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terça-feira, 12 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25266: Agenda cultural (850): Síntese da apresentação do livro "MARGENS - VIVÊNCIAS DE GUERRA", da autoria de Paulo Cordeiro Salgado, ex-Alf Mil Op Especiais da CCAV 2721 (Olossato e Nhacra, 1970/72), que esteve a cargo do Coronel António Rosado da Luz (Paulo Salgado)


1. Mensagem do nosso camarada Paulo Salgado (ex-Alf Mil Op Esp da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72), autor do livro, "Margens - Vivências De Uma Guerra, com data de 10 de Março de 2024:

Caro Luís Graça e Coeditores
Seria interessante que o comentário a este livro MARGENS – VIVÊNCIAS DE UMA GUERRA, cuja apresentação foi feita pelo capitão de Abril, Coronel António Rosado da Luz, fosse elaborado por um dos nossos editores que saberiam escolher os trechos para o Blogue.
Sei, ainda, que o Mário Beja Santos, sempre presente nestas andanças, e carregado dos seus valores, fará uma abordagem à sua maneira.

Transcrevo parte desta apresentação, que me pareceu relevante para o nosso Blogue. De um grande capitão de Abril, cidadão interventivo e activo. Já agora: Este livro é dedicado aos capitães de Abril. No cinquentenário do 25 de Abril.

Paulo Salgado



"Margens – Vivências de Guerra"
Autor - Paulo Cordeiro Salgado

Apresentação pelo capitão de Abril
Coronel António Rosado da Luz

"Foi a primeira vez que me convidaram para APRESENTAR UM LIVRO.
Seguindo a “palavra de ordem” fundamental de “um tropa”,… lá tive que me “desenrascar” …

Nos tempos presentes, por opção, por força das circunstâncias e também por prazer e autorrealização pessoal, a atividade que ocupa 90% do meu tempo é ler.
Ler, estudar, investigar e escrever. E, ler este livro, deu-me imenso prazer por três razões, que me fazem ficar imensamente grato, quer ao Mário Tomé que sugeriu, quer ao Paulo Cordeiro Salgado que aceitou, terem-me proporcionado o imenso prazer de ler, em primeira mão, este livro.

A primeira dessas razões foi a de me terem dado oportunidade para me “desviar” dos temas quase obsessivos que ocupam a minha mente, permitindo-me regressar, por algum tempo, àquilo que posso denominar de “leitura lúdica”.


A segunda, pelo facto dos vários “planos”, logo anunciados no “preâmbulo” do livro, em que o autor decidiu “dar forma” ao tema central desta sua obra, me terem ajudado a refrescar a minha própria abordagem dos tais temas obsessivos que me ocupam a mente.

A terceira e mais importante razão para lhes estar grato é o imenso prazer… e até alguma emoção, …que são proporcionados pela leitura deste livro. O autor escreve, não só com arte, aquela arte de domínio da palavra que nos encanta ler, como escreve com alma, pois consegue pôr – e transmitir - emoção naquilo que escreve.


Mas este não é APENAS, ou, SOBRETUDO, não é um livro de memórias.
É um livro onde as emoções e as reflexões em torno dos dramas e das violências da GUERRA, da VIDA e da MORTE, se espraiam pelo AMOR, pela AMIZADE e pela SOLIDARIEDADE, mas também pela HISTÓRIA, pela POLÍTICA e por essa entidade mítica que nos condiciona, que nos abriga e que “somos”, que é PORTUGAL.

Embora não seja essa a forma como o livro está estruturado, podemos dividir o OBJETIVO do AUTOR em três “tempos”.


O primeiro “tempo” decorre nos dois primeiros anos da década de setenta. O autor deste livro, Paulo Cordeiro Salgado, que era na altura o Alferes miliciano mais antigo de uma companhia sediada no Olossato, a 27 quilómetros da fronteira com o Senegal e situada numa das zonas de guerra mais acesa, do Teatro de Operações da Guiné-Bissau, vê-se de repente, investido nas funções Comandante dessa Companhia, por morte, em combate, do Capitão que a comandava. Até à chegada de um novo Capitão que irá comandar a Companhia (que aqui está hoje presente entre nós) é ele, jovem de vinte e poucos anos, sem qualquer formação ou experiência para tal, que vai passar a ser O SENHOR, quase absoluto, de vida e de morte, sobre uma enorme área geográfica e sobre centenas ou milhares de seres humanos que nela vivem, ou são obrigados a isso.

A missão que lhe impõem é fazer a guerra. Fora mobilizado para ir para aquela guerra pela força de uma Lei, feita por um regime ditatorial, com o qual ele não concordava, para ir combater numa guerra, com a qual ele discordava totalmente. E ali estava agora ele, para matar ou morrer, pessoas que ele naturalmente respeitava como seus irmãos e contra as quais ele não tinha quaisquer motivos para tal. E, a grande maioria das cerca de duas centenas de militares que ele agora comandava, estavam na mesmíssima situação.

Mas há neste livro um segundo “tempo”.

Vinte anos após o fim da sua comissão, a intensidade dos dramas nela vividos pelo Paulo Cordeiro Salgado colaram-se-lhe de tal maneira à pele que ele não conseguiu mais reprimir a necessidade de “ajustar contas com o passado” e regressou à Guiné. Mas desta vez regressou para fazer o oposto da guerra. Regressou como cooperante.
Regressou, não só pela necessidade de se reconciliar consigo próprio, fazendo a sua catarse, como por ter ficado a amar, para sempre, aqueles povos, aquelas paisagens, aquela África.

Como eu compreendo o autor.


Finalmente, o terceiro “tempo” passa-se, 54 anos depois da sua primeira chegada às matas, às bolanhas e aos enormes rios da Guiné que alargam e encolhem duas vezes por dia. Passa-se nos nossos dias. E é nesse terceiro “tempo” deste livro, que se entende com toda a clareza o OBJETIVO do autor, pois é nele que Paulo Salgado, com os pés assentes no presente, resolve olhar para o passado, para o presente e para o futuro, escrevendo este livro.

É agora, 54 anos depois, que ele volta a olhar para os dramas dos “tempos da guerra”, daquela guerra onde ele combateu e, duas décadas depois, para os “tempos da reconciliação”, da reconciliação consigo próprio, com África e com os povos, que ele combateu, mas amou desde o primeiro momento.

E é aí que as reflexões que o autor vai fazendo ao longo do livro ganham um “outro patamar” de interesse. É aí que este livro deixa de ser um “livro de memórias” virado para o passado, para ter uma atualidade dramática.
É que, nesta segunda década do século XXI a que alguns homens desse tempo conseguimos chegar, não só a guerra volta a ser, infelizmente, o tema central do futuro das nossas vidas, como as esperanças de Liberdade e de Democracia, de Fraternidade, de Solidariedade e de Igualdade, quer dos nossos povos irmãos, quer do mundo em geral, começam todos a ser postos em causa.


E é aí, que as reflexões que o autor vai hoje fazendo, ao olhar para as suas vivências de há 54 e 34 anos, ganham um terceiro e mais importante patamar de interesse.

É que este livro é publicado no ano em que se celebram os 50 anos do 25 de Abril».

António Rosado da Luz
10.03.2024

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Nota do editor

Vd. post de 21 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25195: Agenda cultural (849): Lançamento do livro "MARGENS - VIVÊNCIAS DE GUERRA", da autoria de Paulo Cordeiro Salgado, ex-Alf Mil Op Especiais da CCAV 2721 (Guiné, 1970/72), dia 8 de Março de 2024, pelas 17h30, na sede da Associação 25 de Abril, Rua da Misericórdia, 95, Lisboa. Apresentação a cargo do Coronel António Rosado da Luz (Paulo Salgado)

sábado, 9 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25254: Notas de leitura (1674): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (15) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Março de 2024:

Queridos amigos,
A narrativa dos autores dirige-se agora para a problemática de possíveis intrusões aéreas a partir de países hostis; dá-se uma relação de situações de intrusão de aeronaves, durante a governação Schulz, e relevam-se as preocupações de Spínola quanto às hipóteses, que já eram patentes em informações, de que o PAIGC estava a preparar pilotos na União Soviética; faz-se uma descrição dos meios existentes em termos de artilharia antiaérea e recorda-se a insatisfação deixada na Força Aérea pela Operação Vulcano, se bem que Amílcar Cabral tenha considerado um verdadeiro desastre o que se passou em Cassebeche.

Um abraço do
Mário



O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974
Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (15)


Mário Beja Santos

Deste segundo volume d’O Santuário Perdido, por ora só tem edição inglesa, dá-se a referência a todos os interessados na sua aquisição: Helion & Company Limited, email: info@helion.co.uk; website: www.helion.co.uk; blogue: http://blog.helion.co.uk/.


Capítulo 4: “A pedra angular”

Como se viu no texto anterior, a Operação Vulcano não resultou como se esperava. Envolveu 20 surtidas de Fiat em 9 ataques, teve 7 pilotos a participar nas missões, quase todos eles tiveram três operações de ataque cada um, no total os Fiat largaram 7,2 mil quilos de bombas, 1,4 mil litros de napalm, 56 foguetes de 2,75 polegadas e vários milhares de munições de espingarda metralhadora, o que representou “um esforço notável ao nível do nosso escasso arsenal”, como observou o Coronel Diogo Neto. A Zona Aérea reivindicou ter neutralizado quatro DShK de 12,7 mm e a destruído uma ZPU de 14,5 mm; foram intercetadas comunicações entre os guerrilheiros, ficou-se a saber que estes tinham tido 19 mortos e 32 feridos. Amílcar Cabral considerou que esta operação fora “o desastre de Cassebeche”. Em contrapartida, dois dos sete Fiat tinham sido atingidos por fogo antiaéreo e um comando transportado em DO-27 fora atingido na asa por fogo de uma de 12,7 mm. As três aeronaves regressaram a Bissalanca, mas a frota de Fiat disponíveis passou para cinco. O General Nico escreveu mais tarde que “a partir daí, em determinados momentos, a presença continuada dos Fiat na zona de ação só poderia ser assegurada com aeronaves isoladas". Se o PAIGC considerara a operação um ‘desastre’ do lado português ninguém ficou satisfeito.

A análise posterior da operação bem como a atividade inimiga que lhe sucedeu, deixavam claro que pelo menos duas armas antiaéreas permaneciam operacionais nas proximidades de Cassebeche e havia outros agrupamentos de defesa antiaérea localizados noutros locais da península do Quitafine. Com efeito, em 9 de março de 1969, apenas dois dias após a Operação Vulcano, quatro posições inimigas perto de Cassebeche dispararam contra uma aeronave portuguesa numa missão noturna e ocorreu um incidente semelhante na semana seguinte. O General Nico concluiu mais tarde: “Tínhamos todas as condições para destruir o sistema aéreo e infligir um duro golpe ao PAIGC; o resultado, se bem que positivo, ficou muito aquém das nossas expetativas.” Os fatores que conduziram a esta insatisfação prendiam-se com o longo atraso de meses após a identificação inicial do alvo, bem como as dificuldades de coordenação e sincronização; mas também a decisão de empregar uma única companhia de paraquedistas para o ataque terrestre, e, não menos importante, houvera uma subestimação das capacidades do PAIGC no seu poder de resposta. Observou o Coronel Diogo Neto: “No futuro, teremos que ter mais cuidado, não podemos ficar entre a espada e parede sem ter uma saída.” Os insurgentes deixaram Cassebeche sabendo que “a aviação continuava a ser o único meio pelo qual os portugueses lhes podiam causar problemas” como observou Luís Cabral.

Ironicamente, as autoridades portuguesas na Guiné também estavam preocupadas com a ameaça de bombardeamento aéreo por parte do inimigo. Um dos desafios mais imediatos postos a Spínola envolvia a vulnerabilidade da Guiné Portuguesa face à infiltração aérea e, potencialmente, a ataques provenientes de países vizinhos. A ameaça era quase tão antiga quanto a guerra em si, quando aviadores da Força Aérea avistaram um jato não identificado no espaço aéreo da região, em 23 de julho de 1963. E havia também relatos oriundos das forças terrestres que informavam ter por ali passado aeronaves misteriosas, sobretudo à noite. Os radares de controlo antiaéreo corroboraram alguns desses relatórios. No começo de 1966, o Comandante-chefe Schulz ordenou a Operação Ver Para Crer, foi marcada para 25 de maio de 1967. Durante esta operação, os Alouette III levaram um pelotão de paraquedistas para a região de Pache, no lado ocidental da Guiné, para investigar relatos de atividade noturna não identificada de helicópteros ao serviço do PAIGC. Avaliações no local levaram o comandante da Zona Aérea a concluir que “um pequeno helicóptero inimigo havia possivelmente pousado em Pache algumas vezes”. Naquela época as autoridades portuguesas não acreditavam que o PAIGC possuísse aeronaves por conta própria. Amílcar Cabral concluíra em 1964 que possuir qualquer tipo de aeronave estava fora dos recursos do partido. Mas as autoridades portuguesas esperavam que isso viesse a alterar-se; uma enorme quantidade de relatórios, a partir de 1969, alegava a formação de pilotos do PAIGC na União Soviética e falava-se em possíveis planos para lhes fornecer aviões MiG, que ficariam baseados na República da Guiné.

O risco de intervenção aérea cresceu também com as forças aéreas dos Estado vizinhos sempre hostis a Portugal. A República da Guiné recebeu 10 MiG-17 no início da década de 1960, estes aviões formaram o núcleo ofensivo da Force Aérienne de Guinée até meados da década de 1980. O Senegal só possuía um pequeno número de helicópteros e aeronaves leves durante a década de 1960, mas eram meios que podiam ser usados para transportar armas e pessoal do PAIGC. Ambas as nações tinham aumentado o apoio moral e material ao PAIGC ao longo da década de 1970, o que preocupava cada vez mais os portugueses visto que o inimigo podia ser reforçado com recursos aéreos de outros países, estes podiam intervir abertamente no conflito. Vários incidentes justificavam tais preocupações. Em 24 de abril de 1968, um par de T-6 portugueses foi “intimidado” por aeronaves não identificadas no corredor de Guileje, a poucos quilómetros com a fronteira da República da Guiné. Um dos pilotos, o Tenente Oliveira Couto, lembrou ter sido surpreendido por dois golpes de asa varrida de jatos que manobravam agressivamente contra os T-6. Os Fiat em Bissalanca estavam inoperacionais, ficou para depois a especulação de que os T-6 tinham tido aviões MiG pela frente, que tinham atravessado inadvertidamente a fronteira.

Apenas um mês antes, em 26 de março de 1968, um Antonov-14 Pchelka, de construção soviética, aterrou por engano em Aldeia Formosa. As autoridades portuguesas fizeram transportar a aeronave para Bissalanca, foram imediatamente libertados os 6 passageiros malianos, mas os dois tripulantes da Força Aérea da Guiné ficaram detidos como forma de garantir trocas de prisioneiros: um piloto da Guiné-Conacri por cinco militares portugueses. O piloto e o mecânico do Antonov foram finalmente libertados cerca de três anos depois, depois de Portugal ter assegurado a libertação dos seus prisioneiros; mas o Antonov ficou a apodrecer na pista de Bissalanca. A ele se juntou um Westland Wessex, marcado como propriedade da Bristow Helicopters, empresa britânica com múltiplas operações na Nigéria. Em 10 de setembro de 1967, este helicóptero civil foi avistado sobre o norte da Guiné por uma tripulação de um C-47, intercetado por aviões Fiat e forçado a pousar na pista de Bula. Horas depois, este helicóptero voou sobre escolta de helicanhão até Bissalanca. O incidente levou a especulações, se não estaria envolvido em operações do PAIGC, sabia-se que a Bristow Helicpoters vendera em 1966 dois aviões ao Gana, um dos apoiantes do PAIGC.

Independentemente do que esteve por detrás destes incidentes, eles reforçaram a perceção do novo Comandante-chefe de que um “ataque surpresa ou mesmo um simples sobrevoo a baixa altitude sobre as nossas tropas” poderia causar “desmoralização e pânico”. O General Spínola temia que “tal ataque, realizado por pilotos insurgentes ou por tripulações estrangeiras, teria consequências verdadeiramente catastróficas.” O novo Comandante-chefe renovou as exigências de melhorar a defesa contra ataques aéreos. A solução mais óbvia era a melhoria da cobertura por artilharia de Bissalanca, bem como em outras instalações críticas. Já em janeiro de 1962 – um ano antes do início formal da luta da guerrilha – o primeiro pelotão de artilharia antiaérea foi instalado em Bissalanca, equipado com um conjunto de canhões de 12,7 mm e canhões Bofors L/60 de 40 mm. Esta escassa força representou a defesa antiaérea até ao fim da década a seguir à retirada dos F-86 em 1964. O pelotão de defesa antiaérea lutou para superar uma enorme escassez de pessoal e armamento obsoleto, mais do que inadequado para responder a qualquer ameaça aérea credível.

Um MiG-17 (Coleção Alexey Tolmachev)
O avião Antonov que aterrou por engano em Aldeia Formosa, em março de 1968, vemo-lo na pista de Bissalanca, onde apodreceu na pista (Coleção Virgílio Teixeira)
Uma quádrupla usada pelo pelotão de artilharia antiaérea em Bissalanca (Arquivo Histórico da Força Aérea)

(continua)
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Notas do editor:

Post anterior de 1 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25229: Notas de leitura (1671): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (14) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 6 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25242: Notas de leitura (1673): Recordando o Augusto Cid (Horta, 1941 - Lisboa, 2019) e o humor na guerra (Virgínio Briote)

quarta-feira, 6 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25244: Historiografia da presença portuguesa em África (412): A Guiné numa publicação do Rio de Janeiro, estávamos na década de 1930 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Agosto de 2023:

Queridos amigos,
É sempre um prazer voltar à biblioteca da Sociedade de Geografia e ter uma surpresa à minha espera. Agora que estou a organizar "Guiné, Bilhete de Identidade" e precisava de um texto do historiador Joaquim Barradas de Carvalho sobre a Crónica dos Feitos da Guiné de Zurara, foi-me sugerido a leitura de toda esta revista, vale a pena meditar sobre o poucochinho que é dedicado à Guiné, dizem-se coisas assombrosas sobre as estradas, mas seguramente que de boa fé o funcionário António Pereira Cardoso, que escreveu para o governador em Bolama relatórios anuais que um dia virão a ser indispensáveis para o estudo da economia da colónia, exaltou os quilómetros de estradas como atrativo para possíveis investidores, estamos já numa década em que Bolama definha. Não volto aqui a falar sobre a história destes boletins, os pressupostos básicos para a sua criação, foram anteriormente referidos, o aspeto que me parece mais curioso é a atração que o Brasil já sentia há um século por este berçário africano; não menos curioso é a referência à presença da navegação holandesa e alemã e verificarmos que a CUF de Alfredo da Silva ainda não chegou com as suas linhas de navegação.

Um abraço do
Mário



A Guiné numa publicação do Rio de Janeiro, estávamos na década de 1930

Mário Beja Santos

Já aqui se falou do boletim da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro e como este deu lugar ao boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro. No início da publicação, em 1931, os governos de Lisboa e Rio aplaudiram a iniciativa, mas com o passar do tempo o Estado Novo ficou furioso com as colaborações, republicanos oposicionistas apareciam em força, zangaram-se as comadres. Confesso a satisfação que tive com algumas destas imagens, certo e seguro a redação do boletim brasileiro tinha acesso a muita informação oriunda de Portugal. E a prova está em dois textos que aqui vou referir. O primeiro está assinado por António Pereira Cardoso, era funcionário da administração em Bolama, encontrei nos reservados da biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa alguns relatórios assinados pelo seu punho, referentes a este período; ele era sócio correspondente da Sociedade Luso-Africana e escreveu um artigo intitulado “A Guiné Portuguesa, a sua situação económica, o seu estado financeiro e as suas possibilidades, presentes e futuras”, traz a data de 24 de janeiro de 1933, o seu teor é o seguinte:
“A Guiné, cujo nome certamente pela sua semelhança homográfica com a Guiána, causa ainda hoje nos espíritos timoratos, calafrios e tétricas visões: é, de todos os nossos territórios ultramarinos aquele que menos acarinhado tem sido pelo Poder Central. Dentro dos 36.125 quilómetros da sua área, no entanto, acolhe-se uma população de cerca de meio milhão de habitantes, constituída por dezassete raças e sub-raças que fizeram da Guiné, em tempos idos, o inesgotável celeiro de todos os negreiros europeus e de quem hoje descendem, tanto o preto do Brasil como o negro americano.
Pela sua constituição geológica, pelas facilidades de transporte e deslocação interterritorial, e pela sua relativa vizinhança com a metrópole, a Guiné Portuguesa anima e fortalece todas as iniciativas de caráter agrícola e pecuário, e sua respetiva industrialização.
Afora as ilhas que formam o arquipélago dos Bijagós, pertence também ao domínio português a ilha de Cateraque, situada ao sul, próxima à Ponta Cajete, que os franceses nossos vizinhos, certamente por engano, há anos vêm ocupando, até ao dia em que uma, inexplicavelmente arrastada, retificação de fronteiras, consiga reivindicar para nós, a sua posse definitiva.

Ocupa a nossa Guiné, em extensão, o terceiro lugar no nosso império colonial. Semelhante a um corpo humano sulcado de veias, os seus rios entretecem na extensa planura do seu solo ubérrimo e forte, uma complicada teia, de fácil acesso aos barcos de grande cabotagem, e o Atlântico, nas suas costas, constantemente borda, com os bilros das suas marés, a infindável renda dos múltiplos esteiros e braços de mar, que a penetram até muito distante do litoral e que Duarte Pacheco Pereira, há cinco séculos já estudou e percorreu.
Com uma riqueza pecuária avaliada em cerca 306 mil cabeças (das quais só as de gado vacum se pode computar em 80 mil), é incentivo bastante para um ensaio de concorrência, atinente à conquista do mercado metropolitano, com qualquer empresa que se queira habilitar à exploração desta indústria. Colónia essencialmente agrícola, os seus 2.800 quilómetros de ótimas estradas, são, juntamente com o grande número de vias fluviais, meios que bastam à drenagem dos 25 milhões de quilos de amendoim; 12 milhões de quilos de amêndoa de palma (coconote); 550 mil quilos de óleo de palma; 670 mil quilos de arroz; 16 mil quilos de borracha; 90 mil quilos de cera; 170 mil quilos de couros de bovinos e 500 mil quilos de outros produtos que, no valor de 30 milhões de escudos são exportados anualmente para Portugal, Alemanha, EUA, França e colónias, Inglaterra e colónias, Holanda e colónias portuguesas.
Todos estes números, porém, podem, no entanto, ser rapidamente excedidos e até duplicados, desde que às sociedades existentes, ou a estabelecer, o Estado conceda não só as facilidades necessárias, mas também o auxílio pecuniário indispensável. Com um orçamento rigidamente equilibrado, as receitas da Guiné atingem a apreciável verba de 22 mil contos, acusando a sua balança comercial números significativos na importação e exportação.
Campo aberto a todo o género de culturas, nela se desenvolvem, presentemente, entre outras, a cana sacarina, o algodão, o café, o cacau, o milho, a mandioca, o feijão, etc., etc. Eis aqui em largos traços o que é e o que vale a nossa colónia da Guiné, de extensas planícies e ricas florestas, da qual, desde 1755 a 1777 foi concessionada à Companhia do Grão-Pará e Maranhão e que a figura prestigiosa e heroica do major Teixeira Pinto, em 1915, radicou de vez à nossa burocracia, castigando em combates sucessivos a intolerável rebeldia dos indígenas mancanhas, manjacos, oíncas, balantas e papéis, facilitando a ordem económica e do fomento dos governadores que se sucederam até à data.”


Outro texto que me parece de grande interesse é uma notícia intitulada “Breve resenha da aparelhagem económica da Guiné Portuguesa”, vamos ao seu conteúdo:
“Não há, nesta nossa pequena, mas riquíssima província africana, caminhos de ferro, o que facilmente se explica pelo facto das comunicações e dos transportes se realizarem através das suas magníficas e eficientíssimas redes de cursos de água (rios e canais) e de estradas de rodagem, as quais ligam entre si os centros de produção e de comércio.
A extensão das estradas na Guiné Portuguesa é de 2.809 quilómetros, e para darmos uma ideia sintética e clara do que isto representa como expressão de progresso, diremos apenas que a média em metros de estrada por quilómetros é de 78, enquanto na África Ocidental Francesa é tão somente de 7,15!
Possui também a Guiné Portuguesa uma rede de 685 quilómetros de linhas telegráficas, em contacto com treze estações, além de três de TSF e duas de cabos submarinos, sem contarmos uma linha telegráfica que serve diretamente para as comunicações com a África Ocidental Francesa. O seu porto mais importante é o de Bissau.
Os navios nacionais das Companhias Colonial e Nacional de Navegação visitam mensalmente os portos de Bissau e Bolama, onde também vão com regularidade os barcos da Holland West – Afrika Linie, da Woerman Linie, da Deutsche Ost-Afrika Linie, da Hamburg – Linie e a da Hamburg – Bremen Afrika Linie, assim como os cargueiros da Sociedade Geral de Indústrias e Transportes.”


Pretendeu-se dar ao leitor a apreciação do que era o noticiário reportado aos interesses luso-brasileiros, a Guiné estava praticamente omissa desta publicação, a informação superlotada era, como é óbvio, referente a Angola e Moçambique.


É obrigatório ficar intrigado com este brasão da Guiné, é quanto muito um elemento retirado da bandeira nacional, fica-se espantado como estes publicistas cariocas publicaram tranquilamente as cinco quinas dizendo que se trata do brasão da Guiné. São coisas…
O icónico edifício do município de Bolama, hoje em completa ruína, imagem que acompanhava um texto sobre a I Exposição Colonial Portuguesa que decorreu no Porto em 1934
Imagem porventura tirada por Domingos Alvão mostrando-nos aldeia lacustre que atraiu multidões ao Porto, em 1934, no recinto da I Exposição Colonial Portuguesa
O Marquês de Ávila e de Bolama na capa da revista "O Ocidente", de 20 de março de 1907
Um dos aspetos mais gratificantes de andar a folhear publicações em bibliotecas especializadas é encontrar esta imagem que só era possível ser publicada no Brasil naquela época em que Portugal tudo o que aqui se mostra e escreve era totalmente impensável ser dado à estampa
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Nota do editor

Último poste da série de 28 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25223: Historiografia da presença portuguesa em África (411): A primeira exposição colonial portuguesa contada numa revista do Rio de Janeiro (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 1 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25229: Notas de leitura (1671): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (14) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Fevereiro de 2024:

Queridos amigos,
Queridos amigos, não é a primeira vez que se refere no blogue a Operação Vulcano, escritores oriundos da Força Aérea a ela fizeram referência, temos aqui o relato pormenorizado das atividades desenvolvidas a partir de 6 de março de 1969, dentro desta saga de atividades que visavam destruir os sistemas antiaéreos do PAIGC no Quitafine. Aqui se conta o que aconteceu, os autores não escondem que havia poucas informações concretas sobre o dispositivo militar do PAIGC na Península do Quitafine, ora as antiaéreas tinham proliferado, Spínola, contrariando o desenho da operação feito pelo Coronel Diogo Neto reduziu a metade o contingente de paraquedistas, e depois veio a surpresa, o PAIGC defendeu-se fortemente, imobilizou a força paraquedista, danificou dois aviões. Houve que abortar a Operação Vulcano, pelo adiante teremos notícias de como continuou, aprendida que fora a experiência amarga.

Um abraço do
Mário



O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974
Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (14)


Mário Beja Santos

Deste segundo volume d’O Santuário Perdido, por ora só tem edição inglesa, dá-se a referência a todos os interessados na sua aquisição: Helion & Company Limited, email: info@helion.co.uk; website: www.helion.co.uk; blogue: http://blog.helion.co.uk/.

Capítulo 4: “A pedra angular”


Os autores estão a analisar as alterações introduzidas pelo novo Comandante-chefe, António de Spínola, no tocante às atividades da Força Aérea. Reconhecia-se que era prioritário fazer calar o sistema antiaéreo do PAIGC, com prioridade para o existente na área de Cassebeche.

À semelhança de operações anteriores, envolvendo paraquedistas, desenhou-se uma operação envolvendo um bombardeamento aéreo inicial, a que se seguia um ataque helitransportado. O ataque inicial foi cometido aos Fiat, procurava-se suprimir as posições antiaéreas conhecidas ou suspeitas. O comandante da Zona Aérea e da Base Aérea 12, Coronel Manuel Diogo Neto, recordou: “Era opinião de alguns pilotos experientes que se fosse possível destruir a ZPU, imediatamente a defesa do PAIGC no local entraria em colapso, o que facilitaria a ação dos paraquedistas.” O projeto deste plano previa duas companhias de paraquedistas helitransportadas que seriam postas no solo a Norte e a Sul da área-alvo. A sua missão era de destruir os posicionamentos do PAIGC, apoiados por um posto de comando DO-27, dois helicanhões, quatro T-6 e os Fiat reabastecidos e rearmados. Estes meios, T-6 e PCV, ficariam temporariamente baseados em Catió, a 45 quilómetros da zona de ação. Todos os Fiat atribuídos à Zona Aérea, 10 dos 11 Alouette III, e a maioria dos transportes de asa fixa, foram comprometidos para esta operação, bem como a generalidade dos pilotos. Na Operação Vulcano participariam mais de 25 aeronaves e 240 paraquedistas, era o maior esforço combinado de ataque de assalto e aéreo até então feito.

No entanto, o planeamento da Operação Vulcano acabou por ser prejudicado por questões que vieram a complicar a execução e o seu resultado. Havia falta de informações no Comando-Chefe quanto à disposição das forças do PAIGC no Quitafine. A informação disponível era vaga e esporádica, aludindo à presença de diferentes grupos de guerrilha “fortemente armados” na Península. Mesmo assim, Spínola reduziu inexplicavelmente para metade o número de grupos de paraquedistas, considerando que uma só companhia era suficiente, e “nada o convenceu da necessidade de empregar as duas companhias”, recordou Diogo Neto. Mas o pior para a Força Aérea era que os canhões antiaéreos se tinham multiplicado “como cogumelos” nas semanas posteriores à sua identificação.

Agendou-se a Operação Vulcano para 7 de março de 1969, não havia ilusões de que as forças portuguesas se iriam defrontar com forte oposição dos grupos de guerrilha. No dia anterior, 6 de março, 60 paraquedistas voaram em C-47 de Bissalanca para Catió, onde já estavam quatro T-6 que iriam apoiar a operação no dia seguinte. No início de 7 de março, numa sucessão de voos em quatro DO-27, chegaram 40 paraquedistas para a segunda onda de assalto de helicóptero. A primeira onda, composta por 40 paraquedistas, deveria vir diretamente de Bissalanca para o objetivo em 8 Alouette III, logo a seguir ao bombardeamento aéreo inicial. Depois de entregar a primeira onda, os mesmos 8 helicópteros Alouette III deveriam voar para Cabedú e regressar à zona de ação transportando a segunda leva de paraquedistas. A missão de ambas as formações deveriam avançar sobre Cassebeche, completando a destruição dos meios antiaéreos do PAIGC, eliminando quaisquer outras posições da guerrilha, ou outras armas existentes.

A Operação Vulcano começou às 7 horas do dia 7 de março, partiu um DO-27 encarregado de realizar o reconhecimento visual da área-alvo. Após o relatório do piloto sobre as condições atmosféricas, dez Alouette III, incluindo dois helicanhões, descolaram de Bissalanca com 40 paraquedistas. O seu sucesso dependia da capacidade do primeiro ataque suprimir a ameaça da defesa aérea para que as armas antiaéreas do PAIGC não atacassem violentamente os helicópteros. Essa tarefa coube aos 7 Fiat disponíveis, três dos quais descolaram de Bissalanca armados com bombas. Estes três subiram a 8 mil pés para um voo de 8 minutos até Cassebeche, a 120 quilómetros de distância. Contornaram a fronteira com a República da Guiné para atacar do lado do Sol, mas os Fiat encontraram imediatamente fogo das armas defensivas do PAIGC de, pelo menos, 7 posições antiaéreas ativas, compostas por 6 armas antiaéreas DShK de 12,7 mm e um ZPU-4 de 14,5 mm de cano quádruplo. Os pilotos concentraram-se na ZPU e lançaram 12 bombas de 50 kg e 6 bombas de 200 kg contra a posição, com o comandante do Grupo Operacional 1201, Capitão Fernando de Jesus Vasquez a reportar em direto o acontecimento.

Uma das posições DShK foi destruída, a parte mais difícil parecia estar feita. Como nenhuma outra atividade antiaérea fora detetada imediatamente após os ataques iniciais, o comandante da Zona Aérea concluiu erradamente que todas as atividades de defesa do PAIGC estavam suprimidas, e transmitiu essa avaliação ao PCV. Dois minutos depois, os Fiat completaram o ataque, os paraquedistas iniciaram a sua missão, protegidos por um DO armado com um foguete e dois helicanhões. Os primeiros paraquedistas pisaram o solo pelas 9h da manhã e iniciaram a sua marcha em direção às posições do PAIGC, a pouco mais de 1 km de distância. Pelas 9h16, deu-se o segundo ataque, um par de Fiat carregado de bombas como os três Alouette III anteriores começaram a atacar o ninho de defesa aérea em Cassebeche, identificando uma sétima posição antiaérea. Quatro minutos depois, a segunda leva de paraquedistas pisou solo e partiu em direção à área do objetivo, foi recebida pelos disparos de armas ligeiras. Pelas 9h27, uma terceira formação constituída por dois Fiat atingiu os lugares de defesa antiaérea à volta de Cassebeche, silenciando uma segunda DShK. Por esta altura, os paraquedistas estavam a ser atingidos por RPG e espingardas metralhadoras; o DO-27, onde funcionava o PCV, informou que havia três posições antiaéreas ativas, uma das quais atingiu a DO numa asa. Estava visto que o PAIGC recuperara do choque dos ataques iniciais, o que deixou Diogo Neto “apreensivo”.

A não eliminação de toda a capacidade aérea do PAIGC impediu que os T-6 e os helicanhões apoiassem os paraquedistas, pelo receio de que devido à sua baixa velocidade acabassem por ser inutilmente massacrados. Até os Fiat estavam em risco, na sua quarta missão dessa manhã, foram recebidos com o fogo das armas de 12,7 mm, o que danificou um dos aviões. Nessas condições, não era possível alcançar os objetivos definidos, uma vez que tudo pressupunha um avanço sem resistência significativa. O General Nico recordou mais tarde que havia uma preocupação crescente que as forças portuguesas ficassem encurraladas numa posição que estava rapidamente em deterioração. A reserva de 25 paraquedistas ficou comprometida, dado que a operação terrestre estava paralisada, enquanto três Fiat chegaram ao local para um quinto ataque contra as posições antiaéreas, trazendo desta vez foguetes e metralhadoras, mas pelo menos dois dos locais das armas do PAIGC permaneciam ativos. Os paraquedistas envolvidos foram atingidos por um intenso fogo inimigo quando estavam a 500 metros do seu objetivo. Foi chamado um outro par de Fiat com o fim de suprimir as defesas do PAIGC e liquidar a persistente ameaça antiaérea, mas um segundo avião a jato foi atingido e danificado pelo fogo de uma antiaérea de 12,7 mm, teve de regressar a Bissalanca e fazer uma aterragem de emergência.

Recordou Diogo Neto que estavam reduzidos a 5 Fiat, havia que considerar a probabilidade de novas perdas, mas também percebeu logo que sem apoio aéreo a recuperação das forças terrestres ficava seriamente comprometida. Pelas 13h30, as três colunas de paraquedistas tinham-se reunido após um sétimo ataque de Fiat contra as antiaéreas, estavam agora a ser flageladas pelo fogo do PAIGC. Pouco depois, apareceram outros três Fiat e lançaram napalm sobre a posição DShK. O ataque falhou, pelo menos três antiaéreas mantinham-se ativas enquanto os paraquedistas continuavam a ser sujeitos a um pesado fogo. Com a ameaça daquele sistema antiaéreo não suprimido, com o elemento terrestre imobilizado e dois Fiats fora da operação, Diogo Neto ordenou prudentemente a retirada de todos os elementos da Zona Aérea, incluindo os paraquedistas, e assim ficou abortada a operação.

Vista aérea de Gadamael na Península do Quitafine. A aldeia e destacamento estavam perto do ataque dos Fiat contra as ZPU do PAIGC, isto em janeiro de 1969 (Arquivo da Defesa Nacional)
Durante a Operação Vulcano (março de 1969), empregaram-se todos os Fiat contra as posições antiaéreas do PAIGC no Sul da Guiné (Coleção José Nico)
Quadro descritivo da Operação Vulcano (Matthew M. Hurley)
Coronel Diogo Neto, comandante da Zona Aérea durante a Operação Vulcano (Arquivo da Defesa Nacional)
Capitão Alberto Cruz, um dos pilotos dos Fiat que participaram na Operação Vulcano (Coleção Alberto Cruz)

(continua)
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Notas do editor:

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Último poste da série de 26 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25216: Notas de leitura (1670): "A Cidade Que Tudo Devorou", por Amadú Dafé; Nimba Edições, 2022 (1) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25223: Historiografia da presença portuguesa em África (411): A primeira exposição colonial portuguesa contada numa revista do Rio de Janeiro (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Julho de 2023:

Queridos amigos,
Jamais em tempo algum tinha ouvido falar deste boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro, dois investigadores brasileiros dão porquês para o seu aparecimento e falam da vida acidentada que a publicação teve, a maior colónia portuguesa no mundo ainda recebia afavelmente gente republicana, como Norton de Matos, e acresce que naqueles anos de 1930 os próceres do Estado Novo desconfiavam das doutrinas de Gilberto Freyre no que toca ao luso-tropicalismo. Tudo teve o seu tempo, mas acho que vale a pena dar uma vista de olhos ao que o escritor e jornalista Hugo Rocha publicou sobre a presença guineense na primeira exposição colonial portuguesa e é bom deixar no nosso arquivo as duas páginas com imagens de Bolama daquele tempo que era capital da colónia.

Um abraço do
Mário



A primeira exposição colonial portuguesa contada numa revista do Rio de Janeiro

Mário Beja Santos

Com a preocupação de vasculhar quanto a referências da Guiné portuguesa, na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa alertaram-me para o Boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro, publicação que vingou entre 1932 e 1939, primeiro com o título de África Portuguesa e depois referenciada como Boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro. Que pretendiam? No n.º 1 de África Portuguesa, janeiro de 1932, com o título a que vimos, faz-se a seguinte apresentação:
“A que vem África Portuguesa? Sentar praça nas hostes dos paladinos do Novo Renascimento Colonial Português. Este Novo Renascimento da expressão política devia-se a várias sacudidelas: a fundação da Sociedade de Geografia de Lisboa e às epopeias de Silva Porto, Serpa Pinto, Capelo e Ivens. E à ocupação efetiva: Mouzinho, Alves Roçadas, João de Almeida, António Enes, Norton de Matos. África Portuguesa vem contribuir com a sua quota parte, cá deste lado do Atlântico, para essa obra de ressurgimento colonial, proporcionando aos nossos patrícios e a todos quantos se interessam pelas coisas coloniais uma resenha dos principais acontecimentos e factos mais notáveis da vida das colónias. Enfim, pôr em relevo a obra colonizadora dos portugueses.”

Mas pode-se apurar mais quanto aos intentos deste projeto, veja-se um artigo de Mateus Silva Ikolaude e Marçal de Menezes Paredes sobre as questões da lusofonia no n.º 48 da Revista Portuguesa de História, Coimbra, 2017.
Escrevem os autores:
“Na década de 1930, Portugal e Brasil constituíram na esfera diplomática importantes espaços de aproximação política. Se, por um lado, em Portugal existia um colonialismo com pretensões nacionalistas e que pensava o exemplo brasileiro como referências às colónias africanas, por outro, no Brasil havia nacionalismo que mobilizava componentes internacionais para com África e para com Portugal. O Rio de Janeiro constituía-se no principal centro de emigração portuguesa do mundo e a colónia lusitana organizada buscava afirmar e recriar a sua identidade a partir de duas estratégias principais: o associativismo e a imprensa. A visão do Brasil enquanto obra máxima da ação colonizadora portuguesa refletia-se na representação assumida pelos emigrantes residentes na antiga colónia, ao passo que a constituição da maior comunidade portuguesa fora de Portugal, em pleno século XX, reforçava simbolicamente os laços estabelecidos historicamente de uma predestinação lusitana. No dia 22 de maio de 1930 foi fundada a Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro. Em 1934, a tiragem da revista era de dois mil exemplares que eram gratuitamente distribuídos para intelectuais, políticos, além de escolas, centros culturais e prefeituras.”

Haverá inúmeras tensões com o Estado Novo, basta pensar que uma das figuras mais admiradas na colónia era Norton de Matos, opositor do novo regime, curiosamente na década os próceres dos Estado Novo olhavam de viés as doutrinas de Gilberto Freire sobre o luso-tropicalismo, a doutrina será recuperada com a questão colonial posta nos anos 1950 e 1960.

No número dedicado à primeira exposição colonial portuguesa, que decorreu no Porto em 1934, o escritor e jornalista Hugo Rocha prendeu-se de amores com a Guiné e redigiu um apontamento digno de reflexão:
“Ontem, a meio da tarde, para matar saudades, fui ao Palácio ver os pretos e buscar assunto para esta reportagem à margem do noticiário quotidiano. E a primeira impressão, forte, dominadora, absoluta, foi a de que entrara em pleno território colonial. Desde há poucos dias, 63 pretos e pretas da Guiné fazem vida africana em pleno recinto da Exposição Colonial Portuguesa. Fulas, Bijagós, Mandingas, Balantas. A melhor, a mais completa representação etnográfica que a Guiné, guarda avançada de Portugal na África, podia enviar à metrópole.
Pronta para receber tão imensa embaixada, a aldeia da Guiné, que é a mais típica do certame, porque é lacustre como grande parte das aldeias da Guiné e porque se situa entre uma paisagem admirável, não chegou, todavia, para acomodar todos os indígenas. Houve que dividir, como soe dizer-se, o mal pelas aldeias. E, assim, no bosque, em sítio escuso, de aspeto tropical, novas cubatas houve que erguer. E fez-se nova sanzala. E 20 negros – 18 homens e 2 mulheres – de raça Fula, passaram a habitar, ali, dando-se, também, a ilusão de que não estão no Porto, de que estão na Guiné…”


Interrompo aqui a citação para referir que há uma conversa entre Hugo Rocha e um guineense a quem ele chama Mony, fala-se do tempo em Portugal e na Guiné, e há para ali uma alusão maliciosa, Mony era casado com aquelas duas mulheres, uma delas estava a pentear um dos homens, para o observador havia para ali uma cena de sedução e perguntou-se a Mony se ele não tinha ciúme, a resposta foi portentosa, Mony não sabia o significado da palavra ciúme… E vamos continuar com o texto de Hugo Rocha:
“Henrique Galvão, com admirável sentido prático pelo que deve ser a preparação do certame, não quer que os indígenas da Guiné estejam ociosos. Sendo, alguns deles, trabalhadores excelentes, o melhor sistema de os tornar úteis ao certame, enquanto as portas não se abrirem ao público, era, evidentemente, empregá-los nas obras.
E assim, mal chegados, os negros começaram a faina, auxiliando os trabalhadores brancos que labutam, ali. Acarretam. Limpam. Auxiliam. Elas, enquanto os homens não perdem o seu tempo, estabelecem o ménage. Transportam lenha para as fogueiras, águas para a cozinha. Ao fim da tarde, quando eles estão disponíveis, a ilha oferece o quadro mais completo da Guiné que possa conceber-se. Quase todos vestindo – despindo será melhor dito… - à boa usança do sertão, eles estendem-se pelo chão, sobre as esteiras ou na terra dura. E elas, com uma paciência de Job, penteiam-nos, engorduram-nos, fazem das suas carapinhas baças um emaranhado inextrincável de fios embebidos de tacula, que parecem, pronto o toucado, barretes avermelhados e um tudo nojentos…

Depois, o batuque. Horas seguidas, enquanto a multidão de empregados e operários forma barreira compacta no continente, defesa como é a entrada na ilha, o tantã soa entre as árvores, a que uma ou outra palmeira, refletindo-se no lago, dá o ar tropical…
E a algazarra do dialeto, que ninguém entende, e as risadas sonoras, e o cheiro pronunciado a sertão, e aqueles corpos negros, nus e besuntados, que se agitam como se aquele fosse o seu verdadeiro meio, dão, a quem olhar a cena e a considerar, atentamente, a sugestão completa, farta, dominadora, de África…”


Foi o único artigo sobre a Guiné que encontrei. No entanto, dei com imagens de Bolama e seis imagens do interior da primeira exposição colonial portuguesa que aqui vos mostro.

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Nota do editor

Último post da série de 21 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25194: Historiografia da presença portuguesa em África (410): Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (7) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25220:A 23ª hora: Memórias do consulado do Gen Bettencourt Rodrigues, Governador e Com-chefe do CTIG (21 de setembro de 1973-26 de abril de 1974) - Parte VI: Dois generais de escolas, perfis e personalidades muito diferentes



Gen Bettencourt Rodrigues (1918-2013): 
aqui na base naval do Alfeite, em 30/4/1974; 
detalhe de foto do álbum de família 
do cor inf António Vaz Antunes,
a quem a agradecemos a gentileza, 
na pessoa do seu filho Fernando Vaz Antunes.


Guiné > Bissau > c. 1970/71 > Spínola condecorando um alferes 'comando' africano... Em segundo plano, eu sou o portador da bandeja que contem a condecoração . (Foto do álbum do nosso camarada, médico, Ernestino Caniço, ex-alf mil cav, cmdt do Pel Rec Daimler 2208, Mansabá e Mansoa; Rep ACAP - Repartição de Assuntos Civis e Ação Psicológica, Bissau, fev 1970/dez 1971).

Foto (e legenda): © Ernestino Caniço (2022) . Todos os direitos reservados (Edição e legendag complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné)


1. O depoimento do gen Bettencourt Rodrigues (Funchal, 1918 - Lisboa, 2011), o último governador e com-chefe da Guiné, antes do 25 de Abril, prestado em 1997, no âmbito dos Estudos Gerais da Arrábida, ao Manuel de Lucena e ao Luís Salgado de Matos (ICS / UL) merece ser conhecidoe divulgado neste blogue de antigos combatentes da Guiné (*). 

Nesta segunda (e última) parte há expressões(e revelações), no mínimo "pitorescas",  que merecem o devido destaque:

  • Ele   [o general Spínola ]  fazia a sua política, era lá com ele. 
  • O general Spínola não era assim tão popular na Guiné.
  • O sr. general Spínola, lamento dizê-lo, era muito faccioso. Para ele, quem não tivesse andado no Colégio Militar ou não fosse de Cavalaria era menos que zero.
  • Caramba, oito anos na Guiné é de morrer! 
  • O Governo não lhe [a ele,  general Spínola ] dava todo o dinheiro que pretendia para a sua política de aliciamento das populações.
  • Eles   [a mim ] não me metiam a mão no bolso! 
  • Recordo-me de um dia ter ido a uma sanzala [ sic ]  e de um grupo de mulheres me ter pedido rádios. Vejam bem (,,,), para falar com os maridos (...) em Bissau!
  • A Guiné é um país cuja área varia em função da maré!
  • Sim,  planeava converter as 225 guarnições em 80 e tal
  • Só se morre uma vez, não há mortes provisórias.
  • O PAIGC não estava menos exausto que nós.
  • A     [nossa] tropa podia estar farta, mas obedecia.
  • Em Lisboa em Março de 1974,  vim cá buscar 150 conto[cerca de 28 600 euros, a preços de hoje
  • Felizmente, o episódio da «brigada do reumático» apanhou-me já a caminho da Guiné.
  • [ O 25 de Abril foi uma surpresa para mim, ] tanto que me assaltram o gabinete!

Estudos Gerais da Arrábida > A descolonização portuguesa > 

Painel dedicado à Guiné (29 de Julho de 1997) >
Depoimento do general Bethencourt Rodrigues > 
II (e última) parte (*)


Fonte: Arquivo de História Social > Instituto de Ciências Socias da Universidade de Lisboa (o link original foi descontinuado: ver aqui em Arquivo.pt:

https://arquivo.pt/wayback/20140929225751/http://www.ahs-descolonizacao.ics.ul.pt/

(...) "O Arquivo de História Social publica nesta página uma série de entrevistas sobre a descolonização portuguesa de 1974/1975, fruto de um projecto do Instituto de Ciências Sociais apoiado pela Fundação Oriente.

" Maria de Fátima Patriarca, Carlos Gaspar, Luís Salgado de Matos e Manuel de Lucena que coordenou, entrevistaram grandes protagonistas desse processo: por um lado, governantes, chefes militares, dirigentes do MFA e outros que então actuaram na Guiné-Bissau, em Cabo Verde, Angola e Moçambique; por outro lado, responsáveis metropolitanos ou íntimos colaboradores seus.

"Não procurando promover qualquer interpretação, chegar a juízos gerais ou encerrar os eventos abordados numa dada problemática, o grupo entrevistador foi seguindo os relatos e aceitando as visões dos seus interlocutores, embora não deixasse de lhes solicitar esclarecimentos por vezes incómodos." (...)

O sítio original na Net foi descontinuado. Só há pouco tempo o conseguimos recuperar através do Arquivo.pt.  Devido à sua entensão, o depoimento  é reproduzido,  com negritos nossos (e itálicos), em duas parte (com a devida vénia, ao ICS - Instituto de Ciências Sociais, da Universidade de Lisboa). 

A primeira parte, como já vimos,  é dedicada a Angola, onde o general Bettencourt Rodrigues foi o "herói da região militar leste" (1971-1973). A segunda, à sua comissão na  Guiné (set 1973/ abr 1974).

Os entrevistadores, já falecidos, Manuel Lucena, cientista político (1938-2015)  e Luís Salgado de Matos, sociólogo (1946-2021), foram dois brilhantes investigadores do ICS - Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

Este documento também está disponível no Arquivo de História Social do ICS. Faz parte do espólio de Manuel Lucena.

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(…) Luís Salgado de Matos:

Passando agora para a Guiné. O sr. general chegou a organizar algum Congresso do Povo?

General Bettencourt Rodrigues:

Sim, o quinto. Foi até  
o acontecimento político-social mais marcante do meu mandato como Governador. 

Para sua informação, eu descrevo isso com algum detalhe no depoimento que o Paradela de Abreu me solicitou em tempos, "Vitória Traída". Mas houve também os congressos regionais, de onde eram cooptados os delegados para o Congresso Provincial.

Tudo isso movimentou na altura milhares de pessoas, completamente à margem do PAIGC.

Manuel de Lucena:

Mas essa não interferência do PAIGC era deliberada por parte deles…

General Bettencourt Rodrigues:

Incapacidade militar, meu caro amigo!

Luís Salgado de Matos:

Havia alguma reflexão no Estado Maior sobre a táctica que o general Spínola estava a desenvolver na Guiné?

General Bettencourt Rodrigues:

Ele fazia a sua política, era lá com ele. Cada um tinha as suas características próprias. Volto a repetir: os comandantes militares gozaram sempre de uma larga autonomia.

Quando cheguei à Guiné em 1973, habituado como estava à largueza de Angola, o que mais me impressionou foi a pequenez daquilo tudo. A Guiné é um país cuja área varia em função da maré!

Manuel de Lucena:


Na Guiné, o sr. general chegou a pensar numa concentração do dispositivo?

General Bettencourt Rodrigues:

Sim, planeava converter as 225 guarnições em 80 e tal. A dispersão é inimiga da eficácia. Mas já não tive tempo,

Manuel de Lucena:

Por outro lado, a quadrícula dispersa é sinal de presença efectiva, possibilita o contacto directo com as populações…

General Bettencourt Rodrigues:

É uma outra forma de ver as coisas. Simplesmente, havia que fazer uma opção.

Luís Salgado de Matos:

Manteve o acordo do general Spínola com os Felupes, em que estes recebiam 100 escudos por cada cabeça de guerrilheiro abatido?

General Bettencourt Rodrigues:

Não estava ao corrente desse acordo, mas se ninguém o denunciou…

Manuel de Lucena:

Quando chegou à Guiné encontrou uma tropa bem preparada, motivada, com bons quadros? Faço lhe esta pergunta porque a ideia que normalmente se tem acerca do estado de espírito da nossa tropa na Guiné é a de uma desmoralização generalizada.

General Bettencourt Rodrigues:

Sobre isso direi o seguinte: só se morre uma vez, não há mortes provisórias. Quando se combate com convicção e tenacidade, quando se tem a certeza de um trabalho bem feito, a motivação é coisa que não falta.

Manuel de Lucena:

Mas o MFA na Guiné, ao nível dos quadros, aparentava estar bem organizado, tinha um número muito significativo de adesões. Qual era a sua percepção?

General Bettencourt Rodrigues:

Não tive conhecimento disso- Que as condições eram terríveis, não contesto. Agora dizer que a tropa estava desmoralizada, de maneira nenhuma! 

Em Angola podia cumprir-se uma comissão alternando sítios fáceis com difíceis. Na Guiné não; vivia-se num sobressalto permanente. Por isso é que na Guiné as comissões duravam 21 meses e em Angola 24. Só quando os strelas entraram em cena é que as comissões passaram a 24 meses. O general Spínola deixou ficar os que lá estavam e aumentou o contingente com tropas frescas.

Manuel de Lucena:


O 25 de Abril foi então uma surpresa para si?

General Bettencourt Rodrigues:

Tanto foi que me assaltaram o gabinete! (**) Embora quase tivesse assistido ao golpe das Caldas, quando vim a Lisboa em Março de 1974, não dei por nada. Quando a Revolução estalou, estava perfeitamente inocente.

Luís Salgado de Matos:

O sr. general tinha confiança na tropa das informações? Na Marinha, onde fiz o meu serviço militar, corria que o Exército, na Guiné, estava infiltrado pelo PAIGC de alto a baixo.

General Bettencourt Rodrigues:

Em geral tinha. Nas Informações trabalhava-se em estreita colaboração com a DGS, reconhecidamente competente nesse campo. O PAIGC, de resto, não tinha técnica para entrar um jogo desses.

Diz-se que um dos efeitos da contra-subversão é a lassidão. Mas a lassidão também os afectava a eles. O PAIGC não estava menos exausto que nós.

Manuel de Lucena:

De qualquer forma, de todos os MFA's, não restam dúvidas de que o MFA da Guiné era o melhor estruturado. Basta atentar nos nomes proeminentes do 25 de Abril que saíram da Guiné. Se eles fossem fracos, o sr. general, no dia 25, ter-se-ia rido na cara deles e dado voz de prisão. Depois, o evoluir dos acontecimentos logo após o 25 Abril veio a demonstrar que na Guiné a vontade de regresso à Metrópole se sobrepunha praticamente a tudo.

General Bettencourt Rodrigues:

Olhe, como dizem os brasileiros, quando um general passa à reserva vira historiador. Foi o que sucedeu comigo. Reformado aos 55 anos, dediquei-me ao estudo. Pesquisei, li, meditei, E sabe a que conclusão cheguei? 
Que o país nunca teve um problema de defesa nacional em África. A tropa podia estar farta, mas obedecia. Faz parte da nossa natureza. A esse respeito nunca tive dificuldade - fui sempre obedecido. 

Raramente tive de usar de expedientes punitivos; escolhi sempre a via do exemplo: quando era preciso suportar dificuldades, eu fazia questão em suportá-las.

Quando estive em Lisboa em Março de 1974 - vim cá buscar 150 contos -, achei isto uma coisa horrorosa. Tinha havido a remodelação ministerial, a última do professor Marcelo. Senti um mal-estar generalizado, uma atmosfera pesada. Felizmente, o episódio da «brigada do reumático» apanhou-me já a caminho da Guiné.

Manuel de Lucena:

Como foi a reacção ao golpe das Caldas na Guiné?

General Bettencourt Rodrigues:

Irrelevante. O Ultramar ficava muito longe.

Luís Salgado de Matos:

O facto do general Spínola ter saído após Guileje foi entendido como uma derrota? Não afectou as pessoas que lá estavam?

General Bettencourt Rodrigues:

Note: o general Spínola esteve lá oito anos, fora nomeado no tempo do do Salazar. Eu até dizia: o Spínola não deve sair da Guiné senão por limite de idade ou de caixão. E, caramba, oito anos na Guiné é de morrer! 

A partir de determinada altura, admito que as coisas terão deixado de lhe correr de feição, nomeadamente porque o Governo não lhe dava todo o dinheiro que pretendia para a sua política de aliciamento das populações.

Apesar de cada um ter a sua maneira de comandar, eu não enjeitei a sua política de melhoria e desenvolvimento das populações autóctones. Mas com uma diferença: eles não me metiam a mão no bolso!  
Quer dizer:  não lhes satisfazia todos os pedidos. 

Recordo-me de um dia ter ido a uma  tabanca [sanzala, no original ]  e de um grupo de mulheres me ter pedido rádios. Vejam bem: rádios para falar com os maridos quando estes iam a Bissau! 

Não fui para a Guiné para agradar a toda a gente. Fui lá para cumprir o que devia ser cumprido.

Manuel de Lucena:

Na conversa que teve com o professor Marcelo, antes de ir para a Guiné, não ficou com a sensação que a saída do general Spínola lhe causava a ele, Marcelo, um problema bicudo?

Luís Salgado de Matos:

E a isso eu acrescento: não implicava a admissão da derrota de Spínola na Guiné?

General Bettencourt Rodrigues:

Leiam o Depoimento do professor Marcelo Caetano. Ele narra a nomeação a reunião com os altos comandos.

Manuel de Lucena:

E quando é nomeado para a Guiné tem outra entrevista com o professor Marcelo ...

General Bethencourt Rodrigues:

Naturalmente. No entanto, o pretexto dessa conversa até foi outro assunto, designadamente, a negociação de um contrato publicitário entre a RTP e a Movierecord - eu nessa altura em administrador delegado da RTP. 

Só depois é que o Presidente do Conselho me assediou para a Guiné, onde a situação se deteriorara nos últimos tempos.

Luís Salgado de Matos:

Mas porque é que saltaram a escala hierárquica e o escolheram a si? Não foi pela aura vitoriosa que trazia do Leste de Angola?

General Bettencourt Rodrigues:

Sim, pode aceitar-se essa leitura.

Manuel de Lucena:

Mas o sr. general Bethencourt e o sr. general Spínola são comandantes de estilos e escolas diferentes, não é assim?

General Bettencourt Rodrigues:

O mais possível.

Manuel de Lucena:

De resto, a «terceiro-mundialização» que o Exército português conheceu durante o PREC - e que se traduzia em ordens por despacho, ultrapassagem das hierarquias, etc. – não procedeu da organização do general Spínola na Guiné?

General Bettencourt Rodrigues:

Mas note que, ao contrário do que muita gente pensa, o general Spínola não era assim tão popular na Guiné.

Manuel de Lucena:

Quando fui subordinado do major Salles Golias, que servira sob as ordens do general Spínola na Guiné, e depois se tornou seu inimigo figadal,  recordo-me de ele ter dito que era capaz de tudo para evitar que o general Spínola, já depois do 25 de Abril, voltasse a pôr os pés na Guiné. O major Golias estava ciente que o general Spínola deixara uma multidão de indefectíveis, tanto cá como na Guiné.


General Bettencourt Rodrigues:

Mas esses fiéis - o Monge, o Bruno, o Fabião, etc. - já haviam todos regressado quando fui para a Guiné. 

O sr. general Spínola, lamento dizê-lo, era muito faccioso. Para ele, quem não tivesse andado no Colégio Militar ou não fosse de Cavalaria era menos que zero.

Texto fixado por Pedro Aires Oliveira, a partir de notas suas e de Fátima Patriarca.

 (Revisão / fixação de texto, parênteses retos,  negritos e itálicos para efeitos de publicação neste blogue: LG)
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Notas do editor:

(*) Útimo poste da série > 26 de fevereiro de 2024 > Guiné 6/74 - P25217: A 23ª hora: Memórias do consulado do Gen Bettencourt Rodrigues, Governador e Com-chefe do CTIG (21 de setembro de 1973-26 de abril de 1974) - Parte V: Angola 'versus' Guiné

(**) Vd. postes  de 

4 de maio de 2014 > Guiné 63/74 - P13096: (Ex)citações (229): O MFA na Guiné-Bissau: comentário do ten cor ref Jorge Sales Golias sobre os acontecimentos de 26 de abril de 1974, em Bissau: o gen Bethencourt Rodrigues e os oficiais que com ele se solidarizaram foram tratados com deferência e cordialidade (Carlos Pinheiro / Bento Soares)

4 de maio de 2014 > Guiné 63/74 - P13095: (Ex)citações (228): O golpe de 26 de abril de 1974, o MFA, o Com-Chefe, gen Bethencourt Rodrigues, e o comandante interino do COMBIS, cor inf António Vaz Antunes (Luís Gonçalves Vaz, que tinha 13 anos, e vivia em Bissau, sendo filho do cor cav CEM Henrique Gonçalves Vaz, último chefe do Estado Maior do CTIG)

1 de maio de 2014 > Guiné 63/74 - P13078: O golpe militar de 26 de abril de 1974 no TO da Guiné: memorando dos acontecimentos, pelo cor inf António Vaz Antunes (1923-1998) (Fernando Vaz Antunes / Luís Gonçalves Vaz): Parte I

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

Guiné 6/74 - P25217: A 23ª hora: Memórias do consulado do Gen Bettencourt Rodrigues, Governador e Com-chefe do CTIG (21 de setembro de 1973-26 de abril de 1974) - Parte V: Angola 'versus' Guiné


Gen Bettencourt Rodrigues (Funchal, 1918 - Lisboa, 2011)


1. Há documentos que devem merecer a nossa atenção e ser divulgados neste blogue de antigos combatentes da Guiné... É o caso do depoimento do gen Bettencourt Rodrigues (Funchal, 1918 - Lisboa, 2011), o último governador e com-chefe da Guiné, antes do 25 de Abril, prestado em 1997, no âmbito dos Estudos Gerais da Arrábida. 

O sítio original na Net foi descontinuado. Só há pouco tempo o conseguimos recuperar através do Arquivo.pt.  Devido à sua entensão,  será reproduzido,  com negritos nossos (e itálicos), em duas parte (com a devida vénia, ao ICS - Instituto de Ciências Sociais, da Universidade de Lisboa). 

A primeira parte é dedicada a Angola, onde o general Bettencourt Rodrigues foi o "herói da região militar leste" (1971-1973). A segunda, à Guiné.

Os entrevistadores, já falecidos, Manuel Lucena, cientista político (1938-2015)  e Luís Salgado de Matos, sociólogo (1946-2021), foram dois brilhantes investigadores do ICS - Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

Este documento também está disponível no Arquivo de História Social do ICS. Faz parte do espólio de Manuel Lucena.

Estudos Gerais da Arrábida > 
A DESCOLONIZAÇÃO PORTUGUESA

Painel dedicado à Guiné (29 de Julho de 1997) 


Manuel de Lucena

Antes da eclosão da guerra Angola - e baseando-me no depoimento que concedeu a José Freire Antunes  (2) - sei que estagiou em unidades norte-americanas e esteve integrado na Divisão SHAPE. Quer falar-nos um pouco dessa experiência? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Em 1952, depois de ter feito o curso de Estado Maior no Instituto de Altos Estudos Militares, o então Chefe de Estado Maior, general Barros Rodrigues, destacou-me para tirar o curso de Comando e de Estado Maior nos EUA (Kansas). Seguidamente, estagiei na 1ª Divisão de Infantaria norte-americana instalada no campo de Graffenworhr, na Alemanha Ocidental. 

Passado algum tempo, constituiu-se a Divisão SHAPE, que actuou em numerosos exercícios e manobras, dentro e fora do país, Nessa unidade, fui adjunto da 3* Repartição do Quartel General durante o período de manobras de 1953 e anos seguintes. 

Quando regressei a Portugal, estive durante algum tempo colocado em Santa Margarida, onde se começaram a aplicar os modelos e técnicas americanas ao Exército português: foi em Santa Margarida que nasceu o moderno Exército portuguesa. 

Foi talvez em 1958 que começámos a ter a percepção de que algo iria acontecer em África, fundamentalmente devido ao exemplo da guerra da Argélia e às primeiras independências na África negra. 

Por essa  altura tomaram-se certas providências tendo em vista a adaptação do Exército ao tipo de inimigo que poderia ter de vir a enfrentar. 

Enviaram-se alguns oficiais para a Argélia (Hernes de Oliveira, Almiro Canelhas, Franco Pinheiro, entre outros), a fim de se familiarizarem com os métodos de luta anti-guerrilha; mudaram-se os planos de instrução; no Instituto de Altos Estudos Militares, na Academia Militar e nas Escolas Práticas começou leccionar-se a teoria da «guerra subversiva»; em Lamego, foi criado o Centro de Instrução de Operações Especiais, especialmente vocacionado para a luta antissubversiva 

Em 1960 - o ano da independência do Congo belga -, o coronel Almeida Fernandes, então ministro do Exército, mandou uma missão do curso de Estado-Maior a Angola. Fiz parte dessa missão - era então professor no curso Estado Maior - tendo levado comigo os alunos da parte complementar do curso, Percorremos toda a fronteira Norte de Angola em duas station wagons sem que tivéssemos dado conta de algo de anormal. Angola parecia estar perfeitamente pacificada. 

Quando a grande bronca rebenta, - os massacres da UPA de 14 de Março -, eu estava lá em missão, juntamente com os generais Beleza Ferraz e Câmara, respectivamente CEMGFA e CEME. Em Buco-Zau (Cabinda), onde nos encontrávamos, chamaram-nos de urgência para a Luanda. Depois daqueles dois responsáveis terem regressado a Lisboa, na companhia do ministro do Ultramar, Vasco Lopes Alves, ainda lá fiquei uns dias. 

Manuel de Lucena: 

Qual era o propósito dessa última missão? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Tratava-se de uma simples missão de rotina, tanto quanto me recordo. Simplesmente, calhou estarmos lá aquando da eclosão da guerrilha. Depois dessa ocasião, voltei repetidas vezes a Angola, uma delas com o então major Pedro Cardoso, adjunto do Secretário-Geral da Defesa Nacional, por ocasião do cerco a Carmona. 

Em Novembro de 1961 teve lugar um acontecimento dramático: o desastre do Chitado, onde pereceu o general Silva Freire, então comandante da região militar de Angola. Pouco tempo depois, o general Holbeche Fino, designado para suceder a Silva Freire, telefona-me dizendo que gostaria de me levar para Angola como seu chefe de gabinete. 

À minha maneira, respondi-lhe que tinha dois patrões; o general Gomes de Araújo e o general Câmara Pina; se ele se entendesse com eles, muito bem, iria para Angola, Comigo foi sempre assim: basta apresentarem-me a guia de marcha e eu vou para qualquer lado. 

Luís Salgado de Matos: 

Quando em Março de 1961 rebenta a «bernarda» em Angola, o dr. Salazar não quis falar com as pessoas que lá estavam?

 General Bettencourt Rodrigues: 

Não sei. Pela minha parte, só falei com o Costa Gomes e o Almeida Fernandes. 

Luís Salgado de Matos: 

Não é no regresso daquela visita que os generais Beleza Ferraz e Câmara Pina classificam os incidentes em Angola como um simples caso de polícia e depois são muito criticados? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Sim, admitia-se que o general Beleza Ferraz talvez não tivesse medido bem a gravidade da situação; e daí essas declarações menos felizes. 

Luís Salgado de Matos: 

Ainda em relação a esse ano de 1961, como viu o golpe do general Botelho Moniz? 

General Bettencourt Rodrigues: 

O general Botelho Moniz era um homem muito complicado, muito fechado sobre si mesmo. Quem não segue as regras no Exército, acaba sempre por «dar gato»

Ainda hoje não sei bem o que foi a «Abrilada». Que eles queriam derrubar o dr. Salazar e o almirante Américo Tomás é um facto - e o Craveiro Lopes até já tinha a mala feita para se instalar em Belém. Agora o que sucederia depois do golpe, isso permaneceu sempre um mistério para mim. 

Manuel de Lucena: 

Como é que o sr. general sentiu o ambiente das Forças Armadas em Angola, em 1961? Nos escalões que contavam, é evidente. 

General Bettencourt Rodrigues: 

Apesar de uma certa surpresa perante a proporção que as coisas assumiram em Março de 1961, já havia um certo planeamento por parte dos responsáveis militares. O general Silva Freire, um estratega brilhante, tinha alinhavado algumas ideias para enfrentar um possível foco de subversão. 

Infelizmente, no desastre do Chitado faleceram também dois chefes de Repartição do Quartel General. Escaparam, valha-nos isso, o hoje coronel Moreira Rebelo, da 1ª Repartição, e o hoje general Salazar Braga, da 2ª Repartição. 

Em finais de 1961 tínhamos para resolver: a reconstituição Quartel General, as comunicações, a logística e a montagem do sistema de quadrícula. Ou seja, praticamente o essencial. 

O sistema de quadrícula, de inspiração francesa, surgiu-nos como o mais adequado, até porque os massacres tinham eclodido em regiões onde não existiam guarnições militares, deixando os fazendeiros num grande isolamento. 

Luís Salgado de Matos: 

O general Silva Freire era um oficial da escola francesa? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Sim, mas era sem dúvida o nosso melhor general, um dos mais brilhantes estrategas da sua geração. Ele teve a inteligência de perceber que era através da quadrícula que poderíamos contactar com as populações, trazê-las para o nosso lado. 

Repare: a guerra dita subversiva é um conflito assimétrico; uma disputa entre dois adversários desiguais em termos de organização, recursos e implantação no terreno. 

O sistema da quadrícula adaptou-sese bem às características da guerra subversiva. Era a quadrícula que integrava o médico que fornecia os cuidados de saúde básicos, o cabo que dava a instrução primária aos indígenas, o soldado que conhecia bem os musseques, a sanzala, enfim, a tropa que ia fazendo o  «trabalhinho». 

Quando se queria bater com força, então chamavam-se as forças de intervenção. Foram ambas indispensáveis e complementares uma da outra. 

Luís Salgado de Matos: 

Diz-se que a quadrícula deixou de combater em 1965. 

General Bettencourt Rodrigues: 

Não tenho essa ideia. Sinceramente. Quando voltei a Angola em 1971 (a minha missão com o general Holbeche Fino terminou em 1964), para chefiar a Zona Militar Leste, combatia-se com determinação. Tanto assim que ainda nesse ano voltou a ser possível circular à vontade nessa região.

 Manuel de Lucena: 

Entre 1961 e 1964, a ideia era cooperar e pacificar, por um lado, e bater quando necessário, por outro? 

General Bettencourt Rodrigues: 

A ideia do apaziguamento era primordial. Era a razão de ser da nossa guerra. Nunca se perseguiu uma estratégia de aniquilamento do inimigo. O nosso lema era «a conquista pelas mentes». 

Luís Salgado de Matos: 

Voltando um pouco atrás. O general Beleza Ferraz tinha ou não razão quando dizia que a situação em Angola se pacificava num ápice? Porque em 1962 as coisas estavam aparentemente controladas... 

General Bettencourt Rodrigues: 

Não é tanto assim. Aquela gente era determinada, batia-se bem, tinha armamento, apoios internacionais. 

Manuel de Lucena: 

A guerrilha era então vista como um inimigo a longo prazo?

 General Bettencourt Rodrigues: 

Era impossível liquidá-la de uma só vez. Repare: qual é a finalidade da guerra subversiva? Substituir uma autoridade por outra, naquele caso, portugueses por angolanos. 

Nesse aspecto, a subversão falhou: foi o 25 de Abril que nos derrubou. 

Como a finalidade era aquela, não podia haver soluções de compromisso. Como é que se faz um cessar-fogo no âmbito de uma guerra subversiva? Nunca ninguém mo soube explicar até hoje. 

Utilizando uma imagem conhecida: uma mulher está grávida ou não; não pode estar apenas um bocadinho grávida…

Manuel de Lucena: 

O que o sr. general pretende dizer é que na guerra subversiva o compromisso é sempre o prelúdio da derrota de um dos lados. É isso? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Eu vou mais longe: qualquer compromisso equivale sempre a uma derrota incondicional

À guerrilha nunca interessam partilhas territoriais, soluções intermédias. É a vitória total ou nada. 

Manuel de Lucena: 

E em relação ao compromisso, quando é que se percebe que um dos lados se está a precipitar no abismo? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Veja esta hipótese: o general Spínola chegava a um entendimento com o Amílcar Cabral e conseguia chamá-lo para o Governo, oferecendo-lhe o cargo de secretário-geral ou coisa que o valha. Neste caso, quem vencia era o general Spínola porque o Governo, a autoridade, mantinha-se portuguesa. 

Luís Salgado de Matos: 

A esse respeito tenho uma espécie de teoria sentimental sobre a descolonização portuguesa. Ganhámos a guerra militarmente - com a possível excepção Guiné - mas o pais decidiu que se retirava, que não valia a pena continuar em África. 

Manuel de Lucena: 

Depois do trabalho com o general Holbeche Fino, entre 1961 e 1964, e até voltar a Angola, por onde andou o sr. general? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Estive três anos em Londres como adido militar e depois fui ministro do Exército, já com o professor Marcelo Caetano. Em 1971 fui então nomeado Comandante da Zona Militar Leste.

 Manuel de Lucena: 

Como surgiu essa sua última nomeação? 

General Bettencourt Rodrigues: Creio que foi o general Costa Gomes, meu grande amigo, que me propôs. 

Luís Salgado de Matos: 

Com quem tinha grandes afinidades tácticas, segundo julgo saber… 

General Bettencourt Rodrigues: 

Direi que partilhávamos de uma certa unidade de vistas. Em 1970-71 a situação em Angola apresentava sinais de deterioração. A subversão alastrou do Norte até ao Leste, à Lunda, ao Mochico e, o que era verdadeiramente preocupante, começara a ameaçar Nova Lisboa, o centro nevrálgico de Angola. 

Nessa altura, o general Costa Gomes decidiu remodelar o dispositivo e criar a Zona Militar Leste, que abrangia os distritos do Bié, Lunda, Mochico e Cuando Cubango. Essa sua iniciativa coincidiu com uma viagem do general Sá Viana Rebelo, ministro da Defesa a Angola. 

Em conversa, o general Costa Gomes sugeriu o meu nome para a chefia do novo comando, tendo obtido a anuência do ministro. 

Manuel de Lucena: 

Entretanto, falou também com o professor Marcelo Caetano? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Exactamente. De resto, eu sempre estive muito à vontade com o professor Marcelo. Tinha sido seu ministro, conhecíamo-nos bem... Ele até dizia que eu usava uma linguagem muito pitoresca... 

Luís Salgado de Matos: 

O professor Marcelo alguma vez se confessou consigo sobre os contados secretos com o PAIGC? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Não acredite nisso... Eu não duvido que o Villas-Boas tenha ido a Londres, mas foi só ver o que é que os tipos queriam, mais nada. Havia um toque do Foreign Office e não se podia dizer que não. 

Manuel de Lucena: 

Quando falou com o professor Marcelo antes de ir para o Leste,  havia mais alguma coisa na manga, ou era apenas uma conversa normal entre o Presidente do Conselho e um antigo ministro que ia desempenhar uma importante missão militar? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Prefiro essa segunda hipótese. Para ser sincero, a conversa foi até relativamente inócua. Discutimos a delicadeza da situação militar, particularmente dramática à volta de Nova Lisboa; falámos das acções que se poderiam desenvolver junto das populações. 

Este último desiderato era, não me canso de sublinhá-lo, muito importante para nós. Nisso, o dr. Salazar e o prof. Marcelo não eram muito diferentes. 

Nas três frentes em que estivemos envolvidos, não arrasámos nada, não recorremos a bombardeamentos maciços, não seguimos uma política de terra queimada

É claro que, numa situação de conflito, há sempre uns tipos desequilibrados que podem praticar abusos. 

Luís Salgado de Matos: 

Na Argélia o uso da tortura em uma directiva explícita do Estado-Maior. O comando de pára-quedistas de Argel estava especificamente treinado para aterrorizar. 

Manuel de Lucena: 

Bem, a esse respeito há até quem fale de uma excessiva brandura por parte da tropa portuguesa. Quer comentar,  sr. general? 

General Bettencourt Rodrigues: 

É claro que quando era preciso bater, nós batíamos. No entanto, é sempre muito difícil dosear essas coisas... 

Mas fomos sempre formados para não cometer excessos. 

Manuel de Lucena: 

Sobre a sua acção no Leste, pode dizer-nos alguma coisa sobre os seus acordos com Jonas Savimbi? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Relativamente a esse assunto, entendo que não devo falar, uma vez que a pessoa em questão ainda está viva e politicamente activa. 

No entanto, esclareço que após o 25 de Abril nunca tive nada a ver nem com a UNITA, nem com o MPLA. 

Manuel de Lucena: 

O brigadeiro Passos Ramos, que nos prestou dois depoimentos em 1995 e 1996, levantou um pouco a ponta do véu sobre esses acordos. Disse-nos, nomeadamente, que houve um entendimento entre o Exército português e a UNITA com vista à formação de um santuário, que, naturalmente, funcionava contra o MPLA. 

Disse-nos também que a UNITA não era um movimento fantoche: estava bem implantada, cobrava impostos aos madeireiros, controlava áreas muito vastas - em suma, dava-nos trabalho. 

General Bettencourt Rodrigues: 

A única coisa que posso dizer é que o general Costa Gomes estava dentro desse entendimento, tal como o professor Marcelo Caetano. O que não equivale a atribuir-lhes a paternidade da ideia. 

Luís Salgado de Matos: 

O fim do 'modus vivendi' com Savimbi ficou a dever-se à inabilidade do seu sucessor? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Em certa medida. A guerra subversiva é uma guerra - como direi? - suja, pouco ortodoxa. 

Se sigo com demasiada intransigência os meus princípios - e essa foi a opção meu sucessor - não estou a jogar pelas regras do jogo. 

Luís Salgado de Matos: 

Mas essa inflexão face à UNITA terá tido o assentimento do ministro, não?

 General Bettencourt Rodrigues: 

Não sei. Mas note que o Leste de Angola é um sítio remoto. Naquele conflito gozávamos de uma grande margem de autonomia. 

Manuel de Lucena: 

Quando estive exilado, falei uma vez com um homem do MPLA, um mestiço, Castro Lopo, que se confessou muito impressionado com as dificuldades que o movimento então experimentava na Frente Leste. Dificuldades sobretudo ao nível dos abastecimentos - vinha tudo de muito longe, da Zâmbia, por exemplo, forçando-os a longas caminhadas…

 General Bettencourt Rodrigues: 

Precisamente. Por outro lado, eram essas as vantagens dos terroristas na Guiné. Mas o Governo Zâmbia não regateava apoios à subversão. À semelhança, aliás, de alguns lobbys norte-americanos, como o American Comitte for Africa

Quem tocava no Caminho de Ferro de Benguela era a UNITA, o que não convinha nada à Zâmbia, um país de hinterland com acesso ao mar bloqueado. Isso dava-nos um grande trunfo sobre o Kaunda. É por isso que chamei à guerra subversiva uma guerra suja: cada um dos lados combatia com manhas e artimanhas. 

Manuel de Lucena: 

Nesse sentido, o acordo com a UNITA revestía-se de um carácter eminentemente prático; quanto muito implicaria uma integração de quadros dirigentes daquele movimento na administração portuguesa. É isso? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Sim, é mais ou menos isso. 

Luís Salgado de Matos: 

Passando agora para a Guiné (...)

(Continua em próximo poste)

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Notas dos entrevistadores:

1 José Manuel Bettencourt Rodrigues (n. 1918): Oficial de Infantaria. Ministro do Exército (1968-70). Comandante da Zona Militar Leste de Angola (1971-73). Sucedeu a Spínola como governador da Guiné (1973-74). 

(2) José Freire Antunes, A Guerra de África, 1° vo1. Lisboa; Círculo de Leitores, 1996. 

(Revisão / fixação de texto, negritos, itálicos, para efeitos de publicação neste blogue: LG)

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Nota do editor: