seis mortos, mas é possível que tenha morrido muito mais gente, os Fiats a bombardear e os helicanhões a metralhar não têm tido descanso.

Na pista de Cufar regista-se um movimento de causar calafrios. Hoje temos cá dez helicópteros, dois pequenos bombardeiros T-6, três DO, dois Nordatlas e o Dakota. A aviação está a voar quase como nos velhos tempos. Os helis saem daqui numa formação de oito aparelhos, cada um com um grupo constituído por cinco ou seis homens, largam a tropa especial directamente no mato, se necessário os helicanhões dão a protecção necessária disparando sobre as florestas onde se escondem os guerrilheiros, depois regressam a Cufar e ficam aqui à espera que a operação se desenrole. Se há contacto com o IN e se existem feridos, os helicópteros voltam para as evacuações e ao entardecer vão buscar os grupos de combate novamente ao mato. Ontem, alguns guerrilheiros tentaram alvejar um heli com morteiros, à distância, o que nunca costuma dar resultado.

Sem a aviação, este tipo de operações era impossível. Durante estes dias os pilotos dormem em Cufar e andam relativamente confiantes, há muito tempo que não têm amargos de boca. Os mísseis terra-ar do IN devem estar gripados porque senão, apesar dos cuidados com que se continua a voar, seria muito fácil acertar numa aeronave, com tanto movimento de aviões e hélis pelos céus do sul da Guiné.

Cufar fica a uns quinze, vinte quilómetros da zona onde as operações se desenrolam. Todos os dias, às vezes durante horas seguidas, ouvimos os rebentamentos e os tiros dos embrulhanços, das flagelações. É impressionante o potencial de fogo, de parte a parte. Os guerrilheiros montam também emboscadas nos trilhos à entrada das matas onde se situam as suas aldeias. Aí as NT começam a levar e a dar porrada, e não têm conseguido entrar nas povoações controladas pelo IN.

Natal, sul da Guiné, ano de 1973, operação Estrela Telúrica. Tudo menos paz na terra aos homens de boa vontade.

(...) Cufar, 4 de Janeiro de 1974

Ontem de manhã acordei com mais um tremendo embrulhanço, os rebentamentos uns atrás dos outros. Era a estrada Cadique-Jemberém. Ainda na cama pensei: “Lá estão mais pobres desgraçados a morrer!” Era verdade, dois soldados mortos do batalhão de Cadique, os corpos destroçados. Vieram para Cufar e, como de costume, aqui foram metidos nas urnas junto com um fuzileiro que esperava por caixão há dois dias e já cheirava mal. O cangalheiro vestiu o fato de madeira e chumbo aos três. Já ninguém estranha muito, estamos habituados, a vida continua. Mas porque diabo é que o rodopio dos mortos e feridos passa sempre por Cufar?...

Tenho constatado que em muitos de nós existe um prazer sádico, mórbido em ver mortos e feridos. Faço parte do grupo. Há qualquer coisa de macabro no ser humano, talvez uma silenciosa nostalgia da morte que nos aguarda a todos. Ontem, ao fim da tarde, quando o cangalheiro metia os três rapazes nos caixões, ao ar livre, no largo no centro de Cufar, juntaram-se à volta umas dezenas de mirones, brancos e negros. Um furriel pegou numa G 3 e ameaçou disparar sobre os curiosos se não desaparecessem imediatamente. Assisti a tudo, parado, insensível como um boneco de gesso, a cinquenta metros de distância.
(...) Cufar, 13 de Janeiro de 1974

No domingo fui a Caboxanque com o Dias da Silva, o capitão da 4740, outro alferes e mais cinco soldados em dois sintex, os botes com que se viaja por estes rios. Íamos bem armados, eu levei uma espingarda Kalashnikov (um dos soldados que nos acompanhou chama-lhe Calaxmicose!) emprestada pelo capitão e senti-me um verdadeiro guerrilheiro. É fácil atacar os nossos botes que sobem e descem o rio Cumbijã. O tarrafo das margens é alto e basta os combatentes do PAIGC esconderem-se na vegetação e dispararem umas dezenas de carregadores das espingardas ou uns RPG para provocarem baixas nas NT. Raramente tal acontece. Não sei porquê, não entendo porque é que o inimigo, às vezes, é tão nosso amigo. Em paz, fomos a Caboxanque, em paz regressámos.



O objectivo da curta viagem até ao aquartelamento nosso vizinho foi simplesmente sair de Cufar, a ideia do passeio foi ver outras pessoas, beber uns copos com o pessoal amigo de Caboxanque. Dei uma volta pela povoação, que até é maior do que Cufar, e tudo tão pobre! Comprovei como são miseráveis as tabancas, deploráveis as instalações dos nossos militares.

(...) Cufar, 7 de Fevereiro de 1974

Em alguns aquartelamentos aqui do sul também existem carências de todo o tipo, mas de natureza diferente das deste pobre povo guineense. No Relatório Mensal Janeiro 1974 do nosso CAOP 1, no ponto 4. b. Logística, os meus chefes referem, em diferentes destacamentos da nossa zona operacional, falta de medicamentos, falta de mesas e bancos para os refeitórios, falta de víveres frescos e de arroz para distribuir pela população, falta de armamento, falta de peças de substituição para muitas das viaturas auto-metralhadoras Fox e White que têm dezenas de anos e estão na sua maioria avariadas, falta de geradores eléctricos, de moto-serras, de electro-bombas, de motores para os barcos sintex.


(...) Cufar, 5 de Março de 1974

Guerra, só guerra. O PAIGC não pára, desencadeou mais uma ofensiva. Flagelaram uma série de aquartelamentos e lançaram-se em força sobre Jemberém. Com o abandono do aquartelamento de Guileje em meados do ano passado, foi-lhes possível abrir uma estrada desde a Guiné-Conacri até às florestas situadas entre Bedanda e Jemberém. Vêm com as viaturas até bem dentro do território carregados com toneladas de material de guerra. Jemberém tem estado dias e dias debaixo de fogo. Encontram-se lá duas companhias, mais de trezentos homens, ainda há soldados a viver em tendas e tudo aquilo está muito destruído. 


Por incrível que pareça, com tanta flagelação não registaram ainda nenhum morto, só bastantes feridos. Cavaram valas profundas e praticamente vivem nesses buracos. A tropa portuguesa já pensou em abandonar Jemberém por várias vezes, mas a situação é tão má, tão má que não têm por onde sair. Jemberém fica encravada na região do Cantanhez, voltada para sul, para o rio Cacine e agora só se chega lá com os barcos pequenos, os zebros e os sintex, em viagens pelo rio nada seguras a partir de Cacine. Foi construída uma boa estrada asfaltada entre Cadique e Jemberém mas os guerrilheiros tornaram-na intransitável ao dinamitarem vários troços. Quando as NT avançam a pé, o IN monta emboscadas e é cada vez mais extenso o rol de mortos e feridos.

Jemberém encontra-se numa situação crítica mas nestas últimas semanas não registaram nenhum morto. Nós,  em Cufar, estamos bem melhor mas há dias, com o inferno das minas, dos incêndios nos batelões carregados de gasolina contámos dezanove mortos, em meia dúzia de horas.

(...) Cufar, 7 de Março de 1974

Neste exacto momento em Portugal, há milhões de pessoas especadas diante do televisor à espera do Festival da Canção. Aqui na guerra do sul da Guiné, acabou de morrer um homem, outro está moribundo. Oiço o roncar dos motores do Nordatlas que, com a pista iluminada acabou de aterrar e vai levar gente ferida para Bissau.

Lá longe, satisfeitos, os portugueses deliciam-se com melodias, músicas capazes de enternecer uma mula ou um burro. Neste pequeno lugar do mundo, em África, um homem retalhado tem o corpo a arfar nos estertores da morte. Vim há pouco da enfermaria, vi tudo, continuo a ver demais.

Foi em Caboxanque, os nossos vizinhos do outro lado do rio Cumbijã. O aquartelamento não costumava ser muito flagelado embora se situe numa zona praticamente controlada pelos guerrilheiros. Neste momento Caboxanque tem duas companhias, a velhinha que terminou a comissão e está de partida no merecido regresso a Portugal, e a de periquitos acabados de chegar. Por isso, para assustar os piras, foram atacados quatro vezes em doze dias. 


As flagelações sucessivas também se integram na ofensiva geral sobre os nossos aquartelamentos desencadeada pelo IN. Hoje acertaram na tropa de Caboxanque e nem sequer foi um grande ataque, dez minutos apenas com vinte disparos de canhão sem recuo. Estou farto de ouvir, e até de sofrer, ataques piores. Mas a tropa de Caboxanque teve azar, uma granada de canhão caiu numa vala e rebentou lá dentro. Resultado, um morto, um soldado cozinheiro da companhia velhinha cortado ao meio, a cabeça voou para um lado, o tronco e as pernas caíram para outro, mais um ferido gravíssimo com os intestinos de fora e vários feridos ligeiros.

Na noite de luar, os barcos sintex trouxeram os feridos para Cufar. Neste momento o Nordatlas levanta de voo levando os homens de Caboxanque para o hospital de Bissau. No rádio, no Festival da Canção, o Artur Garcia canta a “Senhora Dona da Boina”. (...)


Fotos: © António Graça de Abreu (2012) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.
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Nota do editor:


Último poste da série > 27 de janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9406: Excertos do Diário do António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (6): Bissau, 23 de Junho de 1972, e 25 de Março de 1974: dois estados de espírito diferentes...