Mostrar mensagens com a etiqueta Gen Pilav Lemos Ferreira. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Gen Pilav Lemos Ferreira. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Guiné 63/74 - P13808: (Ex)citações (244): Comentário ao artigo "Guiné, Guileje e o desnorte do reino" publicado em O Adamastor (2) (Coutinho e Lima)

1. Continuação da primeira parte do comentário feito pelo nosso camarada Alexandre Coutinho e Lima, Coronel de Art.ª Reformado (ex-Cap Art.ª, CMDT da CART 494, Gadamael, 1963/65; Adjunto da Repartição de Operações do COM-CHEFE das FA da Guiné entre 1968 e 1970 e ex-Major Art.ª, CMDT do COP 5, Guileje, 1972/73), ao artigo "Guiné, Guileje e o desnorte do reino" publicado no Blogue "O Adamastor":


1.ª Parte do Comentário ao artigo
"Guiné, Guileje e o desnorte do reino" (2)


“E quando se despediu dele humilhou-o dizendo “regressa a Guileje e daqui a um ou dois dias irá lá ter o Coronel Durão e você passa a adjunto dele”. Ou seja passou-lhe um atestado de incompetência”.

Mais uma vez o Sr. Ten. Cor. deturpa o que aconteceu. O Sr. General não me disse quando o Sr. Coronel Durão iria para Guileje.

Afirma que me passou um atestado de incompetência. Conhecendo como eu conhecia o Sr. General Spínola (tinha obrigação disso, porque trabalhei, sob as suas ordens, durante dois anos-68/70), pude verificar que lidava muito mal com a incompetência, tendo dado sobejas provas desse facto. Se me considerasse incompetente, teria sido retirado do Comando do COP 5, na hora. A minha interpretação foi que tinha perdido confiança na minha acção de Comando. Este sentimento era recíproco, pois quando em 18 MAI 73, não foram feitas, a partir de Guileje, as evacuações solicitadas, contrariamente à sua garantia dada na sua última visita, em 11MAI 73, perdi toda a confiança na sua palavra, o que foi partilhado pelos militares, em Guileje.

Além disso, tendo o Sr. General Spínola, no final da minha comissão no Comando Chefe, decidido atribuir-me um louvor, se me considerasse incompetente era a admissão que se tinha enganado (louvando um incompetente), o que não era propriamente o seu forte – admitir que errara.

Perante a decisão do Sr. General, podia ter declarado que, perante a sua falta de confiança, não aceitava a solução, sujeitando-me, obviamente, às respectivas consequências, ficando assim liberto do problema que, responsavelmente, estava a tentar resolver.

Nunca tal me passou pela cabeça, pois a minha preocupação era chegar o mais rapidamente a Guileje, donde tinha saído no dia 18 de manhã. Estes 3 dias da minha ausência, foram um total desperdício. O Comando Chefe e o seu Estado Maior ficaram muito mal na fotografia, ao proceder da maneira displicente como trataram este assunto, sem atribuírem nenhuma prioridade à situação, gravíssima, que se vivia em Guileje

Se os delegados, cuja comparência insistentemente pedira, se tivessem deslocado a Cacine, no dia 19 MAI, aproveitando o meio aéreo que lá foi fazer as evacuações, eu teria regressado a Guileje, o mais tardar, no dia 20 MAI. Mesmo sem a ida dos delegados, o Comando Chefe podia ter ordenado o meu regresso imediato, o que não fez.

“Mas prova ainda outra coisa: que a retirada já teria sido preparada do anterior, pois era praticamente impossível organizar tal operação na hora. Será que estariam à espera que Spínola autorizasse a saída? Até que ponto haveria acção subversiva feita por eventuais infiltrados simpatizantes, idos da Metrópole? Eis duas questões que seria interessante dilucidar.”

Mais uma vez o Sr. Ten. Cor. entra em dissertações que são totalmente fantasiosas.

A retirada foi decidida, apenas quando regressei a Guileje, ao fim da tarde do dia 21 MAI. Tal pode ser comprovado pelos militares que lá estavam (que só ouviram, da minha boca, falar em tal hipótese, naquela hora). Bem sei que, para o Sr. Ten. Cor. interessa muito mais o “jornal da caserna” e, sendo assim, pode perguntar ao seu “apoiante”, ex-Soldado Constantino Costa, que estava em Guileje, se eu abordei esse tema, anteriormente.

A decisão foi por mim tomada, sem pressão de quem quer que seja. Depois de tomar a decisão, perguntei a todos os que estavam no abrigo em que me encontrava, qual a opinião de cada um e todos manifestaram a sua concordância. Podia aproveitar para afirmar que tive a aprovação dos que ouvi, mas não o fiz, porque esta concordância foi “à posteriori” e porque prezo muito a verdade.

A ideia de esperar que o Sr. General Spínola “autorizasse a saída”, além de absurda, como podia ser expectável, se o que eu pedira era reforço!

A ideia de “acção subversiva por eventuais infiltrados” não me merece qualquer comentário. Como até agora, os argumentos do Sr. Ten. Cor. não são convincentes (excepto o seu autoconvencimento,  resolveu inventar a “teoria da conspiração”. Repito: TOMEI A DECISÃO SEM PRESSÂO DE NINGUÉM. Se não percebeu, POSSO FAZER UM DESENHO.
Espero que o Sr. Ten. Cor. tenha ficado dilucidado, sobre estas duas matérias.

“Guileje tinha, porém, um ponto fraco: não tinha um poço artesiano, que lhe fornecesse água potável, a qual tinha que ser obtida a cerca de 2 Km…”

Esta afirmação do Sr. Ten. Cor., que se saúda, é muito incompleta.

Além da falta de água, no quartel, que era um condicionalismo inultrapassável, tinha outros pontos fracos. Vou referir alguns:

- Só havia uma única ligação, por estrada, a Gadamael; interdita esta, por acção do In (emboscada no dia 18 MAI 73), Guileje ficou totalmente isolado.

- As outras guarnições mais próximas - Bedanda a Oeste e Aldeia Formosa a Norte, não estavam em condições de prestar qualquer auxílio, porque os respectivos itinerários eram dominados pelo IN e, há muito tempo, não eram utilizados pelas NT.

- Impedido o reabastecimento, por estrada, dependíamos totalmente do que havia em Guileje. Pelo facto de se aproximar a época das chuvas, na qual a estrada para Gadamael ficava intransitável, tinha sido já feito um grande esforço de abastecimento. Mesmo assim, ainda estava em Gadamael (e em Bissau) um grande volume de materiais, necessários para sobreviver durante 6 meses.

- Em virtude das sucessivas flagelações do In (37 em 80 horas), as munições, especialmente de Artilharia e Morteiros (10,7 e 81), estavam a chegar ao fim, não obstante a preocupação de poupar, desde a primeira hora. Quando acabassem, só por acção exterior, não dependente do Comando do COP 5, chegaria a Guileje o respectivo reabastecimento. 

- Relativamente ao material de Artª., o que se passou foi o seguinte: em 24 JAN 73 (3º. dia da minha estadia em Guileje), enviei uma nota para o Grupo de Artª. nº. 7 (GA7) em Bissau, com conhecimento ao Sr. Chefe de Estado Maior do Comando Chefe e à Repartição de Operações, propondo a substituição das 3 Peças de 11,4 cm (as que estavam em Guileje) por 3 Obuses de 14 cm.
A razão desta proposta era o conhecimento que eu tinha da existência de poucas munições de 11,4 e muita dificuldade na sua aquisição. Na proposta sugeria ainda que, mesmo depois de ser efectuada a substituição do material de Artª., se ainda existissem munições de 11,4 em Guileje, se mantivessem as Peças de 11,4, conjuntamente com os Obuses de 14, só regressando aquelas a Bissau, no final da época das chuvas. Desta forma, o aquartelamento ficaria com um reforço de Artª., durante o período de isolamento.

Mesmo em tempo de guerra, a burocracia emperrava tudo. Foi por isso que, em I8 MAI 73, isto é, praticamente passados 3 meses da data da minha proposta, a situação do material de Artª. era: estavam em Guileje 2 Obuses de 14, tendo um deles chegado avariado; o 3º. Obus estava em Gadamael, a aguardar a próxima coluna de reabastecimento. Entretanto, as 3 Peças de 11,4 já tinham saído de Guileje. Quando era necessário o maior apoio de fogo de Artª., estávamos reduzidos a 2 Obuses e um deles avariado.

Como eu não estava sempre em Guileje, porque as guarnições de Gadamael e Cacine também estavam nas minhas preocupações , além das minhas ausências, resultantes de ordem superior ( lembro-me que me desloquei para participar, naquela altura, para participar numa reunião de Comandantes da Zona Sul), não tomei conhecimento da ordem para as Peças de 11,4 regressarem a Bissau (deve ter sido recebida na minha ausência). Se a tivesse recebido, seguramente que não as tinha deixado sair sem, no mínimo, terem chegado a Guileje os 3 Obuses de 14.

Além de o apoio de Artª. estar diminuído, em número de bocas de fogo, a sua eficiência era muito menor. Devido à orografia do terreno da Guiné, com poucas elevações, a regulação do tiro de Artª. só era eficaz quando feita por observação aérea. Enquanto que o tiro das Peças de 11,4 tinha sido regulado, em JUN 72, por avião, relativamente aos Obuses de 14 tal procedimento não foi possível, devido à restrição dos meios aéreos.

- Não evacuação de feridos, garantida pelo Sr. General Spínola (a partir do quartel), na sua última visita a Guileje, em 11 MAI 73, perante formatura geral. O Sr. General foi, no mínimo, muito imprudente, ao fazer tal afirmação, porque nessa data, a Força Aérea já tinha decidido que nenhum meio aéreo se deslocava a Guileje (e não me parece aceitável que o Sr. Comandante Chefe não tivesse conhecimento dessa decisão).

Na sequência da emboscada do dia 18 MAI 73, foi pedida a evacuação dos feridos, no pressuposto de que seria satisfeita, conforme se pode constatar no período anterior. O que aconteceu foi que nenhum helicóptero apareceu e, um dos feridos graves (um cabo metropolitano) faleceu, cerca de 4 horas depois. Foi um “grande murro no estômago” para todos nós, ficando a confiança na palavra do Sr. Comandante Chefe fortemente abalada, bem como o moral de todo o pessoal.

Como fica escrito, tinha muito mais que um ponto fraco, (qual era a falta de água potável).

“…a FA garantia apoio pelo fogo de dia, com os “ Fiats” e de noite com um “C-47” modificado, em bombardeamento de área…

Realmente a FA prestava apoio de fogo, através dos Fiat G-9, quando as condições atmosféricas o permitiam. Depois do aparecimento dos mísseis terra-ar Strella do In, os aviões voavam acima dos 3.000 pés, por uma questão de segurança, empregando bombas mais potentes.

Relativamente ao C-47, transcrevo parte do depoimento da testemunha, Sr. Cor. Pil Av. Lemos Ferreira (folhas 106 a 108 do processo):

“…tendo perguntado ao Guileje se necessitava de mais alguma coisa foi-lhe pedido o envio de um avião durante a noite para a zona do Guileje para funcionar como ligação de comunicações, tendo-lhe sido respondido que o que fosse possível fazer se faria;… no próprio momento do pedido de Guileje, entrei em contacto com o Centro de Operações Aero-Tácticas, para que vissem a viabilidade de aprontar um C-47 equipado com flairs iluminantes e granadas de Morteiro 81, tendo sido informado estarem os C-47 indisponíveis por falta de sobressalentes, não havendo qualquer hipótese de pôr um em serviço; esta informação, porém, não foi transmitida ao Guileje.” 

Portanto, mesmo nos assuntos respeitantes à Força Aérea, o Sr. Ten. Cor. está mal informado! O C-47 nocturno foi uma miragem.

 “Que o PAIGC estava ainda longe de querer assaltar a povoação, já que só deu pela evacuação três dias depois (entrando quase todos em coma alcoólico depois de esgotado o stock de bebidas existente…).”

Em virtude de o 3º. Corpo de Exército (CE) do PAIGC se encontrar na mata de MEJO (mensagem IMEDIATO, - 19H00horas do dia 20 MAI da REP/INFO), era quase certo que no dia 22MAI completasse o cerco ao quartel, desse lado. Aliás, na tarde do dia 21, já tinha actuado, flagelando elementos da população que tinham tentado reabastecer-se de água na bolanha, junto ao aquartelamento, tendo sido metralhados pelo avião pilotado pelo Sr. Cor. Lemos Ferreira.

No Simpósio Internacional de Guileje (1 a 7 MAR 2008), um elemento daquele CE, informou que, no dia 22 MAI, de manhã, veio fazer reconhecimento junto do quartel (já tínhamos retirado), o que confirma o que afirmei no parágrafo anterior.

A razão por que só deu pela evacuação três dias depois, só o PAIGC pode esclarecer. Seguramente, porque foi surpreendido.

Quando cheguei a Gadamael, comandando a retirada, já lá se encontrava o Sr. Cor Durão, que enviou uma mensagem RELÂMPAGO, às 12H15 para o Comando Chefe a comunicar o que tinha acontecido. Esta mensagem, terminava assim:

“…QUANDO CHEGADA GADAMAEL PORTO FACE DESTRUIÇÕES HAVIDAS VERIFICO SER IMPOSSÍVEL REOCUPAÇÂO TEMPOS PRÓXIMOS”.

Às 13H05, seguiu outra mensagem:

“ REF M/… 221215… SUGIRO DESTRUIÇÃO COMPLEMENTAR GUILEJE POR MEIOS AÉREOS”.

A resposta foi a seguinte (às 18H40):

“REF..SEXA JULGA PREMATURO BOMBARDEAR GUILEJE COAT EXECUTA BOMBARDEAMENTO AREA CIRCUNDANTE…”

Não consegui obter, no Estado Maior da Força Aérea (Arquivo Histórico), elementos relativos a este bombardeamento, determinado pelo Sr. Comandante Chefe.

Também não tenho nenhuma informação sobre a vigilância sobre Guileje, até o PAIGC lá entrar; esta deveria ter sido determinada, em minha opinião, por motivos óbvios; se não foi, é mais um erro grave, como igualmente foi a decisão de não bombardear Guileje, a não ser que o Sr. Comandante Chefe tivesse a intenção de determinar a reocupação, o que não se verificou.

Talvez o Sr. General Pil. Av. (Ref) da Força Aérea António Martins de Matos, que na altura era Tenente Pil. Av. na Base Aérea de Bissau, possa responder às seguintes perguntas:

- Qual foi o bombardeamento efectuado sobre a área circundante de Guileje, no período 22/25 MAI 73, determinado pelo Sr. Comandante Chefe.

- Qual a vigilância da Força Aérea sobre Guileje, no mesmo período, no sentido de detectar o momento em que se verificasse a entrada do PAIGC, que seria uma oportunidade ímpar para provocar ao In baixas incontroláveis. Isto no caso de aquela vigilância ter sido determinada.

- Em sua opinião, qual foi a razão por que não foi detectada a entrada do PAIGC, em Guileje, no dia 25 MAI 73. Se tivesse sido detectada, também não teria havido o “coma alcoólico”, referido pelo Sr. Ten. Cor. Brandão Ferreira.

“…e escreveu um livro com a sua versão dos eventos…”

Não Sr. Ten. Cor., o meu livro não é a minha “versão dos eventos”, mas tão só A VERDADE DOS FACTOS, que é o subtítulo do livro, e “contra factos não há argumentos”. Não conheço nenhuma versão ou factos diferentes e, se alguém tem esse conhecimento, é a altura própria de tornar público o  que sabem sobre este assunto.

Para terminar este comentário, que já vai longo e que, mesmo assim, não aborda todas as questões postas pelo Sr. Ten. Cor. Brandão Ferreira (posso voltar ao assunto se o Sr. Ten. Cor. não ficou devidamente dilucidado), quero afirmar o seguinte:

Não me considero louco nem inconsciente. Por isso, ao tomar a decisão de retirar de Guileje, nas circunstâncias conhecidas, sabendo que não teria aceitação do Comando Superior e que iria sofrer as respectivas consequências, entre as quais, se não tivesse acontecido o 25 de Abril de 1974 (25/4 para o Sr. Ten. Cor.), teria sido o meu julgamento e, cumprida a pena máxima, a minha exclusão do Exército, teria que haver uma situação muito grave, para não hesitar na decisão que adoptei. Esta era o perigo iminente de, tanto a guarnição militar quanto a população, sofrer mortos e feridos em número incalculável e, os que restassem, serem feitos prisioneiros pelo PAIGC e posteriormente expostos à comunicação social em Conacri.

E, para mim, a segurança de todos, que era a minha missão e a vida humana não têm preço.

Foi por isso que não hesitei, sabendo o que me esperava, abdicando do interesse pessoal que, naquelas circunstâncias, não tinha a mínima relevância.

Para quem achar este cenário exagerado, terá oportunidade de verificar, na 2ª. Parte do comentário ao artigo em análise que, entidades do Escalão Superior, fizeram a mesma previsão.

A enorme diferença entre o Sr. Ten. Cor. Brandão Ferreira e a minha pessoa, relativamente a Guileje, é que eu estava lá e o Sr. Ten. Cor. conhece Guileje do mapa; ao ter visto este, “junto à fronteira”, das duas uma: ou precisa de mudar de lentes, se usa óculos ou então terá que procurar Guileje num mapa em que a sua localização esteja correcta, por exemplo a carta militar de escala 1/50.000. [, disponível aqui, neste blogue].

Cumprimentos 
Alexandre da Costa Coutinho e Lima 
Cor. de Artª. Ref. 
Ex Comandante do COP 5, em GUILEJE
____________

Nota do editor

Vd. poste anterior de 27 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13804: (Ex)citações (243): Comentário ao artigo "Guiné, Guileje e o desnorte do reino" publicado em O Adamastor (1) (Coutinho e Lima)

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Guiné 63/74 - P11758: (Ex)citações (222): Recado para uma mesa redonda de Coimbra e para a História... Guileje e as suas lições (Manuel Lomba)

1. Mensagem, de 20 de junho do corrente, do Manuel Luís Lomba,  (ex-Fur Mil da CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66) e autor de "Guerra da Guiné: A batalha de Cufar Nalu" (Terras de Faria Lda: Faria, Barcelos, 2012, 341 pp.):


Prezado amigo Carlos Vinhal. Submeto-te este texto para o blogue, na expectativa de merecer interesse. Um abraço, M.L.Lomba


A crise dos 3 G, na Guiné, conotada como o princípio do fim do Ultramar português, fez 40 anos em 25 de Maio p.p. e a informação sobre a mesa redonda de Coimbra, veiculada pelo blogue (*), impeliu-me a tecer um comentário. (**)

Se as crónicas e os cronistas baterem certo, Amílcar Cabral riscou com o seu punho a Operação Maimuna, de montar "cerco a Guileje", em Janeiro de 1968, porque, segundo escreveu o seu irmão Luís, a bandeira portuguesa içada em Ponte Balana irritava-o especialmente, mas meteu-a na gaveta, porque a guarnição portuguesa estava dotada de obuses, o PAIGC ainda aguardava as remessas dos "órgãos de Estaline" e dos morteiros 120, o comando português só abandonará a posição de Ponte Balana, em Janeiro de 1969 e só lhe oferecerá a "área libertada" de Madina de Boé e Beli, abandonadas em Fevereiro de 1969.

Amílcar Cabral interpretou a reunião do general Spínola com o PR do Senegal Leopold Shengor e o seu contexto como um forte indício do enfraquecimento das resistências dos portugueses e, em Julho de 1972, confidenciou a Pedro Pires, seu braço direito do Planeamento, a proximidade do fornecimento pela Rússia dos mísseis Strela, enquanto o então estudante de Economia em Moscovo, Osvaldo Lopes da Silva, tirava o tirocínio do seu lançamento, mas que o líder só envolverá na preparação das acções sobre Guileje, em Setembro desse ano.

Salvo erro ou omissão, nessa altura, o dr. Osvaldo Lopes da Silva dependia de dois superiores orgânicos - Nino Vieira e Pedro Pires. Em recente intervenção no Forum Amílcar Cabral, na cidade da Praia, este afirmou que os guineenses o haviam segregado em Conacri e impedido de velar o cadáver de Cabral, que após o funeral regressou ao Sul e só então começou a preparar com Nino Vieira as acções sobre Guileje.

O dr. Osvaldo Lopes da Silva e os que partilharem a sua narrativa, não poderão escamotear a verdade dos factos acontecimentais e as "mesas redondas" como a de Coimbra não conseguirão encobrir a sua conjuntura.

O planeamento das acções do PAIGC sobre Guileje foi supervisionado pelo capitão cubano Raul Diaz. O Sul da Guiné não se assemelhava à Sierra Maestra e a sua eficiência ficou comprovada pelo facto de os seus 200 militares defensores e os 400 civis a terem abandonado e percorrido calmamente cerca de 20 km de picada na mata, sem serem molestados, e as suas forças de assalto só terem penetrado no objectivo 3 dias após o seu abandono, com Nino Vieira metido num blindado!

O PAIGC não trabalhara a hipótese da retirada dos defensores, contara com o "general época das chuvas" para isolar Guileje de qualquer amparo de Bissau - e falhou, porque o elevado teor de humidade, atingido pelo ar, limitava a eficácia dos mísseis terra-ar Strela. O PAIGC correspondeu à temeridade do comandante do COP 5, da transumância de Guileje para Gadamael com a temeridade da transferência do seu esforço de combate, avançando-o no terreno, daquele para este. 

Mas a maior falha terá pertencido, por omissão, ao comando português.A partir da altura em que o Batalhão de Paraquedistas 12, comandado pelo tenente-coronel Araújo e Sá, obrigava o PAIGC a desamparar a loja de Gadamael e os pilav Lemos Ferreira, António Martins Matos e outros lhe desancavam as bases da retaguarda na República da Guiné com os seus Fiat, não explorou o sucesso propiciado pelo "general época das chuvas", permitido que o PAIGC retirasse o armamento pesado e as suas pesadas munições ao lombo dos seus combatentes a chafurdar, heroicamente, por aquele pantanal.
Será ou não verdade que o PAIGC mandou fuzilar o seu comandante da zona de Guileje, responsabilizando-o pelo insucesso?

Ao tomar a decisão de abandonar Guileje, o major Coutinho e Lima sabia que comprava a sua tormenta; mas também sabia que teria um julgamento judicial, do qual jamais sairia condenado à morte.
E, para concluir, não foi a panóplia do armamento sofisticado da Rússia, etc, os efectivos de internacionalistas cubanos e cabo-verdianos, a entrada sem resistência em Guileje, os bombardeamentos massivos sobre os 3 G que trouxeram a coesão e conduziram o PAIGC ao sucesso, cansado da guerra, desgastado pelas contradições internas e pela acção "Por uma Guiné Melhor"; foram aqueles que, ao longo de anos lhe infernizaram a vida e moveram uma guerra sem quartel, aos seus militares, aderentes e simpatizantes - os capitães portugueses e o seu Movimento das Forças Armadas, quando este se perfilhou como seu filho ideológico sob a sigla MFA, nascido na Guiné e extensivo aos outros teatros da guerra ultramarina à Metrópole.

O dr. Osvaldo Lopes da Silva, sem embargo a sua qualidade de herói da guerra da Guiné e da independência de Cabo Verde, bem como a generalidade dos participantes dessa, de outras mesas redondas e conferências, estarão para nós, os que fomos também povo em armas pelo Ultramar, como os "velhos do Restelo", mas com 500 anos de atraso. Sob o ponto de vista racional, Portugal, porque país pequeno, com tão poucos e tão pobres portugueses, começou a perder a guerra da sua expansão no início da mesma, logo a partir de 1415. Sob o ponto de vista romântico, os portugueses tão poucos, tão bisonhos e tão pobres, ousaram e fizeram obra pelos quatro cantos do mundo. Venha o diabo que escolha...

Quando Amílcar Cabral fundou o seu exército libertador, os portugueses já andavam há 500 anos pela Guiné, Angola, Moçambique, etc, de armas na mão, desfraldando uma bandeira e envergando uma farda e jamais a História nos poderá considerar espantalhos...

Manuel Luís Lomba

_______________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 20 de junho de 2013 > Guiné 63/74 - P11735: Recortes de imprensa (66): Osvaldo Lopes da Silva, então comandante do PAIGC, e um dos principais responsáveis pela Op Amílcar Cabral, sustenta, na mesa-redonda, em Coimbra, no passado dia 23/5/2013, a versão do cerco total ao quartel de Guileje e afirma que as forças sitiantes dispunham de um dispositivo (do qual teria sido utilizado menos de 10%), com condições para actuar durante um mês (AngopPress)

(**) Último poste da série > 24 de maio de 2013 > Guiné 63/74 - P11622: (Ex)citações (221): O comandante do Comando de Agrupamento nº 2957, cor inf Hélio Felgas, o cérebro da Op Lança Afiada (8-19 de março de 1969) (Fernando Gouveia)

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Guiné 63/74 - P8664: Notas de leitura (264): A Guerra de África 1961 - 1964, por José Freire Antunes (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Julho de 2011:

Queridos amigos,
Aqui vai o que parece de mais relevante deste terceiro volume do livro publicado em 1994 e 1995, e agora reeditado pelo Círculo de Leitores, ocorre perguntar se o blogue não se podia lançar na empreitada de dar voz e escrita aos protagonistas da Guiné, nos mesmos moldes em que José Freire Antunes trabalhou com a sua equipa. Seria tudo uma questão de esquematização, atendendo à cronologia dos acontecimentos, incitando os protagonistas disponíveis a reflectirem em função da documentação conhecida, do que experimentaram e da leitura que esta distância permite.
Aqui fica a sugestão para um volumoso mas exaltante trabalho de casa.

Um abraço do
Mário


A Guerra de África, 1961-1974, III volume, por José Freire Antunes

Beja Santos

A reedição de uma das mais impressionantes e abrangentes recolhas de testemunhos de personalidades ligadas à guerra colonial merece ser saudada pela sua incontestável importância para quem quer aprofundar conhecimentos acerca dos três teatros de operações, motivações, evolução e desfecho de todo o processo político-militar (A Guerra de África, 1961-1974 III volume, Círculo de Leitores, 2011).

Compreensivelmente, aqui, o destaque vai para aqueles que têm uma ligação inquestionável com a Guiné.

O primeiro testemunho vem de Lemos Ferreira, general da Força Aérea que serviu na Guiné entre 1971 e 1974. Diz ele: “Quando fui para a Guiné os meios aéreos que lá existiam eram extremamente limitados. Havia uma desproporção do dispositivo militar terrestre: cerca de 40 mil homens, entre milícias locais, forças locais e forças metropolitanas. E, para um território com a dimensão do Alentejo, 40 mil homens era muita gente. A parte aérea envolvia 50 a 60 pilotos. Tínhamos assim, por um lado, 40 mil homens que suportavam as agruras que tinham que suportar. Por outro lado, os 50 ou 60 pilotos, 70 pilotos no máximo. Eles tinham o chamado risco diário e a todas as horas, porque tudo estava pendurado neles, de uma maneira ou de outra.

Era preciso transportar pessoas, ia o DO. Era preciso levar o correio ia o DO. Era preciso fazer uma evacuação sanitária, ia o Allouette-3. Era preciso fazer uma evacuação e iam uns quantos helicópteros, um DO, dois DO, mais um Nordatlas ou dois, um Dakota, e mais não sei quê, e mais não sei quantos Fiat (…) Havia já uma desagregação pela repentina alteração das ideias. No consulado de Salazar, bem ou mal, sabia-se o que queria. Mas depois já não era assim. Éramos nós, os responsáveis directos, que estávamos nos locais, que íamos explicar às pessoas a situação. E acontece que tão depressa me diziam que eu estava numa operação de guerrilha como diziam que o país está em guerra, como diziam que se estava numa operação de polícia. Eu via-me na contingência de ter que explicar às pessoas qual era exactamente o meu papel – era eu polícia, antiguerrilheiro, militar, o que é que eu era. Tudo se passa muito rapidamente quando as coisas entram em desagregação. Nessa altura, a convicção do PAIGC era a de que seria possível uma vitória militar e então arriscou e fez o contrário da guerrilha, que era aparecer no terreno com forças relativamente vultosas. Eles consideravam que o que faria a diferença seria a parte aérea. Isto foi perfeitamente claro e apareceram os mísseis Strella (…) Tivemos que ser inventivos: se a ideia do adversário era de que a Força Aérea estava de gatas, havia que provar o contrário. E provar o contrário como? Com a utilização muito mais intensa da arma aérea. Eu nunca fiz tantos bombardeamentos na vida, nunca fiz tantos disparos, como nessa altura”.

O segundo testemunho vem do brigadeiro Martins Marquilhas que serviu na Guiné entre 1966 e 1968.

Depois de expor a situação de Angola, que ele considera que em 25 de Abril estava 90% controlada, tece o seguinte comentário: “O mesmo não acontecia na Guiné. Eu só me senti na guiné um bocado em balso quando estive a fazer uma operação de 5 dias, a armadilhagem das passagens do rio Corubal, porque havia infiltrações através daqueles sítios onde a vegetação não permitiam a ninguém entrar, mas onde havia locais por onde uma canoa entrava. Eu estava a 20 dias de me vir embora. Só levei para lá parte da minha tropa e depois deram-me de reforço uma série de companhias e tive de fazer esta operação de 5 dias em terreno sob controlo deles, em Madina do Boé, era zona nitidamente controlada por eles. Nós só íamos a Madina do Boé, onde tínhamos tropas, ou a Béli, para reabastecimento, e eu fiquei 5 dias sem qualquer ligação, a sentir que à medida íamos avançando, eles iam na nossa peugada. Tivemos confrontos violentos. Houve tiroteio, tive três feridos sem gravidade. Fomos evacuados, não tínhamos ligação. Deixámos armadilhas lá postas, mas a maior parte delas funcionava era com caça. Eles para o fim, na Guiné, tinham armamento mais sofisticado do que nós. O inimigo da Guiné era mais aguerrido. Não estou a falar das elites, as elites da Guiné eram iguais às de Angola ou às de Moçambique. O magala da Guiné, que era dos fulas, era mais evoluído”.

O terceiro testemunho compete a Almeida Bruno, um colaborador dedicado de Spínola e depois comandante do batalhão de Comandos Africanos. Falando de 1968, Bruno considera que a situação militar se caracterizava assim: “as forças portuguesas tinham perdido iniciativa, estavam remetidas a uma situação meramente defensiva e a liberdade dos movimentos no teatro de operações era exclusivamente das forças especiais. Havia a ideia de se garantir a soberania com a ocupação e cobertura de área, o que implicou a disseminação da tropa ao longo de todo o teatro de operações, perdendo-se capacidade de intervenção e iniciativa na acção… A noção que tenho é que as nossas unidades não saiam dos quartéis. Estávamos empatados com o PAIGC. Spínola renovou o dispositivo, não se podia jogar à defesa, impôs a concentração de meios, reformaram-se as forças especiais que passaram para o comando directo do comandante-chefe. Passou-se à ofensiva porque, dizia Spínola não se negoceia em situação de inferioridade. Bruno cola-se às doutrinas de Spínola: “Aquele tipo de guerra só se resolvia politicamente. Por isso é que eu sempre defendi o marechal dizendo que o conceito da “Guiné melhor” é dele. Salazar viu em Spínola um tenente-coronel em tronco nu, de monóculo e pingalim. Mas enganou-se, porque quando o chamou ele era outro homem (…) O desaparecimento de Salazar abriu perspectivas a Spínola. Nós estávamos em boas condições operacionais em 1969-1970. Tínhamos retomado a iniciativa, estava a avançar o plano de reordenamento, o Carlos Fabião dominava a grande força político-militar da Guiné que eram as milícias (…) Nós tínhamos a ideia da independência dos territórios não como foi feita mas por fases. E o nosso projecto foi escrito e entregue a Marcello Caetano (…) Acho que foi uma pena não termos conseguido pôr de pé o nosso projecto que era, quanto a mim, o melhor para os africanos e para nós também”. Almeida Bruno espraia-se sobre as operações que coordenou, os acontecimentos do chão manjaco que culminaram com o massacre de três majores e um alferes em 20 de Abril de 1970, as iniciativas de conversação com Senghor que Caetano proibiu. Trata-se de um longo depoimento em que Bruno contesta a primazia de ocupação do território pelo PAIGC. Contesta que até Julho de 1973 se pudesse considerar que a Guiné estivesse à beira de uma derrocada. E termina assim: “Na Guiné não havia condições para ser criado um Dien Bien Phu. Um Dien Bien Phu tinha que ser Bissau e Bissau, porque está encostada ao mar, nunca o poderia ser, a menos que o PAIGC aparecesse com uma marinha de guerra superior à nossa. Eu perdi o meu gosto pela Guiné a partir do momento em que vi que a nossa solução política estava perdida, porque os políticos de Lisboa não tinham entendido a nossa mensagem. Quando percebi que tinha perdido essa batalha, só vi uma hipótese: derrubar o regime.

O quarto testemunho é dado por Manuel dos Santos, o operacional do PAIGC que tinha a seu cargo a responsabilidade dos misseis Strella. Explica como aderiu ao PAIGC, destaca as diferenças da governação entre Schulz e Spínola, opina sobre a invasão de Conacri e a cedência em 1972 dos mísseis Strella pela URSS, dando conta do abalo que este novo armamento provocou nas tropas portuguesas. E emite o seu juízo sobre o desfecho da guerra: “Penso que o Governo português encarou a perda da Guiné como uma eventualidade possível. O Bethencourt Rodrigues chegou lá quando já estava praticamente tudo acabado. Lembro-me que a chegada do Bethencourt Rodrigues foi saudada com uma operação, talvez a última operação ofensiva que os portugueses fizeram. Foi uma operação no chão manjaco com duas companhias de comandos que se infiltraram ali de helicóptero mas que os helicópteros já não puderam ir buscar por causa dos mísseis terra-ar. Essas duas companhias foi perfeitamente destruídas e até capturado o comandante de uma delas”.

Este terceiro volume inclui ainda depoimentos de grande interesse como os de Ferrand d’Almeida, o papel desempenhado pelas enfermeiras pára-quedistas, a opinião de várias governantes sobre a situação económica e financeira dos últimos anos do regime e um ensaio do brigadeiro Lemos Pires sobre doutrina e prática na guerra de África.
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 9 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8652: Notas de leitura (263): Guinéus, de Alexandre Barbosa (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Guiné 63/74 - P6594: Notas de leitura (122): A Guerra de África, 1961-1974, Volume II, por José Freire Antunes (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso Camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil At Inf, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Junho de 2010:

Queridos amigos,
Acho que nos faz bem a todos rever o conjunto de depoimentos referentes à Guiné recolhidos pelo José Freire Antunes.
Sem ele, teríamos demorado mais tempo para saber que o Governo de Caetano estava a negociar com o PAIGC ou que o sistema financeiro avançava rapidamente para o colapso.

Um abraço do
Mário


A Guerra de África, 1961 – 1974, Volume II

Por José Freire Antunes


Beja Santos

A obra em dois volumes “A Guerra de África”, organizada por José Freire Antunes, obedece à metodologia designada por “história oral”, o investigador, a propósito de uma determinada época em análise, convoca protagonistas, dá-lhe voz ou socorre-se da sua escrita. Esta metodologia não é hoje completamente aceite como primeiro recurso, exige-se-lhe que seja complementada com outras diferentes fontes, posta em confronto com outros testemunhos, documentos e até com o tratamento do contraditório. Seja como for, há que reconhecer que no acervo dos protagonistas seleccionados por José Freire Antunes trazem um importante contributo para a história de guerra da Guiné. Como se compreenderá, são exclusivamente este tipo de protagonistas os que aqui vão ser enunciados.

Começando por Lemos Ferreira, General da Força Aérea, que serviu na Guiné onde comandou a Base Aérea n.º 12. Referindo-se ao último período da guerra, o general observa: “A convicção do PAIGC era a de que seria possível uma vitória militar e então arriscou e fez o contrário da guerrilha, que era aparecer no terreno com forças relativamente vultosas. Eles consideravam que o que faria a diferença seria a parte aérea, portanto, o que eles precisavam era qualquer coisa que anulasse a Força Aérea. Isto foi perfeitamente claro e apareceram os mísseis Strella. E o que aconteceu foi que, de repente, numa tarde, nós perdemos três aviões: um T6 e dois DO. Quando se tem um núcleo de 60 ou 70 pessoas e, só numa tarde, em duas ou três horas se perde cinco por cento da sua capacidade, isto é muito complicado. Um soldado de infantaria podia-se preparar num mês e meio, um piloto demorava muito mais tempo.

Criaram-se vícios de forma nas Forças Armadas. Pensava-se que era possível realizar tudo devido à cobertura aérea. Mas a nova situação levou a que se decidisse que tinha que haver algumas restrições. Tivemos que ser inventivos: se a ideia do adversário era de que a Força Aérea estava de gatas, havia que provar o contrário. E provar o contrário como? Com a utilização muito mais intensa da arma aérea. Eu nunca fiz tantos bombardeamentos na vida, nunca fiz tantos disparos, como nessa altura, exactamente para a contraprova. Normalmente, a noite era o refúgio do guerrilheiro e, por isso, nós tivemos que inverter a situação. A maior parte flagelações que eles faziam às nossas guarnições eram feitas de noite, muitas delas com morteiros. Havia que responder de forma muito mais pesada. Na altura, vimo-nos no embaraço de consumirmos mais munições – bombas e foguetes – na Guiné do que consumiam Angola e Moçambique juntos”.

O brigadeiro Martins Marquilhas serviu na Guiné entre 1966 e 1968. O seu depoimento é alusivo à instrução dos comandos. Comenta ele: “O inimigo da Guiné era mais aguerrido, mais evoluído culturalmente a nível do soldado. Não estou a falar das elites. Uma gala da Guiné, que era dos fulas, era mais evoluído. Um exemplo era a capacidade de decisão: um terrorista guineense, num aperto, era capaz de tomar uma decisão muito mais rápida e acertada do que um quioco. Na Guiné, a própria religião islâmica desenvolvia-os um bocadinho mais”. Falando dos comandos, observa: “Na Guiné, mataram-nos depois do 25 de Abril, não a todos mas a muitos. Mataram-nos com o receio da reacção deles em relação aos que tinham poder na altura, não foi por mais nada”.

O depoimento do general Almeida Bruno é detalhado, começa por explicar o projecto da Guiné Melhor e as dificuldades militares que Spínola encontrou quando chegou à Guiné. Spínola pretendia em simultâneo aumentar a actividade operacional e desenvolver a Guiné, queria dialogar com o PAIGC numa posição de força. Refere ao pormenor as tentativas de negociação de Spínola e como elas foram inviabilizadas por Caetano. E desabafa: “Quando saí da Guiné em Julho de 1973, nós tínhamos perdido a batalha no plano político. Enquanto se fez a guerra na esperança de que a solução estava à vista porque estávamos a ganhar terreno no plano político, tudo bem. Mas quando nos apercebemos que no plano político tínhamos perdido a batalha, voltámos ao princípio de fazer a guerra pela guerra... Quando percebi que tinha perdido essa batalha, só vi uma hipótese: derrubar o regime. Aderi e ajudei a derrubar o regime, vi na queda do regime a única hipótese de continuar Portugal através da lusofonia”.

O testemunho de Manuel Maria Monteiro Santos, combatente do PAIGC conhecido por “Manecas” tem igualmente muita importância. Destaco o seguinte comentário: “Quando Spínola foi para a Guiné substituir Schultz como comandante-chefe, a situação militar já era nitidamente favorável ao PAIGC. Schultz fez muitas asneiras. Não fez uma anti-guerrilha moderna, dado que os portugueses estavam a bater-se contra um movimento bem estruturado e bem equipado. Schultz não fazia trabalho com as populações... o PAIGC sempre procurou constituir a suas unidades com elementos vindos de todas as etnias. Procurou, mesmo, fazer mover todas as unidades do Sul para o Norte, do Norte para o Leste, do Leste para o Sul, etc., para não vincular nenhum combatente à sua área, à sua região ou à sua etnia”. Falando da sua preparação sobre os mísseis Strella, explicou: “Estive na União Soviética, numa escola militar, com o grupo de soldados que foi lá fazer o estágio dos foguetes anti-aéreos. Da primeira vez vieram umas 24 instalações de lançamento Strella, via Conacri. Os Strella acabaram com a guerra no sentido em que o exército colonial ficou completamente na defensiva. Foi exactamente nesse momento que começamos a fazer operações de maior envergadura, de dia... Em termos de luta armada, o assassinato de Cabral teve um efeito oposto àquele que se esperava: houve um recrudescimento da actividade armada e, quando chegaram os Strella, foi a gota de água. Lembro-me que a chegada de Bethencourt Rodrigues foi saudada com uma operação ofensiva que os portugueses fizeram. Foi uma operação no chão dos manjacos com duas companhias de comandos que se infiltraram ali de helicóptero mas que os helicópteros já não puderam ir buscar por causa dos mísseis terra-ar. Essas suas companhias foram perfeitamente destruídas e até foi capturado o comandante de uma delas”. Deixamos para o próximo texto os depoimentos de Dias Rosas, Tomé Pinto, Hélio Felgas e o Rui Patrício.

(Continua)
__________

Nota de CV:

Vd. postes de:

9 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6569: Notas de leitura (120): A Guerra de África, 1961-1974, Volume I, por José Freire Antunes (1) (Mário Beja Santos)
e
11 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6577: Notas de leitura (121): A Guerra de África, 1961-1974, Volume I, por José Freire Antunes (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Guiné 63/74 - P4463: O poder aéreo no CTIG: uma pesquisa de Matthew M. Hurley, Ten Cor, USAF: Trad. de Miguel Pessoa (5): Colaboração do nosso blogue

Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Fiofioli > Março de 1969 > Operação Lança Afiada. O Alf Mil Paulo Raposo, da CCAÇ 2405, junto a um dos helicópteros. O número de evacuações, por insolação, desidratação, doença, ataque de abelhas e esgotamento foi enorme: mais de uma centena de casos (*)

Fotos: © Paulo Raposo (2006). Direitos reservados


Guiné > Região de Tombali > Gandembel > CCAÇ 2317 (1968/69) > Maio/Agosto de 1968 > A construção do aquartelamento de Gandembel requereu muitas canseiras envoltas em perigo permanente, para que se garantisse alguma segurança aos nosso homens, uma vez que eram alvo de inúmeros e consecutivos ataques inimigos.

Foto 320 > "E nestas acções, a aeronave trazia sempre algo. Desta vez, uns cunhetes de armamento que se descarregam, enquanto o ferido espera a oportunidade de ser levado até ao Hospital Militar" (**)


Foto e legenda: © Idálio Reis (2007). Direitos reservados


1. Mensagem de Matt Hurley

Senhores,

Many thanks for posting this on your web site! (*) I look forward to comments from your comrades, fellow veterans of the war in Guinea.

If I could be so bold, might I make one more request? I would like permission from your contributors to use any original photos of they might have. These include photos already posted on your site, which would be most convenient to download and use. Of course, I will give them full credit! I am most interested in photographs of:

- Aircraft used in Guinea (F-86, PV-2, C-47, AL-III, T-6, G.91, DO-27, C-54/DC-6, Boeing 707), especially "on the ramp" at Bissalanca and in FAP markings;
- The airfield at Bissalanca--overhead views, the runway, the shelters, etc.;
- Captured PAIGC anti-aircraft weapons, such as the ZPU-4 or the 12.7mm machinegun;
- Portuguese aircraft during operations over Guinea, especially pictures from inside the aircraft;
- Pictures of personnel who played important roles, such as Ten Cor Brito, Gen Spinola, Ten Pessoa, Cor Lemos, or others;
- Reconnaissance photos of targets, either before or after FAP missions;
- And, sadly, pictures of aircraft that were damaged or shot down in Guinea.

I respectfully request the rights to use any photographs in my dissertation, or any book that might follow. Again, full credit will be given to anyone who permits me to use such photographs.

Very respectfully,
- Lt Col Matthew Hurley Tradução do e-mail do Matt


Tr. do Miguel Pessoa:

Senhores,

Muito obrigado por terem publicado a minha súmula no vosso site! Aguardo com expectativa os comentários dos vossos camaradas, colegas veteranos da guerra na Guiné (***).

Se me permitem a ousadia, poderia fazer-vos mais um pedido? Gostaria da permissão dos vossos colaboradores para utilizar quaisquer fotos originais de que possam dispôr, o que incluiria fotos já publicadas no site, as quais são fáceis de copiar e usar. Claro que irei dar todo o crédito aoa respectivos propritários!

Estou mais interessado em fotografias de:

(i) Aeronaves utilizadas na Guiné (F-86, PV-2, C-47, AL-III, T-6, G.91, DO-27, C-54/DC-6, Boeing 707), especialmente nas placas de estacionamento, em Bissalanca, com as marcas da Força Aérea Portuguesa;

(ii) A pista em Bissalanca - imagens na vertical, da pista, dos abrigos, etc;

(iii) Armamento anti-aéreo capturado ao PAIGC, como a ZPU-4 ou a metralhadora 12,7 mm;

(iv) Imagens de aeronaves da FAP no decorrer de operações na Guiné, especialmente as obtidas do interior da aeronave;

(v) Fotos de pessoal que desempenhou papéis importantes, como o Ten Cor Brito, Gen Spinola, Ten Pessoa(*), Cor Lemos Ferreira, ou outros(**);

(vi) Reconhecimento fotográfico de objectivos, quer antes quer depois da execução das missões;

(vii) E, infelizmente, as imagens dos aviões que foram danificados ou abatidos na Guiné.

Respeitosamente, solicito o direito de utilizar as fotografias na minha dissertação, ou em qualquer livro que possa vir a ser publicado. Mais uma vez, todo o crédito será concedido àqueles que me permitirem a utilização de tais fotografias.

Muito respeitosamente, Tenente Coronel Mateus Hurley.

(*) Texto do autor, esclarecimento de MP.

(**) Nota de MP: Aqui, deveria acrescentar-se o nome do Cor Gualdino Moura Pinto, o qual era à época Comandante da Zona Aérea de Cabo Verde e Guiné.


2. Mensagem original de resposta, em portugês:

Caro Matt

Recebi o teu e-mail. Na sequência do pedido que fazes, o Luís Graça deu a sua permissão para a utilização do material publicado no site - textos e fotos. Da minha parte também não há qualquer restrição.

No entanto, o material específico que pedes não existe nos arquivos do blog nem nos meus arquivos pessoais.

Dado o bom relacionamento que tem havido entre vós no passado, sugiro-te que encaminhes esse pedido para o Chefe de Estado Maior da Força Aérea ou para o Arquivo Histórico da Força Aérea.

Cheers. Miguel


Versão em inglês do texto anterior, enviada ao Matt Hurley em 2JUN09


Dear Matt I received your e-mail. Answering to your request, Luís Graça gave his permission for the use of all the material published on the site - text and photos. From my part there isn't also any restriction.However, the specific material you are asking doesn't exist in the archives of the blog or in my personal files.

Given the good relations that you have mantained in the past, I suggest that you forward this request to the Portuguese Air Force Chief of Staff (CEMFA) or the Arquivo Histórico da Força Aérea (AHFA) Cheers. Miguel



3. Resposta do Matt, com data de 3 de Junho:

Miguel, Many thanks! I will certainly contact Cor Alves at AHFA, but the photographs on Luis' blog are certainly a great place to start!

Cheers, - Matt Hurley


[Miguel, muito obrigado! Irei seguramente contactar o Cor Alves, do AHFA, mas não dispenso, para começar, as fotografias do vosso blogue, que são muito importantes para mim. Saudações, Matt Hurley.

4. Comentário de L.G.:

Teremos muito gosto em colaborar neste projecto de doutoramento. Só mais recentemente com a entrada de alguns camaradas da FAP (Incluindo, pára-quedistas, enfermeiras pára-quedistas,pilotos e técnicos de manutenção aeronáutica) é que começaram a aparecer histórias e fotos relacionadas com este ramo das forças armadas portuguese que estiveram no CTIG, entre 1963 e 1974. O nosso arquivo sobre a FAP não é tanto rico como o do Exército. Mas assim é muito melhor do que o da Marinha... Isto tem a ver essencialmente com a composição da nossa Tabanca Grande. Dentro destas limitações, daremos a melhor colaboração ao Matt Hurlei. Desde já lhe desejamos felicidades para levar a cabo, com sucesso, a sua tese de doutoramento.



Graça's comments to be read by Matt Hurley and other English-speaking persons:

We appreciate very much the honnor and the opportunity of participating, as actors, key-informants or only verbal and non-verbal documentation suppliers, in this research project on the air power during colonial war in the Guinea-Bissau. Only recently some Portuguese Air Force veterans (including paratroops, paratroops nurses, pilots and aircraft maintenance technicians) have come into our group blog, starting now to tell their stories and send their photos. By this reason, our documentation on the Air Force, this branch of the Portuguese Armed forces having played an important role during the colonial war, is not so rich as the Army one. Neverthless, it is much better than the Navy's stories and pictures... Explanation is mainly due the composition of our Tabanca Grande [ Big Village, in the Portuguese-based creole language of Guinea-Bissau, is the name of our social network]. Apart from these limitations, we will give the best collaboration to Matt Hurley. Best wishes to you. Good luck to to carry out and accomplish, successfully, your Ph D dissertation. Many thanks too to our Friend and Comrade Miguel Pessoa, Retired Air Force Pilot, Colonel, by offering his knowledge and language skills to our veterans' community.

_____________

Notas de L.G.:


(*) Vd. poste de 28 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2592: Voando sob os céus de Bambadinca, na Op Lança Afiada, em Março de 1969 (Jorge Félix, ex-Alf Pil Av Al III)

(**) Vd. poste de 21 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1864: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (7): do ataque aterrador de 15 de Julho de 1968 ao Fiat G-91 abatido a 28

(***) Vd. postes anteriores desta série:

29 de Maio de 2009 >
Guiné 63/74 - P4436: O poder aéreo no CTIG: uma pesquisa de Matthew M. Hurley, Ten Cor, USAF: tradução de Miguel Pessoa (4): Alguns comentários

27 de Maio de 2009 >
Guiné 63/74 - P4430: O poder aéreo no CTIG: uma pesquisa de Matthew M. Hurley, Ten Cor, USAF: Trad. de Miguel Pessoa (3): Parte III (Bibliografia)

27 de Maio de 2009 >
Guiné 63/74 - P4423: O poder aéreo no CTIG: uma pesquisa de Matthew M. Hurley, Ten Cor, USAF: Trad. de Miguel Pessoa (2): Parte II

26 de Maio de 2009 >
Guiné 63/74 - P4418: O poder aéreo no CTIG: uma pesquisa de Matthew M. Hurley, Ten Cor, USAF: Trad. de Miguel Pessoa (1): Parte I



sexta-feira, 22 de junho de 2007

Guiné 63/74 - P1868: Força Aérea Portuguesa: Cor Pil Av Moura Pinto, um grande comandante, um grande líder (Victor Barata)

Guiné > Bissalanca > Base Aérea nº 12 > Clube de Especialistas > 1973 > Festa de aniversário de um camarada da FAP > Principais convidados: o comandantes da Base, Cor Pil Av Moura Pinto (á esquerda) Ten Cor Pil Av Lemos Ferreira (à direita).

Foto: © Victor Barata (2007). Direitos reservados.

1. Mensagem de Victor Barata (ex-Especialista da Força Aérea Portuguesa, MELEC de Aviões e Instrumentos de Bordo, Bissalnaca, 1971/73). Vive em Vouzela, onde é empresário.


O Grande Comandante! (1)

Camaradas, há personagens na nossa vida que, pela sua conduta, actos praticados ou simples acções, nos marcam para sempre.

Obviamente que nem todos nós podemos compartilhar da mesma ideia, mas uma das virtudes do ser humano é saber respeitar-se mutuamente.

A foto que te envio recorda um aniversário no Clube de Especialistas, na Base Aérea nº 12, em Bissalanca, em que os convidados eram ao comandantes da Base, o da esquerda, Cor Pil Av Moura Pinto, o da direita , Ten Cor Pil Av Lemos Ferreira.

Pois bem,vou falar do Coronel Moura Pinto, como um verdadeiro líder, homem de poucas falas, sisudo,alto, magro com grandes qualidades humanas.

Isto passa-se no ano de 1973, quando entre Março e Abril, a nossa Força Aérea estava a perder Grandes Homens na frente de combate, companheiros do diaa dia que lutavam pela mesma causa que nós mas que o destino quis que partissem mais cedo: Ten Cor Pil Av Brito, Maj Pil Av Montovani e Furriéis Pil Av Baltazar e Ferreira (2).

A instabilidade estava instalada, o receio - principalmente em quem operava com aeronaves de pequenas velocidades - apoderou-se por se desconhecer o tipo de arma utilizada para abater os nossos aviões.

É nestas ocasiões que se distinguem os grandes COMANDANTES, o coronel Moura Pinto mandou reunir na sala de operações os 42 pilotos presentes na Base e, com a serenidade que lhe era virtude, foi dizendo (3):

Havia garantia de que a arma utilizada pelos guerrilheiros para abater as nossas aeronaves era um míssil. Em seguida afirmou ter duas certezas,uma fruto das suas convicções pessoais, outra, resultado da sua experiência como oficial.

A primeira era muito subjectiva e resumia-se numa frase: só é atingido pelo míssil quem tiver esse destino traçado. A segunda também se dizia em poucas palavras: ninguém pode ter medo do míssil, porque o piloto que vai voar com medo está mais vulnerável e acaba por ser atingido.

Depois para reforçar a sua argumentação linear, recordou o ditado latino:"A sorte protege os audazes". Estas afirmações no ambiente tenso que pairava na sala, tiveram um impacto extraordinário. Gerou-se uma descompressão colectiva, embora estivessem todos ainda apreensivos.

Faltava na sala o único piloto, furriel Santos, por se encontrar de serviço às operações. Nesse momento a porta do fundo da sala abriu-se e entrou o piloto em falta, pedindo licença para falar. Toda a assembleia virou a cabeça em sua direcção. O comandante Moura Pinto autorizou-o a falar. Com desenvoltura, o furriel Santos informou ter recebido um pedido de evacuação de feridos graves de um batalhão do Exército que tinha sido atacado. Vinha pedir instruções. Diz-lhe o Cor Moura Pinto:

-Responda que se vai fazer a evacuação. Mande preparar o helicóptero, quem vai fazer a evacuação sou eu.

Voltou-se para a assistência e perguntou:
- Meus senhores, quem quer colocar alguma questão? - Reinou o silêncio entre toda a gente.
- Se não têm perguntas, eu já disse tudo e, como há coisas mais importantes a fazer,vou-me embora. Foi fazer a evacuação.

O desfecho desta reunião teve um impacto fortíssimo no moral dos pilotos, o ânimo passou a falar mais alto, abafando os últimos resquícios do medo natural.

Descanse em paz, meu COMANDANTE!

Victor Barata
__________

Notas de L.G.:

(1) Há uma outra versão publicada em 17 de Junho de 2007 > Blogue do Victor Barata > Especialistas da Base Aérea 12 (Guiné, 1965/74)


(2) Vd. post de 21 de Junho de 2007 Guiné 63/74 - P1867: Força Aérea Portuguesa: Seis Fiat G.91 abatidos pelo PAIGC entre 1968 e 1974 (Arnaldo Sousa)

(3) Fonte: A Força Aérea na Guerra de África, de Luís Alves de Fraga, Coronel da FAP na reserva. Lisboa: Editora Prefácio. Vd. blogue Fio de Prumo, de Luís Alves de Fraga

quinta-feira, 19 de abril de 2007

Guiné 63/74 - P1675: 28 de Março e 5 de Abril de 1973: cinco aeronaves da FAP abatidas pelos toscos mísseis terra-ar SAM-7 Strella (Victor Barata)

Photo Sharing and Video Hosting at Photobucket


Guiné > Zona Leste > Bafatá > Estrada de Bambadinca-Batatá , vista de héli. Foto do arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71). © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.

Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2007 Photobucket Inc. All rights reserved.


1. Mensagem do Victor Barata (Especialista da Força Aérea Portuguesa, MELEC de Aviões e Instrumentos de Bordo, Guiné, Bissalanca, 1971/73).


Sobre o assunto relacionado com a morte do Fur Pil Baltazar, no dia 13 de Março último enviei-te uma resenha dos trágicos acontecimentos aéreos da Guiné, mas tu, pelo que vejo, não te recordas. Acredito, pois o teu esforço e boa vontande são para mim um grande orgulho de camarada de Guiné.

Já agora aproveito para esclarecer que o Baltazar não faleceu no dia 8 de Abril de 4 de 1973 (1) , mas sim no dia 6, pelo menos é este o registo que tenho na minha caderneta de vôo. Como te digo nesse email que não publicaste, fui eu que fui fazer a evacuação dos restos mortais.

Ainda quanto ao que me perguntas: voei algumas horas com o Baltazar, tendo ele se mostrado sempre um piloto qualificado. Obviamente que existe sempre uma fase de adaptação ao chegar-se a um quadro de guerra...

Obrigado, se não for antes até ao dia 28 de Abril de 2007, em Pombal. "É preciso ir fardado ou...vimos com farda!"

Um abraço.
Victor Barata

2. Victor, já ficou tudo esclarecido entre nós: o teu mail de 13 de Março nunca me chegou à caixa do correio, pelo simples facto de te teres enganado no meu endereço. Também não recebi as fotos para a fotogaleria da tertúlia. Reproduzo agora esse mail, para conhecimento dos nossos amigos e camaradas:


Luís:

Depois que te enviei as fotos (de ontem, como militar, e de hoje, como civil) - que ainda não foram publicadas mas espero que tenham chegado,pois posso não ter feito a operação bem feita e pensar que enviei e não ter chegado - nunca mais te contactei... Hoje resolvi contar uma passagem na Guiné. Se entederes que é matéria para publicar, publica...

O risco aéreo no teatro operacional de guerra da Guiné foi sempre um ir e não voltar, não só pela vertente da luta que diariamente era travada, como também pelo acidentado geográfico. Apesar de plana, a Guiné tinha a cota mais alta, de 300 metros, em Madina de Boé!

O nosso maior inimigo, de todos os tempos, foi visto pela primeira vez no dia 29 de Março [?] de 1973 em Compada, pelo Ten Coronel Pil Av Brito, Comandante do Grupo Operacinal da BA12 e pelo Major Pessoa: chamava-se míssel terra-ar STRELLA! (2)

Quis o destino que estes dois homens fossem as primeiraa vítimas desta peça de fogo, primeiro em 20 de Março de 1973, o Maj Pil Av Pessoa que se ejectou juntamente com a sua cadeira de cabine e desceu de paraquedas, vindo a ser encontrado no dia seguinte pelo grupo de Marcelino da Mata,com participação do então Ten Cor Almeida Bruno(julgo que na altura tinha esta patente)e o Cap paraquedista António Ramos, adjunto de campo do Gen Spínola.

Pior fim, em 28 de Março de 1973, teve o Ten Cor Brito: faleceu! Precisamente aquele que nunca acreditou na existência de tal arma, dizia que era um RPG,veio a tombar quando fazia uma missão de bombardeamento,se a memória não me atraiçoa... Era um grande Homem,Comandante e Piloto,senhor de invejáveis capacidades...Enfim, criou-se clima de consternação no seio do Grupo Operacional.

Mas eis que surge o macabro dia 5 de Abril de 1973, que nos dita novamente, e em tão curto espaço de tempo,o LUTO! Faleceram o Fur Pil Av Baltazar em DO27 e Maj Pil Av Montovani em T6, e é dado com desaparecido o Fur Pil Av Ferreira em DO27!

Recordo ter evacuado os restos mortais do Fur Pil Av Baltazar de manhã e, à tarde, fui a Bissau. A esposa estava na paragem do autocarro sem nada saber,as lágrimas correram-me pela cara a baixo: Que vida perdida aos 20 anos!

O Fur Pil Av Ferreira,ouvi dizer que tinha sido entregue com a independência da Guiné. Será que algum camarada da nossa Tertúlia me poderá confirmar esta excelente notícia? Sei que ele era de Paços de Ferreira.´

Estava instalada a instabilidade no seio da comunidade da base, ligada ao Grupo Operacional: pilotos,mecânicos e atiradores de helicanhão. Recordo que houve uma certa repulsa às saídas e, como tal, havia que fazer algo para nos motivar e dizer que era a vida onde estavamos inseridos.

Era Comandante da BA12 o Cor Pil Av Gualdino Moura Pinto (já falecido). O 2º Comandante era o Ten Cor Pil Av José Lemos Ferreira. Aquele, com as virtudes que lhe eram reconhecidas de um GRANDE COMANDANTE,de imediato reuniu os pilotos das esquadras todas,para fazer um ponto de situação, dizendo que também estavam todos a defender a mesma causa.Tanto assim que durante esta reunião foi solicitada uma evacuação à Zona e foi ele mesmo fazê-la!

Este SENHOR foi punido pelo Gen Spínola, motivando o seu pedido de passagem á reserva, seguindo depois uma nova carreira como Comandante da TAP.

Cumpriamos as nossas missões mais arriscadas com a certeza de estarem a contribuir para a sobrevivência dos camaradas que,em terra,no mato,nos rios, enfrentavam o inimigo,defendendo a ordem que a razão nem sempre comprendia, e muitas vezes actuando-se por iniciativa própia.

Obrigado, Luís.Um Abraço
Victor Barata
______________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 17 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1668: In Memoriam do piloto aviador Baltazar da Silva e de outros portugueses com asas de pássaro (António da Graça Abreu / Luís Graça)



(2) Míssel rudimentar, de origem soviética, conhecido como SAM-7 Strella... Podia ser lançado, como RPG, a partir de um tubo apoiado nas costas de um guerrilheiro... A FAP, na Guiné, levou algum tempo a reagir ao aparecimento desta arma letal...



Escreve o António Graça de Abreu, no seu Diário da Guiné:



"Cufar, 26 de Junho de 1973



"(...) Hoje chegou uma DO, um Nordatlas - o avião é conhecido entre a tropa por Horácio - e dois helicópteros. Vêem de Bissau e para lá regressam. Trazem víveres, correio, pessoal, pequenas cargas. Os helicópteros redistribuem os géneros pelos aquartelamentos da região, frangos e peixe congelado, carne, batata, farinha, couves frescas.



"Se os homens do PAIGC voltam a mandar um avião ou um héli abaixo, estamos todos lixados porque suspende-se outra vez o apoio aéreo. Mas agora já não é fácil que tal aconteça. Os pilotos conhecem as características dos mísseis terra-ar, os Strella ou Sa 7, que são eficazes entre os 200 e os 2.000 metros de altitude, e toma as devidas precauções. As DO e os hélis voam muito baixo, a rapar, rente às árvores, às bolanhas e aos rios, e os Nordatlas ou os DC3 voam muito alto, com tectos de mais de 2.500 metros. Descem e sobem a pista de Cufar, onde montamos sempre segurança, voando em círculos ou espirais para evitar sobrevoar as florestas, as zonas IN: Em quarenta minutos de voo, uma pessoa põe-se em Bissau. É seguro ? Até hoje tem sido" (...).