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segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Guiné 63/74 – P5379: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (22): Operação “Ananases”


1. O nosso Camarada José Eduardo Reis de Oliveira (JERO), foi Fur Mil da CCAÇ 675 (Binta, 1964/66), enviou-nos a sua 22ª história, com data de 29 de Novembro de 2009:

Operação “Ananases”

O registo desta operação é dada”à estampa” quarenta e tal anos depois de ter acontecido...

Oficialmente nunca aconteceu e julgamos até poder afirmar que pouca gente da C.Caç.675 se lembrará dela...

Aconteceu no mês de Outubro de 1965 - o Capitão Tomé Pinto já não estava na Guiné -em data que não nos é possível confirmar com exactidão até... porque... foi uma «operação secreta»...

Antes de avançarmos na estória é preciso explicar o contexto em que a mesma aconteceu, fazendo notar um pormenor que não é de somenos.

A Companhia de Caçadores 675 foi durante a sua estadia na Guiné uma «Companhia Independente».Numa primeira fase pertenceu ao Batalhão de Cavalaria 490 (Ten. Coronel Fernando Cavaleiro) – de Junho de 64 a Abril 65 – e na segunda fase - a partir de Maio de 65 até ao final da comissão – esteve na dependência operacional do Batalhão de Artilharia 733 (Ten. Coronel Glória Alves).

Quer se queira quer não uma Companhia Independente é (quase) sempre uma «filha bastarda» do Batalhão, com direito a embates – leia-se "chatices" de diversos graus entre chefias - que tiveram no caso da nossa Companhia diversos tipo de encaixes...

Com o Batalhão 490 alguns «desencontros» iniciais esbateram-se e a Companhia 675 passou até a ser, a partir de determinada altura, a “filha dilecta” do Comando sedeado em Farim.

Com o Batalhão 733 as relações nunca foram boas nem más... antes pelo contrário!

Na tal segunda fase – a partir de Maio 65 – a «675» provocou sempre “azias” ao “733”, a quem só a citação do nome do Capitão Tomé Pinto provocava alergias do tipo «DC» (*).

Posto isto... estamos agora em condições de contar os quês e... porquês da ultra-secreta “Operação Ananases». Tem a palavra o cérebro da operação, Belmiro Tavares de seu nome, ao tempo Alferes Milº. de Infantaria da CCaç. 675:

«...O nosso Capitão já nos tinha deixado. Um dia o Cabo Cifra (1º.Cabo Operador Cripto nº. 2542, José Manuel Moura) deu-me conhecimento que tinha chegado uma mensagem de Farim. A CArt. 731 avisava que no dia seguinte iria patrulhar a zona de Canicó.

Fiquei abismado...

A CArt. 731 mal patrulhava a sua zona e propunha-se «invadir» a nossa!? Que se passaria naquelas cabeças!?

Aguarda. – Disse ao Moura.»


Procurei o nosso saudoso e malogrado Guia Malan Sissé e perguntei-lhe: Que haverá em Canicó que atraia a tropa de Farim?

A resposta foi imediata:

O régulo (Mamadu Baldé, Alferes de 2ª. Linha) vive em Farim e tem em Canicó uma plantação de ananases.

Está na época de os colher.

Ordenei ao Cifra:- Transmite que a zona de Canicó está armadilhada!

No dia seguinte, pela manhã, o 3º. Grupo de Combate, fez uma proveitosa batida... aos ananases de Canicó.

Trouxemos um Unimog bem carregado de ananases... afora os que comemos... in loco!

A tropa de Binta não se deixa enganar».

Ser “comido” pela malta do Batalhão 733... é que era bom!


Guia Malan Sissé. Binta, Setembro de 1965.
Fotografia de Belmiro Tavares.


Perder com eles... nem a feijões... quanto mais a ananases!»

Aconteceu... em Outubro de 1965.

O dia exacto... não ficou... mas que o sabor daqueles ananases era especial... era!

No regresso a Binta... um militar, de que já não recordamos o nome, dizia para o Alferes Tavares:

«Oh meu alferes acabei de encontrar um ananás que parece que tem um código de barras!

Um Código de Barras!? O que é que diz?

733... já foste!

É... pá... come lá o teu ananás e... não inventes. Isto é uma «operação que nunca aconteceu»!

Uma pausa e o Alferes Tavares, depois de comer mais um pouco de ananás, disse entre dentes:

«Só faltava o Furriel Oliveira daqui a alguns uns anos pôr esta “estória” nalgum livro de memórias da Guiné. E quando começar a mania dos blogues está-se mesmo a ver que ele vai entrar nessa…»

-O meu Alferes disse alguma coisa?

-Não pá…estava só a falar com os meus botões!

Premonitório este Alfero, digo eu.

(*) - DC = Dor de Corno.

Um abraço,
JERO
Fur Mil Enf da CCAÇ 675

Fotos: José Eduardo Oliveira (2009). Direitos reservados.
___________
Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:


domingo, 15 de novembro de 2009

Guiné 63/74 – P5280: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (21): Uma visita ao Oio...


1. O nosso Camarada José Eduardo Reis de Oliveira (JERO), foi Fur Mil da CCAÇ 675 (Binta, 1964/66), enviou-nos a sua 21ª história, com data de 11 de Novembro de 2009:

Uma visita ao Oio...
30 de Agosto de 1964

Vinte e cinco dias depois do dia fatídico em que foi ferido com gravidade, voltou ao seio da «675» o nosso Comandante de Companhia, sendo recebido por todos, desde o oficial até ao soldado mais humilde, com a mais sincera alegria.

Numa manifestação espontânea de consideração e estima, isenta no entanto daquela rigidez militar ou medo pelos galões, que deve ser para o Chefe a melhor prova de respeito e disciplina, todos o rodeavam dando-lhe mais uma vez a certeza de ter em cada subordinado um colaborador leal e um amigo que o seguem com dedicação e confiança totais.

Mais magro, pálido, com sinais evidentes do mau bocado porque acabava de passar e ainda com o estilhaço no ombro, o nosso Capitão era acompanhado pelo Sr. Comandante de Batalhão (fez a viagem Farim–Binta em barco a motor) visitou demoradamente o aquartelamento, correspondendo sorridente a todas as saudações que lhe eram dirigidas, tendo para todos uma palavra amiga que sensibiliza e que torna intimo o Chefe e o Homem.

Já inteirado sobre a actividade da Companhia durante a sua forçada ausência, não perdeu tempo em reiniciar uma actividade caracterizada por uma ideia permanentemente ofensiva, e poucas horas depois da sua chegada, partia, comandando a companhia para uma visita ao já lendário OIO, numa operação de envergadura em que colaboravam mais duas companhias.

O seu estado de saúde, ainda precário, não o impediu de estar presente á frente dos seus homens, nesta operação que se adivinhava difícil, pedindo alta ao hospital numa altura em que era recomendável passar mais alguns dias de convalescença.

Pouco depois da meia noite, três grupos de combate estavam prontos a sair.

Ordenadamente, cada secção embarca numa LDM que passará a companhia para a margem contrária.

O transbordo decorreu na melhor ordem e com o mínimo de barulho possível, seguindo a LDM ao longo de Cachéu logo que terminou o desembarque para despistar o inimigo, caso este se tenha apercebido do movimento desusado no rio.

A «fama» dos terroristas da OIO e o desconhecimento da zona onde se ia actuar – sem guias conhecedores da região – fazia com que desta vez uma indisfarçável expectativa, que criava um «aperto mitral», nos levasse a iniciar a marcha nocturna com redobrados cuidados.

Golpe de Mão a tabancas do Oio: Tambato Mandinga, Gebacunda e Fátima in PORTUGAL. Estado Maior do Exército. CD-ROM nº série 798.

Seguiu-se através de um caminho, que sobrelevava a bolanha inundada, numa longa fila indiana que progredia lentamente.

Devido á completa escuridão utilizava-se uma corda para ligação.

Percorridos uns 3 kms penetrou-se na selva muito densa começando aí as dificuldades para atingir o objectivo – a tabanca de Gebacunda habitada pelo inimigo – pois a bolanha indicada na carta parecia prolongar-se mais para o interior.

As dificuldades avolumavam-se com as características da floresta cerradíssima e começamos ás voltas sem saber onde nos encontrávamos.

Amanheceu, e embora estivéssemos atrasados, o aparecimento da luz do dia vem facilitar um pouco a orientação embora se tornasse quase impossível continuar a missão com a vantagem dos factores surpresa e silêncio.

Avistámos, dentro em pouco, gente a trabalhar na bolanha e, como já prevíamos, fomos detectados por um pequeno grupo que deu o alarme através de uma trompa.

Perseguimos imediatamente esses elementos inimigos até próximo de Tambato Mandinga, inflectindo depois resolutamente para o objectivo que atacámos e incendiámos sem encontrar resistência do inimigo, que se pôs em fuga fazendo apenas um tiro de pistola. Da tabanca o pessoal fugiu antes do ataque, tendo parte seguido em direcção ao rio e outro para SO, pelo que conseguimos fazer só um prisioneiro - um Padre Mandinga.

Comunicado o facto ao navio patrulha, que apoiava a operação, este fez imediatamente fogo na direcção provável da fuga do primeiro grupo referido.

Capim em chamas. Agosto de 1964. Fotografia do autor.

As explosões contínuas das granadas e os grossos rolos de fumo que se elevaram da tabanca em chamas davam um aspecto « dantesco» á zona onde actuávamos, chegando-nos ao nariz um cheiro acre a queimado e a pólvora que nos galvanizava na perseguição do inimigo que, desmentindo a sua fama de «maus», sprintavam velozmente á frente da tropa de Binta que desde aquele momento passavam a não conhecer só de nome.

Perdido o contacto com este grupo, que fugiu para SO, iniciou-se o regresso, avistando-se num pontão frente a Gebacunda um grupo inimigo, de uns 20 indivíduos, que corriam na margem da bolanha provavelmente com o intuito de nos emboscar á saída da mata.

Abrimos fogo imediatamente e arrancámos para o grupo inimigo que, vendo aquela tropa gritando como possessos na sua direcção, fez uma travagem brusca invertendo rapidamente a marcha, a toda a velocidade, para a mata mais próxima, fazendo umas atabalhoadas rajadas de pistola-metralhadora.

Mais uma vez os «valentões» do OIO nos desiludiram e alguns levaram «recordações» de Binta, já que vimos alguns rastos de sangue depois de perdermos o seu contacto na mata muito densa, por onde fugiram.

Reiniciámos o regresso pelo mesmo itinerário depois da missão ter sido dada como terminada pelo PC aéreo.

Os últimos 2km na bolanha foram particularmente penosos, ressentindo-se bastante o nosso Capitão do esforço despendido após um período de inactividade devido ao seu ferimento de 5 de Agosto último.

Com 12 horas de «trabalho» Binta estava de novo à vista e a perspectiva apetecida de um banho, de um almoço e de uma sesta de algumas horas animavam a moral das nossas tropas.

A LDM passou-nos para a outra margem do Cacheu e, minutos depois, contávamos aos que tinham ficado como é que os «turras do OIO» tinham fugido a sete pés frente à malta
da CCaç 675.

E depois do banho falou-se mais no almoço que se atrasou do que no OIO e dos seus mitos.

Na foto Ten. Coronel Fernando Cavaleiro e Capitão Tomé Pinto

Mais uma missão cumprida com honra e proveito para a tropa do Capitão de Binta.

Facto a destacar foi a vinda do Comandante de Batalhão, Ten. Coronel Fernando Cavaleiro, para acompanhar o nosso Capitão, regressado do hospital, protagonizando ambos uma acção temerária numa vinda de Farim a Binta durante a noite.

Com efeito viajar pelo rio Cacheu num barco a motor barulhento e lento, com uma pequena escolta de quatro militares, terá sido verdadeiramente arriscado, para não dizer uma loucura.

O esforço permitiu-lhes chegar antes da tropa partir para a operação, onde intervinham outras forças militares da região.

O exemplo de dois grandes chefes sempre presentes quando era preciso junto dos seus homens.

«Mais do que pela bandeira o soldado bate-se pelos seus Chefes»

Um abraço,
JERO
Fur Mil Enf da CCAÇ 675

Fotos: José Eduardo Oliveira (2009). Direitos reservados.
___________
Nota de M.R.:

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terça-feira, 10 de novembro de 2009

Guiné 63/74 – P5244: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (20): Patrulha a Santancoto - Quando os homens de camuflado choram...


1. O nosso Camarada José Eduardo Reis de Oliveira (JERO), foi Fur Mil da CCAÇ 675 (Binta, 1964/65), enviou-nos a sua 20ª história, com data de 6 de Novembro de 2009:

Patrulha a Santancoto - Quando os homens de camuflado choram...

5 de Agosto de 1964

Amanhecia.

Uma coluna auto deixara o acampamento às 06h00, comandada pelo Alf. Mendonça dirigindo-se para a estrada de Bigene, que iria percorrer até Santancoto, limite do sector onde dois grupos de combate, chefiados pelo nosso comandante de companhia se lhe reuniriam. Até lá, limparia o itinerário de abalizes enquanto os dois grupos de combate que saíram á mesma hora, mas a pé, em direcção á bolanha de S. João, bateriam as matas entre o Rio Cacheu e a estrada em referência, mantendo em relação á coluna uma distância nunca muito superior a 2 km.

Até ao cruzamento para Guidage a coluna seguiu sem dificuldades, já que o itinerário se encontrava desimpedido. Daí para a frente a progressão tornou-se mais lenta, não só porque se entrava em terreno desconhecido mas também pelos obstáculos que foram surgindo. Um pouco acima de Sansancutoto encontrou-se uma ponte destruída passando-se no entanto o obstáculo com uma relativa facilidade, utilizando umas pranchas que se levavam já para o efeito.

Começou-se a bater a estrada mantendo-se assim uma segurança afastada, á frente, enquanto se foram retirando as primeiras abalizes, uma das quais gigantesca.

Antes de Banhima a mata fechadíssima, que ladeava a estrada, era interrompida por uma bolanha por onde o caminho seguia, sobrelevando-a, durante cerca de uns 300 metros.

Era surpreendentemente bonita esta língua de água, ora negra ora esverdeada, que interrompia a floresta e donde emergiam lindíssimas flores aquáticas de cores delicadas.Embora não nos pudéssemos distrair contemplando as belezas que nos cercavam não podíamos evitar um olhar mais demorado para aquela paisagem maravilhosa que só o cinema até então nos tinha revelado.


Um pensamento acudia ao espírito …«que pena haver terroristas»!

Entretanto a secção que seguia à frente, e que se atolou quase até ao pescoço naquela água lodosa, que vista de perto perdia muito da sua beleza, não seria exactamente da mesma opinião já que os seus homens, quando completamente encharcados puseram pé em terreno mais firme, praguejavam contra a Guiné e todas as suas bolanhas mal cheirosas.

Voltámos a passar entre tufos de vegetação frondosa. Dos galhos e lianas que se entrançavam por cima desciam longos fiapos e raizados inverosímeis. A água da bolanha ia dando a espaços um outro matiz á selva que nos rodeava impondo o negro, o amarelo e o castanho. O capim invadia a estrada que seguíamos e dir-se-ia impossível existir outra vida na selva que nos rodeava que não a de aves e répteis que a todo o momento se nos atravessavam no caminho.

Mas nós sabíamos que não era assim e não descurávamos um momento que fosse a segurança.

Parou-se por momentos para entrar em contacto com os grupos que seguiam apeados.

Ouviram-se rebentamentos ao longe e o matraquear de armas automáticas.

Estabelecida a ligação rádio soube-se não serem da nossa companhia os disparos ouvidos.

Houve ordem para avançar até junto de uma nova ponte. Passou-se a mata e entrou-se num terreno mais aberto onde os abalizes começaram a aparecer com mais frequência, indicio seguro que o inimigo não estava longe.

A coluna voltou a parar já que havia de retirar uma série de 6 abalizes que interrompiam uns 50 metros de estrada. Montou-se a segurança ficando a secção do Furriel Gomes para lá das últimas árvores abatidas, começando-se a retirar essas sem o auxílio do Unimog, já que as árvores abatidas sobre o caminho não eram de grande porte.

Foi exactamente esse facto – a não utilização dos guinchos das viaturas – que nos levou a pressentir um pequeno grupo inimigo que, oriundo dos lados de Santancoto, vinha pela estrada. Apesar de termos sido os primeiros a fazer fogo não fomos suficientemente rápidos para surpreendê-los, pois abrigaram-se com as árvores existentes no local, tentando envolver a coluna, e fazendo até alguns tiros contra as viaturas.

O nosso fogo e o «cantar» de uma metralhadora «Breda», instalada num Unimog, calou bem depressa o inimigo que só esporadicamente disparava algum tiro de pistola.Uma canhangulada inimiga passou perto da capota do jipe das transmissões, que ainda chamuscou, facto que atrapalhou um pouco o radiotelegrafista que lançou um S.O.S desesperado para os dois grupos de combate, que correram cerca de 3 kms julgando que estaríamos cercados.

Quando o nosso capitão Tomé Pinto chegou estava tudo completamente calmo e, na verdade, só a excitação momentânea do radiotelegrafista tinha causado uma situação de alarme injustificado.

Percorridos uns 300 metros, e chegando a um local onde a estrada faz uma curva pronunciada para a direita e desce em direcção a Buborim, avistou-se um numeroso grupo de inimigos a cerca de uns 200 metros. Diminuiu-se a distância que nos separa do inimigo e talvez a uns 60 metros da bolanha e da ponte que precede a tabanca foi dada ordem para fazer fogo de morteiro.

Apesar de recomendado ao soldado do morteiro para ter cuidado com as árvores de grande copa que ladeavam a estrada, o seu excesso de zelo e ardor combativo para cumprir rapidamente a ordem, levou-o a disparar a morteirada com tal precipitação que a granada foi rebentar contra um ramo alto de uma árvore do lado esquerdo, crivando de estilhaços o local onde se encontrava o nosso capitão e alguns soldados.

O estoiro foi medonho e por momentos a poeira levantada e o fumo da explosão não deixava ver nada.Logo se pensou no pior e o Alferes Santos e outros militares entre os quais o Cabo Enf. Martins, que se encontravam mais atrás, acorreram ao local para ver se havia feridos.

O chão, alguns metros em redor, encontrava-se completamente crivado de estilhaços. Encostado ao tronco de uma árvore, com a mão no seu ombro esquerdo, o nosso capitão deixou-se escorregar lentamente para o chão. Um jacto de sangue saía em repuxo do local que comprimia com a mão, sem poder evitar um esgar de dor.

Prontamente socorrido e amparado pelo enfermeiro conseguiu levantar-se e depois de estancada a hemorragia e feito um penso provisório, começou a caminhar em direcção á coluna auto, onde lhe poderia ser feito um tratamento mais eficiente pelo Furriel enfermeiro.

No meio da infelicidade do momento houve a sorte de não haver mais vitimas.Embora combalido o nosso Capitão enquanto caminhava tranquilizava os que o acompanhavam e que se sentiam manifestamente impressionados com o acontecimento.

Prevenido o Furriel Enf. Oliveira, este dirigiu-se ao encontro do ferido que ajudou a transportar até ao Unimog onde estava instalada a «Breda» e no qual, depois de deitado numa maca, lhe foram prestados socorros mais completos. Renovado o penso e depois de avaliar a extensão do ferimento e da sua gravidade, pediu-se um helicóptero para a sua evacuação urgente.

O estilhaço tinha penetrado profundamente e poderia ter lesado algum órgão importante.Organizada a coluna, voltaram-se as viaturas já com todo o pessoal montado, iniciando-se o regresso o mais depressa possível pois o estado do nosso capitão inspirava sérios cuidados.

Recusando-se a tomar sedativos, que lhe aliviariam as dores mas que o tornariam inconsciente, continuou a dar ordens que eram transmitidas pelo Furriel Enfermeiro.

Apenas umas centenas de metros tinham sido percorridos quando, no meio de uma mata fechadíssima, o inimigo emboscado atacou.Um tiro de pistola inicial e depois rajadas de pistola-metralhadora.

As viaturas pararam imediatamente saltando os seus ocupantes que, instalando-se com rapidez na berma da estrada, ripostaram ao fogo inimigo. O 2º grupo de combate, que vinha nas ultimas viaturas, suportou a parte mais violenta da emboscada, sentindo algumas dificuldades quando, já com a coluna em andamento, se levantou do local onde se tinha instalado.

Por duas vezes o Alferes Santos, que deve ter sido referenciado pelo inimigo (por ter dado ordens em voz alta) foi particularmente visado, passando uma rajada de pistola-metralhadora bem perto da sua cabeça. De salientar no momento, a calma e sangue frio do nosso Capitão que foi sempre transmitindo ordens, insistindo pelo afastamento da coluna o mais rapidamente possível da zona de morte da emboscada.

Todo o pessoal, apesar de inquieto e um pouco desmoralizado com o estado do nosso comandante de companhia portou-se valentemente saindo da «zona de morte» com decisão e coragem.

Passada a bolanha de Banhima, os grupos de combate passaram a bater as zonas mais fechadas, abrindo caminho para a coluna auto.

Com frequência, soldados abeiravam-se do Unimog onde seguia o nosso Capitão perguntando pelo seu estado, não conseguindo ocultar uma lágrima teimosa, que descia pelos seus rostos sujos de terra e suor. Cerca do meio-dia, quando seguíamos na região de Sansancutoto, surgiu dos lados de Binta o helicóptero pedido para a evacuação do nosso capitão que, já há cerca de duas horas ferido, começava a sentir-se enfraquecido e com dores que os solavancos da viatura tinham aumentado.

Aqueles homens de camuflado, que já tinham vivido e ultrapassado algumas provações bem duras, choravam agora como crianças despedindo-se do seu Capitão.Não menos comovido este deixava correr livremente pelo seu rosto, marcado pelo sofrimento, lágrimas de que um homem não se envergonha.

Todos queriam pegar na maca para o transportar; um despia o casaco camuflado para lhe aconchegar melhor a cabeça na maca; outro dava-lhe o seu concentrado de frutos da ração de combate para comer pelo caminho; outro ainda quase que o obrigava a beber água do seu cantil.

Todos lhe queriam tocar, apertar a mão, desejar-lhe as melhoras para que voltasse depressa.


Será difícil para um mortal comum, cujas emoções fortes nunca passaram para além da discussão com um polícia por causa do estacionamento do carro ou de um momento mais emotivo de um desafio de futebol, avaliar o que se sente num momento destes, quando se vê sofrer um homem, que além de chefe de excepção é um amigo, a quem se quer como a um pai, e pelo qual todos nós daríamos um pedaço da nossa vida, um pouco do nosso sangue.

Lentamente o helicóptero elevou-se no ar e vimos da maca um último adeus do nosso Capitão.

Com as mãos sujas do óleo da arma, da terra e do suor, aqueles homens de camuflado, de máscaras tensas e fatigados, limparam as lágrimas que não tinham conseguido suster e aperraram de novo as G3 prontos a seguir pois Binta ainda estava longe.

E todos desejavam com uma raiva surda que o inimigo se voltasse a manifestar.

Uma hora depois chegávamos ao estacionamento.

Tinha sido bem comprido aquele dia 5 de Agosto de 1964.


Quarenta e alguns anos depois... Memória de orfandade...

Para quem viveu a patrulha de Santancoto de 5 de Agosto de 1964 a imagem dos homens de camuflado a chorar... ficou para toda a vida.

Cada qual à sua maneira viveu e recordará as horas dramáticas de ter o Comandante de Companhia ferido e ser emboscado no meio de uma mata fechadíssima.

Passei a maior parte desses compridos minutos junto do capitão por «dever de ofício». Era o Furriel Enfermeiro.

A esta distância no tempo consigo brincar um pouco com a situação. O meu Capitão não era um doente fácil pois...recusava-se a tomar sedativos que lhe aliviariam as dores... sendo certo que eu, na altura, não lhe conseguia arranjar nem sossego nem tranquilidade...

O barulho era ensurdecedor e o doente continuava (felizmente) a dar ordens e... não parava de comandar.
Refere-se no «Diário da 675» que «... continuou a dar ordens que eram transmitidas pelo Furriel Enfermeiro... insistindo pelo afastamento da coluna o mais rapidamente possível da zona de morte da emboscada...»

«...Com frequência, soldados abeiravam-se do Unimog onde seguia o nosso Capitão perguntando pelo seu estado, não conseguindo ocultar uma lágrima teimosa que descia pelos seus rostos sujos de terra e suor.»

Vinte nove anos depois destes acontecimentos tive a felicidade de estar numa homenagem ao General Tomé Pinto na terra da sua naturalidade.

Se a memória não me falha... em 4 de Abril de 1993 o Cine-teatro de Torre de Moncorvo rebentava pelas costuras.
Eu era um dos oradores inscritos.

Falaram ex-militares de outras Companhias, que tinha servido sob as suas ordens.

Quando subi ao palco para falar em nome da «675» o «Capitão de Binta» sabia que... eu ia falar da Patrulha de Santancoto.

Foi um momento de grande cumplicidade e, no que me diz respeito, de grande emoção. Quando não me deu um enfarte dessa vez...

Quando no final o General Tomé Pinto agradeceu, leu um longo discurso, que previamente tinha preparado, para não correr o risco de esquecer alguém.

Quando chegou à vez da «675» já lá estava escrito tudo que tinha acontecido nos minutos anteriores...

Dava a ideia que tinha feito o discurso de agradecimento naquele mesmo momento!

Também importa recordar que aqueles momentos vividos em 5 de Agosto de 1964, em cima da viatura da «Breda», nos aproximaram para toda a vida...

Era um mau doente mas... um grande Comandante.

Transmontano, com tudo o que isso quer dizer: valente,

determinado... "antes quebrar que torcer"!

Um abraço,
JERO
Fur Mil Enf da CCAÇ 675

Fotos: José Eduardo Oliveira (2009). Direitos reservados.
___________
Nota de M.R.:

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terça-feira, 27 de outubro de 2009

Guiné 63/74 – P5166: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (19): Um dia calha a todos: - O parvo de serviço foi o enfermeiro!


1. O nosso Camarada José Eduardo Reis de Oliveira (JERO), foi Fur Mil da CCAÇ 675 (Binta, 1964/65), enviou-nos a sua 19ª história, com data de 25 de Outubro de 2009:

UM DIA CALHA A TODOS: - O PARVO DE SERVIÇO FOI O ENFERMEIRO!

BINTA, 13 de Setembro de 1964

«No dia 13, domingo, içar da bandeira e uma manhã calma para escrever à família. À tarde, um desafio de futebol para “desenferrujar”os músculos – a semana tinha sido de trabalho duro, mas para dar uns pontapés na bola arranjam-se sempre 22 “artistas” –.

Depois da bola mais umas horas para uma sesta merecida. À noite, quase todo o pessoal se foi deitar cedo pois havia “trabalho” para as primeiras horas da manhã.

Mas houve “alguém” que quis proporcionar um final mais “animado” a esse domingo especial – fazia 4 meses que tínhamos chegado a terras da Guiné – e organizou uma “soirée”, embora um pouco tardia, que nos fez levantar a todos da cama.

Seriam umas 23:00 horas, quando, de várias direcções, o Estacionamento começou a ser flagelado com rajadas de pistola-metralhadora e espingarda.

A reacção das sentinelas foi rápida, principalmente do terceiro e quarto postos, e momentos depois todo o dispositivo de defesa estava organizado, embora houvesse, como é natural, à mistura com a surpresa, alguns momentos de precipitação principalmente dos elementos que se encontravam ainda a pé, escrevendo ou conversando.

Minutos depois”todo o mundo” desfrutava com muito mais à vontade a “sessão extraordinária” que o inimigo nos tinha vindo “dedicar”, possivelmente como represália à nossa acção em Santancoto e ninguém se dignava responder ao fogo inimigo que, passado o rompante inicial, nos ia flagelando com tiros de pistola isolados.

O ”espectáculo” durou até cerca da 1h30, terminando com o incêndio de algumas moranças abandonadas a cerca de 1 km de Binta, que o inimigo houve por bem destruir para assinalar a sua retirada.

Algumas morteiradas bem dirigidas apressaram-lhes o passo e tiraram-lhes a vontade de fazer mais «fogueiras».Reforçam-se os postos de sentinela.

Depois de alguns minutos de conversa e de umas piadas àqueles que, no início do ataque, tinham vistos rajadas “levantar”o pó do chão e inimigos, em cima de árvores, já dentro do estacionamento, toda a gente se foi deitar e recomeçar o sono interrompido.

“Alguém” iria pagar estas horas de sono que tínhamos perdido...

Hoje, dia 14, dois grupos de combate bateram as imediações do quartel encontrando diferentes tipos de invólucros, e localizando as duas principais posições de fogo do inimigo, que se situavam de 300 a 500 metros do estacionamento .

Pelos rastos encontrados avaliou-se o grupo atacante entre 40 a 50 indivíduos, convergindo todos os vestígios de retirada em direcção da estrada de Bigene, que confirma a ideia inicial de que a flagelação de Binta foi como represália à nossa acção na região de Santancoto.

Não se esperava que os “Santancotenses»fossem tão susceptíveis nos seus brios e chega-se à conclusão que eles afinal não sabem bem com quem estão metidos...

É possível que em breve o saibam!!!
Durante o dia souberam-se mais umas histórias pitorescas que se registaram, a quando do início do ataque, salientando-se uma cena movimentada na Sala dos Sargentos.

Naquela sala, onde ainda havia luz e se conversava amenamente, houve uma certa atrapalhação a quando dos primeiros tiros de que resultaram um “petromax” partido, uma passagem apressada por baixo de uma mesa e uma porta arrombada a caminho de uma saída mais segura pela sala dos telegrafistas.

Houve ainda alguém que disse que “eles estão a atacar em massa e já estão cá dentro”, mas parece que tudo isto não chegou a passar de boato...».

Enfim... o velho problema de quem tem um buraco ao fundo das costas...!

Quarenta e tal anos depois!

À distância no tempo confesso ter tido um grande cagaço... na longínqua noite de 13 de Setembro de 1964.

Mastigando as recordações dessa noite diferente da minha vida tento encontrar explicações para a dimensão do dito (o cagaço) pois já não éramos propriamente «maçaricos» na Guiné... quando aconteceu o ataque a Binta.

A surpresa de um ataque «a nossa casa» é no entanto um pouco diferente de uma emboscada no mato onde se sabe que, de um momento para o outro, podem (podiam) acontecer tiros e confusões.

O ataque ao quartel surpreendeu-nos...

A hora era tardia e ninguém estava a pensar em «guerras».

Jogava-se o «King» na Sala dos Sargentos e eu até tinha uma «boa mão»...
De repente rajadas de pistola-metralhadora e tiros de espingarda.

Tá, tá, tá, tá, tá,boum, boum...
Pum,pum, pum...
Tá, tá, tá, tá...

É (foi) uma sensação do caraças!

Mas que porra é esta!!!

Os tiros pareciam que nos estavam a passar a centímetros da cabeça.

Lembro-me que nos levantámos que nem um tiro – passe a expressão – e ala lá pra fora mas... pela porta dos telegrafistas.

Para perceber melhor o que aconteceu há que explicar que, de facto, o medo dá asas mas não nos transforma em passarinhos...

Estávamos numa sala que tinha duas saídas.Uma para o lado donde vinham os tiros e outro pró outro lado.

O lado bom.

Está claro que foi esta saída que escolhemos.

Havia bidões de protecção (bidões cheios de terra) do lado donde vinham os tiros mas ninguém teve a «lembrança» – ia dizer a «coragem» - de sair por esse lado.

O efeito chicotada –o tiro a passar na vertical da cabeça de um indivíduo – é de facto uma sensação... do caraças.
Isto... para não usar o português «vernáculo» que nessa altura usámos e abusámos amiudadas vezes...

Parece (parecia) que dizer asneiras espantava –um pouco – o medo!

A «boa mão» do «King» não deu para apagar o petromax...

Atrasei-me um pouco na saída para «o lado bom» e só consegui apagar a luz quando parti o petromax contra o chão.

Não foi um acto heróico mas... foi o que se pôde arranjar na altura.

Os meus camaradas do «King» já tinham entretanto arrombado a porta para saída do lado bom – a sala dos telegrafistas – que, além dos tiros, gramaram com uma cavalgada pelas suas instalações de uns quatro(ou cinco) furriéis que lhes devem ter parecido – salvo as devidas proporções - uma manada de búfalos a fugir de leões.

3Leva mais tempo a contar do que o tempo que levou a saída... para o lado bom.
Depois agarra-se uma arma, dá-se uns tiros do nosso lado para o lado dos «maus» e logo tudo muda de figura...

O nó no estômago atenua-se.Lembro-me ainda de no dia seguinte – eu e os meus companheiros do «King»» – termos descoberto telhas partidas por cima da sala de «Sargentos».

Foram estragos causados pelos tais tiros que nos tinham parecido ter passado a rasar as nossas cabeças...

Afinal tinham passado dois metros acima!

Mas o tal efeito da «chicotada» é de facto... do caraças.

Tá, tá, tá, tá, tá, boum, boum...
Pum, pum, pum...
Tá, tá, tá, tá...

Ainda hoje me lembro. Dos sons e... da minha «boa mão» do «King» que... tremia comó caraças.

Oh Oliveira apaga o «petromax»!

Tá bem, pá. É já a seguir.

Toma... contra o chão.

E... apagou-se a luz!!!

Da-se!!!

Um abraço,
JERO
Fur Mil Enf da CCAÇ 675

Fotos: José Eduardo Oliveira (2009). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em: