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quarta-feira, 13 de abril de 2016

Guiné 63/74 - P15971: Efemérides (219): Homenagem aos Combatentes da Guerra do Ultramar, mortos em combate nas 3 frentes (Angola, Moçambique e Guiné), em Cascais, levada a efeito no passado dia 31 de Março (Francisco Henriques da Silva)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Henriques da Silva (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402/BCAÇ 2851, , Mansabá e Olossato, 1968/70; ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999), com data de 1 de Abril de 2016:

Meu caro,
Deixei passar há dias o teu aniversário, mas estava em Espanha e sem computador. Os meus parabéns atrasados e as minhas desculpas.
Mando-te um pequeno apontamento de uma cerimónia evocativa dos nossos combatentes mortos nas 3 frentes que teve lugar, em Cascais (também compareceram camaradas dos concelhos limítrofes, Oeiras e Sintra, como foi o meu caso).

Um abraço
Francisco Henriques da Silva
(ex-alferes miliciano da C.Caç 2402, ex-embaixador em Bissau)

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MORRERAM PELA PÁTRIA

Homenagem aos Combatentes da Guerra do Ultramar, mortos em combate nas 3 frentes (Angola, Moçambique e Guiné), hoje, em Cascais. 

Presentes o Presidente da Câmara Municipal, Dr. Carlos Carreiras, o Presidente da Liga dos Combatentes, General Chito Rodrigues, o Presidente do Núcleo de Oeiras da Liga, Superintendente Isaías Teles, um Destacamento dos Comandos, antigos combatentes e seus familiares. 

Foram proferidas breves palavras evocativas pelo General Chito Rodrigues e pelo Presidente do Município. 
Foi também tocado e cantado o Hino Nacional e executados os toques de silêncio e de alvorada.

Honrar os que deram a sua vida por Portugal, para que a memória não se apague.







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Nota do editor

Último poste da série de 6 de abril de 2016 Guiné 63/74 - P15944: Efemérides (218): Conheci o Cap. Alves no BII 17, em Setembro de 1970, mas foi na Guiné, na Mata dos Madeiros, aonde a CCaç 3327 chegaria no dia 6 de Abril de 1971, que comecei a conhecer o homem, o coração de ouro que a sua farda encobria (José Câmara)

domingo, 17 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15627: Agenda cultural (457): Apresentação dos livros "Guerra na Bolanha, de Estudante a Militar e Diplomata", da autoria de Francisco Henriques da Silva e "Cartas do Mato", da autoria de Daniel Gouveia, levado a efeito no passado dia 14 de Janeiro de 2016, na Messe do Militar do Porto (Carlos Vinhal)

Na passada quinta-feira, dia 14 de Janeiro, na Messe Militar do Porto, integrado no 14.º Ciclo das Tertúlias Fim do Império, foram apresentados dois livros, um sobre a guerra na Guiné e o outro em Angola. 

O primeiro, "Guerra na Bolanha - De Estudante a Militar e Diplomata", da autoria no nosso camarada e tertuliano Francisco Henriques da Silva (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402/BCAÇ 2851, , Mansabá e Olossato, 1968/70 e ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999) e prefácio de Mario Beja Santos; e o segundo, "Cartas do Mato", da autoria do editor e ex-Alf Mil, combatente em Angola, Daniel Gouveia. 

No acto estiveram presentes muitos ex-combatentes, entre os quais pontificavam: António Pimentel, Francisco Allen, Francisco Baptista e Carlos Vinhal.

Mal chegado, o editor logo deparou com o Pimentel e o Xico Allen. O Pimentel, camarada de Batalhão do Francisco Henriques da Silva, fez as apresentações da ordem. Pouco depois juntou-se o nosso camarada Francisco Baptista. Logo ali se travou conversa amistosa, tanto mais que nada mais nada menos que quatro dos presentes tinham em comum o terem passado por Mansabá. Por sua vez o Xico Allen conhece a Guiné-Bissau como poucos.

Chegado momento de se passar para a sala das sessões, cada um ocupou os seus lugares.

Na ausência do Coronel Cav Barão da Cunha, que desta vez não se deslocou ao Porto, a coordenação ficou a cargo do Coronel CMD José Belchior, Presidente do Núcleo do Porto da Liga dos Combatentes.

A Mesa era composta pelos autores dos livros: Editor e Combatente em Angola, Daniel Gouveia e Embaixador Francisco Henriques da Silva, Combatente da Guiné; também pelo Ten-General Luís Medeiros; pelo Ten-General  Sousa Pinto e pelo Coronel CMD José Belchior, Presidente da Direcção do Núcleo do Porto da Liga dos Combatentes.

Abriu a sessão o Coronel José Belchior que deu as boas-vindas aos presentes, apresentando de imediato o Embaixador Francisco Henriques da Silva.

Vista parcial da Sala

O Embaixador Francisco Henriques da Silva falando do seu livro "Guerra na Bolanha"

Francisco Henrique da Silva falou sobre o seu livro que tem a particularidade de abordar as memórias de antes da sua incorporação no serviço militar obrigatório, com todas as dúvidas que se punham aos jovens de então quanto ao futuro, passando pela experiência em África como combatente, regresso à Tugalândia (palavras suas) e a sempre complicada reintegração. Encetou a carreira diplomática, tendo exercido o cargo de Embaixador de Portugal na Guiné-Bissau entre 1997-1999. Quis o destino que a Guiné se lhe atravessasse outra vez na sua vida. Saiu-se bem em ambas as situações, cada uma delas vivida em tempos de guerra diferentes mas igualmente violentos e incertos.

Finda a explanação, seguiu-se uma animada tertúlia entre o autor e os combatentes presentes, principalmente os da Guiné, aos quais o livro dizia mais. O tema mais abordado foi a manipulação de minas, o mais temível e traiçoeiro meio de guerra.

Um camarada da Guiné dialogando com Francisco Henriques da Silva. Na foto distinguem-se ainda os camaradas António Pimentel e Xico Allen.


Finalmente foi a vez de o Editor/Autor e ex-Alf Mil em Angola, Daniel Gouveia, apresentar o seu já conhecido livro "Cartas do Mato", nas suas palavras, um livro também diferente porque foge ao que é normal, escrever sobre os acontecimentos de guerra. Aqui fala-se de memórias menos bélicas, algumas bem engraçadas, que só África nos pode proporcionar.
Seguiram-se mais uns momentos de troca de palavras e experiências.
Uma curiosidade, Daniel Gouveia é um velho companheiro e amigo de Francisco Henriques da Silva. Conhecem-se dos tempos em que militavam nos conjuntos de música pop dos anos 60. Foram ainda camaradas na Recruta e na Especialidade. 

A tertúlia terminou com uma sessão de autógrafos, tão rápida que o editor/repórter, interpelado pelo Coronel José Belchior, deixou escapar a oportunidade de tirar mais uma ou duas "chapas".
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Nota do editor

Último poste da série de 17 de janeiro de 2016 Guiné 63/74 - P15626: Agenda cultural (456): Integrado no 14.º Ciclo das Tertúlias Fim do Império, comemoração do 7.º aniversário do Programa Fim do Império, com assinatura de protocolo entre as entidades zeladoras do Programa (CMO, LC e CPHM), apresentação do caderno Programa Fim do Império, "Sete anos!" e presença de patrocinadores, editores e autores, dia 19 de Janeiro de 2016, pelas 15 horas, na Livraria-Galeria Municipal Verney/Colecção Neves e Sousa, Oeiras (Manuel Barão da Cunha)

sábado, 9 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15597: Agenda cultural (452): Apresentação dos livros "Guerra na Bolanha, de Estudante a Militar e Diplomata", da autoria de Francisco Henriques da Silva; "Cartas do Mato" e "Arcanjos e Bons Demónios", da autoria de Daniel Gouveia, dia 14 de Janeiro de 2016, pelas 15 horas, na Messe do Militar do Porto, Praça da Batalha (Manuel Barão da Cunha)

Em mensagem do dia 12 de Outubro de 2015, o nosso camarada Manuel Barão da Cunha, Coronel de Cav Ref, que foi CMDT da CCAV 704 / BCAV 705, Guiné, 1964/66, deu-nos conta da apresentação de mais dois livros da colecção Fim do Império, a levar a efeito no próximo dia 14 de Janeiro na Messe Militar do Porto.


14.º CICLO DAS TERTÚLIAS FIM DO IMPÉRIO

Messe Militar do Porto
Dia 14 de Janeiro de 2016


Apresentação de livros da colecção Fim do Império: 

"Guerra na Bolanha, de Estudante a MIlitar e Diplomata", da autoria do Embaixador Francisco Henriques da Silva

"Cartas do Mato" e "Arcanjos e Bons Demónios", da autoria de Daniel Gouveia, 
com os autores




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Nota do editor

Último poste da série de 5 de janeiro de 2016 Guiné 63/74 - P15581: Agenda cultural (451): Junta de freguesia de Vila Franca de Xira, dias 13 e 20 deste mês, às 21h30, exibição dos filmes "O mal amado" e "Acto dos Feitos da Guiné", respetivamente, de Fernando Matos Silva (que foi fotocine na Guiné em 1969 e em Angola, 1970)

domingo, 18 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15262: Da Suécia com saudade (53): Relendo o livro do prof Patrick Chabal, "Amilcar Cabral: Revolucionary Leadership and People's War" (1983): o congresso de Cassacá (José Belo)

1. Mensagem de José Belo [ foto atual à esquerda: José Belo, ex-alf mil inf, CCAÇ 2381 (Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70); atualmente é cap inf ref e vive na Suécia há quase 40 anos e mais ultimamente também nos EUA,em Key West, Florida]:


Data: 16 de outubro de 2015 às 22:20
Assunto: "Amilcar Cabral - Revolucionary Leadership and People's War"

Notas de leitura: Patrick Chabal, Professlor de "Lusophone African Studies" [Estudos africanos lusófonos], no King's College]. London, Cambridge University Press, 1983. (*)


Apesar de näo ser facilmente reconhecido pelos actuais derigentes do PAIGC, a importância do Congresso de Cassacá estava relacionada com os inúmeros abusos do poder militar por parte de muitos comandantes da guerrilha.

As decisões tomadas durante (e depois) do Congresso procuraram garantir que a estratégia militar a partir daí seria determinada por critérios políticos, e que as forças armadas seriam integradas e subordinadas à hierarquia política do partido.

Os grupos autónomos de guerrilha que actuavam separadamente em áreas distintas foram gradualmente sendo substituídas por um exército nacional, as FARP

A criacäo deste exército,capaz de ser deslocado por todo o território da Guiné, foi uma tentativa de ultrapassar os problemas graves do "localismo" que até então tanto tinha vindo a afectar as unidades autónomas da guerrilha.

As FARP eram compostas de 3 elementos distintos:

(1) -Exército Popular/EP, englobando os melhores e mais experientes combatentes da guerrilha, bem equipado e operando em todo o território. O seu objectivo principal era o de infiltrar áreas contestadas, aumentar o controlo local por parte do PAIGC e apertar o cerco aos campos fortificados portugueses.
(2) -A Guerrilha Popular/GP, que era constituída pelos restantes membros das anteriores forças de guerrilha, colocadas sob um novo comando, e recrutadas directamente entre as populações locais.
A sua missäo era a de proteger e manter as novas áreas libertadas.

(3) -A Milícia Popular/MP. Constituída pelos aldeöes mais activos e dignos de confianca.
Tinha como missão garantir a segurançaa das aldeiias face aos ataques dos portugueses. actuando também como força policial nas áreas libertadas.

Estas 3 formaçöes funcionavam em coordenaçäo (especialmente o EP e o GP) tornando possível colocá-las rapidamente sob comando militar único quando isto era necessário,.  tendo em vista operações maiores,tanto ofensivas como defensivas.

A unidade básica de combate das FARP era o "bigrupo", uma combinação de dois grupos independentes de 20 a25 homens que actuavam em geral coordenadamente, mas que também podiam actuar separados.Cada grupo dispunha de uma mistura de armamento ligeiro e pesado.

Adicionalmente foram formados grupos especiais de artilharia que podiam reforcar os grupos anteriores em caso de necessidade operacional.

Esta estrutura base de grupo e bigrupo foi mantida pela FARP durante toda a guerra.
Uma estructura flexivel veio permitir que vários bigrupos se juntassem em unidades de 200 a 300 homens.

Foram também criadas novas estruturas geográfcas e hierárquicas: Comandos Regionais para cada uma das frentes (norte,sul, e mais tarde leste), e  um Comando Central--Conselho de Guerra--que passou a ter o controlo directo de todas as operações militares.

Este Conselho de Guerra era constituído por um pequeno grupo de dirigentes do PAIGC sob o comando de Amilcar Cabral.

O Comando Regional torna-se a pedra base da nova organizacäo militar viisto estar em contacto constante com o Conselho de Guerra e com os escalöes menos elevados das extructuras mlitares (zonas,sectores,bi-grupos).

Qualidades e dedicacäo dos Comandos Regionais tornaram maiis efectiva toda a estratégia do PAIGC.

Criaram-se também unidades especiais treinadas no uso dos novos equiipamentos pesados que estavam a ser destribuídos pelos diferentes agrupamentos (baterias antiaéreas, calibre 75 e 120, etc).

(Continmua) (**)

Um abraço. José Belo

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Notas do editor:

(*) Vd. postes do Francisco Henriques da Silva sobre este livro:

1 de dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10745: Notas de leitura (434): "Amílcar Cabral Revolutionary leadership and people's war", por Patrick Chabal (1) (Francisco Henriques da Silva)

(...) Junto vos remeto uma recensão crítica dividida em duas partes do livro de Patrick Chabal, intitulado “Amílcar Cabral: revolutionary leadership and people's war”, Cambridge University Press, 1983, reeditado em 2003.

A obra, cujo conteúdo é bem conhecido, é uma das mais conhecidas biografias sobre o fundador do PAIGC, de que faz um retrato tão fiel quanto possível como homem e como líder político, muito embora não apresente grandes novidades.

É claro que o leitor tem de ficar de sobreaviso pois, a meu ver, trata-se do retrato de um marxista heterodoxo e pragmático que, por um lado, não obedece a cartilhas pré-concebidas e, por outro, um cabo-verdiano, de cultura portuguesa que, de algum modo, descobre e desenvolve a sua "africanidade" ao longo da vida, retrato feito por Chabal, cuja formação é igualmente marxista e que não esconde a sua simpatia pelas ideias e "praxis" de Cabral.

O livro assume particularmente importância pois divulga para o mundo de expressão anglófona, ou seja para um universo que não se restringe apenas aos luso-falantes, a figura e obra de Cabral. (...)

(...) O autor detém-se na análise do Congresso de Cassacá (1964) que visou reorganizar a estrutura militar, reformar e disciplinar o partido, reduzir a autonomia de certos grupos, coarctar os abusos de poder, exercer um firme controlo político sobre a condução da luta armada (a principal questão de fundo) e, finalmente, a organização civil das áreas libertadas. Todavia, o líder do PAIGC e o Congresso reconheceram, igualmente, a existência de outras questões relevantes: a etnicidade (ou seja, a fraca adesão dos fulas aos ideais da guerrilha, antes alinhando com as teses portuguesas) e problemas de índole cultural que suscitavam óbices à prossecução da luta. (...)

(...) Para além da narrativa biográfica, Patrick Chabal que estudou outros processos revolucionários de luta armada anticolonial em África, sobretudo em Angola e Moçambique suscita a questão essencial de se se saber por que razão é que a luta do PAIGC obteve maior êxito que a dos seus congéneres marxistas MPLA e FRELIMO. O autor pensa que aquele partido dispunha de importantes vantagens à partida: em primeiro, lugar, os demais movimentos nacionalistas guineenses desapareceram ou eram irrelevantes; em segundo lugar, existia uma organização melhor estruturada e uma mobilização mais generalizada do campesinato na Guiné em prol da guerrilha, susceptível de diluir as diferenças étnicas existentes e de estabelecer laços mais consistentes de unidade nacional; em terceiro lugar, subsistia um controlo político real de toda a actividade militar e, finalmente, o PAIGC estabeleceu uma administração minimamente eficaz nas áreas libertadas. Poderíamos ainda acrescentar que em contraste com os outros movimentos emancipalistas das ex-colónias portuguesas, o PAIGC dispunha de inegáveis trunfos diplomáticos que os demais não desfrutavam. Estes factores de diferenciação em relação aos outros movimentos de emancipação têm de ser sublinhados, estão na base do respectivo êxito e devem-se, em larga medida, à liderança de Amílcar Cabral. Por razões que o livro não adianta, nem poderia adiantar uma vez que não envereda pela futurologia, a evolução seria outra, já patente, porém, na gestão de Luiz Cabral e no golpe de Estado de “Nino” Vieira (golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980) a que Chabal alude de passagem. (...)


(**) Último poste da série > 9 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15223: Da Suécia com saudade (52): Em 1974, foi criticado, no parlamento, o fornecimento ao PAIGC, sob a forma de ajuda, de produtos como o tabaco e o álcool, considerados nocivos para a saúde e, em 1975, postos na "lista negra" (José Belo)

quinta-feira, 11 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14730: Notas de leitura (726): “Guerra na Bolanha”, de Francisco Henriques da Silva - (Programa Fim do Império, Âncora editora, Lisboa, 2015) - O regresso de África e a reinserção - parte II (Francisco Henriques da Silva)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Henriques da Silva (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402/BCAÇ 2851, , Mansabá e Olossato, 1968/70; ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999), com data de 8 de Junho de 2015:

Caros camaradas e amigos
Segue a II parte ou segmento da capítulo XXV da minha obra “Guerra na Bolanha” (Programa Fim do Império, Âncora editora, Lisboa, 2015), na sequência do meu escrito anterior, em que relato vários casos de reintegração (ou de não reintegração) dos jovens regressados da Guiné e de outros T.O’s africanos.
Saudações amigas

Um abraço
Francisco Henriques da Silva
(ex-Alferes miliciano de infantaria da C.Caç. 2402 e
ex-embaixador de Portugal em Bissau 1997-1999)

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A reinserção dos outros. Será que houve verdadeira reintegração? Realidade e ficção.

(2ª parte)

Caso 4

O “Bisugo” nunca na vida quis estudar, nem trabalhar, diga-se de passagem. Andou numa escola técnica qualquer e não possuía habilitações literárias dignas de registo. Quando foi às sortes, depois da recruta, acabou na Artilharia Anti-Aérea, onde chegou a Cabo. Amigos e vizinhos do mesmo bairro, alinhávamos nas eternas coboiadas de rapazes, nas jantaradas, nos copos, nas garotas, nos conjuntos musicais e nos desportos motorizados, de que todos gostavam, menos eu (mas lá ia para não destoar). Para minha surpresa, encontrámo-nos em Bissau, eu, a terminar a minha comissão e ele a começar a dele. O “Bisugo” estava de prevenção quando da Operação “Mar Verde”, em Novembro de 1970 (uma operação anfíbia que visava a realização de um golpe de Estado na Guiné-Conacri e que se destinava, igualmente, a libertar prisioneiros de guerra portugueses e eliminar dirigentes daquele país e do PAIGC). Creio que andou uma noite inteira a carregar bombas nos FIATs da Força Aérea, em Bissalanca, que poderiam ter de intervir em Conacri, caso as coisas corressem mal às unidades que estavam no terreno e precisassem de apoio.

Por artes que o império tece, o “Bisugo”, à parte um ataque inconsequente dos guerrilheiros do PAIGC a Bissalanca, teve uma tropa santa ou quase. Ao chegar a Portugal, já desmobilizado, não tinha propriamente onde cair morto e veio com ar compungido pedir emprego a minha mulher. Pretendia ser vendedor de automóveis numa reputada empresa situada na “baixa” lisboeta, cujo proprietário era amigo do meu sogro. À revelia deste, a Ana teve pena do rapaz e enchendo-se de brios, foi falar com o dito indivíduo, conseguindo garantir-lhe o almejado emprego. Como já o disse, no Portugal da época, com estes conhecimentos, as coisas sempre se resolviam a contento. Grande e natural satisfação do “Bisugo”, tinha atingido, sem grande esforço o seu objectivo. O primeiro ordenado serviu-lhe para comprar um presente para minha mulher que fez questão de oferecer, com alguma solenidade, entre dois uísques, em minha casa. O meu sogro, quando soube da história, ficou furibundo e deu uma descasca monumental na minha cara-metade, considerando que ela havia passado das marcas e que este tipo de coisas, para mais envolvendo amigos pessoais, não se podiam, de modo algum, fazer, sem o seu pleno conhecimento e aval explícito.

O tempo entretanto passou. Mantivemos alguns contactos esporádicos com o “Bisugo”. Sobreveio o 25 de Abril e nunca mais soubemos nada do personagem em questão. A minha filha nasceu, nos primeiros dias de Janeiro de 1975 e venho, casualmente, encontrar o referenciado lá para o fim do mês. Paro o carro e pergunto-lhe:
- Estou muito surpreendido contigo. Então a minha filha nasceu e, depois de tudo o que fizemos por ti, não te dignaste aparecer, nem uma saudação, nem um simples telefonema, nada. Enfim, não deste qualquer sinal de vida.

Mirou-me com uma calma olímpica e cofiando o bigode, mastigou meia-dúzia de frases sem se atrapalhar.
- Olha, tu desculpa, mas não posso associar-me convosco. O teu sogro fugiu à justiça e pertencia à polícia política. Os tempos mudaram. Agora são outros. Não me posso dar com vocês.

Fiquei embasbacado, de tal forma que fui incapaz de reagir, como devia. Limitei-me a engatar a primeira e a desaparecer numa curva do caminho.

Fiquei a saber pouco depois, que o “Bisugo”, fazendo tábua rasa do emprego arranjado pela Ana, à revelia e contra a vontade do meu sogro, mandando às urtigas uma amizade de muitos anos, apesar de semi-analfabeto e sem qualquer formação política integrava, agora, um dos sindicatos do sector automóvel e, inclusive, constava das listas de candidatos a deputados pela Frente Revolucionária Socialista. O tempora, o mores!

Nunca mais o vi. Amigos comuns disseram-me que tinha ficado psicologicamente muito afectado com os seus tempos de Guiné (afectado com quê e porquê? Santo Deus!). Acabou por perder o emprego e vive hoje do Rendimento Social de Inserção na periferia de Lisboa. Reintegrou-se? Que responda quem souber. A julgar pelo RSI parece que sim.


Bissau - Centro
Foto de Paula Tábuas © copyright


Caso 5

Com o meu amigo Mário mantive longas conversas sobre a problemática do regresso, da adaptação, da reintegração na sociedade e por aí fora. Não sei se serei ou não um fiel intérprete do muito que dissemos ao longo dos anos, mas vou tentar reproduzir, de forma abreviada, alguns dos diálogos que mantivemos sobre este assunto. Assim falou:
- Sabes, os que voltaram pretenderam refazer as suas vidas: uns, como nós, queriam retomar os estudos e ao mesmo tempo manter empregos que garantissem a subsistência; outros, reingressar na vida activa voltando às actividades que desenvolviam antes da guerra; outros, ainda, mudar completamente de rumo. As coisas, porém, nem sempre funcionaram bem. Os nossos casos eram paradigmáticos dos que queriam obter o “canudo”, a enxada, a ferramenta de trabalho para poderem lutar pela vida com um relativo à-vontade, mas este é, por assim dizer, o grupo dos citadinos.
- Queres tu dizer, Mário, que este grupo não era maioritário, ou porque não queriam prosseguir os estudos, ou porque não tinham meios materiais para o fazer ou, pura e simplesmente, por desinteresse ou preguiça?
- Não sei. Seria talvez um pouco de tudo isso, mas não vou estar para aqui a emitir juízos de valor, longe disso. Cada um fez o que entendeu que devia ser feito. Voltando ao assunto, depois tens o grupo dos rurais, aqueles que vieram da província e à província regressavam. Os pais eram proprietários agrícolas e eles limitavam-se a dar continuidade à tradição familiar. Tens muitos exemplos, como sabes. A seguir deparas com todos aqueles que quiseram mudar de agulha, nalguns casos tomando decisões drásticas. Olha, lembro-me de um caso de um rapaz, ex-seminarista de Miranda do Douro, que recusou voltar lá às serranias transmontanas e decidiu candidatar-se a um emprego na Caixa Geral de Depósitos. Assim fez, mas as coisas não correram bem. A inadaptação a Lisboa, um casamento falhado e ei-lo que volta ao seu meio, depois de uma experiência frustrante. Existem muitos casos destes? Claro que sim. Portugal, naqueles tempos, era ainda um país maioritariamente rural.
- Mário, na tua enumeração, esqueceste-te daqueles que sem saberem muito bem o que fazer, meteram o “Chico” e permaneceram nas fileiras. O teu caso foi diferente. Estiveste lá uns tempos, apenas por uma questão de sobrevivência, enquanto não acabavas o curso. Todavia, muitos outros, sem soluções alternativas, porque não as procuravam ou porque se sentiam sem ânimo para fazer o que quer que fosse, aproveitaram-se das facilidades do decreto que instituía o Quadro Especial de Oficiais e lá voltaram eles para as fileiras. Aliás, conheci vários casos, um deles alferes da minha ex-companhia de caçadores.
- Lembra-te, Chico, que o dito papel garantia-te um emprego para a vida ou seja, até aos 60 anos de idade. Além disso, ninguém sabia ao certo quando é que a guerra iria terminar. Ao ouvir os homens do regime, podia durar uma eternidade. De modo que, apesar da incomodidade e do risco de sucessivas comissões em África, assegurava-se um emprego razoável e para tal não eram precisos grandes esforços, nem sequer queimar as pestanas.
- Mas mudando de assunto, Mário, como é que as pessoas, os cidadãos vulgares de Lineu viam a guerra? Sobre o assunto, tenho a minha opinião formada, mas gostava de confrontá-la com a tua.
- Olha vou-te contar a minha experiência pessoal que é a este respeito elucidativa e que constituiu para mim uma lição de vida. Fui a um jantar de amigos, pouco depois de ter chegado da Guiné. Para começar, o tema despertava pouco interesse entre os circunstantes, mas lá me foram fazendo perguntas e eu fui respondendo. A páginas tantas, entusiasmei-me e comecei a entrar nas questões de fundo. De repente, apercebi-me de que estava pura e simplesmente a perder tempo, porque, apesar de falarmos a mesma língua, não nos expressávamos na mesma linguagem. Quando lhes disse que comandei um destacamento de tropa nativa, perguntaram-me alarvemente: “Se você comandava uma companhia de pretos, como é que distinguia uns pretos dos outros?” Fiquei siderado. Em seguida mais uma perguntinha “E do ponto de vista cultural o que é que faziam?” É claro que não viam filmes do Ingmar Bermann, nem liam Proust (que grandes cretinos!). Retorqui que eu lia muito, como sempre, e que enquanto o gira-discos funcionou, porque foi destruído num ataque, ouvia a minha música. Percebi que estava a perder tempo, que não havia qualquer sintonia de pensamento, que ninguém fazia a menor ideia do que era a guerra de África: o meu mundo não tinha nada a ver com o deles. Se queres que te diga, senti-me humilhado.
- Em suma, desembarcávamos do planeta Marte. Diz-se, amiúde, que mantemos entre nós uma espécie de código de silêncio, que ninguém quer falar das suas experiências africanas, das peripécias da guerra, do que por lá passámos. Compreende-se. Não é que não queiramos falar, o problema é que ninguém nos quer ouvir. Para nós e para os soldadinhos foi uma aventura que nos marcou para a vida – e de que maneira! -, para esta gente, tudo passava à margem, nada lhes dizia respeito. Assim sendo, para quê falar? Só como exercício catárquico para a geração que por lá passou e que teve uma vivência concreta destas situações.


A população da Guiné-Bissau na actualidade
Foto de Paula Tábuas © copyright


Casos

O Tó, meu amigo de infância, veio de lá surdo, uma canhoada, morteirada ou lá o que foi, explodiu na caserna onde se encontrava. Apesar dos estilhaços se terem espalhado um pouco por toda a parte, escavacando tudo, por sorte um armário de metal e duas camas tombadas salvaram-no miraculosamente do que podia ter sido uma morte prematura ou ferimentos muito graves, uma vez que a explosão foi a escassos metros do local onde se encontrava, mas ficou com a audição reduzida a 20%. Andou de emprego em emprego, pelo Brasil e por vários países da América Latina, mas permaneceu marcado para sempre por aquele tremendo handicap.

O Fernando, com quem estudei algumas vezes, quando do meu regresso de África, não esteve na Guiné, mas a sua experiência no Norte de Angola – andou por Nambuangongo, salvo erro – foi altamente traumática, quer do ponto de vista físico, quer psicológico. Na primeira operação no mato, pôs-se à frente do seu grupo de combate e fez-se ao caminho por um trilho, com marcas visíveis da passagem de guerrilheiros. Percorridos uns 400 metros, pisou uma mina anti-pessoal, esfacelando uma perna. O helicóptero lá apareceu ao fim de meia hora; foi evacuado para Luanda; dali para o Hospital da Estrela em Lisboa e depois para a Alemanha onde lhe foi colocada uma prótese. Passou aos serviços administrativos do Exército e, ao mesmo tempo, lá foi tirando o seu curso. Mais tarde conseguiu alternar a carreira militar que foi seguindo, degrau a degrau com alguma lentidão, e a docência, num liceu da capital. Viveu relativamente bem acumulando dois ordenados, mas sempre amargurado com essa deficiência física. Na fase derradeira da vida, foi acometido por uma outra doença bem mais complexa, sem retorno possível, e perguntava-me: “Diz-me por que é que não morri na mina? Teria sido tudo mais fácil, não achas?” Não respondi.

Como fuzileiro, Teodoro conheceu bem a Guiné, de Norte a Sul e de Leste a Oeste. Sofreu inúmeros ataques e nem sequer sabia contabilizar os contactos de fogo, tantos foram, tão frequentes e tão intensos. Quando regressou à chamada metrópole, estava feito um farrapo humano. Não sei se o álcool, se os pesadelos e os traumas de guerra, ou se uma combinação de tudo isso lhe tinham alterado o juízo. De quando em quando, chorava baixinho, quase em silêncio. Falava pouco, sobretudo não queria falar “daquilo”. Teve um casamento infeliz e curto, com cenas inopinadas de violência conjugal, mas apesar de tudo dessa união resultou uma filha, hoje, emigrada na Alemanha e que nunca mais quis saber do pai. A mulher que, sem prejuízo dos seus ataques incontrolados de fúria, genuinamente amava, foi viver com outro, refez a sua vida e libertou-se daquele “louco”. Não, não sabia por onde ela andava. Constava-lhe que vivia no Porto ou em Gaia, mas quem sabe? Andou de psicólogo em psicólogo, de psiquiatra em psiquiatra, até que lhe diagnosticaram “stress pós-traumático de guerra”. Ficou-se com o palavrão e com os problemas de sempre que continuam a atormentá-lo.
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Nota do editor

Último poste da série de 9 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14722: Notas de leitura (725): “Guerra na Bolanha”, de Francisco Henriques da Silva - (Programa Fim do Império, Âncora editora, Lisboa, 2015) - O regresso de África e a reinserção - parte I (Francisco Henriques da Silva)

terça-feira, 9 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14722: Notas de leitura (725): “Guerra na Bolanha”, de Francisco Henriques da Silva - (Programa Fim do Império, Âncora editora, Lisboa, 2015) - O regresso de África e a reinserção - parte I (Francisco Henriques da Silva)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Henriques da Silva (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402/BCAÇ 2851, , Mansabá e Olossato, 1968/70; ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999), com data de 5 de Junho de 2015:

Caros camaradas e amigos,
Envio-vos, em dois segmentos, o capítulo XXV do meu livro “Guerra na Bolanha” (Programa Fim do Império, Âncora editora, Lisboa, 2015) que nos fala de vários casos, que conheci, de reinserção - ou de não reinserção - de jovens, como eu, que haviam cumprido o serviço militar, na Guiné e noutras paragens ultramarinas, na sociedade portuguesa. A reintegração nuns casos foi razoavelmente bem sucedida e noutros tal não ocorreu, subsistindo traumas físicos e, sobretudo, psicológicos até aos nossos dias.

Via de regra, tendo em conta a aventura espantosa que vivemos em África, arrancados que fomos à relativa mansidão da nossa Tugalândia e ao ramerrame do nosso dia-a-dia, dos idos anos sessenta do século passado, confrontámo-nos com um verdadeiro “reality shock” e, por isso, temos tendência a concentrarmo-nos nos feitos de guerra e no nosso quotidiano em terras da Guiné. Porém, existe sempre um antes, que por vezes também é referido (a nossa juventude e como a vivemos antes da nossa passagem pelas fileiras) e, de igual importância, senão mesmo mais impactante, um depois (mas desta fase poucos falam e, todavia, ela é, a meu ver, crucial).
Uma das minhas preocupações de fundo foi tentar entender em que consistiu, com um mínimo de rigor, a fase posterior, o que é uma tarefa, no mínimo, ingrata. No meu caso pessoal, creio que marquei objectivos, que, aliás, descrevo com algum detalhe no meu livro, elaborei uma estratégia para os alcançar e, com maior ou menor sacrifício, consegui atingi-los. Todavia, muitos jovens de então, por uma multiplicidade de razões, infelizmente, não obtiveram qualquer êxito nessa caminhada.

Penso que não podemos circunscrevermo-nos a falar em circuito fechado da “nossa guerra” e que nos devemos abrir à sociedade em geral, sem tabus, sem preconceitos e sem complexos. Se queremos algum reconhecimento pelo que fizemos - e todos nós sabemos bem quão ingrato é ou pode ser o nosso Portugal actual - temos de falar para que alguém nos ouça. Não queremos pancadinhas no ombro do nosso proverbial nacional-porrerirsmo, não queremos agradecimentos, medalhas, louvores e lisonjas, mas apenas, que se reconheça que, para o bem e para o mal, com sacrifícios, desassossegos e canseiras, lutámos pelo nosso país. Verifico, por exemplo, que, nos Estados Unidos, independentemente dos conflitos justos ou injustos, populares ou impopulares, da respectiva legitimidade ou ilegitimidade, a população, em geral, presta tributo aos seus veteranos, quer os da II Guerra Mundial, da Coreia, do Vietname, do Iraque ou do Afeganistão. Na Rússia passa-se exactamente à mesma coisa. Portugal, pelo contrário, parece que quer deliberadamente apagar a sua história, todavia um tal curso de acção é um absurdo, jamais poderá ser concretizado.

Um abraço
Francisco Henriques da Silva
(ex-Alferes miliciano de infantaria da C.Caç. 2402 e
ex-embaixador de Portugal em Bissau 1997-1999)

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A reinserção dos outros. Será que houve verdadeira reintegração? Realidade e ficção.

(1.ª parte)

Caso 1 

Pousou o cigarro fumegante no cinzeiro metálico na mesa daquela esplanada da Costa da Caparica. Falou e acto contínuo começou num tom fortemente emotivo:
- Sabe, meu amigo, não consigo. Não consigo. Não me sai da memória. Depois daquela emboscada já perto, muito pertinho de Bula, numa maldita bolanha. Santo Deus! Não consigo...

Bebeu mais um gole de água e um pouco mais distendido continuou:
- Emboscaram-nos em grande, os cabrões! Era um fogachal medonho por todos os lados. Disparavam as RPG’s e as Kalashes sem descanso. Não, não eram, como habitualmente, uma meia-dúzia. Desta vez, era mesmo em grande. Não sei fazer as contas, mas eram muitos, mais que às mães, como se costuma dizer. Eram tiros e rebentamentos por tudo quanto era sítio. Estavam ali à nossa espera. Já não sabíamos uns dos outros, porque tínhamo-nos reunido em pequenos grupos para resistir melhor, mas aquilo não parava e não tínhamos onde nos abrigar. Aliás, estava tudo espalhado e tresmalhado no meio da água e do capim. Se não tivéssemos cuidado, daí a pouco estávamos a disparar uns contra os outros. Sabe, são imagens que ainda hoje não me saem da cabeça. Estou a ver a cena toda. Depois, acertaram em dois ou três de nós, talvez mais. Não sei bem. Ouviam-se os gritos. Ouço-os todos os dias. “Ai minha Nossa Senhora! Acudam-me que eu fico já aqui! Mãe! Oh, minha mãe! Estou com as tripas de fora! Ajudem-me! Ajudem-me! Vamos aqui ficar todos! Virgem Maria! Acudam-me! Enfermeiro! Enfermeiro!” E o héli não vinha. Não vinha e nós cada vez mais desesperados.

Vieram-lhe as lágrimas aos olhos. Revivia tudo como num filme em câmara lenta. Parava. A bobine voltava atrás e avançava outra vez, mas não tinha fim, recomeçava. Olhou para a linha do horizonte e viu a praia com os banhistas sob o escaldante sol de Julho, um avião sobrevoou-nos, dirigia-se à Portela. O que lhe parecia verdadeiramente irreal era aquela cena corriqueira e não o seu relato, o seu filme, o que tinha para contar. Essa, sim, era a história real.


Poilão de Brá
Foto ©: Arquivo de Francisco Henriques da Silva

Caso 2

Era meu vizinho do bairro. Uns anos mais novo, mas a diferença de gerações, hoje inexistente, não nos impedia de relatarmos as nossas experiências.
- Sabes, Chico, eu era furriel da Polícia Militar e tenho duas ou três cenas que não me saem da memória, isto já no final da comissão. Em Portugal, tinha acabado de se dar o 25 de Abril e em Bissau, aquela malta começava a manifestar-se por toda a parte. Por conseguinte, a PM tinha que redobrar de esforços, por que as coisas podiam dar para o torto. Uma das tarefas de que fui incumbido e precisamente aquela que não posso, por forma alguma, esquecer foi a prisão do Governador e Comandante-chefe da Guiné, General Bethencourt Rodrigues. Mandaram-me ir prendê-lo ao Forte da Amura, no dia 26 de Abril. Perguntei: ‘Quem? Eu, um simples furriel da PM?’. Responderam-me que sim que a tarefa era da minha responsabilidade e que não ia comigo nenhum oficial. Fiquei um bocado à rasca com tudo aquilo e cheio de nervoso miudinho: ia prender o Grande Chefe, nem mais nem menos.
Cheguei à dependência onde se encontrava, na Amura, bati a pala e, antes de poder abrir a boca, o General adiantou-se-me dizendo-me: ‘Estou pronto. Podemos seguir para o aeroporto’.
Bom, lá fomos em silêncio, estrada fora. Sabes estas coisas são difíceis de contar, têm de ser vividas. Foi muito desagradável. Senti-me muito incomodado.

Parou durante uns momentos, talvez para mudar um pouco de tema, muito embora se referisse invariavelmente a episódios do pós-25 de Abril em Bissau:
- Deram-me também como missão específica, naqueles dias, logo a seguir à revolução, que fosse libertar os presos políticos que se encontravam em Bissau, à guarda da PIDE. Também não foi nada fácil, muito embora o final fosse estilo tourada. Eu já te explico. Aquela malta - refiro-me aos locais - estava possessa e queria que os presos fossem libertados de imediato. Começou-se a juntar a multidão, com cada vez mais gente, e nós, ou seja, eu e os meus homens, éramos poucos - creio que uma secção, ou coisa que o valha - tínhamos a maior das dificuldades em contê-los. Bom, lá fui à cadeia e libertei os 7 que lá se encontravam (sim, seriam 7, mas não te posso garantir o número exacto), isto perante a gritaria constante daquela gente. As coisas podiam dar para o torto, porque estavam todos excitadíssimos. Quando os gajos vieram para a rua, a multidão avançou para mim e eu, muito francamente fiquei, então, com um cagaço dos antigos. Estava a ver que podia ser linchado. Mas, não, levaram-me aos ombros como um toureiro e andaram a passear-me pelo centro de Bissau. Transformaram-me em herói. Não ganhei para o susto, mas tudo bem. O que te fui contando e que tu percebes melhor que ninguém, pois também por lá andaste, fica-nos gravado na memória. Por muito que a gente queira, isto não desaparece. Eu não andei aos tiros no mato, como tu e outros, mas vivi estas coisas na cidade intensamente. Hoje, tenho o meu emprego, à espera da reforma, a minha mulher, filhos e netos, enfim a vida que todos têm ou deviam ter. O que passei em África, está ultrapassado, mas fica sempre qualquer coisita, não é verdade?


Bissau actual
Foto de Paula Tábuas © copyright

Caso 3

Empresário com algum sucesso, o António, hoje, sexagenário, com graves problemas de artrose, lá consegue movimentar-se agarrado a uma bengala. A sua história é igual à de muitos outros, com algumas diferenças, que não são simples matizes.
- Alferes miliciano de infantaria, a minha especialidade eram as armas pesadas, andava lá para o Sul com os morteiros de 105. Veio o 25 de Abril e pouco depois tudo aquilo entrou em parafuso. Ninguém mandava em ninguém. Os soldados não queriam combater. Os “turras” confraternizavam connosco. Nada do que assisti fazia sentido e se comparássemos com o que se tinha passado uns meses antes, em que andavas para ali aos caídos a apanhar no toutiço, a comer mal e a ser comido pelos mosquitos, menos sentido fazia. Era um ver se te avias. Eu não sabia muito bem como aquela história ia acabar. Enfim, lá nos mandaram embora e para aqui viemos. Mas a verdadeira história é por cá que começa, na Santa Terrinha. Cheguei e o que eu queria era beber umas cervejolas e comer umas gambas, descontrair, gozar a vida, depois de ter passado o que passei lá pela mata da Guiné, o que quer que viesse a seguir que se lixe, ficava adiado - era para se pensar nisso mais tarde. Mas um gajo chega e, no fundo, o que é que vê? Um país em convulsão, tudo excitado e aos berros, todos a quererem tudo ao mesmo tempo, já, neste instante, agora. Estás a ver? Lembras-te, com certeza. Mas o pior nem sequer era isso. O pior é quando te acusavam de teres estado em África a matar pretos. ‘Então voltaste, mataste muitos pretinhos, não foi?’ diziam-me. De repente, éramos os maus da fita e mesmo os amigos voltavam-nos as costas. Todos eram revolucionários, comunistas, socialistas, maoístas, eu sei lá. E depois nós que andámos ali a bater com elas, éramos desconsiderados, desrespeitados, insultados. Em nenhuma parte do mundo, os militares que combateram pelo seu país foram tratados desta forma, como se fossem criminosos. O problema foi da Nação, foi colectivo e não apenas nosso, dos combatentes. Limitámo-nos a cumprir ordens que nos vinham pela cadeia hierárquica e não éramos nenhuns nazis: não fizemos nada contra a nossa consciência, nem contra os nossos princípios. Sabes, o sermos tratados como lixo é que me doeu. Essa imagem é que está gravada no meu espírito. Esta gente foi profundamente ingrata. A bolanha e os tiros esquecem-se, mas quando os teus compatriotas e os teus supostos amigos te tratam como se fosses merda, aí não te esqueces, nunca mais.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 8 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14713: Notas de leitura (724): “Olhos de Caçador”, de António Brito, Porto Editora, 2014 (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P14719: Agenda cultural (410): Os nossos camaradas Francisco Henriques da Silva e Manuel Barão da Cunha estarão no próximo dia 12, a partir das 16 horas na Feira do Livro de Lisboa, Pavilhão Âncora Editora, integrados no conjunto de autores do Programa "Fim do Império" a autografar as suas obras



1. Mensagem do nosso camarada Francisco Henriques da Silva, ex-Alf Mil da CCAÇ 2402/BCAÇ 2851, , Mansabá e Olossato, 1968/70; ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999:

Caros amigos e camaradas de armas,
Integrado no conjunto de autores do Programa “Fim do Império” terei o maior gosto em contar com a vossa presença na sessão de autógrafos que terá lugar na Feira do Livro no próximo dia 12 de Junho, a partir das 16 horas.

Com um abraço amigo
Francisco Henriques da Silva
(ex-Alferes miliciano de infantaria da CCaç 2402 e
ex-embaixador de Portugal em Bissau 1997-1999)

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2. Mensagem do nosso camarada Manuel Barão da Cunha, Coronel de Cav Ref, que foi CMDT da CCAV 704/BCAV 705, Guiné, 1964/66:

Caríssimos, 
No próximo dia 12, 6.ª feira, na Feira do Livro, pavilhão de Âncora Editora (lado esquerdo de quem sobe), a partir das 16h00, haverá sessão de autógrafos com autores do «Programa Fim do Império», nomeadamente: 
Carlos Acabado, Daniel Gouveia, Albano Mendes de Matos, Castro de Figueiredo, M. Vieira Pinto, F. Henriques da Silva e M. Barão da Cunha.

Quem puder aparecer será bem-vindo. 

Fiquem bem, 
MBC

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Nota do editor

Último poste da série de 5 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14704: Agenda cultural (407): 3 dias, 30 filmes no feninino, 12 países... Festival Olhares do Mediterrâneo, 2º edição... Começa hoje,no Cinema São Jorge, integrado nas Festas de Lisboa

sábado, 2 de maio de 2015

Guiné 63/74 - P14553: Agenda cultural (394): Apresentação do livro "Guerra na Bolanha - De Estudante, a Militar e Diplomata", de Francisco Henriques da Silva, dia 5 de Maio de 2015, pelas 18h00, no Palácio da Independência, Largo de São Domingos, Lisboa (Francisco Henriques da Silva)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Henriques da Silva (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402/BCAÇ 2851, , Mansabá e Olossato, 1968/70; ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999), com data de 28 de Abril de 2015:

Meus caros,
A fim de ser eventualmente divulgado na vossa agenda cultural, junto remeto um convite para a apresentação da obra da minha autoria “Guerra na Bolanha”, na próxima terça-feira, dia 5 de Maio, pelas 18 horas, na Sociedade Histórica da Independência de Portugal em Lisboa.

Com abraço,
Francisco Henriques da Silva
(ex-Alferes miliciano de infantaria da C.Caç. 2402 e ex-embaixador de Portugal em Bissau 1997-1999)


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Nota do editor

Último poste da série de 28 de abril de 2015 > Guiné 63/74 - P14538: Agenda cultural (393): Lançamento do livro "CARTAS DE MATO" - CORRESPONDÊNCIA PACÍFICA DE GUERRA", de Daniel Gouveia que terá lugar no próximo dia 5 de Maio de 2015, pelas 15 horas, na Livraria/Galeria Municipal Verney, em Oeiras

quinta-feira, 30 de abril de 2015

Guiné 63/74 - P14545: Bibliografia de uma guerra (71): E agora? O que é que vou fazer?, do livro "Guerra na Bolanha", de Francisco Henriques da Silva, Âncora Editora, Lisboa, Março de 2015

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Henriques da Silva (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402/BCAÇ 2851, , Mansabá e Olossato, 1968/70; ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999), com data de 18 de Abril de 2015:

Meus caros Luís Graça, Carlos Vinhal e todos os camaradas e amigos desta tertúlia,
Na sequência da minha anterior correspondência é com o maior prazer que vos envio mais um excerto da minha obra “Guerra na Bolanha - de estudante, a militar e diplomata” (Âncora Editora, Lisboa, Março de 2015).
Desta feita, reporto-me a um tema pouco abordado - o regresso de África e a correspondente reinserção na sociedade portuguesa de então, a que dediquei toda a 3.ª parte do livro e de que aqui fica apenas, digamos um pequeno “aperitivo”.
Trata-se, obviamente, de uma perspectiva muito pessoal. O que aqui refiro consta das páginas 228 a 230 da obra.
A foto fui-a buscar à Net e é apenas ilustrativa de um embarque ou desembarque de tropas no cais de Alcântara.
Permito-me relembrar que o lançamento oficial foi efectuado em 17 de Março em Oeiras, mas está prevista uma sessão de apresentação em Lisboa, na Sociedade Histórica da Independência de Portugal em 5 de Maio, pelas 18 horas, para a qual está todos convidados e de que oportunamente enviarei para estas mesmas páginas um lembrete.

Saudações amigas
Francisco Henriques da Silva
(ex-Alferes miliciano de infantaria da C.Caç. 2402 e ex-embaixador em Bissau 1997-1999)


E agora? O que é que vou fazer?

Finalmente livre da monotonia verde azeitona das fardas militares, olhei para o espelho e vi-me, tal como era: vinte e poucos anos, sem curso, sem emprego, sem namorada e, principalmente, sem saber como organizar a minha vida no imediato. Tinha de encontrar saídas e dar resposta à magna questão: que fazer? Tinha de encontrar solução para todos estes problemas, uns pequenos, outros grandes, mas que se inscreviam na pergunta soberana que pairava sempre no ar e que prevalecia sobre tudo o mais: que fazer?

Tinham-me roubado a minha juventude, preciosos anos de vida quando estava na sua plenitude, o curso que queria terminar, uma carreira profissional que queria encetar. Sentia um vazio muito grande, mas não desesperei, não havia lugar para choro, nem ranger de dentes. Não podia verter lágrimas sobre o azeite derramado, nem à boa maneira lusitana culpabilizar a situação, as circunstâncias, o Outro ou os outros ou seja, lá quem for e o que for. Sim, porque, nos parâmetros da mentalidade tuga, no mau sentido da palavra, a culpa nunca era nossa. Tinha, pois, de reagir. Tinha de avançar. Tinha de ser eu a dar a resposta certa.

E assim o fiz, talvez com hesitações, desvios, opções duvidosas, caminhos ínvios, reflexões sem rumo definido, mas bem no íntimo sentia que podia seguir em frente e que tudo dependia de mim. Tinha de fazer. Tinha de assumir uma atitude pró-activa.

Em primeiro lugar, estava firmemente disposto a completar a universidade. Com a célebre “reforma Veiga Simão,” assim chamada em nome do Ministro da Educação da época (que em várias reencarnações acabou por servir diversos regimes políticos), o meu curso havia sido reestruturado e tinha ficado com cadeiras dispersas por todos os anos e nenhum completo ou próximo disso. Podia, agora, se quisesse, chegar a bacharel, ou seja, fazendo cadeiras por atacado, como aluno-militar. O bacharelato, na altura, constituía uma novidade, uma hipótese simpática que abria as portas a uma carreira no ensino, sobretudo para quem frequentasse cursos das faculdades de Letras e de Ciências. Era uma questão de tempo, de vontade e de algum sacrifício. Mas o meu grande objectivo final consistia em ingressar na carreira diplomática, um sonho que acalentava desde miúdo. Todavia, tratava-se de um alvo de difícil alcance e demoraria anos a lá chegar. Antes do mais, teria de completar o curso e de me sujeitar a um concurso de entrada no MNE, que não era propriamente “canja”, diziam. Mas retomando o fio à meada, que diabo, já estava nos vinte e tais, não podia viver das magras economias feitas, cujas limitações eram conhecidas, nem das sopas paternas ou, melhor, maternas. Tinha de fazer alguma coisa e, como atrás, referia aproveitar o estatuto de aluno-militar que me permitia dar saltos de canguru na faculdade.

Em segundo lugar, queria encontrar um emprego, em tempo inteiro ou em “part time”, para me poder sustentar, para as minhas fantasias e, enfim, para poder juntar os tostões com que se compram os melões. Esta era uma segunda prioridade, mas que se situava quase ao nível da primeira, pois não podia andar à boa vida.

Em terceiro lugar, depois dos namoros, pseudo-namoros, ou meros “flirts” tinha de arranjar, de algum modo, uma companhia feminina certa e não andar de candeia acesa à procura da bela adormecida no bosque ou feito lobo predador a emboscar a menina do capuchinho vermelho e todas as demais, na perspectiva de que tudo o que vem à rede é peixe, como alegadamente fazia ou, pelo menos, alardeava a maioria dos jovens machos lusitanos. A sexualidade tinha de ter os seus escapes, mas eu procurava sobretudo a estabilidade - apesar dos devaneios, sentia que era monógamo por natureza.

Em quarto lugar, tinha de descansar, viajar, passear, recarregar baterias, reavivar velhas amizades, satisfazer alguns sonhos do passado até aqui incumpridos. Em suma, viver e sentir que estava vivo, bem vivo e com vontade de pontapear. Havia uma certa urgência nisto, na medida em que, apesar de jovem, o tempo ia passando e, como rezava uma velha canção da época, não voltava para trás, apesar de querermos à viva força mudar-lhe o rumo.

Finalmente, via-me coagido a esquecer o passado próximo, as memórias que o tempo afinal não apaga e ultrapassar, se é que os tinha, alguns traumas de guerra. Porém as imagens não me abandonavam, via claramente e numa base diária, as tabancas, a mata, as bolanhas, as fardas, os corpos semi-nús dos soldados, as armas; ouvia distintamente os rebentamentos dos morteiros e dos “rockets”, o matraquear das costureirinhas, o guinchar dos macacos, o grasnar de certas aves tropicais, as falas de fulas, mandingas e balantas; sentia os cheiros fétidos de algumas bolanhas, o odor das plantas estranhas que a humidade fazia sobressair, a comida do “rancho” – ou do que pomposamente se chamava messe - pouco variada e insípida, o cheiro do capim e do mato queimado na estação seca; na boca, sentia o uísque que se bebia ao fim do dia, ou a cerveja morna; o gosto da manga verde roída devagar atrás do poilão, a enjoativa ração de combate e por aí fora. Enfim, imagens, sons, aromas e paladares que não me abandonavam, mas, planando por cima de tudo, aquela impressão durável, mas indefinível, quando se pressentia que íamos entrar em combate dentro de instantes: o nó na garganta, o gosto esquisito na boca, os suores quentes e frios, as borboletas no estômago. Como esquecer, então, se ainda hoje me lembro como se fosse ontem?

Cais da Rocha Conde de Óbidos - Lisboa
Foto: © Fernando Chapouto (2006). Todos os direitos reservados.
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Nota do editor

Vd. poste anterior de 28 de Abril de 2015 > Guiné 63/74 - P14536: Bibliografia de uma guerra (70): A Mina, do livro "Guerra na Bolanha", de Francisco Henriques da Silva, Âncora Editora, Lisboa, Março de 2015

terça-feira, 28 de abril de 2015

Guiné 63/74 - P14536: Bibliografia de uma guerra (70): A Mina, do livro "Guerra na Bolanha", de Francisco Henriques da Silva, Âncora Editora, Lisboa, Março de 2015

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Henriques da Silva (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402/BCAÇ 2851, , Mansabá e Olossato, 1968/70; ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999), com data de 18 de Abril de 2015:

Meu caro Luis Graça e todos os camaradas e amigos desta tertúlia,
Como o prometido é devido, aqui estou a enviar um excerto da minha obra “Guerra na Bolanha - de estudante, a militar e diplomata” (Âncora Editora, Lisboa, Março de 2015).

O episódio aqui relatado consta de páginas 159 a 161 do livro em apreço e é ilustrado com uma fotografia autêntica da época da autoria de Maurício Esparteiro.
Recordo que, em tempos, enviei para o blogue um relato do ataque a Mansabá em 3 de Abril de 1969 que também integra a obra.(*)
O lançamento foi efectuado em 17 de Março em Oeiras, mas será feita uma sessão de apresentação em Lisboa, na Sociedade Histórica da Independência de Portugal em 5 de Maio, pelas 18 horas, para a qual estão todos convidados e de que oportunamente enviarei para estas mesmas páginas um lembrete.

Saudações amigas
Francisco Henriques da Silva
(ex-Alferes miliciano de infantaria da CCaç 2402
e ex-embaixador em Bissau 1997-1999)


A Mina

Um pouco mais adiante, no nosso percurso para Bissorã é detectada uma nova mina e desta feita, coube-me a mim, como especialista em explosivos, levantá-la. Armado apenas com uma faca de mato lá fui desempenhar-me dessa ingrata tarefa, pedindo a todos que se afastassem pelo menos uns 50 metros e se refugiassem por detrás dos troncos das árvores.
À boa maneira lusitana, existia sempre um ou outro mirone, que, apesar dos avisos e das proibições, das ordens berradas pelos furriéis, iam ver as minas e manifestavam muita curiosidade em saber como se desmontavam. A certa altura irritei-me, tive de parar o que estava fazer e pedi ao meu “guarda-costas”, que estava para ali a olhar feito parvo, que se retirasse:
– Mas eu estou aqui para protegê-lo, meu alferes – disse-me ele.
– Oh, homem, não proteges nada! Vamos mas és os dois para o galheiro em menos de dois tempos! Além disso parece-me que esta mina está contra-armadilhada! Isto é perigosíssimo! – retruquei.

O que é que se passa pela nossa cabeça quando estamos a desmontar uma mina com cerca de seis quilos e meio de trotil? Sabemos que qualquer erro seria, como diziam os nossos instrutores em Tancos, o primeiro, o único e o fatal. Nesse momento tudo nos incomoda, as pessoas, o arvoredo, a areia seca do arremedo de estrada em que nos encontramos, os ruídos indefinidos da floresta, as formigas que, indiferentes, passeavam num carreiro ali ao lado; alguém que assobiou lá ao longe, sem qualquer motivo; o fumo de um cigarro que o furriel deitou ali bem perto de nós, há minutos. E depois o que nos passa em flashes sucessivos pela cabeça: os eléctricos amarelos de Lisboa, tão perto do nosso coração e tão longe; a namorada que já não tínhamos, mas que podíamos ter; a última música dos Beatles, que era bem gira; os pais, os irmãos e a avó, com os seus límpidos olhos azuis e o seu ar autoritário; os estudos inacabados; a estupidez incomensurável da guerra naquele país ignorado e que poucos sabiam localizar com exactidão no mapa. Enfim, o que é que, em boa verdade, não nos passa pela cabeça?
Mas, atenção: temos de nos concentrar, o importante é desactivar a mina, tão depressa quanto possível, mas sem grandes pressas. Temos medo? Creio que não. Estamos apenas apreensivos. Como é que isto se define? Não sei. A juventude e alguma inconsciência que a caracteriza acaba com qualquer vislumbre de medo e a prudência não é para aqui chamada. Vamos a isto? Vamos! Mãos à obra.

Olossato - Levantamento de uma mina
Com efeito, ao escavar a terra sob a parte inferior da caixa de madeira da mina anticarro, deparei com algo de estranho, que não sabia exactamente o que era. Parecia-me um arame, junto com um objecto redondo metálico em forma de pastilha. Não percebi muito bem o que era, mas estava desconfiado. Não conseguia, porém, escavar mais, até porque podia desequilibrar a mina e se esta estivesse contra-armadilhada podia dar por terminada a minha comissão na Guiné e começar de imediato outra no Além. Acresce que, à torreira do Sol, estava com as mãos suadas e sujas de terra. Não podia continuar. Lembrei-me de um alferes sapador que, umas semanas antes, lá para o Sul, ao tentar desactivar uma mina, com as mãos suadas, deixou escapar o percutor e ficou feito em carne picada, que, segundo me contaram, mal cabia toda dentro de um quico. Para rematar, com todos os acontecimentos do dia, estava enervado com pequenas coisas e não com a mina propriamente dita ou seria por causa dela? Parei para descansar, beber um gole de água, puxar de um cigarro. Sosseguei. Mas não tinha chegado ao fim das minhas tribulações.

Chamei a minha gente, para conferenciar com os furriéis e um dos condutores.
– Meus amigos, aquela mina deve estar contra-armadilhada e eu receio que não consiga dar conta do recado. Alguém tem sugestões? Podemos rebentá-la no local. É o que se costuma fazer e é uma hipótese a considerar. Mas vamos, antes, tentar retirá-la com o guincho do Unimog. O que é que acham?

À falta de melhor, com uma ou outra hesitação, acabaram todos por concordar. Então expliquei-lhes o que pretendia fazer:
– Como esta coisa pode rebentar imediatamente ou a meio caminho, quando estiver a ser puxada, nunca se sabe, o pessoal vai-se afastar ainda mais. Portanto, recuam todos para uma distância segura. Vamos esticar o cabo até ao limite, depois vamos passá-lo pelo ramo daquela árvore – e apontei com o dedo para uma árvore próxima –, em seguida, vamos prender o gancho às pegas laterais da mina que são de corda. Finalmente, com toda a calma, içamo-la. Quando estiver no ar baixamo-la muito, mas muito, lentamente. – e voltando-me para o condutor – Percebeste? Atenção! Tudo pode acontecer. Deixem-se de brincadeiras! Isto é a sério! Não quero aqui ninguém de ninguém!

Todo o pessoal se abrigou a uma distância razoável do local, internando-se na floresta e escondendo-se atrás das árvores e dos morros de baga-baga. Com esta dispersão, corria-se o risco de sermos emboscados ou de alguém colocar o pé numa mina antipessoal. Porém, não houve nada. Os guerrilheiros assentaram a mina e terão ido à sua vida. Bom, procedemos com o maior cuidado. A mina elevou-se no ar, aí um metro ou um pouco mais. Não aconteceu o que quer que fosse. Depois baixámos o cabo muito devagar até repousar novamente no solo, ao lado do buraco, onde se encontrava previamente. Não estava contra-armadilhada como se temia, mas o inimigo havia deixado uma moeda de 25 tostões metropolitana presa a um clipe grande de escritório (!). Da estupefacção passei ao riso. Mas que ideia aquela! Desarmei, com segurança, a mina e a companhia lá ficou a ganhar 2000 escudos, que era o prémio por mina anticarro detectada e levantada (em geral, 1000 escudos para quem a descobria e outros 1000 para quem a levantava). O dinheiro reverteu, como habitualmente, para o fundo comum.

O resto da estrada foi cuidadosamente picada até ao subsector de Bissorã, cuja tropa, quase toda originária dos Açores, já estava preocupada com a nossa demora e alguns dos graduados, num acto meio-tresloucado foram ter connosco, ao limite da respectiva área, de bicicletas motorizadas!

A loucura não paga imposto.
C’était notre drôle de guerre!
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Notas do editor

(*) Vd poste de 7 de novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13858: Memórias de Mansabá (34): As amêndoas da Páscoa de 1969 (Francisco Henriques da Silva)

Último poste da série de 23 de maio de 2013 > Guiné 63/74 - P11616: Bibliografia de uma guerra (69): "Guiné - Terra que aprendemos a amar", mais um livro em sextilhas do nosso camarada Manuel Maia

terça-feira, 14 de abril de 2015

Guiné 63/74 - P14468: Notas de leitura (703): Sinopse do livro "Guerra na Bolanha", por Francisco Henriques da Silva

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Henriques da Silva (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402/BCAÇ 2851, , Mansabá e Olossato, 1968/70; ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999), com data de 7 de Abril de 2015:

Meus caros amigos,
Não é usual e pode até parecer presunçoso que um autor se pronuncie sobre a sua própria obra. Todavia, tendo em conta que as recensões sobre o meu recente livro - “Guerra na Bolanha - de estudante, a militar e diplomata” - foram até à data escassas, decidi publicar uma sinopse sobre a obra, com um ou outro comentário, apenas para despertar a atenção e o interesse dos eventuais leitores. Entendi que devia, de algum modo, divulgar o que escrevi, em especial junto dos antigos combatentes e dos meus contemporâneos e amigos. Adianto que um ou dois excertos da obra já foram publicados neste blog.

O livro lançado pela Âncora Editora, tem o patrocínio da Liga dos Combatentes, da Comissão Portuguesa de História Militar, do Programa Fim do Império e da Câmara Municipal de Oeiras. Já se encontra disponível nas livrarias e pode também ser encomendado on-line.

Mais esclareço todos os interessados que em 5 Maio, pelas 18h00, no Palácio da Independência, ou seja na Sociedade Histórica da Independência de Portugal, no Largo de S. Domingos, em Lisboa será levada a efeito uma sessão de apresentação seguida de debate. A entrada é livre e oportunamente darei conhecimento por esta via de mais pormenores e avivarei a memória dos potenciais interessados.

Com um abraço cordial e amigo
Francisco Henriques da Silva
(ex-Alferes miliciano de infantaria da CCaç 2402
e ex-embaixador de Portugal em Bissau (1997-1999)


"Guerra na Bolanha"

À semelhança de muitos jovens da minha geração, fui alferes miliciano de infantaria na então Guiné Portuguesa, entre 1968 e 1970. 27 anos mais tarde fui nomeado embaixador de Portugal na Guiné-Bissau independente, onde assisti e intervim, como testemunha privilegiada e como mediador, na guerra civil daquele país entre 1998 e 1999, o que já descrevi numa minha obra anterior “Crónicas dos (des)feitos da Guiné” (2012).

Não é de mais salientar que se tratou de uma situação sui generis, na medida em que, tanto quanto sei, fui o único embaixador que exerceu a chefia de uma missão diplomática, num território onde havia previamente combatido como militar.

O presente livro assume um carácter marcadamente intimista e autobiográfico. Para alguns talvez demasiado intimista, quase roçando a linha vermelha do pudor. Mas trata-se, como escreveu o nosso camarada de armas Mário Beja Santos, do “crepúsculo dos combatentes” – ou seja, a nossa hora - em que podemos dizer tudo o que nos vai na alma: para nós, hoje, com a idade que temos, já não existem segredos, nem angústias. Somos transparentes e frontais. Chegou o momento de nos assumirmos plenamente, e com a coragem dos cabelos brancos.

Este livro refere-se a três momentos distintos, na vida de um jovem. Antes da guerra, ou seja, a dia-a-dia de um adolescente no Portugal dos anos 60 do século passado, da classe média urbana, que foi estudante e roqueiro, os seus hábitos, as suas leituras, o seu percurso académico e os respectivos namoros, até ao seu ingresso nas fileiras e as minhas primeiras experiências, como militar.

Durante a guerra, a confrontação com um cenário bélico real numa terra estranha consistiu num reality shock complexo - o quotidiano da luta, as condições de vida, os dramas humanos envolvidos, as questões psicológicas, enfim, tudo o que marca de modo indelével um jovem para sempre.

Depois da guerra, surge uma nova etapa: o regresso definitivo. Como se processou a reinserção na sociedade portuguesa dos anos 70? Que objectivos de vida tinha quando voltou: a retoma ou não dos estudos, o emprego, a vida sentimental e sexual, a diluição dos traumas de guerra? Que acolhimento lhe (nos) reservou o Portugal e os portugueses desse tempo?

Via de regra, a maioria dos autores menciona o que foi o conflito nas suas diferentes dimensões, por vezes, com uma incursão ou outra no passado anterior à ida para África, mas muito poucos mencionam a reintegração na sociedade que deixaram, aspecto que procurei abordar na minha perspectiva própria, com franqueza, sem subterfúgios e sem silêncios.
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de Abril de 1025 > Guiné 63/74 - P14466: Notas de leitura (702): "O Meu Avô Andou na Guerra", por Armando Queirós e Diogo Gomes, Âncora Editora, 2014 (Mário Beja Santos)

terça-feira, 10 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14339: Agenda cultural (382): Lançamento do livro “Guerra na Bolanha”, da autoria do nosso camarada Francisco Henriques da Silva, no próximo dia 17 de Março de 2015, pelas 15 horas, na Livraria-Galeria Municipal Verney, em Oeiras

Lançamento do livro “Guerra na Bolanha”, da autoria do nosso camarada Francisco Henriques da Silva, no próximo dia 17 de Março de 2015, pelas 15 horas, na Livraria-Galeria Municipal Verney, em Oeiras.


1. Mensagem do nosso camarada Francisco Henriques da Silva (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402/BCAÇ 2851, , Mansabá e Olossato, 1968/70; ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999), com data de 9 de Março de 2015:

Meu caro Carlos Vinhal, 
Tenho o prazer de te informar, bem como todos os leitores do blogue, do próximo lançamento do meu livro “Guerra na Bolanha”, para o qual estão naturalmente todos convidados, no próximo dia 17, pelas 15 horas, na Livraria-Galeria Municipal Verney, em Oeiras. 

Para o efeito, junto remeto o respectivo convite. 
Já agora, informo os interessados de que existe um amplo parque de estacionamento no Centro Histórico de Oeiras, com entrada pela Avenida Copacabana, mesmo nas traseiras do local, onde tem lugar o evento. 
A localização da Livraria-Galeria é esta. 

Com abraço amigo 
Francisco Henriques da Silva 
(ex-Alferes miliciano de infantaria da C.Caç 2402 e ex-embaixador de Portugal em Bissau (1997-1999)

C O N V I T E 

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Nota do editor

Último poste da série de 2 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14315: Agenda cultural (385): Apresentação do livro "O Soldado Clarim", da autoria do Cor Paraquedista Nuno Mira Vaz, dia 5 de Março, pelas 15 horas, na Messe de Oficiais, Praça da Batalha, Porto (Manuel Barão da Cunha)

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Guiné 63/74 - P13977: Notas de leitura (654): Reimpressão do livro “Crónica dos [Des]Feitos da Guiné" da autoria de Francisco Henriques da Silva (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Dezembro de 2014:

Queridos amigos,
O nosso confrade Francisco Henriques da Silva tem a singularidade de ter combatido na Guiné entre 1968 e 1970 e foi embaixador da Guiné-Bissau entre 1997 e 1999, viveu o aceso da guerra civil em condições absolutamente dramáticas, enquanto os seus pares da diplomacia logo se puseram em segurança via barco ou helicóptero, ele e a mulher e alguns colaboradores aguentaram a pé firme a borrasca, tudo fizeram para que as evacuações dos refugiados corressem bem, como correram, a bandeira portuguesa nunca deixou de tremular na nossa embaixada. O que é um motivo de orgulho para todos nós e para mim, sou seu amigo há mais de 50 anos.

Um abraço do
Mário


Crónica dos [Des]feitos da Guiné

Beja Santos

Em boa hora as Edições Almedina acabam de proceder à reimpressão do livro do nosso confrade Francisco Henriques da Silva cuja edição de Setembro de 2012 estava esgotada. O acento tónico da obra é a guerra civil de 1998-1999, era a sua primeira experiência como embaixador, a Guiné caíra-lhe na rifa, a Guiné onde combatera entre Setembro de 1968 e Abril de 1970. Dá-nos um relato esclarecedor e singelo do que foi a vida da CCAÇ 2402, primeiro em Có, onde tiveram batismo de fogo em 29 de Agosto, e aí viveu a experiência de proteção aos trabalhos de construção e asfaltamento da estrada Bula-Có-Pelundo, e depois em Mansabá, onde protegeram a construção da estrada Mansabá-K-3-Farim. Feito este trabalho de cantoneiros, foram lançados no Olossato, na região do Oio, mais um destacamento Ponte Maqué, que ele apresenta da seguinte forma:
“A 7 km do Olossato e a uns 11 ou 12 de Bissorã encontrava-se o destacamento de Ponte Maqué, um bunker em forma de quadrilátero, com um pátio central, na orla de uma bolanha, junto a um riacho, a maior parte do tempo seco ou quase, que albergava um grupo de combate. A ponte que, em tempos idos, foi de cimento e alvenaria, tinha sido dinamitada logo no início da guerra e havia sido reconstruída com toros de madeira, o que permitia a passagem de veículos pesados. Esta ponte era verdadeiramente vital pois permitia a conexão por estrada de Olossato com Bissorã e daí a Mansoa, Bissau e ao resto do território, por outras palavras, era a única ligação terrestre possível, porquanto as conexões com Mansabá e Farim estavam cortadas”.
E descreve seguidamente a vida em Ponte Maqué: 
“Sem energia elétrica, a proteção era-nos dada por umas duas ou três fiadas de arame-farpado, e por um campo de minas e armadilhas, delimitado pelas linhas de arame. A estrada nos dois sentidos, na direção de Bissorã e de Olossato era sempre armadilhada ao pôr-do-sol, sendo as granadas retiradas ao raiar de aurora, antes da população local se deslocar para a faina agrícola nas bolanhas vizinhas. Volta meia-volta os macacos saltitavam pelos campos de minas e rebentavam-nas, sendo invariavelmente saudados por rajadas de metralhadora e pelas imprecações dos soldados que acordavam estremunhados com os rebentamentos. Como oficial com a especialidade de explosivos, competia-me montar e desmontar as armadilhas em torno do destacamento de Ponte Maqué, bem como participar, juntamente com outros membros da minha equipa, na desminagem das picadas”.

Estamos em Outubro de 1997, [Francisco Henriques da Silva] chega a Bissau, apresenta credenciais ao presidente Nino Vieira e logo o Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e Cooperação inicia uma viagem oficial à Guiné-Bissau, Henriques da Silva regista com humor e muita coloquialidade a aparição de Kumba Ialá num jantar na embaixada em que está o secretário de Estado português e os ministros dos Estrangeiros e da Justiça, é uma descrição memorável:
 “- Meu caro embaixador, desculpa lá eu vir tarde, já passa das dez, mas não tenho fome. Ena, pá, tanta gente! Alguns eu conheço… 
- Oh, dr. Kumba, isso não tem a menor importância – disse ele, sem desmanchar, perante os olhares meio sorridentes dos dois Ministros presentes – Diga lá, o que é que quer tomar? 
- Um sun-sun (aguardente de caju) – retorquiu. 
- Bom, isso não há mas tenho algo de parecido. - Lá pedi ao Augusto que lhe servisse um conhaque ou um brandy e deixei-me ficar por perto, pois temia o que pudesse vir a passar-se e com Kumba Ialá o imprevisível era quase sempre o prato do dia – tudo podia acontecer. Entretanto, José Lamego aproximou-se também. 
- Ora cá está o Secretário! Sabe quem é este gajo? – e aponta com um dedo esticado para Delfim da Silva, enquanto emborcava o conhaque – este foi um dos que roubou os meus votos, por isso é que eu perdi as eleições. 
Sorriso amarelo por parte do visado e dos circunstantes que se entreolharam um tanto embaraçados. 
- Mas este ainda é pior – e vira-se, então, para o ministro da Justiça, Daniel Ferreira – este é que é um dos responsáveis pelos 20 mil votos que eu perdi nos Bijagós. Este agora é ministro da Justiça, secretário! Ouça o que eu lhe digo, esta gente do Governo não é séria! Mas vocês dão-lhes confiança…
Comecei a ver a vida a andar para trás. O primeiro jantar oficial que oferecia na residência a ministros locais e ao meu secretário de Estado, redundava num fiasco completo…”.

Henriques da Silva passa a escrito as impressões de Bissau, mas também as incongruências da cooperação, os sinais de instabilidade das Forças Armadas guineenses, o oportunismo da sua política externa, os equívocos do relacionamento luso-guineense, o caldeiro da questão Casamansa e em que medida a insurreição ali existente veio a contribuir para o detonar do levantamento militar chefiado por Ansumane Mané. O país está em polvorosa, abatido pelo défice e pelo gradual empobrecimento, onde chegara a hora de os combatentes da liberdade da pátria redigirem uma carta-panfleto, a pretexto do tráfico ilegal de armas, ali vinham acusações a Nino, o caderno reivindicativo apelando à dignidade dos antigos combatentes que beneficiavam de pensões miseráveis. Estão ali repertoriados dados significativos que nos vão fazer compreender a explosão desencadeada em 7 de Junho, o VI Congresso do PAIGC, realizado em Maio revelava que Nino era um senhor todo-poderoso e era apoiado por uma corte incondicional que não queria perder as suas regalias, aquele congresso saldou-se no impasse que deixava a ala renovadora do PAIGC desalentada. Tudo isto é descrito com episódios burlescos, situações por demais caricatas, pedinchice infindável.

E veio o levantamento militar que Henriques da Silva irá viver em toda a sua intensidade. Não existirá relato tão minucioso e esclarecedor dos acontecimentos, ali vêm as peripécias dos media, a Bissau bombardeada e as populações em fuga, gente a acorrer à embaixada, tudo em estado caótico:
“Alojados pelos corredores, nos sofás, nas banheiras, no chão, enfim, por tudo quanto era sítio, onde quer que houvesse espaço disponível, ali foram recebidos os nossos compatriotas, nos parâmetros típicos do nosso consabido desenrascanço lusitano”. O cargueiro “Ponta de Sagres” chega ao cais do Pidjiquiti e leva os refugiados enquanto troam os canhões, Henriques da Silva acompanha tudo, ocorre o milagre, a operação saldou-se num êxito. E a guerra continua por Junho fora, os senegaleses comportam-se como bárbaros e ocupantes, destroem património valioso. O êxodo continua, as populações de Bissau fogem para o interior. O alferes que vivera uma guerra contra o PAIGC assiste agora ao ódio dos guineenses favoráveis à Junta Militar a infligir perdas às tropas senegalesas e da Guiné Conacri, a nação dava a sua prova de vida humilhando os exércitos estrangeiros bem equipados. A guerra prossegue com Nino Vieira e os seus amigos circunscritos à península de Bissau e a algumas ilhas dos Bijagós. Há negociações, consegue-se um acordo mas a situação permanece explosiva. Em Maio seguinte, a Junta Militar entra em Bissau, Nino Vieira refugia-se na embaixada de Portugal. Renovava-se a esperança, mas foi tempo de pouca dura, os problemas de fundo iriam subsistir com novos equívocos nas Forças Armadas a querer decidir em nome do poder político. Equívocos atrás de equívocos que o autor comenta. Em Maio de 2000, o presidente Jorge Sampaio, por tudo o que se passou na Guiné-Bissau condecorou-o com a Grã-Cruz da Ordem Militar de Cristo.

Para quem quer conhecer os dramas da Guiné-Bissau de todo este tempo, a leitura deste livro é indispensável, pela vivacidade dos estilo e pela quantidade de documentação trabalhada.
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Nota do editor

Último poste da série de 24 de Novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13937: Notas de leitura (653): “Navios com o nome Guiné”, da autoria do Capitão-de-Mar-e-Guerra Carlos Gomes de Amorim Loureiro (Mário Beja Santos)