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sábado, 17 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10688: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (29): Colégio de Oliveira de Azeméis (2) Parte II (1)

1. Em mensagem do dia 13 de Novembro de 2012, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), enviou-nos a segunda parte das suas aventuras no Colégio de Oliveira de Azeméis que vai ser dividida em dois postes:


HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES (29) 

Colégio de Oliveira de Azeméis C.O.A.

Parte II (1)

Nas páginas anteriores narrei, de forma aligeirada e certamente muito incompleta, as regras gerais do colégio e o quotidiano fastidioso e severo dum aluno interno. Nesta segunda parte, vou contar alguns acontecimentos mais ou menos cómicos, um tanto jocosos e outros um tanto ou quanto funestos, fruto da imaginação individual ou, por vezes, coletiva. Além da ideia era absolutamente necessário também, uma boa dose de astúcia e cautela – além da sorte que faz sempre parte do jogo – para não sermos surpreendidos com o pé em falso e, em consequência, rigorosamente repreendidos ou mesmo (na maioria dos casos) severamente zurzidos.

Era proibido falar com as moças; para namorar, como algumas vezes acontecia, era imperioso ser redobradamente cauteloso, arrojado, ousado mesmo. Em primeiro lugar era fundamental ter um “bom correio”, ou como dizem lá no reino de sua Majestade, um “gobetween” seguro, astucioso, sem receio, mas muito calculista; qualquer deslize seria tremendamente desastroso para os três intervenientes. Eu fui “correio” das manas Manuela e Helena Cruz e elas casaram respetivamente com o Reis Ferreira e com o Alberto Miller, graças, claro, (como convém!) – ao bom desempenho do “correio”. Creio que foram muitos felizes; não sei se tiveram… muitos meninos.

A diretora soube – certamente só desconfiou ou talvez nem isso – que o Miller e a Helena namoravam. Num dia em que estava de boa catadura, ela comentou:
- o Miller tenta levar a Cruz ao calvário.

Algum santo teria caído do altar para ela fazer tal comentário, nada comum naquela senhora. Para passar por bom aluno perante a Srª Dª Maria Adília era absolutamente necessário saber usar devidamente a escova, a graxa e o pano, bajular, ser sabujo e… saber também umas tretas. Os seus castigos corporais eram quase cómicos; ela pegava na régua de desenho, segurava na mão do visado e começava a bater em “alta rotação” – mal afastava a régua da mão; uns fingiam que lhes doía imenso, e ela ficava contente… porque teria castigado severamente o prevaricador; outros deixavam que ela batesse à sua vontade sem manifestar qualquer sofrimento porque na verdade, o castigo era inofensivo. Ela não gostava e comentava:
- “Cara de pau! E não chora!”

Com a Dª Maria Adília eu passei por várias fases… muitos altos e baixos. No 1º ano o nosso relacionamento foi excelente; nos muitos fins-de-semana que passei no colégio, ela até me convidava a acompanhá-la no carro até ao parque de La Salette e levava a merenda para os filhos, e também, para mim… para eu tomar conta dos seus descendentes, Tozé e Betinho; Colaborei nas festas de S. João e noutras celebrações. No 2º ano caí em desgraça, logo no início do ano, porque troquei o tempo de um verbo: “os homens olharam”; eu respondi que era o pretérito mais que perfeito… mas era o pretérito perfeito; porém a forma até era igual. Ela logo informou o Dr. Mota (professor de português) que eu não sabia os verbos na nossa língua – “como poderá sabê-los em francês?” perguntava ela, escandalizada. Até parecia que para aprender francês, era imperioso saber português – coitados dos jovens franceses! Teriam de aprender português para de seguida entrar na sua língua!

O velho Mota organizou logo uma sabatina ou recapitulação de verbos; a turma foi dividida em três equipas: Benfica, Sporting e Porto. As moças formavam a equipa do Porto, pois não podia haver misturas de sexos; os rapazes encaixaram-se nas equipes do Benfica e do Sporting mais ou menos de acordo com a predileção de cada um. O professor chamava dois alunos (um de cada grupo) para junto da secretária; escolhia um verbo e perguntava alternadamente os vários tempos a cada aluno; quem errasse uma resposta era impiedosamente eliminado. A finalíssima, depois de várias horas a eliminar, foi disputada por uma tal Glória Mendes (fez o 2º ano e saiu do Colégio) e este vosso cronista. Foi duro, demorado! O Dr. Mota, depois de inúmeras perguntas, sobre os mais variados verbos que ele ia escolhendo, sugeriu que a Glória selecionasse um verbo e perguntássemos os diversos tempos um ao outro. Como nenhum falhou, eu fui incumbido de escolher um verbo e que mandássemos “cantar” os vários tempos. Eu escolhi o verbo remir (o tal de que se falou na primeira parte desta crónica); ela não soube conjugar o presente do indicativo. Eu fui o campeão! A minha grande vitória académica! Um osso cravado na garganta da Dª Adília!

O Dr. Mota, eufórico, encheu o peito de ar e foi informar a diretora que afinal “O Belmiro sabe bem os verbos em português; se os não sabe em francês… isso são contas de outro rosário!” A Dª Adília, porém, continuou a “molestar-me” severamente durante o 2º ano. Ela era também professora de desenho; sempre que eu lhe mostrava uma folha (1/4 de papel cavalinho) com uns rabiscos “bem-feitos” por mim ela não comentava se estava bem ou mal: rasgava e metia no lixo! Assim se perderam algumas verdadeiras “obras de arte”! Eu deixei de lhe mostrar os meus caros desenhos artísticos; arquivava-os para memória futura!

Aos Domingos, ela dava, principalmente à tarde, umas aulas de desenho e/ou francês aos alunos internos e a alguns externos que moravam na vila e eram “ convidados” a comparecer no colégio. Um belo domingo à tarde, ela pretendia deslocar-se a São Martinho da Gândara para ali assistir a um qualquer evento para o qual ela havia sido convidada, antes de partir decidiu que ficaríamos a fazer desenhos, até à hora de jantar; sugeriu que eu tomasse conta do grupo. Entendi que era o momento ideal para lhe mostrar um dos meus desenhos deliberadamente arquivado antes. Foi a primeira e única vez que ela declarou que o meu desenho estava bom e que pintasse. Não tive a mesma sorte com a pintura… e mais uma “obra-prima” foi parar ao caixote do lixo. A Srª Diretora impunha regras rígidas, imutáveis, para a decoração de cada figura geométrica. O hexágono, figura que nos saiu na rifa, no exame, devia ser “rigorosamente” decorado com uma “irradiação” de malmequeres a partir do centro em direção a cada vértice.

Eu fiz exame no Liceu de Aveiro; a maior parte dos alunos foram para o Porto. À saída da sala, lá estava a diretora, perguntando como cada aluno tinha decorado o hexágono; quando chegou a minha vez, eu respondi que havia decorado aquela figura geométrica com uma simetria; ela quase desmaiou! Mas eu consegui a nota de 13 naquela disciplina, nota melhor que a de alguns alunos que ela considerava de “bons artistas” – os bajuladores.

No meu 4º ano, foi nossa professora de francês durante umas semanas. Logo na 1ª aula, ela ordenou que decorássemos um texto – La Laictière et le pot au lait - . Eu apenas decorei cerca de uma dúzia de linhas… e fui um herói… na sua opinião, claro; os outros nem tentaram decorar uma linha sequer. Assim se iniciou uma grande reviravolta no nosso relacionamento.

No ano seguinte, ela era nossa professora de Geografia de Portugal; impunha para começar, que os alunos papagueassem as fronteiras terrestres de Portugal – a Norte e a Este - sem olhar para o mapa; era “apenas” página e meia do compêndio que tínhamos de memorizar. Geografia sem mapa… nem ao diabo lembra!

Num domingo em que pretendíamos ir ao futebol, ela decidiu dar uma aula de Geografia, pouco depois do almoço. Ela argumentava que, como deixara de ir não sei onde, não podia prescindir de dar a aula. Nesta época (ela e eu) já éramos bons amigos. Sugeri aos colegas que não levantassem ondas e eu trataria do resto. Antes de ela entrar na sala, eu “preparei o terreno”: Pendurei um mapa de Portugal, na parede, do lado direito da professora; - Fiquei junto da secretária, mesmo depois de ela entrar.

Quando ela apareceu, eu permaneci no estrado; ela perguntou se eu queria ser interrogado sobre as fronteiras de Portugal; respondi afirmativamente. Ela mandou-me “cantar” a fronteira terrestre do nosso belo e querido País. Colocado ao seu lado esquerdo e ligeiramente atrás dela, eu via perfeitamente o mapa e assim pude simular que havia encaixado na minha cabeça aquele imenso texto. Estava em causa uma ida ao futebol. Conseguimos convencê-la que todos tínhamos aproveitado ao máximo aquela aula e lá fomos apoiar o U.D.O. Assim melhorei o nosso relacionamento.

Fui encarregado de preparar uns textos, em francês, para descrever o conteúdo (pintura) de uns quadros que eram mostrados aos alunos durante o exame num dos liceus do Porto. Ela não sabia a tradução de “serpette”! Eu informei que era uma espécie de faca curva, usada na vindima. O meu astral estava em alta. Assim continuei até sair para Coimbra.

Durante o meu primeiro ano na Universidade, eu acompanhei a Académica a muitos estádios de norte a sul do País; sempre que ia ao norte eu almoçava e/ou jantava no Colégio e até dormi lá algumas vezes – tinha livre-trânsito. De seguida o diretor dava-me boleia até ao Porto quando ele ia ver o seu clube jogar; dali eu seguia o meu caminho.


Nota negativa na disciplina de Religião e Moral

“In illo tempore” – no tempo em que isto aconteceu, o padre Joaquim era professor daquela disciplina que então era uma cadeira obrigatória – só não fazia parte do exame. O padre nunca nos falou de moral (talvez porque não tinha a suficiente); falava apenas de religião.

Estávamos no 5º ano; o padre entrou na sala (ficava quase em frente à secretaria e dava para o terraço junto ao quintal) e depois de ligeiras considerações perguntou a um aluno:
- Qual é a parte mais importante da Missa?

O aluno terá respondido “comunhão”! O padre, sem manifestar a sua opinião quanto à veracidade daquela resposta, pediu a opinião a outros alunos; cada um ia dando uma resposta diferente, supondo que as anteriores estavam erradas. Depois de ouvir várias respostas, todas desiguais, chegou a minha vez. Eu estava sentado na última carteira, ao lado do Arlindo, um rapaz natural de Escariz, lá para os lados de Arouca. Chamávamos-lhe “tetra quintanista” porque só à quarta tentativa concluiu o 5º ano. A minha resposta foi clara e “pouco” eficiente:
- “Ite! Missa est! (ide! A Missa acabou!)

Seria aquilo que gostosamente apelidávamos de “o santo sacrifício da saída”. O Arlindo acrescentou, sem delongas:
- Deo Gratias! (Graças a Deus!)

Poderia até parecer que tínhamos combinado as respostas, mas a ação não foi concertada – juro! O Escariz e eu tivemos nota 9 a Religião e Moral; se tivéssemos negativa a outra disciplina… correspondia a “chumbo”. Terá sido talvez a única vez que um aluno (dois neste caso) teve negativa a Religião e Moral.

Naquele tempo as notas variavam de zero a vinte; longe do que veio a acontecer nos tempos revolucionários em que as notas passaram a ser de um a dez e de um a cinco, (o aluno não podia ter zero); o caso mais cómico, mais aberrante aconteceu na Faculdade de Letras de Lisboa em que, na última cadeira do curso, as notas eram apenas: “apto” e “não apto”. Estas classificações eram atribuídas pelos outros alunos; a professora – qual rainha de Inglaterra “que reina mas não manda” - tinha o supremo poder decisório de desempatar, se tal acontecesse. Uma rebaldaria!


Confraternização de Ex-alunos

O COA era até uma boa escola… apesar de tudo; cada turma incluía todos os alunos do curso – 40 e até 50 alunos; em geral ouvia-se a mosca que abusivamente invadisse aquele espaço. A 1ª vez que um curso foi dividido em duas turmas (e creio que não aconteceu em todas as disciplinas) foi no meu 5º ano – 1957/58. Mais de 40% dos alunos dum 2º ano dispensaram de oral; noutro 2º ano dispensaram mais 40%.

Nos fins dos anos 50 – os liceus e os colégios estavam superlotados; na época dos exames as salas dos liceus eram já insuficientes para albergar tantos alunos – os do próprio liceu e os dos colégios do distrito. O Ministério da Educação decidiu “promover” doze colégios a nível nacional; os seus alunos passavam a ser examinados “em casa” mas com professores nomeados pelo Liceu. O Colégio de Oliveira fez parte desse número mágico de 12 colégios que seriam os melhores do País.

Em 1972, quarenta e nove ou cinquenta anos após a sua fundação, o COA deixou de funcionar como tal; passou a ser uma extensão do liceu de Aveiro, que tomou de renda as avelhentadas instalações (algumas) da vetusta escola. Os alunos daquele colégio, porém, não o esqueceram. Com certa frequência, (pouca a meu ver), tem havido almoços de confraternização de ex-alunos. Participei nos 5 primeiros; estive presente, também, no que teve lugar a 9 de Junho de 2012, com visita às instalações do ex-colégio e o almoço em Ul, com a presença do filho mais novo dos diretores – José Alberto.

Dois desses almoços realizaram-se em Sever do Vouga; num deles o Sr. Almeida esteve presente. Propus-lhe que numa vinda sua a Lisboa (quando o Colégio passou a liceu, os proprietários mudaram-se para o Algarve) me contactasse e jantaríamos juntos. Assim aconteceu. Durante o repasto falámos quase só do meu tempo passado no colégio. Entre outras confidências, contei-lhe como o padre Joaquim teve a lata de me atribuir uma negativa a religião e moral. E logo a mim! Aleguei em minha defesa que ele “teria pouca moral” pois uns anos mais tarde, casou-se, abandonando a sotaina. O Sr. Almeida informou que com duas negativas – mesmo sendo uma a Religião e Moral – eu reprovaria. Retorqui que só tive nega a essa disciplina. Quando eu lhe transmiti que à pergunta: – qual é a parte mais importante da missa? – Eu respondi que era – ite! Missa est – ele, em voz bem audível (leia-se bastante alta) em toda a sala (todos os clientes puseram os olhos na nossa mesa); ele comentou:
- Estavas a pedir vara! Estavas mesmo!

Adorei! Gostei imenso de ouvir aquelas palavras! Pareceu-me que voltámos uns anos atrás… aos saudosos tempos do colégio… mas afinal já não éramos mestre e aluno… éramos apenas dois bons amigos com uma lauta mesa entre nós.


- O Vinho –

Como atrás foi dito, os alunos internos e os semi-internos podiam beber uns goles (poucos) de vinho às refeições principais. Além dos negócios que a “pinga” proporcionava, havia um castigo – uma semana sem beber – para quem sujasse a toalha, entornando um copo de tinto; já era o melhor para a saúde! A srª diretora alegava que o valor do vinho não servido se destinaria a custear a lavagem da toalha. Eu estava no quinto ano! Cada mesa alojava seis alunos; os meus companheiros de mesa eram divertidos e um tanto barulhentos; discutíamos acaloradamente cada tema. A meio de um almoço o Sr. Diretor entrou na sala e exclamou:
- Que diabo de barulheira é esta?

O perfeito – Manuel Correia, natural de Santo Tirso – levantou-se e, sacudindo a água do capote, lançou o seguinte repto:
- Se o Sr. Almeida calar aquela mesa, eu calarei as outras! (referia-se escandalosamente à minha mesa… mas ele sabia que eu era bem comportado!). Sempre fui! Parece que estávamos a ser os “bons” da fita, mas nós até nem éramos maus… tanto assim; até porque… não há rapazes maus!

Fazia parte daquele grupo o Karl Mickael Eberl, filho de pais alemães e nascido em Angola, na fazenda produtora de café Kenuma Numa, no Pango Aluguem, algures no norte de Angola. Democraticamente (imaginem o que nós já éramos naqueles belos tempos) decidimos que, em cada dia, um de nós declamaria um poema durante o almoço. Eu optei por uma estância d’Os Lusíadas, discurso de Marte no concílio dos deuses (pagãos) da qual, quase no fim, constava como segue: “e dando uma pancada penetrante/ com couto do bastão no sólio puro”; aí eu dei um valente murro na mesa – e continuei: “o céu tremeu” etc.

Com aquela punhada enorme, idêntica à de um deus todo-poderoso (como tinha de ser) entornei apenas seis copos de vinho – não havia mais! Houve galhofa da grossa! De tal modo que a srª Diretora, assustada (digo eu) veio ver o que tinha acontecido. Aleguei que apenas queria dar a ênfase devida ao discurso do deus da guerra (como Marte merecia), mas com todos os meus argumentos não consegui adoçar a sua ira. Ela sentenciou fatalmente:
- Entornaste seis copos de vinho ficas seis semanas sem beber!

Eu argumentei, puxando a brasa à minha sardinha, que tendo sujado, apenas, uma toalha, não poderia ser punido com mais de uma semana. – “Essa punição está a ser aplicada com demasiada severidade! É simplesmente desproporcionada!” Ela defendia que era uma semana por cada copo entornado; e eu alegava que era uma semana “a seco” por cada toalha suja. Apareceu o Sr. Diretor que ajuizou de acordo com a posição que eu defendia,… nem poderia ser de outro modo. Eles andavam frequentemente de candeias às avessas. Como cônjuges não seriam o melhor exemplo para a rapaziada do colégio.


Visita noturna ao internato feminino 

Quando entrei para o colégio, as alunas internas ocupavam um piso de um prédio fronteiro ao recreio dos rapazes, do outro lado da avenida. As “pequenas” tomavam lá as refeições e lá pernoitavam sob o olhar sempre atento, mesmo durante o sono, da Dª Urraca – perdão – Dª Idalina (que a terra lhe seja leve! Nunca me fez mal!). Mas era temida por todos! Ao lado do recreio das “miúdas”, ficava uma casa espaçosa; por trás desta vivenda havia um quintal de área razoável e que fazia face com o “pomar” dos proprietários do Colégio e ao recreio dos rapazes. Um muro com mais de dois metros de altura separava as duas propriedades.

As nossas bolas de futebol, com frequência, “refugiavam-se” nos terrenos da Dª Dores, certamente para evitar levar mais pontapés desajeitados e furiosos dos alunos menos hábeis…, como eu. Imediatamente alguém saltava o muro, apanhava a bola e o jogo continuava. Estas intrusões em terreno alheio enfureciam a proprietária do quintal, mas também o Sr. Almeida que não desejava complicações com a velha vizinha. A dª Dores alegava que nos devolvia as bolas logo que as avistasse no quintal ou no galinheiro… mas a bola fazia-nos falta na hora do jogo e não apenas quando ela fosse alimentar as galinhas. Era uma guerra quase permanente. Podiamos chamar-lhe: batalha sem fim.

Os donos do colégio decidiram comprar aquela propriedade (casa e quintal) à sua estafada proprietária. Ali instalaram o internato feminino, deixando de pagar renda pelo outro edifício. Até à mudança das garotas para as novas instalações, havia uma perfeita a quem chamavam “Dª Urraca”; era uma pessoa difícil, muito complicada, cara de poucos amigos e que não tolerava baldas. Só este ano soube, que o seu verdadeiro nome era Idalina; mas Urraca assentava-lhe… como uma luva! Além do cargo de perfeita (responsável pela disciplina entre as alunas), dava aulas aos miúdos da primária.

Como o número de alunas ia aumentando, a direção contratou outra perfeita, a menina Rosa: talvez mais idosa que a outra (mas era menina, cabelo oxigenado, mais simpática e mais permissiva; gostava que os rapazes conversassem com ela, expondo os seus problemas; facilitava, cautelosamente, alguns contactos com as alunas e até aceitava levar recados – tudo com muito cuidado, respeito total, cautela demasiada… mas tinha de ser assim, convenhamos!

No meio das dificuldades provocadas pela separação exaustiva, total (segundo a vontade da Dª Adília) por sexos, havia no entanto quem conseguisse furar as malhas e até houve vários casamentos. Uns jovens alunos, apesar da vigilância apertada levada a cabo pelos perfeitos dos dois lados, e dos muros que separavam os dois internatos bem como a distância entre eles, combinaram fazer uma visita noturna às instalações habitadas pelas garotas. O planeamento manifestou-se eficiente, tudo estava cabalmente alinhavado e tudo correu como o planeado… até determinada hora.

Parecia tratar-se de uma operação militar (golpe de mão) de grande envergadura e em terreno altamente perigoso… e armadilhado. As moças, como acordado, abriram a porta que dava para o quintal, “correndo” os ferrolhos; a rapaziada entrou no edifício; houve conversa “sussurrada”, para não acordar nem as vigilantes nem as outras alunas que dormiam despreocupadamente no piso acima; houve um pouco de tabaco – q.b. depois pois de quase uma hora de palavreado e como tudo corria sobre rodas, os rapazes, acompanhados pelas amigas, subiram às camaratas para observar ao vivo… como as garotas dormiam; uma acordou e gritou esbaforida:
- Há homens cá dentro!

Todas acordaram e a gritaria tornou-se logo infernal! Muitas das moças refugiaram-se na varanda até não caber mais e cada uma pretendia gritar mais alto que todas as outras. Chovia torrencialmente! A chuva não as perturbava! Pânico! Terror mais que muito! O medo imperava! As moças que facilitaram a entrada misturam-se com as outras, de imediato, alegando certamente, que também se aperceberam que havia homens no interior (havia mesmo, mas desapareceram logo!); todas juravam que não era um sonho!

Os rapazes “assaltantes”, salvo seja, fugiram em direção ao internato dos rapazes, mesmo em frente, e misturaram-se logo com os outros alunos que desciam as escadas velozmente – autêntico atropelo – em socorro das moças frágeis e desprotegidas. Parecia uma passagem de um romance… de cavalaria em que se defendia intransigentemente a honra das damas. O sr. António Almeida e a esposa abriram as janelas de guilhotina, dos seus aposentos, que eram à frente da varanda onde as raparigas, apavoradas gritavam, perguntando ansiosamente às alunas qual o motivo de tal gritaria; era tanta a confusão de gritos que ninguém percebia o que proferiam. Até gaguejavam… em voz altíssima!

O Sr. Almeida pediu a comparência urgente da GNR; os bombeiros foram solicitados mas sem alarme… para não acordar a vizinhança. O Sr. António Almeida compareceu célere, no local do “crime” de caçadeira na mão disposto a mandar para os anjinhos qualquer “assaltante” que por lá se encontrasse (certamente que os viu… mas não sabia que o eram). Naquele tempo dizia-se que os soldados da GNR eram os “desertores da enxada” e acrescentava-se, jocosamente “voltai à ingrícola”! Toda a agente se ria porque eles seriam indelicados, abrutalhados, broncos… e outros epítetos pouco abonatórios.

Os GNR’s, porem, não eram (não foram) tão aparvalhados como se imaginava ou pretendia. Avaliada a situação, aperceberam-se que havia “beatas” no chão e que os fechos haviam sido “corridos”… por dentro; logo concluíram que do interior alguém abriu a porta. Não se tratava portanto de um roubo ou tentativa – teria sido uma investida autorizada. Perante isto, o Sr. Almeida “fechou as portas do circo”; agradeceu a prestimosa (mas incómoda) colaboração da GNR e sugeriu (impôs) que não se falasse mais no assunto. Devemos ter em conta que o Sr. Almeida era (quase) uma autoridade naquela vila. Ordenou que tudo fosse esquecido e… mais ninguém falou daquele famoso assalto, pelo menos às claras, ao internato feminino. Na verdade, as bocas do mundo não mais se abriram. Os intervenientes que se manifestem… ou calem-se para sempre!

Volvidos tantos anos, apesar de tudo, o melhor será continuarem calados(as) para não desenterrar “pecados antigos”. Para que o silêncio fosse total, o Sr. Almeida ameaçou que iria mandar fazer análises às “beatas” e recolher impressões digitais, para identificar os prevaricadores, mas nem sequer mandou recolher as pontas dos cigarros! O que ele pretendia – e conseguiu – era abafar totalmente o caso. Se assim não fosse e se os pais das raparigas se apercebessem do sucedido, o internato feminino seria encerrado… pela falta de alunas! Os pais não perdoariam que as suas filhas estivessem tão expostas… e eles a pagarem.


O Toino

António Rodrigues Figueiredo era natural de São Vicente de Pereira, concelho de Ovar; o pai era proprietário de uma fábrica de curtumes; ele era o irmão mais novo de um outro aluno, Armando Rodrigues Figueiredo. Creio que mais tarde apareceu mais uma irmã. Hoje o Toino é a autêntica cara do pai! O Toino terá feito a 4ª classe no Colégio. Dava a ideia de ser um tanto ríspido, até agressivo, para com os colegas, embora não me recorde de qualquer briga mais dura em que se tivesse envolvido. Se um aluno do 7º ano (para citar, apenas, os mais corpulentos) ao passar pelo Toino lhe tocava inofensivamente com a ponta de um dedo, a reação do puto era sempre a mesma, para qualquer um:
- Parto-te já a cara!

Um dia, na fábrica do pai, o Toino pretendeu ser paraquedista; qual Ícaro dos tempos modernos! Gostava de voar! Arranjou um guarda-chuva, abriu-o e saltou do 1º andar para o solo; tudo funcionou como previsto (não como ele gostaria): o “paraquedas virou-se”; a aceleração foi grande! A velocidade no momento do impacto com o solo seria igual a j t2/2 (se bem me lembro… era assim que aprendíamos na Física). O Toino fraturou apenas uma perna - coisa de pouca monta em comparação com a asneira.

À surrelfa, o Toino quis caçar pardais… à mão, no espaço entre o teto e o telhado do internato. Não se sabe como, o Toino passou por uma espécie de alçapão existente no teto da casa de banho – o pé direito era bastante alto – e movimentou-se sobre as vigas de madeira. Quando se encontrava por cima do vão da escada, a cerca de 6 metros do solo, desequilibrou-se, pisou o teto de gesso fazendo dois avantajados buracos e – grande sorte – ficou encavalitado numa viga e as pernas penduradas, sem ter onde as apoiar. Encontrava-se me situação crítica; se caísse, seria a morte do aventureiro. Apesar do enorme susto, reequilibrou-se, desceu pelo buraco por onde havia subido, assentou os pés no chão, dizendo para com os seus botões: - deste aperto já me safei! Não recordo se foi castigado… ou se ficou só pelo susto – que terá sido enorme.

Muito frequentemente, durante qualquer jogo de pontapé na bola, esta passava sobre o muro, aterrando dentro do galinheiro ou do quintal da Dª Dores. No calor do jogo, o Toino saltou sobre o muro para recuperar a desejada bola; “poisou dentro do galinheiro, sobre uma chapa metálica que dava acesso – imagine-se! – a uma fossa onde convergiam os esgotos não só do galinheiro mas também os provenientes da casa da proprietária! Aquela tampa, ferrugenta e carcomida não aguentou o impacto, e o Toino mergulhou na fossa. Saindo de lá – mal cheiroso! Um cheiro horroroso… pestilento! O Toino vinha de lá todo… “borrado”!

No momento em que saltou do muro para o recreio, o Sr. Almeida passava no local, a caminho do internato masculino, onde também tomava as refeições. Logo que entrou no refeitório, comunicou a má nova ao Armando:
- O teu irmão caiu na fossa da Dª Dores; borrou-se todo; foi tomar banho; logo se vai sujar-se outra vez com a sova que lhe vou dar!

Não recordo se o Sr. Diretor lhe apertou os calos por esta asneira mas… coitado do Toino! Banhar-se nos fétidos excrementos da “velhinha” misturados com os das galinhas… era já castigo demasiado para um jovem aventureiro.

No último almoço de confraternização – 9 de Julho de 2012 – o Toino compareceu. Vítima de acidente, desloca-se em cadeira de rodas. Felizmente soube na véspera que ele ficara paraplégico; mesmo assim fiquei profundamente chocado ao vê-lo naquele estado. Ossos do ofício!


Excursão a Conímbriga – com final feliz 

Quase todos os anos, por altura da Páscoa, havia uma excursão de alunos a um local mais ou menos interessante, previamente escolhido. “Piquenicávamos” ao almoço e ao jantar em locais antecipadamente escolhidos pela direção. Naquele ano, provavelmente no ano letivo de 1958/59, visitámos demoradamente Conímbriga; o professor Santos ia satisfazendo a curiosidade dos alunos do 2º ciclo esclarecendo as dúvidas sobre o que ali víamos.

No regresso, ao cair da noite, jantámos no parque da Curia: pão, croquetes, rissóis, panados, fruta, bebidas… e não sei o que mais; comia-se o suficiente para aguentar o resto da viagem. Na hora da partida informei alguns companheiros de viagem que não se preocupassem com a minha ausência na nossa viatura porque eu “viajaria” num dos autocarros das moças. Todos abriram a boca de espanto por mais esta aventura! É doido! Comentaram alguns.

Escolhi estrategicamente a viatura chefiada por excelente professora de inglês, Dr.ª Maria José Mourão; ela tinha grande consideração por mim porque, no ano anterior, sendo ela minha professora eu fiz uma boa prova oral (prova excelente, digo eu) que me fez subir a média para 14 valores (distinção e não dispensado como consta dos alfarrábio colegiais). No fim da minha oral de inglês, a Dr.ª Maria José Mourão, emocionada, deu-me um abraço em público – coisa rara e nunca vista naqueles tempos – alegando:
- Parabéns! Pois você (para cúmulo, tratou-me por você) acaba de demonstrar o quanto trabalhámos durante o ano! - Naqueles tempos não era comum uma professora tomar uma tal atitude.

Informei a professora que o meu autocarro já havia partido e eu precisava de boleia. Muito amavelmente, como era seu timbre, mandou-me entrar e franqueou-me o lugar vago a seu lado. Conversámos durante uns minutos e apercebendo-se, talvez, da minha intenção, sugeriu que fosse conversar com as meninas, lá atrás. Ela sabia que podia tomar comigo aquela atitude; eu gostava de me divertir, de ultrapassar os limites impostos pela Direção, mas sem desrespeitar quem quer que fosse.

Recordo que alguém alertou que o carro do diretor seguia atrás daquela viatura e que ele poderia aperceber-se que eu seguia misturado com as meninas. Eu ia de pé junto ao último banco! Uma sugeriu, por graça, que eu pusesse um lenço na cabeça, tipo flausina, vestisse um casaco duma aluna, uma jovem altamente patriótica; creio que a aluna se chamava Teresa… talvez Brandão! O casaco apertava-me a cintura mas ficava-me largo no peito… porquê? Perguntei eu; - questões de patriotismo! Esclareci as simpáticas colegas.

Foi uma viagem agradabilíssima, como se pode calcular. O mais complicado foi abandonar aquele autocarro sem que a direção vislumbrasse que eu viajara numa viatura das moças.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. poste anterior da série de 4 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10617: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (28): Colégio de Oliveira de Azeméis (Belmiro Tavares)

domingo, 4 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10617: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (28): Colégio de Oliveira de Azeméis (1) Parte I

1. Em mensagem do dia 31 de Outubro de 2012, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais uma das suas histórias e memórias:


Colégio de Oliveira de Azeméis C.O.A.

Parte I 

O colégio de Oliveira de Azeméis, antiga Casa Escola, foi fundado em 1932, pela primeira e única Diretora, Srª Dª. Maria Adília Algria Martins; ela exerceu aquele cargo até 1972, durante precisamente 40 anos. Nesta data, as instalações do vetusto colégio passaram a funcionar como uma extensão do Liceu Nacional de Aveiro, que nos anos 50 substituíra o antigo Liceu José Estêvão, nome de um tribuno afamado, mediante pagamento de volumosa renda-tinha de ser.

O seu crescimento foi lento mas alicerçado, durante vários anos, até que Dª Maria Adília casou com um seu ex-aluno - Sr. António Almeida – que veio dar nova vida, outra dinâmica àquela, já célebre escola. O Sr. António Almeida - ou Sr. Diretor – como lhe chamávamos, porque era marido da srª Diretora-fez aquela escola crescer imenso, diria até quase desmesuradamente, muito em especial a partir do início dos anos cinquenta.

Havia alunos de todos os quadrantes: Guiné, Angola, Trás-os-Montes para citar apenas os de mais long;os distrititos do Porto e Viseu também estavam representados. De várias origens, o sr. Almeida colhia informações sobre hipotéticos candidatos que se preparavam para iniciar os estudos secundários principalmente no interior-centro do país. Ele logo partia ao encontro dos pais destes jovens para os convencer a enviar os filhos para o seu colégio; com frequência levava a água ao seu moinho. Recordo o meu caso. Fiz a 4ª classe; meu pai, confiado nuns cobres acumulados, durante anos, no canto do baú, decidiu pôr-me aos estudos. Voltei no ano seguinte à escola lá da terra ( ficáva a mais dedois km de casa, trilhando caminhos de cabras), onde uma professora bairradina (natural de uma aldeia chamada Fogueira), boa mestra, excelente educadora e soberba condutora de crianças, assumiu levar-me ao exame de admissão ao Liceu. Fiz também exame de admissão à Escola Comercial; se falhasse num tinha outra saída.

Em meados de Janeiro daquele ano lectivo, o director do colégio de Albergaria-a-Velha, acompanhado por um professor apareceu lá em casa a fim de convencer o meu pai a enviar-me para a sua escola. O meu progenitor logo alegou que não tomava naquela hora qualquer decisão; teria de conversar de novo com a professora. Em desespero de causa o professor mandou-me conjugar o presente do indicativo do verbo” remir”; eu não sabia! O professor comentou:- está a ver?! O seu filho está atrasado em relação aos nossos alunos! Meu pai manteve a sua posição.

Obs.: mais à frente falaremos de novo daquele verbo “remir.”

No dia seguinte, meu pai deslocou-se à casa onde a professora residia a fim de colocar os pontos nos “ii”; depois de algumas perguntas e respostas, avanços e recuos ela concluiu: - Já levei vários alunos ao exame de admissão e nenhum reprovou; não posso garantir que o seu filho “vai passar” mas eles também não podem dar essa certeza; a decisão é sua!

De seguida contei-lhe a estória do verbo que eu não soube conjugar; ela comentou que “ainda” não é tarde para aprenderes a conjugar aquele verbo: “ foi uma brincadeira de gosto duvidosos da parte deles! Referiu a professora.
Logo ali meu pai decidiu que eu continuaria ás suas ordens até ao exame final. Como se depreende, naqueles tempos, a luta para conseguir mais alunos era (tinha de ser) dura, persistente e até, por vezes, feroz.

Mais tarde, já depois de ter feito exame de admissão, passei férias em Espinho e, não sei como, fui ali matriculado, no Colégio S. Luis.

Volvido um mês ou perto disso, o director do colégio de Oliveira de Azeméis apareceu em minha casa, já noite escura; vinha acompanhado dum médico (estomatologista) que era um grande amigo do meu pai. Ele foi a arma decisiva. Depois de argumentos vários, o Sr. Almeida assumiu que tratava da anulação da minha matrícula em Espinho e em Outubro seguinte cruzei pela primeira vez o portão “monumental” (o portão de hoje ainda é o mesmo… mas com mais 60 anos )– nunca me arrependi.

Nos tempos que correm, os jovens alunos não sabem, nem sequer imaginam ou sonham como era o dia a dia dum estudante interno metido entre as quatro robustas paredes austeras dum qualquer internato.

Havia escolas cujos alunos eram todos externos: permaneciam intra-muros durante as aulas e também nas horas de estudo mas tomavam as refeições e pernoitavam em casa;. não sofriam com o isolamento forçado em relação à família.

Os alunos internos viviam em autêntica clausura; saíamos do colégio ao sábado depois das 17 horas, quando não eramos obrigados a permanecer na escola durante o fim de semana devido a castigo por más notas ou por atos de indisciplina.Mais tarde saíamos a partir das 13:00 horas. Na 2ª feira de manhã estávamos de volta para mais uma semana fora do conforto do lar; melhor ou pior era sempre diferente; era o nosso lar!

Todos os internatos tinham determinados defeitos mais ou menos comuns a todos, mas também tinham algumas virtudes… uns mais que outros.A maior mazela era “arrancar” crianças, a partir dos nove/dez anos aos afectos da família, “enclausurando-as”, autenticamente entre severas paredes.

Vivi cerca de oito anos lectivos como aluno interno no C.O.A.; ainda recordo com saudade e carinho – apesar de tudo – o tempo e o ambiente daquela casa ,os bons e maus momentos (muitos assim assim); com certeza foram mais aqueles do que estes, até porque eu sempre procuro enviar para as calendas o lado mau da vida ou, no mínimo, não lhe dar relevância, guardando no “disco rígido” da minha cabeça, apenas (ou quase) a parte boa das coisas por que passei.

In illo tempore – no tempo em que frequentei aquele colégio – o internato era uma inevitabilidade; refiro-me aos anos 50 do século passado, época em que muitos jovens do interior, ainda não despovoado, não poderiam estudar se não houvesse internatos.

Havia liceus nas capitais de distrito; os colégios surgiam apenas nas cidades ou em vilas de maior dimensão: na capital do meu concelho não havia ensino para além da primária; surgiu ali um colégio nos fins dos anos 50 ou nos primeiros anos da década seguinte

No meu caso (e no de tantos outros), quando podia ir a casa ao fim de semana, faltava às duas primeiras aulas de 2ª feira; na melhor das hipóteses eram só duas. Saía de casa pelas 7 horas da manhã e chegava ao colégio pelas 11, se tudo corresse bem.A meio do percurso mudava de autocarro. Se houvesse lugares vagos no onibus que vinha de Coimbra, tudo bem; se não houvesse vagas naquele autocarro, chegaria ainda mais tarde, perdendo todas as aulas da manhã.

O dia a dia de um aluno interno era terrivelmente duro! Havia quem chorasse copiosamente! Tal era a bomba! Para os semi internos a pílula não amargaria tanto – iam dormir a casa diáriamente

Dura lex sed lex! A disciplina é dura… mas é disciplina! – e se ela era rígida, inflexível, naquela casa! Não fora a imaginação e a ousadia da rapaziada para tentar adoçar a pílula (algumas vezes conseguia-se; outras vezes as contas saiam furadas, e sofríamos as consequências) e a nossa vida seria ainda mais atroz, quase insuportável

O aluno nunca era expulso da aula; este tipo de castigo não estava previsto. Havia castigo corporal! Naquele tempo, já era proibido por Lei… mas era prática mais ou menos corrente – mais corrente que menos. Regra geral, não podíamos fazer queixa aos nossos pais, porque, na maioria dos casos… levávamos a dobrar.

Nenhum pai (quase) ousava discutir esse assunto com a Direcção; intransigentemente o sr. Almeida alegava que “era para o bem do aluno” e tinha em conta, também os encargos monetários dos pais. “Naquele tempo o dinheiro era muito caro! Rareava quase em absluto!

Os internos podiam ser impedidos (e eram-no com frequência) de ir passar o fim de semana com os pais, acontecia sempre que havia más notas ou eram indisciplinados. Para o colégio seria até um prejuízo material mas, felizmente, a direção (os proprietários da escola) preferiam que os alunos tivessem boas notas e fossem bem comportados, perdendo eles alguns escudos referentes à sua alimentação dos alunos castigados durante o fim de semana.

A nossa tarefa iniciava-se, diariamente, às 6:30 horas da manhã (excepto ao domingo); às 7:00 horas, entrávamos no salão de estudo e ali permanecíamos até às 8:45, tempo para o pequeno almoço. As aulas iniciavam-se às 9:00. Depois do almoço havia um intervalo (cerca de uma hora) para dar uns pontapés na bola ou ver jogar. O período das aulas terminava às 19 horas; depois do jantar havia um intervalo até às 20:30 horas; seguia-se nova sessão de estudo para, sob vigilância do prefeito, preparar as aulas do dia seguinte; às 22 horas íamos dormir num edifício mais recente, voltado para a avenida principal; era no rés do chão deste edifício que tomávamos as refeições – no rés-do-chão. Em véspera de prova (ponto) era permitido estudar até mais tarde. Por vezes enquanto a maioria dos alunos dormia, sem a presença do prefeito, uns estudavam , outros aproveitavam a hora de pretenso estudo para surripiar umas laranjas do quintal da Direcção ou fazer uma incursão na adega (por baixo do salão de estudo) donde se retirava uns pedaços de carne de porco salgada e até umas garrafas de vinho; tudo bem regado! No edifício mais antigo, voltado para o recreio havia uma porta diferente, algo estranha, que dava acesso a uma garrafeira que também chegou a ser visitada por alunos.

Com os restos da comida, a direcção, mandava alimentar uns suínos, cuja carne era depois servida aos alunos; assim tínhamos oportunidade de compreender, na prática, que Lavoisier tinha razão!

No nosso “horário” não havia “furos”; estes eram ali substituídos pela palavra “estudo”; ou seja, entravamos num salão enorme onde passávamos 50 minutos a estudar… no mínimo éramos obrigados a olhar para o livro… e, em silêncio absoluto – ouvia-se nitidamente a mosca que ousasse penetrar aquele espaço – íamos preparando as aulas que se seguiam.

Se um professor faltava – acontecia apenas quando o rei fazia anos (ao contrário dos tempos de hoje) os alunos não entravam na sala de aula, ou abandonavam-na de seguida e dirigiam-se ao salão de estudo.

Uma característica terrivelmente sádica era a “segregação” total por sexos; rapazes e raparigas só podiam ver-se (apenas ver) nas aulas. Conversar com uma moça era um risco extremamente grave que ninguém de bom senso ousava correr sem tomar avultadas cautelas e mesmo assim… a segurança era quase sempre diminuta. O perigo rondávanos!

A menina Dina, pessoa de absoluta confiança da diretora, tinha um excelente jogo de cintura para agradar a gregos e a troianos (alunos e diretores); era uma solteirona “de pai e mãe” seca de carne, elegante, sem nada dever à beleza, afável, delicada e sempre bem disposta, era empregada da secretaria e dava umas arrojadas badaladas na sineta; logo os rapazes corriam para as suas salas de aula; só quando já não havia rapazes nos corredores, as meninas podiam avançar para as respectivas salas; no fim da aula os rapazes só podiam ir para o recreio quando os corredores estivessem totalmente vazios (sem as “pequenas”).

Constava (no mínimo era… parcialmente verdade) que a directora mantinha, “impunha” esta austera, quase ignóbil, separação por sexos, porque ela, sendo já dirigente, casou com um ex-aluno, cerca de década e meia mais novo que ela. Dizia-se até que ela casara com um aluno…, mas na verdade, casou com um ex-aluno. Durante o fim de semana o horário continuava rígido, especialmente para os alunos castigados; para os outros havia um pouco mais de abertura.

Sábado à noite, depois do recreio que se seguia ao jantar, mantinha-se o estudo obrigatório durante hora e meia; ao domingo a “alvorada” era às 8 horas; depois do café da manhã, dirigíamo-nos à Igreja Matriz onde assistíamos à missa das 9 horas; de seguida passávamos cerca de meia hora a dar voltinhas ao jardim da vila (hoje cidade); era o nosso “picadeiro”. Mas constava, entre os rapazes, que apenas as moças davam a volta completa ao jardim… circundando a estatueta ao fundo… para dar uma olhada à pilinha do menino – esta estatueta, em bronze, foi recentemente roubada; assim já não há motivo – se é que havia! - para dar a volta completa . Seguia-se nova sessão de estudo durante 90 minutos, cerca das 10:30 às 12, continuando a ser obrigatório olhar para o livro, no mínimo.

Depois do almoço, se o tempo estivesse chuvoso, podíamos ir ao cinema; Se o sol brilhasse, o leque de divertimentos alargava-se de acordo com os gostos individuais: uns iam ao cinema, outros iam ver a Oliveirense jogar, outros escolhiam dar umas voltas no parque de La Salette, outros ainda decidiam fazer uma visita, a pé e “não guiada”, ás aldeias vizinhas; um último grupo dos não castigados ficava intra-muros a dar uns furiosos pontapés de má qualidade numa infeliz bola de borracha – muda aos cinco e acaba aos dez. Os que passavam o fim de semana no colégio, por castigo, não podiam sair à rua no domingo à tarde; passavam grande parte do tempo no salão de estudo; com frequência a directora aproveitava para dar umas aulas da sua especialidade. E assim se passava um domingo… em beleza.

No dia 18 de Março havia confissões gerais (mais ou menos obrigatórias) para os alunos do colégio; no dia 19, dia de S. José, comungávamos e cantávamos na missa especial celebrada em honra do santo na Igreja Matriz. Nesse dia havia “rancho” melhorado.

Alimentação

Os alimentos eram mais ou menos bons e bem confecionados (dependia do clima) e em boa quantidade. Às duas refeições principais, havia dois pratos – caso raro ou único em internatos – exceto no dia em que o almoço constava de bacalhau cozido com todos (apenas couves e batatas) e ao jantar de domingo em que, para aligeirar a carga horária do pessoal da cozinha, comíamos massa de meada cozida ou (guisada), com alguma carne, normalmente bofes.

O segundo prato era invariávelmente arroz; constava ( até seria verdade) que este cereal era fornecido pelo pai do Sr. Diretor, marido da diretora; Ele era proprietário de um ou mais moinhos de tracção por água para descascar arroz e moer outros cereais, em Santiago de Riba Ul.

Naqueles tempos, como o dinheiro não abundava; os pequenos agricultores pagavam o descasque (acontecia o mesmo com a moedura do milho e/ou centeio) em espécie – entregavam ao moleiro uma determinada percentagem do cereal trabalhado (moído ou descascado). Eis o motivo (dizia-se) por que éramos “obrigados” a comer arroz duas vezes por dia. Não consta, porém, que um qualquer aluno tenha ficado com os “olhos em bico” (olhos de chinês) por causa disso. A directora impunha, (quase só aos mais novos) que “todos” os alunos, por uma questão de boa educação, deviam comer (eram obrigados a) tanto do 1º prato como do segundo. Nós entendíamos que ela pretendia apenas ajudar o sogro… a esgotar o arroz das maquias (trabalho pago em espécie).

Certo domingo, no meu primeiro ano, uns 15/20 alunos ficaram no colégio; ao almoço sentámo-nos todos à volta de uma mesma mesa grande. A refeição era salada russa… seguida de arroz… como tinha de ser. Cada aluno encheu completamente o seu prato; eu era talvez o mais novo… mas sendo um “bom garfo” também atestei o meu. Logo a diretora me avisou que eu, (apenas eu) porque era o mais puto, tinha de comer igual quantidade do segundo prato. Frequentemente ela sentenciava o mesmo a qualquer miúdo mas, por vezes, esquecia-se. Daquela vez tal não aconteceu. Apercebendo-se que eu tinha comido a salada russa, pegou no meu prato, colocou-o sobre um aparador e encheu-o de arroz, recolocando-o à minha frente. Fiquei abismado! Os meus amigos, ao verem a minha cara de quase pânico, logo me ofereceram papéis de jornal e envelopes usados para neles embrulhar o arroz exedente e levá-lo para o exterior do refeitório, para ser colocado no lixo.

A diretora, porém, ao contrário do que habitualmente acontecia, estava atenta; colocou-se estrategicamente nas imediações, e olhava-me pelo canto do olho. Enfardei aquela montanha enorme de cereal. De seguida, levantei-me e transmiti-lhe (respeitosamente ) que queria mais um pouco de arroz. Ela assustou-se! Mas ordenou que colocassem outra travessa na mesa; eu retirei dela apenas meia colher de “alpista” para meu prato e comi. Foi remédio santo! Ela não esqueceu! E nunca mais pretendeu que eu comesse tanto do segundo prato como do primeiro! Passei a ser tratado como um dos “grandes”

O diretor, o Sr. Almeida, porém, tinha opinião diferente – só não queria que os alunos saíssem da sala de refeições com apetite; podíamos comer a quantidade desejada de um só prato, à nossa escolha. No meu tempo havia uma refeição semanal de açorda e outra de “farinha de pau”; (mandioca) estes pratos foram banidos ainda no meu primeiro ano – não sei o motivo mas adorei que tal tivesse acontecido; detestava pão “mastigado” por outrem!

Às refeições principais tínhamos direito a vinho; um pequeno copo mais ou menos a meio. Alguns alunos não gostavam da “pinga”… mas faziam o seu negócio vendendo o vinho aos colegas apreciadores do precioso néctar

Salazar dizia – constava – que “beber vinho é alimentar um milhão de portugueses”! A direcção do colégio aplicava ali os ditames do 1º ministro… para o bem e para o mal

Aproveitamento escolar

Regra geral os alunos do C.O.A. apresentavam bons resultados finais (acima da média) em cada um dos liceus habituais (Aveiro e Porto); distinguiam-se pela positiva. Havia ali bons professores; cito apenas alguns, os que mais me agradaram: Dr. Vide, Prof. Santos, Dr.ª Maria José Mourão, Dr. Abel Gandra, Dr. Magalhães Lima, entre outros.

Os direcores (tanto a Dª Maria Adília como o Sr. Almeida) davam aulas de “empreitada”. Próximo dos exames aproveitavam todos os tempos livres… para mais uma aula. Que seca!

No meu 5º ano, o Sr. Almeida comunicou-nos, logo no início, que nunca tinha dado Geometria no Espaço… nem como aluno nem como professor; durante o Verão recebeu aulas do Dr. Fachada… e nós fomos as cobaias… mas houve resultados muito satisfatórios… também nessa disciplina. O Leonel Castro Nunes conseguiu na prova escrita de matemática uma nota excelente – 19,8. Constou que não lhe “deram” o 20 porque ele deixou o resultado da expressão algébrica em √4; não acrescentou = 2; – entendeu que o examinador devia saber que raiz de 4 era 2.

Nesse ano, numa aula de matemática, o Sr. Almeida, comunicou-nos que determinado problema estava mal apresentado, pois o proposto tinha sentido ambíguo. O Leonel logo comentou: - “ai o umbigo” O Sr. Almeida aproximou-se dele e perguntou agressivo, ameaçador:

Sabes o quer significa “ambíguo”? não esperou pela resposta e acrescentou: quer dizer dos dois lados! E logo lhe afinfou uma sonora bofetada em cada face… e não se fala mais disso!

Educação física

Esta era uma situação caricata! Coisa anormal mesmo há 60 anos! Esta disciplina existia somente no… horário. Na verdade, o Prof. Costeira, pai ( que também era professor de português e ciências naturais do 1º ano e era chefe de secretaria) raramente – muito raramente mesmo – comparecia no recreio (o ginásio foi construído mais tarde e não era usado para esse fim) para ministrar aquela disciplina; quando aparecia vinha “equipado a preceito”: sobretudo vestido e cigarro no canto da boca; os alunos compareciam nesta aula “equipados” tal como para as outras disciplinas. Assim nos iniciávamos(?) na Educação Física.

Ele teria sido furriel na tropa… e entenderam que, assim sendo, estaria (?) qualificado para ser o responsável por aquela disciplina. Certamente ainda não haveria o INEF ou quejandos. Era um bom professor de português… mas na Educação Física deixava muito (tudo) a desejar… ponham muito nisso!

Trimestralmente, porém pagávamos determinada verba (creio que 20$00) para actividades da M.P.(Mocidade Portuguesa) a que todos éramos obrigados a pertencer. Não seria assim tão má pois no verão de 2012 o coordenador dos nossos atletas olímpicos defendeu públicamente que seria aconselhável que se recriasse a M.P. – e porque não?!

Um dia, um grupo de alunos pediu ao Sr. Almeida que comprasse uma rede e uma bola para jogar voleibol. Resposta na ponta da língua, eficiente (curta e grossa). - Essa disciplina não consta do horário do colégio! Mas lá comprou aqueles apetrechos para a malta se divertir, treinando sozinhos para participar nos campeonatos da M.P.

A “Escola Livre” (creio que foi mais tarde aglutinada à UDO??) tinha uma equipa das camadas mais jovens que era campeã ou vice-campeã nacional de hóquei em patins. Apenas um desses jovens não era aluno do colégio! Pediram ao Sr. Almeida que comprasse equipamentos próprios para concorrer aos campeonatos da M.P., pois teriam sérias (todas) as hipóteses de ser campeões nacionais daquela salazarista ( ou salazarenta) organização. A resposta foi um rotundo NÃO! Nada a fazer! O Sr. Almeida estava mais interessado nos estudos do que na componente fisíca; convinha-lhe que os alunos tivessem boas notas que ele podia exibir perante os progenitores dos novos candidatos; Naquela altura os romanos” ainda” não teriam inventado e espalhado pelo mundo de então a sua célebre frase: “mens sana in corpore sano”. Frequentámos o colégio demasiado cedo.

Fim da 1ª parte Outubro de 2012
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 13 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10378: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (27): O "Engrácio"

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10378: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (27): O "Engrácio"

1. Em mensagem do dia 3 de Agosto de 2012, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), enviou-nos três das suas histórias e memórias. Segue-se a terceira:



HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES (27)

“O Engrácia”

António Engrácia dos Reis era (faleceu de doença prolongada em 20 de Janeiro de 2000 – quase não virava o século) um “alentejano puro” – assentar-lhe-ia muito bem o qualificativo “chaparro”; respondia sempre à chamada; na hora pré-determinada… ele estava no local certo! Comparecia sempre onde era necessário; ninguém o via fora do lugar onde deveria encontrar-se ou comparecer em cada momento. Era um cumpridor nato… sem nunca dar nas vistas; nunca conheci ninguém que, sendo cumpridor, desse menos nas vistas do que ele.

Natural da zona de Beja – Mombeja, era a sua aldeia natal – era o que poderia dizer-se analfabeto “de pai e mãe”; não conhecia uma letra do tamanho do convento de Mafra, porque não enxergaria uma letra tão pequena.

Nas aulas regimentais que fizemos funcionar em Binta, nos intervalos da Guerra, e/ou quando ela fechava para descanso dos intervenientes, aprendeu a ler qualquer “coisinha”, a escrever o seu nome… e pouco mais. Dadas as circunstâncias, não podemos dizer que fosse um mau aluno.

Estatura abaixo da média, suficientemente resistente, ultrapassou todos os obstáculos da instrução, bem como os que lhe foram surgindo durante os dois anos de Guiné. Mesmo no mato, ninguém se apercebia que ele estava lá, mas nunca faltou ao cumprimento do dever; não escolhia lugares mas estava sempre no sitio certo. Não deu azo a louvores… mas também não houve motivo para reprimendas.

Na maioria dos casos, eu escolhi os nomes pelos quais os soldados deveriam ser tratados. Neste caso decidi que ele seria “Engrácia”, porque já havia um Reis e raramente aconselhei o primeiro nome… a não ser que fosse significativo. Alguns pensaram que o “Engrácia” seria alcunha, mas a breve trecho, aperceberam-se da verdade.

Depois da tropa casou-se com uma mulher da sua aldeia… para não fugir à regra. Embora proprietário de uns pedaços de terra - num deles havia uma nascente de óptima água, coisa rara na doirada planície alentejana – abandonou o seu Alentejo natal e rumou a Lisboa. A esposa arranjou emprego como porteira de um prédio da Rua de Entrecampos; o Engrácia conseguiu colocação na Central de Cervejas onde trabalhou… até à pré-reforma.

Quando o General Tomé Pinto comandava a GNR, deslocou-se a Valença para inaugurar um quartel daquela força para-militar. O Ex-furriel R. Figueiredo ofereceu um lauto almoço a toda a comitiva; entre as sobremesas havia um bolo imponente com o emblema da CCaç 675; ninguém estragou aquela obra “quase” de arte. O Figueiredo sugeriu, ao General, que trouxesse aquela guloseima para saborear com a rapaziada de Lisboa. O General telefonou-me “ordenando” – a sua vontade, é para nós mais que uma ordem – que convocasse uns tantos companheiros para um almoço no quartel do Carmo, no Domingo seguinte; o tal bolo seria saboreado à sobremesa.

Telefonei ao Engrácia solicitando que me acompanhasse até ao Cacém e seus limites a fim de convocar alguns companheiros que por ali moravam.

Serviço feito, almoçámos em minha casa. Enquanto bebíamos um copo, aguardando o almoço, o Engrácia perguntou-me, com um sorriso débil nos lábios:
- Oh meu alferes! Lembra-se daquele pontapé que me deu quando estávamos em Guidage? Tentei recordar-me… e respondi:
- Sinceramente não me lembro de te ter dado um pontapé! Sei que dei pontapés e bofetadas a outros soldados… não me recordo do teu caso. O Engrácia logo comentou, honestamente:
- Foi bem dado!... Mas foi bem merecido!
- Assim sendo, fico contente! Se me acusasses de ter sido injusto… aí sim! Eu ficaria aborrecido comigo; considero lamentável e recriminável o facto de um chefe ser deliberadamente injusto. Sabes que os castigos à ordem, além do castigo em si, tinham no futuro consequências graves para os visados, e podiam produzir efeitos durante toda a vida.

O Engrácia, enquanto viveu em Lisboa, era frequentador assíduo das nossas reuniões anuais. Logo que atingiu a “pré-reforma”, partiu para a sua Mombeja natal. Antes de partir, comunicou-me que queria ter uma conversa comigo. Transmitiu-me que ia tratar doutra “reforma” no Alentejo. Comprou uma certa quantidade de ovelhas que ele considerava a sua nova “pensão vitalícia”.

Dois ou três anos mais tarde, convidou-me a visitá-lo na sua santa terrinha, pois tinha lá uma lembrança para mim. Combinámos o dia e num belo domingo compareci em sua casa; ele andava no campo, apascentando o rebanho. Fui ao seu encontro. Fiquei surpreendido, boquiaberto! À sua volta eu só via ovelhas; tinha ali mais de 600 cabeças; para mim era um rebanho infindável.

Quando ele considerou oportuno, ordenou a um “rafeiro”, um pequeno vira-lata que por ali vagueava:
- Bandarra! (era o nome do cão) mete as ovelhas lá dentro!

O “canito” (era mesmo pequeno mas reguila) começou a correr e a ladrar à volta das ovelhas e, em poucos minutos, o gado estava todo dentro de um desmesurado redil – uma vedação em rede com cerca de 4 metros de altura. Surpreendeu-me a maneira como aquele animalejo começou logo a trabalhar e o modo e rapidez como as ovelhas obedeceram. A caminho de casa, passámos noutra propriedade onde havia a tal enorme nascente de água; ali se formava um pequeno regato. Numa poça estava mergulhado um pesado enxadão. Eu perguntei:
- Que faz aquela enxada ali metida na água?
- De manhã, antes de o sol nascer, comecei a cavar aquele pedaço de terra; quando a ferramenta ficou “em brasa”, meti-a na água para arrefecer e, enquanto isso, fui tratar das ovelhas.

O Engrácia também tinha a sua graça.

Ali havia várias edificações, todas térreas, onde ele guardava as ovelhas na época da chuva. Havia também mais de uma dúzia de árvores de fruto variadas. O verde exuberante daquela zona contrastava fortemente com o pardacento da charneca ali à volta.

O Bandarra não largava o dono; era a sua sombra! Comia de tudo o que o Engrácia comesse: maçãs, laranjas ou nêsperas; bebia água, vinho e cerveja. Era engraçado aquele bichinho!

Lá em casa, a esposa tratava do almoço; não recordo o que comi, mas jamais esquecerei os maravilhosos queijos e os deliciosos enchidos e saboreei em grande, antes do almoço. Conversámos longamente! Pouco antes da despedida, o Engrácia entregou-me a prenda prometida: um borrego com cerca de 12 kg, de bela carne, já esfolado e pronto a confeccionar; só faltava cortar e temperar a gosto.

Meio ano mais tarde, a esposa informou-me que ele estava gravemente doente: tinha um tumor maligno na cabeça. Visitei-o três vezes, sempre com outros companheiros da CCaç 675. Da última vez já não almoçou connosco. A esposa disse que ele tinha dores horríveis!

Mais uns dias… e fomos ao seu funeral!

Voltei a Mombeja há cerca de um ano para colocar uma singela lápide da CCaç 675 sobre a laje da sua sepultura.
Que a terra lhe seja leve…
Ele merece!

Julho de 2012
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 10 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10359: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (26): A reserva de quarto

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10359: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (26): A reserva de quarto

1. Em mensagem do dia 3 de Agosto de 2012, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais três das suas histórias e memórias. Segue-se a segunda desta série:


HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES (26) 

A Reserva de quarto

1º. Ato

Os hotéis são, diariamente, um manancial quase inesgotável de acontecimentos divertidos, danosos, agressivos, cómicos; uns por serem mais ou menos originais ou singularmente engenhosos ficam gravados por mais tempo na nossa memória; outros não são facilmente esquecidos, porque nos lesaram economicamente com maior ou menor gravidade.

Certos clientes, para conseguirem uma qualquer benesse, alegam ser amigos dum primo ou parentes da prima do diretor; outros conseguem iludir (ou tentam) a atenção dos rececionistas enquanto a soma das suas diárias vai aumentando, todos os dias, por vezes perigosamente, para depois aplicarem o golpe final e total; outros, ainda, dão-se ao cuidado de aparecer com uma volumosa mala pesada para convencer o bagageiro e/ou porteiro de que são possuidores de valiosa e densa mercadoria… trazendo dentro da mala apenas – pasme-se! – Uns três ou quatro tijolos.

Não enumero, por certo, mais destes ardis, apenas para, por precaução, evitar que alguém ainda leigo (se é que alguém vai ler este texto) ou ainda pouco experiente nestas andanças possa vir a utilizá-los (sem gastar fósforo a inventá-los) contra os hoteleiros mais distraídos ou confiantes.

O que agora vou narrar não consta dos alfarrábios das burlas nem com a elas tem qualquer parentesco e não consta, portanto, do rol dos embustes, mas tem, assim o creio, uma certa dose de graça.

Uma senhora telefonou para a receção do Hotel Dom Carlos Park (não se trata de publicidade) para proceder a uma reserva dum quarto duplo para determinada data. O rececionista aceitou o pedido, registando-o no respetivo livro, indicou o preço e as regras essenciais para aceder ao quarto e outras. A senhora, porém, manifestou um segundo desejo:
- Pretendo pernoitar no mesmo quarto no qual dormi (será mesmo que dormiu?!) há cerca de dez anos.
- E qual foi o quarto? – Perguntou o funcionário, solícito.
- Não me lembro do número mas recordo que havia uma coluna da estrutura do edifício mais ou menos a meio!
- Com esta informação tudo fica, ainda, mais difícil de solucionar; na verdade nós temos 16 quartos com um pilar no seu interior! Mas não se preocupe! Eu vou pesquisar os nossos registos e a senhora dormirá, com toda a certeza, no mesmo quarto que utilizou na data que indica.

Naquela data, ainda, não havia computadores mas os manuscritos eram guardados durante anos e anos. Uns dias passaram! Na data aprazada para a sua reentrada pouco antes das doze horas, duas senhoras apareceram no hotel, abeiraram-se da receção, pedindo autorização para colocar um bonito e enorme ramo de flores no quarto já atribuído à tal cliente, a senhora Rosa – nome fictício - ; alegaram que eram suas colaboradoras noutro hotel de Lisboa; ficámos a saber que a dita cliente era governanta geral; que ela tinha pernoitado no H.D.C. na noite de núpcias e volvidos dez anos, ela pretendia voltar ao local do crime, não! Não houve, por certo, delito algum. Nada digno de registo, que se saiba, ocorreu no dia da sua reentrada no Hotel Dom Carlos para ali pernoitar, mais uma vez, após um interregno de 10 anos.

No dia seguinte, ao fim da manhã a senhora apareceu na receção para pagar a conta; o marido colocou-se estrategicamente, junto à porta de saída…, para o que desse e viesse. Ela ria-se imenso! Delirava por todos os poros! Parecia que conhecia os funcionários há vários anos!

A cliente, exuberante, contou que as suas colaboradoras lhe haviam pregado uma partida da qual gostara imenso e pretendia saber os nomes delas.
- Isso é impossível! Como elas pretendiam, apenas colocar flores no quarto não considerámos necessário identificá-las.

Ela solicitou ao rececionista que descrevesse a fisionomia das ditas colaboradoras, com a minúcia possível. Assim foi feito! Logo ela declarou que aquela informação era preciosa; ficou convencida que havia descoberto as autoras da brincadeira… que tanto lhe agradara!

De seguida contou, com muitos detalhes (não todos por certo), o papel que as suas colaboradoras haviam desempenhado na perfeição:
- Colocaram um faustoso e agradável ramo de flores bem frescas sobre a cama; com batom fizeram uns desenhos “esquisitos” no espelho e beijaram-no, deixando ali as marcas do baton dos seus lábios. Não satisfeitas, colocaram “um das caldas”, imponente, sobre a mesa-de-cabeceira; penduraram, ainda na face interior da porta, uma enorme fotografia pornográfica. Adorei! Adorei! Adorei! Estava tudo muito engraçado! Mas vou vingar-me delas! Não imaginam o que vai acontecer-lhes! Isto tudo, porém, é uma prova do enorme carinho que elas nutrem por mim! Mas não posso deixar de retribuir acrescentando uma boa dose de juros.

2º Ato

Mesmo ao lado do balcão da receção encontrava-se um senhor brasileiro, nosso cliente havia vários anos; vinha 3 ou 4 vezes por ano a Portugal e passava no hotel cerca de um mês de cada vez. Saía do hotel, apenas, três ou quatro vezes, durante a sua estada; um dia ia a Figueiró dos Vinhos visitar uns familiares, noutro dia ia a Fátima; uma noite ou outra saia para jantar com uns amigos… e mais nada. Este cliente entrava, deliberadamente, em todos (quase) os recantos do hotel; por vezes tomava o pequeno almoço no meu gabinete (para não pagar uns telefonemas) e frequentemente “invadia” o refeitório do pessoal onde petiscava e jogava lá uma “suecada” ou disputava uma partida de xadrez.

Eu disse várias vezes:
- Este cliente já está à carga! Já faz parte da mobília.

O sr. Maneco (o cliente de quem se fala,) é ainda nosso cliente, mas menos assíduo… a velhice é uma treta”) ouviu toda aquela conversa e pediu desculpa por se intrometer no diálogo; perguntou se podia contar o que acontecera a um casal seu amigo na comemoração duma data semelhante… mas com outros números… mais uns anos. A cliente acedeu delicadamente àquela solicitação e acrescentou que adorava ouvir estórias engraçadas… e, se com pimenta… tanto melhor.

Ele começou:
- Uns amigos meus iam comemorar 40 anos de casados; decidiram passar aquela noite no mesmo hotel onde pernoitaram na noite de núpcias e que iriam repetir (tentar) tudo o que haviam feito naquela noite muito especial.
Jantaram no restaurante do hotel. De mãos dadas olhavam-se muito ternurentos; sorriam por tuno e por nada.
O empregado serviu a sopa! Pouco depois, com voz trémula de emoção, ela sussurrou ao ouvido do marido:
- Estou a sentir os mesmos calores de há 40 anos! - Mas desta vez – respondeu o marido “derretido de amor” – meteste o seio no prato da sopa.

Acabado o jantar, passearam um pouco no jardim fronteiro ao hotel; quando entenderam, reentraram e dirigiram-se ao mesmo quarto onde haviam passado a noite de núpcias havia 40 anos. Ao entrar no aposento a esposa lembrou ao companheiro o que haviam acordado: deveriam fazer tudo tal como na primeira noite de casados; eu vou em primeiro lugar mudar de roupa, na casa de banho e depois vais tu! Foi assim que procedemos na outra vez.

Quando o marido saiu do banheiro, ela já na cama, comentou, sorridente:
- Está tudo a decorrer como da outra vez! Até a tua gargalhada na casa de banho! - Mas da outra vez – respondeu ele preocupado – eu ri-me porque urinei para o nariz;… hoje… molhei os chinelos!

A matéria húmida… seria semelhante… o modus faciendi era diametralmente oposto. Coisas que acontecem… quando menos se espera!

No meu tempo de tropa, os soldados diziam: “Na tropa, a velhice é um posto”! Hoje virando o disco, afirmamos: “a velhice… é uma treta”!

Lisboa, Agosto de 2012
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 6 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10342: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (25): "O Aguardente"

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10342: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (25): "O Aguardente"

1. Em mensagem do dia 3 de Agosto de 2012, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais três das suas histórias e memórias. Segue-se a primeira desta série:


HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES (25)


O “AGUARDENTE”

O soldado n.º 2377 do 2.º pelotão da CCaç 675, de seu nome completo Silvestre Fernando Verges Flor, recebeu aquela alcunha (aguardente) durante o 1.º ciclo de instrução que lhe foi ministrada noutra unidade por onde passou. Quando deu entrada no RI 16, integrou-se na gloriosa CCaç 675, já sobejamente conhecido por esta alcunha; ninguém o conhecia pelo seu nome legítimo. Mesmo hoje, qualquer elemento da nossa Companhia recorda com amizade e carinho o aguardente… mas pouquíssimos sabem quem é o Silvestre F. V. Flor.

Creio bem que é fácil depreender qual é a origem desta alcunha que se sobrepõe completamente ao nome de nascimento, abafando-o por completo. Isto ainda hoje acontece, muito frequentemente nas nossas aldeias; muitas vezes a alcunha passa até de pais para filhos, e casos existem em que passa a ser registada como nome. É natural de Figueira de Castelo Rodrigo onde actualmente tem residência fixa numa volumosa vivenda com um jardim ao longo de duas faces da casa.

Regressou da Guiné em 1966; passados uns meses junto da família, emigrou para a França; radicou-se em Paris, onde viveu com a família (esposa e dois filhos) até se reformar.

Todos os anos vinha com a cara metade e os rebentos passar um mês de férias na sua terra natal, onde recentemente voltou a fixar-se.

Ninguém terá pensado nisso, mas a Guerra do Ultramar serviu também para desenraizar os mancebos das suas aldeias de nascimento, retirando-lhes a protecção que lhes era proporcionada pelas saias da mãe. Antes de 1961 a maioria dos rapazes da província assentavam praça num dos quartéis do distrito. Quanto à minha região a maioria ia para Aveiro; um ou outro ia até à Figueira da Foz ou Coimbra; conheci um que foi parar ao Porto. No resto do interior do país aconteceria sensivelmente o mesmo.

Lembro-me apenas de um jovem que, contrariando todas as regras da época, nos idos 1940, foi cumprir serviço militar em Tancos. Diariamente, todas as mães da aldeia juntavam-se em casa dos pais daquele “azarado” magala, para… chorar dolorosamente e rezar com muita fé por aquele militar porque foi “ desterrado para o fim do mundo”. Era assim que, com tristeza e dó, manifestavam a sua dor e se associavam ao pesar da mãe.

Os jovens, por norma, cresciam, casavam e morriam nas aldeias onde nasceram ou nas povoações circundantes. Lá diz o ditado: “quem longe vai casar ou se engana ou vai enganar”.

O Silvestre Fernando era fisicamente bem constituído, robusto e duro; era um puro beirão (da alta); estatura pouco mais que média, sempre bem disposto, alegre e folgazão; era um desenrascado nato, sempre pronto a ajudar os outros a libertarem-se dos apertos em que, voluntariamente ou não, haviam caído. Tinha conversa fácil, atilada q.b., tinha um bom poder de argumentação – o pobre podia abandonar a porta sem esmola… mas não ia sem resposta. Naquela época, com 22 anos, já o cabelo rareava (talvez pelo efeito do capacete); hoje com o pouco “pelo” que lhe resta, usa um rabo-de-cavalo; faz-lhe falta um brinco… como lhe assentaria bem!

Durante o tempo que permanecemos em Bissau – cerca de mês e meio – os soldados andavam todos com os nervos em frangalhos, à flor da pele, emocionalmente descontrolados, porque, em vez de aferrar em Moçambique, como previsto, aportaram a Bissau! Autêntico descalabro!

Como consequência, os soldados desentendiam-se a todas as horas, por tudo e por nada e, com frequência, defendiam a sua dama… à bofetada.

O Flor – mas que flor! – e outro soldado desentenderam-se e agrediram-se mutuamente. Como estes casos eram bastante frequentes e não se via o fim da meada, o capitão Tomé Pinto procurou pôr água na fervura: ordenou, sem citação em O.S., que eu instaurasse um processo disciplinar. Ouvi os arguidos e testemunhas e elaborei cuidadosamente “a justa” sentença que se segue:

O Silvestre, porque provocou a contenda, é punido com cinco dias de detenção; o Frazão porque não soube evitá-la, cumpre três dias de privação de saída. Com estes castigos, as suas cadernetas continuaram “limpas”.

As admoestações foram afixadas em local bem à vista de todos para que se apercebessem que passava a haver castigos para quem usasse a força para decidir desentendimentos.

Todos acharam graça aos castigos aplicados! O certo, porém, é que a sentença resultou em pleno – todos passaram a entender-se bem e sem uso da força.

Numa bela tarde soalheira, em Binta, o Verges Flor foi protagonista dum acontecimento insólito, inimaginável.

Tínhamos surripiado umas dezenas de vacas aos “Turras” do Oio; no Domingo seguinte houve festa brava: ferrámos o “nosso” gado!

Uma das “nossas” vacas que marrava estupidamente, foi a última a ser ferrada; houve lugar a toureio (ameaça de) e o aguardente, sem saber como, fez uma pega… mirabolante. Ele distraiu-se, na “arena”… a vaca atacou furiosa e sorrateira; já sem tempo para fugir… curvou-se para a frente e… embarbelou-se – uma pega magistral. Este acto, a todos os títulos ousado, não saiu da memória nem do álbum de fotografias do Silvestre. Sempre que é oportuno, ele relembra a sua arte em tauromaquia, especialmente aquela pega prodigiosa e audaz. E ele nem era da região de touros, toureiros ou pegadores.

Enquanto esteve em Paris, o aguardente vinha a Portugal no mínimo uma vez por ano.

Durante umas férias da emigração, foi passar uns dias ao Algarve, com a família; no regresso visitou-me no Hotel Dom Carlos Park, onde pernoitou. Tivemos oportunidade para ali recordar as suas habilidades e façanhas, falámos da nossa passagem pelo norte da Guiné. Ninguém esquece aqueles anos! O sacrifício foi grande, mas… resta a amizade cimentada na guerra.

Nunca participou nas nossas reuniões, porque vinha a Portugal sempre no Verão. Mas tomou parte numa “mini” confraternização; - Contando com as esposas, éramos dez – num restaurante em Vilar Formoso, sito no rés-do-chão da vivenda do companheiro Espinha. Foi uma “mini” impagável, inesquecível. Os participantes eram divertidos e estavam inspirados. O Espinha (cara-rota) com os seus pés chatos foi o bombo da festa; todos malharam nele mas o aguardente também ouviu das boas!.

O Silvestre Flor veio algumas vezes de mota de Paris até Figueira de Castelo Rodrigo.

Um dia o Flor, talvez para fazer jus à sua alcunha, entendeu que devia entrar de mota no jardim da sua casa, sem passar pelo portão; não ousou saltar sobre o muro com a mota. Arranjou uma prancha de madeira larga q.b., suficientemente comprida e resistente. Apoiou-a, inclinada, sobre o muro e subiu por ela com a mota; a ponta superior da prancha ficou cerca de meio metro ou mais dentro da vedação; devido ao peso na extremidade superior, a prancha virou por cima do muro, abatendo-se pesadamente sobre a cabeça já descabelada do incauto Silvestre, que caiu inanimado. Recuperou em escassos segundos! Aprendeu logo como não devia passar por cima do muro… não repetiu a experiência.

É pai de dois filhos, um casal; ela é professora do ensino secundário e o filho vive em França.

O Silvestres sente-se orgulhoso porque casou com uma moça nascida em Ligares, aldeia contígua a Maçores, a Terra Natal do Gen Tomé Pinto. Até isto serve para se colocar nos píncaros!

Já me prometeu estar presente na nossa confraternização do próximo ano. Não costuma faltar à palavra dada. É um bom pagador de promessas! Costumava ser!

Lisboa Junho 2012
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 26 de Junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10075: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (24): O Soldado Lua

terça-feira, 26 de junho de 2012

Guiné 63/74 - P10075: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (24): O Soldado Lua

1. Em mensagem do dia 20 de Junho de 2012, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais uma das suas histórias e memórias, desta feita falando da irreverência do Lua.

HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES (24)

O Lua

JPC – para “nós o lua” porque tinha (e tem graças a Deus) um frontespício arredondado, tipo lua cheia – era um soldado da CCaç 675.

Nasceu no concelho de Porto de Mós precisamente ao lado do “campo da batalha” onde Nuno Álvares Pereira “tratou da tosse” aos invasores castelhanos - hoje são ”nuestros hermanos”.

Estatura abaixo da média, era entroncado e bastante resistente – era! Frequentemente desleixado ou até um tanto abandalhado; conversava barato mas fluente… na asneira; tinha bom poder de argumentação mas não convencia ninguém. Eram falazes, regra geral, os seus argumentos. É daqueles a quem a tropa fez bem… mas pouco!

O Lua era até um bom rapaz, porque… não há rapazes maus. Não sendo frontalmente contrariado até era fácil convencê-lo a entrar nos eixos, mas por pouco tempo. Na tropa porém, a voz de comando tem de ser igual para todos – se não for, provoca indisciplina … contagiosa e perigosa – aí o Lua fazia das suas. E como ele sabia fazê-las!

Umas vezes por tudo ou por nada, outras com ou sem motivo, brigava com tudo e com todos mas nunca – creio mesmo que nunca! – se saiu bem dos conflitos pessoais em que deliberadamente se envolveu: levava sempre… para não variar!

A breve trecho os seus companheiros de secção descobriram a maneira de não despoletar as irascibilidades do Lua: - não contrariar, mas apoiar… verbalmente, pelo menos na aparência.

Quando desembarcámos em Bissau, os soldados (praças) foram alojados nuns armazéns velhos e imundos próximos da saída do cais e que não tinham as condições mínimas de habitabilidade; nem uma janela havia! Soldado sofria… p’ra burro!

Corria o mês de Maio; o calor sufocava; respirava-se mais água que ar. Ali cheirava muito a…, muita gente junta. Fora dos muros havia um terreno – terra batida e poeirenta – onde os cozinheiros distribuíam a comida. Não havia mesas nem bancos… “piquenicavam" a todas a refeições. Os soldados, marmita na mão, passavam em fila indiana em frente da cozinha improvisada e recebiam o desejado alimento, na presença atenta do oficial de dia.

Eu estava de serviço nesse dia; o almoço constava de sopa, batatas guisadas com carne, pão, vinho e fruta – um luxo!, só faltava o bagaço e o café. Os géneros pareciam em bom estado e a comida agradou dum modo geral a quem a utilizou! Era o que se escrevia no relatório do oficial de dia nas “guerras” de cá, naqueles tempos. Tudo corria normalmente, mas a certo momento apercebi-me que um cozinheiro (o Sines) e o Lua altercavam nervosamente. Perguntei qual era o motivo daquela contenda sem nexo; o cozinheiro esclareceu:
- Estou a dar uma concha de batatas a cada um e depois há repetição para os interessados; o Lua pretende receber agora a repetição; é o único que levanta problemas… procura sempre sarilhos; inventa-os quando não existem!
- Ouviste?!, perguntei eu ao Lua – vais comer o que tens na marmita e depois vens à repetição; há comida quanto baste para todos! Ninguém sairá daqui com fome!

O Lua virou costas mas, apercebendo-se que eu me afastei do local, voltou até junto do cozinheiro, barafustando por mais comida sem ter ingerido, ainda, a que já tinha recebido.

Interferi de novo, aconselhando-o a cumprir o que lhe havia sido transmitido. O Lua, porém, não era capaz de cumprir o quer que fosse à primeira; minutos mais tarde, sem ter comido, ainda a primeira dose, voltou à carga e já havia discussão brava; antes que a conversa azedasse definitivamente entre eles, aproximei-me de novo e transmiti ao Lua com ar irritado e em voz mais audível:
- Já te disse que, enquanto não comeres o que tens na marmita, não receberás mais guisado; vai-te embora!

O Lua permaneceu imóvel, a olhar para mim com ar estranho. Peguei-lhe no braço, fi-lo dar meia volta, empurrando-o levemente em direcção ao local onde devia comer. O Lua voltou-se rapidamente com ar agressivo; apercebi-me que ele iria sacudir a marmita; depreendi logo: - “aí vêm batatas”! E vieram mesmo! Baixei-me de imediato, mas algumas “aterraram” na minha boina. O Lua fugiu! Eu iniciei a perseguição; a fuga não tinha qualquer hipótese de sucesso, porque o recinto estava cercado de arame farpado e o portão, do mesmo material, estava fechado. Eu corria “por dentro” o que ajudava bastante, e o Lua até nem era grande velocista. Mal me coloquei a seu lado dei rapidamente um quarto de volta para o lado dele (à esquerda) e, em simultâneo, “assentei-lhe” uma valente bofetada de frente naquela sua cara bolachuda; apareceu sangue no nariz e na boca; levou mais uns tabefes – o Lua apenas tentou proteger-se; não vislumbrei qualquer tentativa de ataque. Ficou apenas com o “almoço”!!! Que eu lhe dei… nem pediu repetição!

Fui almoçar à messe dos oficiais (como habitualmente) lá para as bandas do Quartel-General, local onde hoje funciona um hotel; quando encontrei o comandante da companhia, relatei-lhe o que tinha acontecido.

O capitão comentou:
- Agiu corretamente! Faça a participação para se instaurar um processo disciplinar! Tem havido muitas contendas! Temos de travar a fundo! Os soldados ficaram abalados, tristes e nervosos porque, em vez de aportar a Moçambique, vieram parar à Guiné! Temos sido condescendentes mas isto parece que não vai lá com panos quentes! A bem ou a mal vão entrar nos eixos!

Eu respondi:
- Meu capitão! Se considera necessário e conveniente, eu participo; em meu entender, uma segunda punição, não é necessária; ele já tem quanto baste. Além disso, eu entendo que o castigo na hora é o mais eficiente. Algo mais que se lhe dê… é excesso!
- Assim sendo, não participe! Na verdade devemos evitar os castigos em O.S. (Ordem de Serviço) – o castigo oficial que vai “sujar” a caderneta individual – tanto quanto possível; os castigos na tropa não deverão ter consequências na vida civil.

Mas tinham! Devo informar que um soldado com castigos oficiais não podia vir a ser funcionário público; as empresas do Estado e as grandes empresas privadas seguiam a mesma via. Por outro lado, não há nada mais eficiente que o castigo no momento. Que sentido faz um castigo aplicado anos depois de se ter cometido a infração?!

De acordo com a minha proposta, o caso ficou sanado.
Tivemos um caso de um furriel que tendo sido punido na Guiné, quando chegou à sua terra já não tinha o lugar que antes ocupara na Repartição de Finanças local..

Uns dias mais tarde chegámos a Binta; o perímetro do aquartelamento, para efeito de defesa do mesmo, foi dividido pelos três grupos de combate; cada pelotão devia preparar a defesa da sua zona abrindo valas, construindo abrigos, postos de vigia; sempre que um pelotão não ia para o mato, tratava da defesa da sua zona; Cada secção abria uma determinada extensão de vala para “homem de pé”; concluída a tarefa os soldados refrescavam-se no rio de águas turvas e salgadas e ainda sobraria tempo para escrever carta à garota, antes do almoço.

O Lua “ditava logo as suas leis” aos companheiros de secção impondo como a vala devia ou não devia ser aberta. Os ouros soldados sentavam-se e apenas comentavam:
- O Lua é que sabe! Ele é que tem os livros!

Então era vê-lo a trabalhar (quase sozinho) por três ou quatro, mas resmungando sempre:
- Pensam que são doutores! O dinheiro não cai do céu aos trambolhões! Nunca serão nada na vida! Hão de ter um bonito enterro!

Os companheiros descobriram em pouco tempo como evitar sarilhos; se alguém contrariasse o Lua… haveria briga pela certa. Um dia no refeitório que construímos em Binta, travou-se de razões com o soldado Castro, de outro pelotão, por causa de um bocado de pudim; O Castro encheu a mão com pudim e “afinfou-lhe” uma sonora bofetada na cara que ficou argamassada com o pudim. O Lua foi lavar a cara imediatamente… refrescou as ideias. Não houve contenda… porque o Castro era um grande matulão… abrutalhado até… e um poço de força.

No dia 4 de Julho de 1964, no regresso de Lenquetó, o nosso batismo de fogo, 2 grupos de combate foram emboscados e tivemos logo 2 feridos graves; veio o heli mas não podia aterrar devido ao fogo inimígo. Estávamos cercados. No meio de uma confussão infernal o Lua rastejou até junto do enfermeiro, o nosso JERO, com o fim de pedir um comprimido para as dores de cabeça. Não haveria comprimidos suficientes para todos! Seríamos uns oitenta com intensas dores de cabeça. O JERO lá conseguiu, não sei como convencê-lo a voltar ao seu posto. Depois de evacuados os feridos e com apoio de dois “T6” mandámos as dores de cabeça… às malvas e, debaixo de fogo farto, abandonámos corajosamente aquele local, provocando numerosas baixas ao inímigo.

Desde 1967, o Lua foi um frequentador assíduo das nossas confraternizações anuais; de início, cada ano trazia mais um filho. Era um dos indefectíveis. Regra geral não lhe cobrávamos os almoços dado que vivia com certas dificuldades. Quando os filhos se tornaram adultos… passaram a pagar, pois todos trabalhavam para o mesmo monte. Há cinco anos reunimos em Campo Maior, nas instalações da Delta. Como sempre o Lua estava lá! Na hora de pagar anunciou que ia ao multibanco; foi… e não voltou! Por descargo de consciência informei o capitão do sucedido que logo sentenciou:
- No próximo ano, se ele comparecer, não come sem pagar os dois almoços!

No ano seguinte, no terreno do “JERO,” (Alcobaça) o Lua compareceu… com ar comprometido; “esqueci” a ordem do grande chefe e só lhe cobrei o almoço desse ano! Não lhe falei do seu comportamento anterior; mas coloquei-lhe a mão no ombro, e, sem que ninguém ouvisse, transmiti-lhe amigavelmente:
- Deves comportar-te como adulto! Lembra-te que já tens netos e deves dar-lhes bons exemplos! Pensa nisso!

O Lua desfez-se em desculpas! Tudo terminou ali!

O seu único filho do sexo masculino veio sempre com os pais às reuniões da companhia. Já casado, estava sempre presente. Um dia conversou mais demoradamente comigo e fez-me a seguinte proposta:
- Como calcula, um dia o meu pai deixará de comparecer a estas confraternizações que eu considero muito especiais; eu nasci e cresci sempre neste ambiente. Eu gostava de, por impedimento de meu pai, ocupar o lugar dele; posso contar com o seu acordo?
- Oh! João!, tu já participaste em mais reuniões que alguns dos nossos ex-combatentes; por direito próprio, tu já és um dos nossos! A partir de agora eu não esquecerei de enviar a convocatória também para ti, independentemente da que enviarei ao teu pai; oxalá as envie, por muitos e bons anos aos dois.

O filho do Lua foi comparecendo na companhia do pai até que, num acidente de caça… desapareceu de entre os vivos!

O bom do Lua aguentou mais esta “bomba”! Com muita coragem… muita resignação… muita valentia; portou-se heroicamente. Elas não matam… mas nunca mais foi o mesmo… nem física nem moralmente! Tem andado com a borda um tanto debaixo de água… talvez também pelos excessos antes cometidos. A saúde começa a abandoná-lo.

A mãe do Lua era massagista do clube lá da terra. Um dia, já casado e pai de vários filhos, foi à bola; desentendeu-se com um GNR e tentou agredi-lo; para não variar… levou das boas e passou algumas horas no posto; pagou não sei quanto para não pernoitar lá – o que desequilibrou ainda mais o seu, já de si parco, orçamento familiar – esposa sofre!

O Lua telefona-me com frequência… assiduamente mesmo; é certamente o soldado que mais vezes me telefona; não ficou zangado comigo… nem podia! A briga foi entre o soldado e o alferes… não envolveu o C nem o T. Há que saber separar as águas! E ele tem sabido!

Recentemente telefonou-me eufórico; foi há poucos dias: queria experimentar se o seu novo telefone por cabo funcionava devidamente; aderiu à TDT via cabo e quis comemorar com o amigo!

Mais recentemente, 2 semanas depos do nosso almoço – convívio, telefonou-me a informar que a CCaç 674, a irmã gêmea da CCaç 675 ía realizar mais uma confartenização a 27 de Maio; o organizador informou que era o 18.º Convívio. Nós levamos 46 noutros tantos anos soubemos também pelo ex-1.º Cabo Oliveira que aquela companhia teve na Guiné mais de 15 mortos (já lhes perdeu a conta).

Pobre rato! Os excessos que cometeu na vida e os imponderáveis trazem-no acabrunhado… de rastos! Não admira! Também depois do que sofreu com a morte prematura do filho… daquela maneira! Bem tenta parecer o mesmo… mas não consegue. Não deixa de ser um bom rapaz! – nem podia!

Que Deus o ajude!

Maio de 2012
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 21 de Maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9933: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (23): A TV na nossa guerra

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Guiné 63/74 - P9933: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (23): A TV na nossa guerra

1. Em mensagem do dia 16 de Maio de 2012, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais uma das suas histórias e memórias, relembrando desta vez as mensagens de Natal dos combatentes da Guerra do Ultramar gravadas em África e passadas na RTP.


HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES (23)

A TV na (nossa) guerra

Durante os anos 60/70 (século passado) a RTP era o único canal televisivo generalista a penetrar diariamente em nossas casas; os outros foram aparecendo um após outro depois da revolução… dita dos cravos.

Como competia a uma instituição do aparelho político (único) dava cobertura à patriótica missão dos nossos bravos militares na então “Guerra de Ultramar”; hoje segundo a vontade de alguns diz-se “guerra colonial”; sirva-se cada um segundo a sua vontade! É democrático!

Na minha terra, lá nas “berças”, do interior esquecido, cheias de gente sã (não mal intencionada) – gente boa existe em todo o lado, porque ainda não “bebeu” a parte negativa da dita civilização – dir-se-ia com a clareza e a sapiência de gente honrada e virtuosa: “albarda-se o burro à vontade do dono”. Creio que ninguém verá nisto (adágio) qualquer tipo de agressão despropositada e gratuita, sem sentido, pois a minha intenção não é essa com toda a certeza.

Lamento, no entanto, que alguns (mais do que seria desejável) tenham tentado denegrir, acintosamente, a imagem imaculada de tantos compatriotas de rija têmpera que se bateram tão garbosamente, tão denodadamente, por aquilo que, pelo menos tradicionalmente, era nosso – refiro-me às pessoas e não ao terreno. Terá havido excessos? – Claro que sim! Mas não deixaram de ser exceção! Lamento profunda e sinceramente os abusos que deliberada ou inconscientemente (fruto do momento) foram cometidos; por mim e pelos autores do exagero, peço perdão aos africanos molestados, se bem que não me pese na consciência ter cometido qualquer canalhice ou desaforo.

Não quero deixar passar em claro também aqueles que, por medo ou por questões políticas, se auto-exilaram para fugirem aos pavores da guerra. Também não posso deixar de referir aqueles que, tendo emigrado, para mudar de vida e regressaram à Lusa Pátria para cumprir serviço militar. Não sei se há números oficiais (não creio que tenham sido divulgados) mas consta que os segundos foram em maior número que os primeiros- o que não deixa de ser significativo.

Mas esqueçamos o que podemos chamar de bizantinices e… voltemos à RTP.

A televisão faria apenas um ligeiro e superficial acompanhamento da guerra… dentro dos quartéis. Não consta – desconheço – que algum repórter tenha acompanhado os nossos façanhosos combatentes (os que ousadamente participavam, ao vivo e com risco e até com o sacrifício da própria vida), em operações melindrosas para passar à película os factos dignos de registo.

Os enviados da RTP procediam, em larga escala, nos meses que antecediam o Natal, à transmissão de mensagens de “Boas Festas” dos combatentes para os seus familiares – o que já era, só por si, bastante louvável. Talvez tenha sido esta a missão mais honrosa e mais humana levada a cabo pela RTP. Honra lhe seja feita por tudo isto e tudo o mais que poderão eventualmente ter realizado, mas que desconheço.

Mensagem de Natal do nosso camarada Constantino (Tino) Neves, a quem mandamos um abraço

Os soldados (os combatentes) passavam desempenados frente à câmara, citavam a sua identificação e a terra de origem declarando alto e bom som: -“para a minha família em (?) desejo um Bom Natal e um Ano Novo cheio de prosperidades”. Uma boa parte dos soldados, intencionalmente – talvez – ou por incapacidade substituíam as “prosperidades” por “propriedades”; era mais fácil de pronunciar… e mais lucrativo. Terminavam com a célebre frase “Adeus, até ao meu regresso”. Esta legenda já é nome de um livro da autoria do companheiro Beja Santos e levado ao prelo pela “Ancora Editora”; passe a publicidade… é dever de consciência.

Deixo aqui o meu pedido de desculpa se algum operador e/ou jornalista chegou a envergar ousadamente um camuflado e participou nalguma das operações mais perigosas e desgraçadamente célebres a que os militares estavam sujeitos e que eu, por ignorância, não refiro.

Os operadores também fizeram filmes – bobines recheadas – de acontecimentos por vezes corriqueiros ou propositadamente inventados… vividos dentro dos quartéis ou nas suas imediações. Lembro-me de ter visto um filme daquela estúpida guerra em que o ousado operador (nosso) se encontrava, por incrível que pareça, entre as aguerridas hostes inimigas: quando os nossos briosos soldados carregavam “destemidamente” sobre o “inimigo”, estavam a ser filmados bem de frente – logo o operador estaria no campo do oposto.

Durante os dois anos (quase) que a CCAÇ 675 viveu em Binta (viveu?! Aquilo seria viver? Mas vivemos ou pelo menos sobrevivemos), os RTPs passaram por lá apenas uma vez. Visitaram-nos mas, como o Natal já teria passado, não houve lugar às alusivas mensagens.

Tiveram direito a um opíparo almoço… bem regado… com o de que dispúnhamos em pleno mato.

A Tabanca engalanou-se; os nativos, já regressados do Senegal, envergaram as suas melhores vestes e organizaram um valente batuque – manga de ronco!

Filmaram muita coisa; entrevistaram muita gente, especialmente africanos – festa de arromba! Um repórter contou-nos que, dias antes, entrevistara um régulo, alferes de 2.ª linha, algures noutra zona; como o “soba” citou várias vezes, elogiosamente, o nome de Salazar, o locutor perguntou-lhe abertamente:
- Sabes quem é Salazar?

A resposta é digna dum “douto” oficial de 2.ª linha:
- Salazar é “o homem grande” da tabanca de Lisboa que dá “manga de chocolate na pessoal bandido!”

Certamente o régulo imaginaria que Salazar era algum destemido pugilista afamado ou que seria, no mínimo, dono de extraordinária força física. – Pobre rato!

Um locutor (cujo nome não recordo) sugeriu-nos que, quando regressássemos da Guiné, passássemos pelos estúdios do Lumiar e ele nos mostraria coisas curiosas e desconhecidas do público, cortes de certas filmagens que, naquela época, não podiam invadir indiscriminadamente as casas dos contribuintes.

Anos depois, em Fátima, aquando da visita do Papa, encontrei o tal locutor que, no meio daquela azáfama desmedida, repetiu o convite.

Um dia apareci, curioso, nos estúdios! Passei cerca de duas horas a ver passagens hilariantes (de quebrar o coco) de certas filmagens: o Sr. presidente da República, o venerando (como se dizia) Américo Tomás, a coçar furiosamente o baixo-ventre durante uma tourada no Campo Pequeno; montes de “pernas à vela” nas bancadas; festas em que o elemento feminino exibia ousadamente (para aquela época) os seus dotes físicos. Nos campos da bola havia também das boas! O “Zé” lá em casa não podia assistir a tais desperdícios! E os “excessos” em certos bailes e/ou chás dançantes da “alta”! Tanto esbanjamento meu Deus!

Um “corte” cheio de beleza (política) mostrava o exuberante Negus Negusti da Etiópia, Hailé Selassié (nascera Tafari Makonnen) durante uma fabulosa jantarada algures, aquando da sua célebre visita oficial à capital do Império: - limpava cuidadosa e higienicamente as unhas com os dentes do garfo e bebia água morna com limão do vistoso lavabo a qual se destinava a libertar os dedos do cheiro do marisco!

Sugeri que seria a altura ideal para mostrar aos portugueses quem apoiava a guerra contra nós; creio que não o fizeram mas… talvez valesse a pena!

Bom! Voltemos a Binta onde uma equipa da RTP nos aguarda!

Um dos operadores sugeriu ao afoito capitão Tomé Pinto que “simulássemos uma operação” nas imediações dos quartel para… encher fita.

O capitão Tomé Pinto não admitia nunca sacrificar inutilmente os seus militares; com um sorriso malandro nos lábios, lançou o seguinte repto:
- Eu não brinco às guerras! Pernoitem cá e partimos pela madrugada; prometo levar-vos a uma zona onde haverá tiros (muitos) pela certa; terão uma oportunidade ideal e única para filmar uma operação militar... ao vivo. Doutro modo, não!

- Isso não nos agrada! Responderam em uníssono. Partiram para Farim

Dias mais tarde, algures no Sul, fizeram idêntica proposta ao malogrado capitão Meireles; este aceitou fazer uma guerra de brincadeira… para a TV filmar.

Um militar nativo detetou uma mina antipessoal; deu o alerta! Mas pisou logo, inadvertidamente, o arame de tropeçar (arame verde finíssimo) e provocou de imediato a explosão duma mina “ bailarina”! Houve vários feridos, entre os quais um major; o capitão Meireles foi logo riscado do número dos vivos. Poderia ter sido pior!... como dizia o padre lá da minha terra. Os “ceguinhos” (os que picavam a estrada poeirenta, para detetar as malditas minas) iriam tão “compenetrados” da sua missão que não se aperceberam duma potente mina anticarro que se encontrava numa zona de lama seca. O padre Nazário, ia no fim da coluna; assistia incrédulo a tamanho folguedo… e detetou a tal mina, raspando com a bota as folhas secas que a ocultavam. O padre sugeriu a um sapador ali presente que verificasse se estava armadilhada – não estava! Recomendou ao sapador que a recolocasse no local e ocultasse com terra e folhas secas para que no regresso, a RTP filmasse o seu levantamento, já sem perigo iminente.

Após aquele desastroso acidente não houve mais filmagens… mas trouxeram a perigosa mina anticarro para o aquartelamento… valha-nos isso!

É caso para citar, mais uma vez, a profunda sabedoria do nosso bom povo:
- Com coisas sérias não se brinca!

Eu acrescento: A guerra é coisa séria!” ponham seriedade nisso!

Maio 2012
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 23 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9646: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (22): A guerra das vacas