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domingo, 27 de janeiro de 2013

Guiné 63/74 - P11011: Efemérides (119): Diário de George Freire, ex-comandante da 4ª CCAÇ (Bedanda, 1962/63): o início da guerra no sul do CTIG (jan / mar 1963)...Recordando topónimos que nos são familiares: Cabedu, Caboxanque, Cacine, Cadique, Cafal, Cafine, Catió, Chugué, Jemberém, Mejo, Salancaur...



Guiné > Região de Quínara (parte sul) e Região de Tombali > Sítios referidos por George Freire no seu dário (1/3 a 23/3/1963), e onde a sua 4ª CCAÇ, colocada em Bedanda, ou outras unidades do exército (como a CCAÇ 273, por ex.) , estiveram em ação, logo no início da guerra...

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2013)

1. Ainda a propósito dos 50 anos do início da guerra no TO da Guiné - a 23 de janeiro de 1963, segundo os nossos historiógrafos (mas também os da Guiné-Bissau) - achamos oportuno reproduzir, aqui, mais uma vez, o diário do cap inf Jorge Freire (,hoje cidadão americano, George Freire), que comandou a 4ª CCAÇ, e que esteve, já em cenário de guerra, em Bedanda, desde novembro de 1962 até ao fim da sua rendição individual em maio de 1963 (*)...

É impressionante como um só companhia podia, na época, operar em quase todo o sul da Guiné, compreendendo parte da região de Quínara  e a região de Tombali, o celeiro da Guiné... Todos estes topónimos são-nos familiares, para muitos de nós: Bedanda, Cabedu, Caboxanque, Cacine, Cadique, Cafal, Cafine, Catió, Chugué, Jemberem, Mejo, Salancaur... Ainda não se falava de Guileje nem de Gadamael...Repare-se que há tabancas que vão ser logo de imediato abandonadas (caso de Iemberém, cuja população fula é transferida pelo exército pata Bedanda), Da leitura do diário depreende-se que houve um rápido alinhamento da população local, com os fulas a mostarem-se leais às autoridades portuguesas e os balantas (e outros: beafadas, nalus...) a ficarem do lado do PAIGC... Houve seguramente terror e contraterror nestas ações de ambos os lados. Mas repare-se que os prisioneiros feitos pela 4ª CCAÇ são entregues ao batalhão (o George Freire não o identifica,  claramente, não sei se era o BCAÇ 236 ou o BCAÇ 356). Por outro lado, um dos alvos da ação da guerrilha são as casas comerciais, a Ultramarina, a Gouveia... A produção de arroz vai decrescer drasticamente nos anos seguintes. A importação de arroz mais do que triplica de 1962 (c. 9 mil toneladas) para 1964 (c. 30 mil toneladas). A Guiné nunca mais será a mais a mesma, depois do ataque de Tite, em 23 de janeiro de 1963. (LG)



O meu Diário da Guiné, por George Freire (EUA)

Como história, transcrevo partes de um diário que encontrei no meio de papelada antiga numa gaveta da minha secretária. A primeira entrada no diário foi no dia 31 de Janeiro de 1963 e a última, no dia 28 de Maio do mesmo ano.

31/1/63:

Ataque de terroristas aos Fulas de Jemberém. Mataram o chefe da tabanca e outros 6 Fulas.

2/2/63:

Acção em Boche Falace pelas minhas forças de Jemberém. Um grupo de terroristas balantas em fuga deixou grande quantidade de arroz cozido (!).

6/2/63:

O nosso destacamento em Salancaur foi atacado às 00:30. Tivemos baixas: um furriel e um soldado foram mortos do nosso lado e vários terroristas foram abatidos. Nesta mesma noite, também atacaram o nosso destacamento em Cacine, mas felizmente não houve baixas a assinalar.

8/2/63:

Fui a Bissau tratar de vários assuntos da Companhia [4ª CCaç].

9/2/63:

Volta de Bissau. Manga de trabalho em atraso devido as acções dos últimos dias. Recebemos informação de que vários terroristas passaram ao largo, vindos de Catió para a zona de Cacine. As instalações da Ultramarina foram assaltadas e o encarregado europeu foi morto.

10/2/63:

Lista de material extraviado em combate: 1 capacete em Chugué, 1 espingarda Mauser e1 pistola-metralhadora em Jemberém.

Esta madrugada as instalações da Gouveia em Salancaur foram atacadas. Os terroristas levaram cerca de 10 toneladas de arroz e outros géneros de comida.

11/2/63:

Efectuámos acções em Jemberém, Salancaur e Cadique. Vários elementos terroristas que tinham tomado parte no assalto aos Fulas de Jemberém foram aprisionados e enviados para a sede do Batalhão.

12/2/63:

Um alfaiate mandinga, Mamude Djassi, que tinha sido aprisionado em Chacual pelos terroristas e que passou vários dias num dos seus acampamentos, conseguiu fugir e apresentou-se ao nosso destacamento do Chugué. Foi transportado para o nosso quartel em Bedanda. Enviei um rádio para o Batalhão para que este Mandinga possa ser aproveitado como guia na acção que está a ser preparada pelo Batalhão.

13/2/63:

Enviei um pelotão para Salancaur para proteger o embarque de arroz da Ultramarina e da Gouveia.

14/2/63:

Patrulhamento feito em Jemberém e Cadique. Nesta última povoação tivemos contacto com terroristas Balantas que puseram alguma resistência mas acabaram por fugir. Três foram abatidos.

15/2/63:

O nosso quartel em Bedanda foi visitado por 3 directores da CUF, procurando informações do que se está a passar na região. Nessa mesma altura, terroristas rebentaram um pontão na estrada de Catió junto de Timbo. Houve também grande tiroteio em Chugué e algumas explosões na estrada próxima da área. Os 3 directores ficaram bem informados do que se está a passar...

16/2/63:

Chegou o Pelotão de acompanhamento da Companhia 273. Uma patrulha das nossas forças do Chugué foi atacada por um grupo armado de pistolas-metralhadoras. Não sofremos baixas mas 2 terroristas foram abatidos.

Regressou à base o Pelotão destacado em Salancaur. Foi rendida por novas forças a Secção que se encontrava destacada em Jemberém.

17/2/63:

Continuaram a chegar mais elementos da companhia 273.

18/2/63:

Reconhecimentos feitos a Salancaur, Jemberém e Cadique. Aprisionámos alguns dos elementos que tinham atacado o nosso destacamento de Salancaur.

22/2/63:

Fomos visitados aqui em Bedanda pelo Comandante Militar e pelo Major Mira Dores, durante a altura em que tínhamos começado uma acção no mato de (Nhairom?), com 2 pelotões da CCaç 273 e 1 Pelotão da minha Companhia.

23/2/63:

Regresso da acção. Pobres resultados. Foram encontrados vários acampamentos terroristas, abandonados mas com indícios de terem sido ocupados recentemente. Foi rendida a secção de Jemberém.

25/2/63:

Reconhecimento feito em Salancaur e Mejo. O Capitão Delfino, comandante da Companhia que substituiu a CCaç 74, visitou-nos, para discutirmos colaboração.

26/2/63:

Outra visita pelo Comandante Militar e o Comandante da Força Aérea, para discussão sobre a colaboração da FA na próxima operação que iremos executar. Pormenores foram discutidos em detalhe.

27/2/63:

O Capitão Relvas veio da sede do batalhão visitar-nos em Bedanda. Aparentemente, o comandante do Batalhão está chateado por não ter sido consultado nos detalhes de apoio pela FA. e tomou a decisão de fazer a operação sem esse apoio. (Incompreensível!).

A acção começará esta noite a partir das 00:04. A acção terminou pelas 15:00 do dia 28/2/63. Os resultados que poderiam ter sido bastante satisfatórios, foram praticamente nulos, pois vários grupos de terroristas conseguiram, (devido a configuração e extensão do terreno de acção), fugir e dispersar. Se a FA tivesse colaborado os resultados teriam sido tremendos, pois o número de terroristas que conseguiram infiltrar-se entre as nossos forças foi considerável. (Esta foi a opinião de todos os comandantes de pelotão directamente envolvidos na acção. Na área onde a minha companhia actuou, notamos exactamente os mesmos resultados).

É evidente que os terroristas foram avisados da operação a tempo de poderem debandar. Nada me admira, pois temos um número considerável de soldados nativos, incluindo Balantas...


1/3/63:

Hoje pela 09:30 e mais tarde pelas 14:30, pessoal do pelotão do Cabedú sofreu emboscadas respectivamente entre Cafal e Cafine e no cruzamento de Cabante. Na segunda emboscada sofremos um morto e um ferido. Uma viatura Chaimite foi destruída na primeira emboscada. Seguiram dois pelotões reforçados para os locais das emboscadas.

Em Impungueda uma patrulha da CCaç 859 travou contacto com os terroristas e feriu alguns e os outros conseguiram fugir.

2/3/63:

Durante parte do dia de ontem e durante todo o dia de hoje as nossas forças percorreram todo o terreno nas zonas das emboscadas. Encontraram vestígios dos atacantes, fizeram um prisioneiro que tinha tomado parte numa das emboscadas, mas nada mais. O soldado ferido seguiu de avião para Bissau e o morto foi enterrado no cemitério de Bedanda.

O prisioneiro foi interrogado mas poucas informações conseguimos. Foi enviado para o Batalhão para ser interrogado.

3/3/63:

O Comandante Militar veio cá hoje de avião com o segundo Comandante do Batalhão 356. Depois de informados dos acontecimentos dos últimos dias, seguiram para Catió.

4/3/63:

Recebemos informação do batalhão de um possível ataque planeado pelos terroristas a Caboxanque e Jemberém. Enviei dois pelotões para Jemberém e Cadique, ponto de onde, segundo a informação, os terroristas se estavam a organizar para os ataques. Em Caboxanque executámos acções por um pelotão da minha companhia e outro da CCaç 273.

6/3/63:

Fizemos um reconhecimento à zona de Jemberém. O alferes Gonçalves encarregou-se de falar aos chefes Fulas de Jemberém e discutir a possível mudança das suas tabancas para Bedanda. Há toda a vantagem dessas mudanças para incrementar a protecção da população Fula. Poderemos também formar aqui e em Bedanda um pelotão de uns 40 Fulas, o que nos poderá ajudar substancialmente na segurança da área e aliviar as nossas forças. Os chefes Fulas aceitaram a nossa oferta de braços abertos.

7/3/63:

Começámos o transporte da população Fula de Jemberém. Usámos 10 viaturas neste movimento. Calculamos que serão necessárias 3 mais viagens semelhantes.

8/3/63:

Continuação do transporte dos Fulas. Seguiram dois pelotões da CCaç 273 para a região de Salancur.

9/3/63:

Continuação do transporte dos Fulas. Os pelotões da CCaç 273 continuaram a operar na região de Salancur.

Elementos Fulas de Jemberém conseguiram aprisionar um nativo que sabiam estava ligado ao movimento terrorista. Quando este nativo (Balanta) foi interrogado aqui na companhia, deu-nos a informação de que elementos terroristas estão no mato de Boche Falace a prepararem um ataque àquela povoação. Enviámos um pelotão da CCaç 273 para a área.

Recebemos também informação, por elementos do Chugué, que um grupo de terroristas bem armado estava concentrado do outro lado da fronteira com a Guiné Francesa, perto da zona de Banta-Sida.

Mais informações recebidas do pelotão de Jemberém: cerca de 300 elementos terroristas estavam a preparar um ataque à nossa companhia em Bedanda na madrugada de amanhã.

Dei ordens para que todo o nosso pessoal, (estávamos um pouco desfalcados pois tínhamos 2 pelotões em operações longe de Bedanda), estar em alerta em posições defensivas, já há muito preparadas para eventualidades semelhantes. Foi uma longa noite de nervos, mas o ataque nunca se deu.

10 e 11/3/63:

Acabámos o transporte dos Fulas de Jemberém para Bedanda, contudo ainda teremos que transportar abastecimentos e víveres que ainda lá ficaram, em especial uma grande quantidade de arroz. Os Fulas fizeram um outro prisioneiro que, após interrogado, nos deu boas informações sobre o grupo terrorista que tem actuado na zona de Boche Falace: nomes de comandantes, armamentos e locais aproximados do grupo. Este prisioneiro foi enviado para o batalhão.

13/3/63:

Recebemos novas informações sobre um outro possível ataque ao nosso aquartelamento no dia 16 ou 17.
O Benfica venceu o Dukla de Praga para a taça dos campeões europeus. Ouvimos o relato no rádio.

15/3/63:

Chegou um pelotão da CCaç 417 que seguirá para Caboxanque. Enviei uma grande coluna de 10 viaturas para Jemberém para trazer o resto dos víveres pertencentes aos Fulas.

16/3/63:

O pelotão da CCaç 417 seguiu para Caboxanque para render o Pelotão 859.

18/3/63:

Chegou o Pelotão 859 que seguirá para Bafatá. A CCaç 273 partiu para Jemberém em operações, não se sabendo por quantos dias.

19/3/63:

Visita do major Pina para discutir os pormenores do movimento dos pelotões 859, 870 e 871 para Bafatá. Eu irei a comandar a coluna e voltarei para Bedanda de avião.

20/3/63:

O alferes Mendes seguiu com um pelotão para o Chugué dentro do novo plano de ordenamento dos dispositivos.

22/3/63:

Cabedú enviou uma mensagem informando que os terroristas estavam a planear uma emboscada às viaturas da CCaç 273 que se tinham deslocado para a região de Darsalame. Enviei imediatamente um rádio para o capitão Gaspar com todos os detalhes da informação.

23/3/63:

Chegou outro pelotão da CCaç 417. Seguirá amanhã para Cabedú para render o Pelotão 871, que virá para Bedanda e depois para Bafatá na minha coluna.

[.-..] O meu diário, cobrindo os acontecimentos que se passaram entre a minha partida para Bafatá com a coluna, a minha vinda de retorno a Bedanda e as semanas até ao dia 18 de Maio, extraviou-se, infelizmente.

Lembro-me de alguns detalhes de possíveis ataques a Bedanda que, felizmente, nunca se concretizaram. Nós estávamos muito bem preparados, com todo o terreno à volta do aquartelamento (cerca de uns 150 metros), completamente limpo de arvoredo e vegetação.

Tínhamos os morteiros de 60 todos treinados nas áreas prováveis de ataque, além de explosivos enterrados e comandados à distância. Bem no fundo, eu estava com esperança de que os terroristas tentassem um ataque, pois seriam totalmente aniquilados, mas nunca aconteceu, possivelmente porque eles sabiam que tal acção seria muito difícil e arriscada.

No dia 18 de Maio, o capitão Nelson (meu colega de curso) veio render-me. Durante os 4 dias seguintes fiz a entrega da 4ª CCaç ao Nelson e no dia 21 de Maio segui de avião para Bissau.

Ai estive à espera de transporte e finalmente no dia 27 de Maio parti de volta a Portugal no navio da CUF “Ana Mafalda”.


Tenho ainda mais algumas histórias para contar, (entre os primeiros dias de Abril, até a altura em que fui rendido, 20 de Maio de 1963).

Um abraço,
George Matias Freire

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Notas do editor:

(*) vd. postes de:

24 de Janeiro de 2013 > Guiné 63/74 - P10996: Efemérides (117): O início da guerra no CTIG há 50 anos: Nova Lamego, Bissau, Bedanda... O paraíso... perdido (set 62/mai 63): filme de George Freire, ex-cap inf QP, a viver nos EUA há meio século (Virgínio Briote / Luís Graça)
29 de dezembro de 2008 >  Guiné 63/74 - P3681: Tabanca Grande (106): George Freire, ex-Comandante da 4ª CCaç (Fulacunda, Bissau, N. Lamego, Bedanda, 1961/63)

(**) Último poste da série > 25 de janeiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11003: Efemérides (118): Data da Operação Irã (José Martins)

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10555: O nosso livro de visitas (150): À procura de camaradas da 3ª C / BART 6520/73 que estiveram no inferno de Jemberém, em maio/junho de 1974 (Norberto G. Pereira, ex-fur mil)

1. O nosso editor Luís Graça recebeu, em 21 do corrente, na sua caixa de correio profissional, a seguinte mensagem do nosso leitor (e camarada) Norberto Pereira:

De: Norberto Pereira [norbertogpereira52@gmail.com]

Enviado: domingo, 21 de Outubro de 2012 21:09

Assunto: Combatentes da Guiné

Estive em Jemberém, Guiné,  de princípios de Maio a 3/4 de junho de 1974, ao serviço do exército, na 3ª C/ BART 6520/73. 

Tinha o posto de furriel. Abandonámos o destacamento à revelia dos comandos de Bissau,  sendo apoiados na retirada pela Marinha Portuguesa, em  LDG [, Lancha de Desembarque Grande]. 

Atracámos em Cacine. O abandono foi provocado por uma ameaça de ataque ao arame por uma força de 150/200 militares do PAIGC. Depois de nos ter sido negado qualquer apoio na defesa de Jemberém, tivemos que fazer a retirada abruptamente,  com o apoio da Marinha Portuguesa. Antes disso, rebentámos com alguns abrigos subterrâneos e construções ali existentes...

Como vinha dizendo, a  retirada foi considerada um ato de insubordinação, perante os comandos de Bissau, da qual resultou na transferência do todos militares, as praças que foram transferidas por pelotões, e os sargentos e oficiais que  foram transferidos individualmente. 

Assim, gostava de rever militares que foram camaradas nesse destacamento, como contactá-los, enfim, trocar opiniões, dissertar sobre a nossa permanência na Guiné. 

 Aguardo contacto com novidades. Um abraço.

Norberto G. Pereira

2. Comentário de L.G.:

Norberto, muito obrigado pela visita. Temos muito gosto em acolher-te nesta fabulosa família de antigos combatentes e demais amigos da Guiné, a Tabanca Grande, que se reunem aqui à sombra de um simbólico mas mágico poilão. Para tal, tens que aceitar as regras que nos regem (constantes da coluna do lado esquerdo) e pagar o ingresso no blogue, que são 2 fotos (uma atual e outra do teu tempo de tropa) + 1 história passada na Guiné...

Quanto aos camaradas que procuras, deixa-te dizer-te que este é o local ideal para o fazeres. Pertenceste à 3ª C/ BART 6520/73... Para já, tens aqui dois camaradas do teu batalhão (e um da tua companhia), inscritos na nossa Tabanca Grande, que passaram por Jemberém, a seguir ao 25 de abril de 1974, e que têm ainda muito para contar, tal como tu:

(i)  Manuel Luís Nogueira de Sousa, ex-Fur Mil At Art da 1ª CART do BART 6520/73 (Bolama, Cadique e Jemberém - 1974);

(ii) Joaquim Sabido, ex-Alf Mil Art, 3.ª CART/BART 6520/73 e CCAÇ 4641/73, Jemberém, Mansoa e Bissau, 1974).


Guiné > Carta de Cacine (Escala 1/25000) > Posição relativa de Cadique, Jemberém e Cacine, em pleno Cantanhez
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quarta-feira, 27 de junho de 2012

Guiné 63/74 – P10081: Convívios (457): 5º Encontro da 1ª CART do BART 6520/73, Penafiel, 21 de Abril de 2012 (Manuel Sousa)

1. O nosso Camarada Manuel Luís Nogueira de Sousa, que foi Fur Mil At Art da 1ª CART do BART 6520/73, Bolama, Cadique e Jemberém - 1974 -, enviou-nos a seguinte mensagem com uma pequena e curiosa estória, e notícias do último encontro da sua companhia.


“Operação” realizada no IAO. Bolama, 14 de Abril de 1974  (Domingo de Páscoa) 

Camaradas,

Nesse dia, encarregaram-me de comandar uma secção, que foi destacada para fazer de inimigo no referido IAO.

Após preparação prévia, tínhamos como missão efectuar um ataque à 2ª companhia, cerca das 22h30.  A companhia depois de 1 dia de muito desgaste físico, alimentada a ração de combate, estava posicionada no tradicional "grande alto", com sentinela garantida por 1 elemento de cada secção.

Ao aproximarmo-nos do objectivo, em pleno interior da ilha em que as elevadas e densas copas das árvores e restante vegetação tornavam a progressão lenta, com todos os homens muito ligados, comigo à cabeça (porque tinha sido eu a fazer o reconhecimento do local).

Quando estávamos a cerca de 1 quilómetro, cruzou-se, poucos metros à nossa frente, uma numerosa coluna em linha de vultos escuros (africanos ou portugueses?).  Ficamos imobilizados, protegidos/escondidos por um tronco de uma árvore de grande porte e não chegámos a saber quem seria aquela gente.

Para uma secção com apenas com 10 dias de Guiné, foi uma experiência estranha que nunca esqueceremos.

O ataque que efectuamos com a táctica do quadrado (também conhecida por Fidel Castro), permitiu demonstrar a quase nula atenção das sentinelas (talvez devido ao cansaço, inadaptação ao clima, etc.), o que teria permitido, caso assim o tivéssemos pretendido fazer, inclusive levar-lhes as respectivas G3.

Na madrugada seguinte, cerca das 05h00, foi a vez dessa companhia executar um golpe-de-mão sobre a nossa, no local onde pernoitamos junto ao mar/praia sob uma paragem/abrigo em muito mau estado, mas protegeu-nos do cacimbo da noite.




5º Encontro da 1ª CART/BART 6520/73 

No passado dia 01 de Abril de 1974, realizamos o 5º Encontro da nossa companhia, que incluiu uma visita à “casa” de onde partimos para a nossa “aventura” africana.

A carta/roteiro do encontro teve como objectivo principal recordar a instalação/Unidade, onde formamos o batalhão e sentimos o 1º pulsar da revolução que viria a verificar-se no dia 25 de Abril de 1974.

Como já fiz referência em relato já publicado no poste P9875, o ensaio (?) da revolta das Caldas do dia 16 de Março de 1974, contou com a adesão praticamente total do meu batalhão, e, como “prémio” desta nossa postura,  foi trocada a zona do TO que nos estava destinada.

Assim, em vez da localidade de Tite, fomos colocados no Cantanhez - Cadique/Jemberém.  Como o nosso CMDT - Tenente-Coronel Virtuoso, não gostou da nossa “brincadeira”, uma vez chegados à Ilha de Bolama,  retribuímos-lhe a amabilidade e “despachamo-lo” para Bissau.

O programa do evento iniciou-se no ponto de reencontro - o ex-RAL5 / Penafiel -, entre as 11h00 e as 11h30.

Seguiu-se a recepção e uma visita à Unidade, que agora está atribuída à GNR, guiada pelo seu actual CMDT, tendo os presentes recordado alguns momentos mais marcantes da nossa passagem por aquele quartel.

Constatámos a existência de várias placas alusivas à passagem de outras Companhias e Batalhões, que estiveram no ultramar, ficando também ali assumido, por nós, o compromisso de, em Abril do próximo ano, colocarmos uma placa do nosso Batalhão.

Cerca das 13h30, caminhámos para o habitual convívio/almoço no restaurante "Ramiro de Pieres", relativamente próximo da cidade, que satisfez plenamente o grupo.


Frente à porta de armas (da esquerda para a direita): Fur Mil Ferro, Capitão Carvalho, Fur Mil Couto, Fur Mil Sousa, Fur Mil Arnaldo, Fur Mil Paulino, Alf Mil Espada, Fur Mil Saraiva e Alf Mil Ramos. 

Um abraço para todos,
Manuel de Sousa
Furriel Miliciano da 1ª CART do BART 6520/73
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em 24 de junho de 2012 > Guiné 63/74 – P10068: Convívios (456): 6º Encontro-Convívio do pessoal das unidades adstritas ao BART 2917, Guimarães, 23 de Junho de 2012 (Benjamim Durães)

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Guiné 63/74 - P9875: Tabanca Grande (337): Manuel Luís Nogueira de Sousa, ex-Fur Mil At Art da 1ª CART do BART 6520/73 (Bolama, Cadique e Jemberém - 1974)



    1. Mais um Camarada se perfila junto a nós nesta Unidade virtual, desta vez é o Manuel Luís Nogueira de Sousa que foi Fur Mil At Art da 1ª CART do BART 6520/73, Bolama, Cadique, Jemberém - 1974 -, que nos enviou a seguinte mensagem.
Camaradas, 


Chegamos ao Cumeré em 01 de Abril de 1974, com o “cheiro” a mudança no ar (a movimentação de 16 de Março de 1973, liderada pelo tenente Varela – meu comandante de companhia no RI5 -, nas Caldas da Rainha). Do Cumeré seguimos para Bolama onde decorreu o IAO e vivemos o momento histórico do 25 de Abril de 1974. No meu caso, festejei alegre e incontidamente, fazendo eu, para o “filme” de elemento IN. Os festejos decorreram conjuntamente com a 2ª CART, de forma muito emotiva. 



O meu batalhão deixou marcas na passagem por Bolama, que mais tarde, e com o contributo de outros militares, poderá aqui ser retratada. 



No início de Maio fizemos a viagem em direcção á zona que nos estava destinada, o Cantanhez. 


Fomos finalmente colocados em Cadique/Jemberém, que, segundo soubemos pelos relatos que tenho lido neste “blogue” de militares que nos antecederam, era uma das zonas de maior risco na Guiné, sofrendo ataques e flagelações constantes com os graves danos materiais e humanos que todos sabemos. 

Felizmente para nós que, nessa altura em que lutávamos pela sobrevivência, se deu a muito desejada e já mencionada revolução de abril, que contribuiu para o fim da guerra que tantas marcas de dor e luto deixou em muitas famílias portuguesas. 

Relativamente ao camarada do blogue - Magalhães Ribeiro -, com quem já conversei pessoalmente, verifiquei que temos um traçado muito semelhante, nascemos ambos em 1952, eu regressei da Guiné com 10 dias de diferença (cheguei no dia 05 de Outubro) e estamos na mesma empresa – a EDP -, eu na DNDAT e ele no PHMN, e estamos na Boavista/Porto.



Saudações a todos os Camaradas,

Apresento-me agora, com grande satisfação e emoção pessoais, comprometendo-me a contribuir com a minha experiência vivida em pleno teatro de guerra, felizmente já no seu “defeso”.

Sinto-me, a cada dia que passa, pressionado psiquicamente a dar também a minha perspectiva dos sentimentos e análises sobre as acções/reacções que vivi/senti naqueles cruciais e angustiantes momentos do fim da guerra.

Creio bem, que saímos engrandecidos e nos reafirmamos como um povo de valores, que não esquece o sofrimento de todos aqueles que, com os seus temores, destemores e sacrifícios, deram o seu melhor para que o 25 de Abril/74 tivesse êxito no terreno.

Quero expressar aqui um bem-haja de homenagem a todos os Camaradas e familiares, cujas marcas físicas e psíquicas permanecem bem vivas e os acompanharão até ao fim nesta longa “viagem” que todos fazemos.

Passo a resumir o trajecto deste meu último batalhão a sair do ex-RAL5 (Penafiel), em direcção ao teatro de guerra na Guiné.

No dia 1 de Abril partimos de Lisboa (avião) rumo a Bissau e dali para o Cumeré. No dia 4 seguimos para Bolama onde decorreu o IAO (durante cerca de 1 mês).

Como já referi, o 25 de Abril foi ali vivido de forma eufórica (fazendo eu o papel de IN na festa comemorativa). Festejos que realizamos conjuntamente com a 2ª CART, até altas horas da noite.

Este acontecimento já era por nós expectável, na sequência dos acontecimentos do dia 16 de Março de 1973 (o célebre golpe das Caldas liderado pelo então tenente Varela, que era meu comandante de companhia).

O nosso batalhão reagiu favorável e satisfatoriamente à movimentação da malta das Caldas, sendo este um 1º ensaio de revolta, e, em consequência, foi-nos alterado o local que nos estava destinado na Guiné - Tite -, que passou a ser Cadique.

Foi o prémio da nossa postura, que também contrariava o modo de pensar do nosso comandante de batalhão, que se opunha a “revoluções” e estava contra o 25 de Abril, dando a entender que todo o batalhão se opunha também.

Obviamente esta sua posição não convenceu ninguém.

Então, já em pleno centro de Bolama, “despachamos” o comandante, e passamos a viver 100% com o espírito “abrilista”.

Seguiu-se a chegada à zona de Cadique-Jemberém… etc., com a recepção aos elementos do PAIGC, onde encerramos a nossa presença com a troca de contactos com os sues guerrilheiros (sem complexos), arriamos a nossa bandeira nacional e eles hastearam a nova bandeira da Guiné-Bissau, com parada e guarda de honra.

Penso que todos os relatos que possamos fazer, nunca deverão deixar de realçar o sofrimento vivido no terreno, e que poderia e deveria ter sido evitado pelos políticos da época, se tivessem sido perspicazes e sensíveis aos acontecimentos vividos no continente africano, como foi o caso de outras potências colonizadoras (bem mais potentes que Portugal), cujos dirigentes gostavam mais do seu povo.

Hoje, longe da guerra, lendo e analisando os relatos dos que nos antecederam em Cadique, adivinho o muito sofrimento, dor e sangue que derramaríamos naquelas terras. 

 No regresso, a bordo do navio UIGE

 Ainda a bordo do navio UÍGE

Na ilha de Bolama 

Obs: Já tenho registado, ao longo dos últimos tempos aqui no blogue, curtos comentários.

Um abraço para todos,
Manuel de Sousa
Furriel Miliciano da 1ª CART do BART 6520/73

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Notas de M.R.: 

Amigo e Camarada Sousa, em nome do Luís Graça e restantes Camarada deste Blogue, quero desejar-te as boas vindas a este nosso “quartel” virtual e transmitir-te que contamos contigo para nos contares tudo aquilo que te lembrares dos teus tempos na Guiné (bom e mau).

Como já reparaste além das histórias, também gostamos de publicar (quando os há claro), fotos e documentos daqueles perigosos conturbados tempos  

Ainda muito recentemente se juntou a nós também o nosso colega da EDP, o Leopoldo Correia (ver poste P9840).

Assim, bem-vindo e um abraço Amigo

sexta-feira, 23 de março de 2012

Guiné 63/74 - P9642: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (12): Os infelizes que estão em Cobumba...

1. No seu diário, o António Graça de Abreu (abreviadamente, AGA, nascido em 1947, no Porto, ex-Alf Mil do CAOP1, 1972/74, aqui na foto à esquerda, no rio Manterunga, braço do Cumbijã) dá-nos desta vez notícias dos infelizes que estavam em Cobumba, ali perto de Cufar e de Bedanda, em pleno Cantanhez, e que embrulhavam amiudadas vezes...  


Entre esses infelizes, estava o nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493/BART 3873, Mansambo, Fá Mandinga, Cobumba, Bissau, 1972/74), que nos tem surpreendido com as suas crónicas "do tempo que ninguém queria"...

Mais uma vez, e com a devida vénia, reproduzimos - para conhecimento da generalidade dos nossos leitores - mais alguns excertos do Diário da Guiné, 1972/74, da autoria do António Raça de Abreu, de que temos um ficheiro em word, o mesmo que serviu de base à edição do seu livro Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp) (*). 

Os parênteses curvos com reticências são da responsabilidade do editor do poste (LG), não do autor, e significam  cortes no texto... Seleccionámos apenas as entradas do diário e os parágrafos com referências a Cobumba.  (LG)

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Cufar, 25 de Junho de 1973 


Não estou encantado com o lugar que vim encontrar, mas Cufar é melhor do que eu imaginava. Em termos de guerra, segurança pessoal, companheiros de armas e instalações. 

(…) A dois quilómetros de Cufar, passa o rio Cumbijã que subi há três dias na LDG. A sul deste rio fica a região do Cantanhez, até há pouco tempo um santuário do PAIGC. Ora em finais de 1972, o general Spínola decidiu ocupar toda esta zona e, talvez pareça estranho, no entanto não foi difícil espalhar as NT pelas regiões do sul, os guerrilheiros têm também as suas debilidades, quase não resistiram à ocupação e foram-se multiplicando os destacamentos com tropa portuguesa junto de pequenas aldeias, cada um deles com pelo menos uma companhia de cerca de 180 homens, Cafine, Cafal, Cadique, Cobumba, Jemberém, Chugué, Caboxanque. 

Os portugueses podem agora afirmar que o sul já não é pertença do PAIGC. Não conheço ainda a maneira como vivem estes quase dois mil homens, mas posso imaginar como tudo tem sido duro. Estão a construir os aquartelamentos, sujeitos a frequentes flagelações, muitos dormem ainda em tendas, em valas, quase sem luz, com dificuldades de abastecimento de água, com alimentação deficiente. 

Uma coisa é certa, os guerrilheiros não só não conseguiram impedir a instalação dos novos aquartelamentos portugueses como tiveram de abandonar as aldeias e de se refugiar nas florestas, junto de pequenos lugarejos escondidos no mato (…) 

(…) Cufar, 29 de Junho de 1973 

Às oito horas voltei a ouvir os pum, catrapum, pum, pum. Era o vizinho de cima, Cobumba, oito quilómetros a norte daqui. Sem consequências. 

Esta flagelação foi mais dura do que a de ontem a Cafal e Cafine, ouviam-se nitidamente as armas ligeiras, o matraquear das metralhadoras, costureirinhas, as rajadas. O sul da Guiné é tudo menos monótono, temos ruído, estrondos e emoção todos os dias. 


(…) Cufar 3 de Julho de 1973 

(…) Hoje comi bifes de gazela, gazelas mortas pela metralhadora pesada de um helicóptero, numa verdadeira caçada a partir do ar. Um homem está sempre a aprender, ignorava que se podia caçar de helicóptero. 

Os hélis vêm cá quase todos os dias, sempre aos pares, o Alouette normal e o helicanhão. Fazem base em Cufar e daqui irradiam para os aquartelamentos de toda a zona, Cadique, Cafine, Cafal, Cacine, Cabedu, Cobumba, Chugué, Caboxanque, Bedanda, as tais povoações que volta e meia “embrulham”. Levam víveres, correio e algum pessoal. 

Os hélis passam por cima das regiões libertadas, mas até hoje nunca foram flagelados. Voam a “rapar”, cinquenta metros acima do solo, a boa velocidade e não dão chances aos mísseis do PAIGC. Um dia podem ter uma surpresa, esperemos que não. O perigo existe sempre, mas os pilotos são responsáveis e corajosos. 

Ontem no voo para Cacine, os dois helicópteros viram uma manada de gazelas, o helicanhão fez fogo e abateu três animais. O outro héli desceu, foi buscar as gazelas e trouxe-as para Cufar. Duas ficaram aqui e uma seguiu para Bissau, para o banquete dos pilotos. Está explicado o requinte de hoje haver bifes de gazela ao almoço.(…) 

(…) Cufar, 5 de Julho de 1973 

À tarde, evacuámos no Nordatlas para o hospital de Bissau um soldado de Cobumba que pisou uma mina e ficou sem uma perna, esfarrapado, retalhado até aos testículos. O médico diz que ele não se salva. 

Veio pelo rio Cumbijã de “sintex” até Cufar e perdeu muito sangue. Fui à pista e todo o seu corpo era ligaduras e sangue. A minha passividade a olhar para o moço, os olhos parados. Não sou o mesmo António que desembarcou na Guiné há um ano atrás. 

(….) Cufar, 6 de Agosto de 1973 

Fui voar de helicóptero. Quase todos os dias temos cá os hélis. O serviço deles é transportar géneros frescos, correio, algum pessoal, estarem disponíveis para qualquer evacuação, assegurarem-nos a logística. Esta manhã pedi uma boleia e, como havia espaço para mim, aí fui eu dar uma grande volta com os pilotos, no Alouette normal tendo sempre ao lado o hélicanhão. Voei até Cacine, Cabedu, Cafal, Cafine, Cadique, Cobumba, Chugué e Bedanda, quase todos os aquartelamentos nossos vizinhos aqui na região. 

Foram mais de duas horas de viagem, incluindo as estadias não muito demoradas nos diferentes lugares. Perigo? É muito relativo, ainda há dias estiveram cá o Spínola e o Silva Cunha, e foram a Cadique e Cacine, voando sempre por cima do rio e do mar porque é mais seguro. 

(…) Cufar, 1 de Setembro de 1973 

(…) Também sábado ao entardecer, tivemos em Cufar as consequências da guerra. Às quatro e meia da tarde, um Unimog pisou uma mina anti carro em Cobumba. Os seis pobres desgraçados que iam na viatura ficaram feridos, três em estado grave. De Cufar, pedimos a evacuação para Bissau, vinham dois hélis a caminho mas voltaram para trás devido ao mau tempo. Um Nordatlas que seguia de Bafatá para Bissau foi desviado para aqui e chegou já de noite. 

Entretanto, os feridos de Cobumba, a perder muito sangue, vieram para Cufar nos sintex, descendo o rio Cumbijã. A pista de aviação foi iluminada pelo usual processo artesanal, as garrafas de cerveja cheias com petróleo e as mechas acesas distribuídas lateralmente ao longo da pista. Com os feridos seguiu para Bissau o furriel enfermeiro que fez de capelão quando daquela brincadeira no desembarque dos “periquitos” há quinze dias atrás. Os feridos de Cobumba estiveram na sala de operações do hospital de Bissau até às quatro horas da manhã, não morreu nenhum. Tanto esforço, mas salvaram-se as vidas. 

(…) Cufar, 12 de Novembro de 1973 

Na LDG chegou uma companhia de “periquitos”, com um mês de Guiné que vão render os infelizes que estão em Cobumba. Já perceberam para onde vão e estão completamente desmoralizados. Como é possível aguentar as NT a combater na Guiné quando o que todos desejam é a paz e sair daqui? 

No porto pequeno, no rio Manterunga, que chega quase até Cufar e é um braço do rio Cumbijã, temos um pau com duas bandeiras. Em cima, por causa das agruras do clima, já meio trapo, a bandeira portuguesa, em baixo, em melhor estado, uma bandeira branca. O capitão da companhia açoreana disse-me que também vai mandar hastear um par igualzinho de bandeiras lá em baixo, no porto grande, no cais do Cumbijã.(…) 

(…) Cufar, 15 de Novembro de 1973 

Ainda a propósito do ataque de ontem, estivemos a fazer contas das flagelações sobre os aquartelamentos da nossa zona nos últimos oito meses. Catió “embrulhou” seis vezes, o Chugué vinte, Cobumba doze, Caboxanque quatro, Cadique dez, Cafal quinze, Cafine catorze, Bedanda onze e Cufar apenas três. Não nos podemos queixar, somos uns privilegiados, vivemos no buraco mais seguro do sul da Guiné. (…) 

(…) Cufar, 21 de Novembro de 1973 

Guerra todos os dias. Ontem às seis de tarde, hoje às seis da tarde. Ontem foi Cobumba, estávamos a começar a jantar e pum, catrapum, pum, pum. Alguns de nós saltaram das mesas e começaram a correr para as valas.

Cobumba fica aqui mesmo ao lado e como têm lá uma nova companhia de “periquitos”, os guerrilheiros trataram de lhes fazer condigna recepção, com foguetões, morteiros, canhão sem recuo, tudo a disparar numa cadência de fogo impressionante. O pessoal de Cobumba teve sorte, estão lá estacionados quatrocentos homens – a companhia velha e os “periquitos” que os vêm substituir – e não sofreram uma beliscadura. 

(…) Cufar, 1 de Dezembro de 1973 

O grupo de homens do PAIGC que veio outro dia atacar Cufar com os morteiros e os RPGs anda a visitar as capelinhas da zona. Depois de nós, foram duas vezes a Cobumba e uma ao Chugué, com flagelações precisamente iguais à nossa. Também não deu nada, só insegurança e medo. Já sabemos que é um grupo novo de guerrilheiros e que andam a treinar. Ontem foi a vez de Cafal. Não houve feridos, mas acertaram em cheio com uma granada de RPG na secretaria da companhia e deram cabo das instalações. Pior seria se tal tivesse acontecido na secretaria do CAOP 1 em Cufar, com o alferes Abreu lá dentro, ou por perto.

 (…) Cufar, 9 de Dezembro de 1973 

(…) Às cinco menos dez da manhã, fomos acordados pelos pum, catrapum, pum, pum. Era Cobumba, os nossos vizinhos mais próximos. Mais um ataque filho da puta! Estava tudo a dormir e durante meia hora a cadência de fogo era impressionante. Se fosse connosco, lá teria eu de fugir em cuecas para a vala. 

Cobumba levou o tratamento do costume, foguetões, canhão sem recuo, RPGs e morteiros. Também como é habitual, nem uma beliscadura nos duzentos homens que por lá padecem. 

(...) Cufar, 21 de Janeiro de 1974 

Cumpriu-se um ano sobre o assassinato do Amílcar Cabral e o PAIGC comemorou a data. Aqui na zona atacaram os aquartelamentos de Gadamael, Cafal, Cafine, Cadique, Cobumba, Bedanda, Chugué, Catió e … Cufar. (…) 

(…) Cufar, 3 de Abril de 1974 

A guerra está feia. Bedanda embrulhou durante todo o dia, um ataque tremendo, doze horas consecutivas de fogo. A festa só acabou à noite com uma espécie de cerco à povoação levado a cabo pelos homens do PAIGC. Em Cufar, tão próximo, além de distinguirmos nitidamente as rajadas de metralhadora de mistura com os rebentamentos dos RPGs, foguetões e canhão, à noite viam-se as balas tracejantes e as explosões no ar. 

Uma novidade, os guerrilheiros utilizaram viaturas blindadas na flagelação a Bedanda. Existe uma estrada que vem da Guiné-Conacry, passa junto a Guileje – abandonada pela tropa portuguesa, – entra pela região do Cantanhez e termina em Bedanda. O IN está a utilizar esse percurso para deslocar camiões carregados com todo o tipo de armamento, em seguida é só despejar sobre os aquartelamentos portugueses mais expostos e fáceis de alcançar, como Chugué, Caboxanque, Cobumba, Bedanda, Cadique e Jemberém. (…)

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Nota do editor:

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Guiné 63/74 - P9512: Os nossos últimos seis meses (de 25abr74 a 15out74) (1): O caso de Buruntuma e o ultimatum de Bobo Keita, comandante do PAIGC


p. 222




p. 223


p. 224

 p. 225




p. 226

Reprodução de excertos do livro de Norberto Tavares de Carvalho, De campo a campo: conversas com o comandante Bobo Keita. Edição de autor, 2011, pp.  222-226. Sublinhados, a vermelho, de L.G.



Capa do livro de Norberto Tavares de Carvalho, De campo a campo: conversas com o comandante Bobo Keita. Edição de autor, Porto, 2011, 303 pp. (Impresso na Uniarte Gráfica, SA; depósito legal nº 332552/11). Posfácio de António Marques Lopes.


1. Os acontecimentos acima referidos por Bobo Keita (ou Queta) passam-se com as NT estacionadas em Buruntuma (sector de Pirada), mas também na Ponte Caium (que dependia do batalhão de Piche). Os interlocutores portugueses aqui referidos deveriam ser o capitão de Buruntuma e o tenente-coronel que comandava o batalhão sediado em  Piche (já que o destacamento de Caium dependia de Piche).

Em 25 de Abril de 1974, havia o batalhão,  com comando e sede em Pirada, era o BCAV 8323/73: mobilizado pelo RC 3, partiu de Lisboa em 22/9/1973 e regressou a 10/9/1973. Comandante: ten cor  cav Jorge Edurado Rodrigues y Tenório Correia Matias.

Deste batalhão faziam parte:  

- a 1ª C/BCAV 8323/73, que guarnecia Bajocunda (Comandantes: Cap Cav Ângelo César Pires Moreira da Cruz; Cap MIl Cav Fernando Júlio Campos Loureiro);

- a 2ª  C/BCAV 8323/73, que esteve em Piche, depois Buruntuma e de por fim de novo em Piche. depois da retirada de Buruntuma, em 5 de juolho (Comandantes: Cap Mil Cav Aníbal António Dias Tapadinhas; Alf Mil Cav António Jorge Ramos Andrade);

- e ainda 3ª C/BCAV 8323/73, que esteve (sempre) em Pirada (Comandante: Cap Mil Cav Ernesto Jorge Sanches Martins de Brito).

O batalhão que estava em Piche, em julho de 1974, era o BCAÇ 4610/73, que foi render o BCAÇ 3883 (Piche, 1972/74).  Mobilizado pelo RI 16, partiu para o TO da Guiné em 11/4/1974 e regressou a 14/10/1974. Esteve em Bissau, Piche, Bula e Bissau. Comandantes: ten cor inf Paulo Eurico de Lacerda e Oliveira Martins; ten cor inf César Emílio Braga de Andrade e Sousa.  

Terá sido um destes dois oficiais superiores que terá proferido ameaças ao Carlos Fabião (último Governador da Guiné, de 7 de maio a 15 de outubro de 1974, com-chefe do CTIG, além de representante da Junta de Salvação Nacional na Guiné), a acreditar no depoimento do Bobo Keita. 

 

O BCAÇ 4610/73 era constituído por 3 companhias:

- 1ª C/BCAÇ 410/73: esteve em Camajabá, Piche, Bissau, Nhamate e Bissau. Comandante: Cap Mil Inf Manuel Cunha Pereira Machado;

- 2ª C/BCAÇ 410/73: esteve em Camajabá, Piche, Bissau, Tite e Bissau. Comandante: Cap Mil Inf José Emídio Barreiros Canova;

- 3ª C/BCAÇ 410/73: esteve em Piche, Bula e Bissau. Comandante: Cap Mil Inf Marcos António Blanch Machado.

Buruntuma foi a primeira guarnição da zona leste a ser desocupada pelas NT e ocupada de imediato pelo PAIGC, por  uma força comandanda pelo Bobo Keita, em 5 de julho de 1974. Camajabá e Canquelifá foram desocupadas a seguir, a 6 e a 7 de julho, respetivamente. 

As restantes guarnições do leste só foram desativadas em Agosto e Setembro, respeitando os planos de retração do nosso dispositivo militar (aprovado pela 3ª Rep/QG/CCFAG) :  

Madina Mandinga (20 de agosto), 
Paunca (21), 
Bajocunda (22), 
Pirada (25), 
Piche (25), 
Saltinho (27), 
Cancolim (1 de setembro), 
Contuboel (2), 
Fajonquito (2), 
Nova Lamego (4), 
Galomaro (5) 
e Bafatá (7).

Também faziam parte da "zona leste", tal como o Saltinho, Galomaro e Cancolim, mas aparecem na "zona sul" (, no relatório da 2ª rep, certamente por lapso, ) as seguintes guarnições: Mansambo (2 setembro), Bambadinca e Xime (9 de setembro).

Os fatos acima relatados pelo Bobo Keita são confirmados pelo relatório da 2ª rep. O ultimatum de Bobo Keita às NT em Buruntuma é vista uma clara violação ao acordo de cavalheiros estabelecido pelas NT e o PAIGC no que respeito à retirada, planeada, ordenada e concertada (a nível local), dos nossos aquartelamentos e destacamentos. Alega-se que Bobo keita estaria "mal esclarecido" sobre esse acordo e os seus trâmites. Por outro lado, as instalações das NT eram particularmente apetecidas pelos combatentes do PAIGC, na zona leste, mais árida, com menos vegetação do que no sul, e em plena época das chuvas. No relatório da 2ª rep, diz-se explicitamente que o comportamento indisciplinado dos homens de Bobo Keita se devia também, em parte, ao facto de serem "periquitos", de serem novos na região e na guerrilha, viverem em condições precárias e estar-se na época das chuvas.

Por outro lado, o capitão de Buruntuma deveria ser Cap Mil Cav Aníbal António Dias Tapadinhas (que, por curiosidade,  foi camarada do nosso camarigo A. Marques Lopes, no 2° Pelotão da 3.ª Companhia do Curso de Oficiais Milicianos do 1.º turno/janeiro de 1966, na EPI, Mafra).

 



Reprodução de um excerto das pp. 52/53 do Relatório da 2ª Rep / CCFAG: de 1jan73: relativo ao período de 1jan73 a 15out74 (*)


Confirma-se que a força do PAIGC que cercou Buruntuma era comandada Bobo Queta (ou Keita), sendo Eduardo Pinto muito provavelmente o comissário político. Nas entrevistas nunca é referido, por Bobo Keita, o nome de Eduardo Pinto. No supracitado relatório, avança-se com a tese da existência de 2 linhas dentro do PAIGC, no que diz respeito ao processo de transferência de soberania: (i) uma mais dura, que se manifestou no leste (com as pressões sobre Buruntuma, Canquelifá, Dunane, Camajabá, mas também Madina Mandinga, Dara, Pirada, Bajocunda, além das barragens de controlo das nossas colunas militares) e que foi protagonizada por Bobo Keita; e (ii) uma linha mais conciliatória e sensata, que terá sido seguida no sul.

Apesar de "todo o processo de retração do dispositivo e desocupação dos aquartelamentos das NT" ter sido "fértil em diferendos com os grupos das FARP ocupantes" (veja-se o caso de Buruntuma),   foi sempre possível evitar incidentes de maior, recorrendo-se ao diálogo em vez da confrontação direta. Em suma, imperou o bom senso e fez-se valer a capacidade de negociação e comunicação das duas partes.

Bobo Keita acabou por ser 'desautorizado'  por Aristides Pereira e por 'Nino' Vieira, que reprensentavam o poder político a que se deviam subordinar os operacionais do PAIGC. (Vd. a pp. 197/198, do livro do Norberto Tavares de Carvalho,  as apreciações críticas que o Keita faz sobre os defeitos de caráter do 'Nino'). 

Recorde-se, por outro lado,  que Bobo Keita é um dos três comandantes que integram a delegação do PAIGC na primeira ronda de negociações de paz em Londres (de 25 a 31 de Maio) e depois em Argel (13-14 de junho): ele representava a Frente Leste, os outros comandantes eram o Lúcio Soares (Norte) e o Umaru Jaló (Sul). O chefe da delegação era o Pedro Pires. Entretanto, a 8 de setembro Bobo Keita é o primeiro a entrar em Bissau com os seus homens (não sabemos quantos), vindos do leste. Aqui, e até à partida do último governador português do território, em 13 de outubro, a relação do Bobo com as NT parece ter sido correta e até cordial. 



Reprodução de um excerto da pág. 51 do relatório da 2ª rep (*)

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Nota do editor:

(*) Vd. poste de

15 de fevereiro de 2012 >
Guiné 63/74 - P9486: Situação Militar no TO da Guiné no ano de 1974: Relatório da 2ª REP/QG/CTIG: Transcrição, adaptação e digitalização de Luís Gonçalves Vaz (Parte VIII): pp. 37/46

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Guiné 63/74 - P9496: Lições de artilharia para os infantes (3): Fazer a rotação, de 180º, do obus 14, para apoiar Jemberém (C. Martins, CMDT do Pel Art, Gadamael, 1973/74)



Guiné > Região de Tombali > Bedanda > CCAÇ 6 > 1970 > Resposta do Obus 14 a um ataque,. noturno,  de foguetes Katiusha, de 122 mm.

Foto: © Hugo Moura Ferreira (2006) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné
. Todos os direitos reservados. 


1. Comentário do nosso camarada C. Martins, último artilheiro de Gadamael (1973/74), ao poste P9329:

Caro camarada Manuel Vaz:

Excelente trabalho.

Informo que o que fizeram serviu e muito para todos nós que estivemos aí em alturas posteriores.

Entre agosto de 73 até à data da entrega ao PAIGC em 74 a dotação do aquartelamento era constituído por:



3 companhias, 
1 pelotão de canhões s/r, 
1 pelotão de morteiros 81, 
2 pelotões de milícias, 
e 1 pelotão de artilharia de obus 14 com 3 obuses.


Outros tempos.


O Pel Art tinha os 3 obuses, no enfiamento entre o abrigo de transmissões no fundo da pista e o posto de vigia junto ao cais, todos com espaldão e abrigo, e virados obviamente para a fronteira.


Várias vezes foi necessário fazer uma rotação de 180º para apoiar Jemberém, o que causou alguns estragos, de pouca monta, em infra-estruturas do aquartelamento devido à onda de choque provocada pelos disparos.

Um grande alfa bravo

Um artilheiro de Gadamael (*)

C.Martins

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Nota do editor:


(*) Último poste da série > 8 de fevereiro de 2012 _ Guiné 63/74 - P9460: Lições de artilharia para os infantes (2): Cada granada de obus 14 pesava 45 kg e custava 2500$00 (C. Martins, ex-comandante do Pel Art, Gadamael, 1973/74)

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Guiné 63/74 - P9437: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (7): Andava-se de sintex, com motor de 50 cavalos, no Cumbijã, nas barbas do PAIGC... e fazia-se esqui aquático no Cacine...



Carta de Cacine (Escala 1/25000) > Posição relativa de Cadique, Jemberém e Cacine, em pleno Cantanhez




Carta de Bedanda (Escala 1/25000) > Posição relativa de Cufar, Bedanda e Caboxanque


1. A propósito da aventura do Pedro Vaz, irmão do Luís Vaz, que durante as férias do Natal de 1973 acompanhou o pai até Cufar, de avião,  e depois foi até Cadique, de sintex... e que terá dormido, na noite seguinte [ou noutra ocasião, ele não pode garantir], numa LFG no Rio Cacine, onde viu fuzileiros a fazer esqui aquático, tivemos curiosidade em espreitar, de novo, o diário do António Graça de Abreu (AGA) (*)... 

No diário não há vestígios da família Vaz, nem em Cufar nem em Cadique. Também não se fazia esqui, lá em baixo, pelo menos no Cumbijã... Em contrapartida, o sintex era um transporte popular, rápido e relativamente segundo. Tanto servia para o Coronel do CAOP1 ir a Cadique dar apoio moral às NT na véspera de Natal ou para evacuar feridos até a Cufar, como servia para a malta ir a Caboxanque destilar a adrenalina e beber um copo... 

O Pedro Vaz  (nem o irmão Luís) tem a certeza sobre a data exata em que ocorreu a aventura... Pode ter sido antes ou depois do Natal ou até mesmo nos primeiros dias do novo ano. Para o Pedro ("que tem uma memória seletiva", diz o mano mais novo) foi seguramente nas férias de Natal de 1973, não nas férias da Páscoa de 1974 (A Páscoa nesse ano foi a 14 de abril). 

De 13 a 21 de dezembro,  o AGA está em Bissau, onde foi ao dentista. Se o CEM do CTIG, o cor cav Henrique Gonçalves Vaz,  esteve lá pode ter sido nesta altura. E não terá lá ido fazer turismo, que aquilo não era propriamente um destino paradisíaco como Bubaque.  Ao ler o diário do AGA,  sabe-se que se estava a preparar, para a época natalícia,  a grande Op Estrela Telúrica, envolvendo o batalhão de comandos africanos (3 companhias), a 38ª CCmds, os fuzileiros (de Cacine), a tropa de Cadique... Houve grande movimentação de meios aéreos, conforme se pode ler diário do AGA (Vd. Cufar, 26 de dezembro de 1973).


Cufar era a Bissalanca do sul... E as NT lá andavam também de sintex (pequenos barcos de fibra com potentes motores de 50 cavalos)... E lá estava o CAOP1... O António Graça de Abreu esteve lá de Junho de 1973 até Abril de 1974... Ele próprio foi a Cadique de sintex com o comandante dele, coronel, no dia 24 de dezembro... Mais uma razão para se pensar que esta aventura do filho do CEM do CTIG é perfeitamente verosímil...  

Selecionei uma série de excertos do do diário do AGA, com referências ao sintex, usado no Cumbijã, ligando Cufar aos vários aquartelamentos (Cadique, Caboxanque)... Reproduzimos aqui, mais uma vez, com, a devida vénia ao autor e ao editor...(LG).


(...)  Cufar, 26 de Junho de 1973

Adapto-me, moldo-me a um novo quotidiano ingrato. Podia ser pior, pode sempre ser pior.
Estou no sul da Guiné em zona de muita guerra. Os guerrilheiros continuam a dispor de boas hipóteses para vir a Cufar chatear quem cá vive, de resto, eles também não moram longe. De momento creio que têm mais com que se preocupar mas qualquer dia voltam cá, de certeza.


Em Cufar não existe propriamente um quartel, as instalações militares são pouco mais do que uma dezena de pequenas casas separadas umas das outras, vivemos praticamente misturados com a população o que é uma vantagem em caso de flagelação. Os africanos, das etnias balanta, beafada, mandinga, fula coexistem com a tropa, nem muito, nem pouco amigos. São frequentes pequenos sarilhos entre as NT e as gentes da terra mas sem gravidade, cada um trata de si.

Ao contrário do que acontecia em Canchungo e Mansoa, a tropa especial, comandos, pára-quedistas e fuzileiros não vivem aqui connosco. Sinto a sua falta, não estou tão seguro. Até Novembro [de 1973] a guerrilha não deve aumentar, estamos na época das chuvas.

Em termos de ligações com o resto da Guiné, Cufar está muito isolada. Existe a estrada asfaltada para Catió, nove quilómetros que só se fazem com escolta, e a estrada para o porto grande no rio Cumbijã, dois quilómetros por onde nos deslocamos à vontade. Depois, há umas picadas em péssimo estado que conduzem à terra de ninguém, ou melhor aos lugares habitados pelos guerrilheiros. Quem se mete por aí? Ninguém. De Cufar a Bissau serão uns cento e trinta quilómetros, em linha recta, mas não há estradas. 

É pelo rio e pela ramificação dos seus afluentes que Cufar se liga aos novos aquartelamentos da região. Existem os sintex, pequenos barcos de fibra sintética – em Cafal e Cafine, os fuzileiros têm os zebros -, com motores de 50 cavalos que sobem e descem os rios a boa velocidade com grupos NT, sempre armados, garantindo a comunicação entre todos nós. 

Temos ainda a pista de aviação com os aviões e os hélis. Hoje chegou uma DO, um Nordatlas – o avião é conhecido entre a tropa por Horácio -  e dois helicópteros. Vêm de Bissau e para lá regressam. Trazem víveres, correio, pessoal, pequenas cargas. Os helicópteros redistribuem os géneros pelos aquartelamentos da região, frangos e peixe congelado, carne, batata, farinha, couves frescas.

Se os homens do PAIGC voltam a mandar um avião ou héli abaixo, estamos todos lixados porque suspende-se outra vez o apoio aéreo. Mas agora já não é fácil que tal aconteça. Os pilotos conhecem as características dos mísseis terra-ar, os Strela ou Sa 7 que são eficazes entre os 200 e os 2.000 metros de altitude, e tomam as devidas precauções. As DOs e os hélis voam muito baixo, a rapar, rente às árvores, às bolanhas e aos rios, e os Nordatlas ou os DC 3 voam muito alto, com tectos de mais de 2.500 metros. Descem e sobem sobre a pista de Cufar, onde montamos sempre segurança, voando em círculos ou espirais para evitar sobrevoar as florestas, as zonas IN. Em quarenta minutos de voo, uma pessoa põe-se em Bissau. É seguro? Até hoje tem sido.

As LDG, Lanchas de Desembarque Grandes, são o outro meio para se chegar e partir. As viagens são mais seguras do que de avião, mas incómodas e demoradas. Há uma semana atrás, experimentei o luxo da Alfange, uma das três LDG que navegam nos mares e rios da Guiné. O navio vinha carregado com tudo, víveres, cimento e muitos outros materiais de construção, um obus, munições, três unimogs e dois jipes do CAOP 1 atravancados com os nossos haveres e cerca de 150 pessoas, não apenas soldados, também população negra que aproveita a boleia das NT e se desloca utilizando os meios possíveis. 

Largámos de Bissau às três da tarde em direcção ao mar, chegámos a estar aí a uns quinze quilómetros da costa. Vim com os condutores auto que já enfrentaram a morte, estiveram em Guidage quando morreu o Viegas que também teria viajado connosco para Cufar se não tivesse morrido. Arranjámos o jantar que comemos em cima da minha mesa-secretária, composto por pão, atum, cebola e vinho. Por volta das dez da noite, a LDG ancorou no mar à espera da maré da manhã seguinte para então poder subir os vinte e cinco quilómetros do rio Cumbijã até Cufar, com paragem nos aquartelamentos da margem para descarregar materiais e pessoas. Dormimos na Alfange em condições péssimas, em cima de mercadorias, no chão de ferro do barco, onde calhava e havia espaço. Nós trazíamos as nossas viaturas e colchões e eu lá me safei porque coloquei um colchão dentro da cabina de um Unimog e consegui dormitar. Para azar de toda a gente, às duas da manhã começou a chover em grande, as pessoas não tinham onde se abrigar, foi o encharcanço total. Também me molhei porque os Unimog não têm janelas e a lona grossa que cobre as viaturas não é impermeável. Mas já esqueci. 


De manhã, foi a subida do rio Cumbijã passando por Cafine, Cafal e Cadique, lugares críticos de guerra. Mal se entrou no rio, fomos avisados de que a LDG ia disparar sobre as margens para testar as metralhadoras pesadas. O armamento, colocado a bombordo e estibordo, sossega quem viaja no barco e põe os guerrilheiros em sentido. Eles não possuem armas semelhantes e é raríssimo flagelarem uma LDG. Existe a hipótese de minas aquáticas, já rebentaram algumas, mas não têm feito mossa nos navios maiores, de aço compacto e pesadíssimo.


(...) Cufar, 5 de Julho de 1973

À tarde, evacuámos no Nordatlas para o hospital de Bissau um soldado de Cobumba que pisou uma mina e ficou sem uma perna, esfarrapado, retalhado até aos testículos. O médico diz que ele não se salva. Veio pelo rio Cumbijã de sintex até Cufar e perdeu muito sangue. Fui à pista e todo o seu corpo era ligaduras e sangue. A minha passividade a olhar para o moço, os olhos parados. Não sou o mesmo António que desembarcou na Guiné há um ano atrás.

(...) Cufar, 1 de Setembro de 1973

Sábado tombou mais um Fiat sobre o Morés, ao lado de Mansoa. Fala-se de avaria técnica, o avião entrou em perda e pumba! Também se fala em mísseis do PAIGC. O piloto teve sorte, ejectou-se e na altura passavam por perto dois helicópteros que viram o pára-quedas no ar e o foram buscar ao solo.


Também sábado ao entardecer, tivemos em Cufar as consequências da guerra. Às quatro e meia da tarde, um Unimog pisou uma mina anticarro em Cobumba. Os seis pobres desgraçados que iam na viatura ficaram feridos, três em estado grave. De Cufar, pedimos a evacuação para Bissau, vinham dois hélis a caminho mas voltaram para trás devido ao mau tempo. Um Nordatlas que seguia de Bafatá para Bissau foi desviado para aqui e chegou já de noite. Entretanto, os feridos de Cobumba, a perder muito sangue, vieram para Cufar nos sintex, descendo o rio Cumbijã. A pista de aviação foi iluminada pelo usual processo artesanal, as garrafas de cerveja cheias com petróleo e as mechas acesas distribuídas lateralmente ao longo da pista. Com os feridos seguiu para Bissau o furriel enfermeiro que fez de capelão quando daquela brincadeira no desembarque dos periquitos há quinze dias atrás. Os feridos de Cobumba estiveram na sala de operações do hospital de Bissau até às quatro horas da manhã, não morreu nenhum. Tanto esforço, mas salvaram-se as vidas.


(...) Cufar, 19 de Novembro de 1973

A guerra, os efeitos da guerra. África pobre, quente, medos, suores, sangue e tudo o mais que as palavras não dizem, mas sentimos e vivemos.


Sábado chega a notícia de que na foz do Cumbijã, a uns trinta quilómetros de Cufar, caíra uma DO, ou melhor fizera uma aterragem forçada no tarrafo da margem do rio. Avançaram logo meios para se recuperarem os tripulantes, o piloto, e duas enfermeiras pára-quedistas. Tiveram muita sorte, três horas depois os fuzileiros de Cafine descobriram-nos no lodo do tarrafo.[++] Embora a avioneta tivesse caído numa região libertada, os guerrilheiros não apareceram e os fuzileiros trouxeram o pessoal aqui para Cufar nos zebros, ainda meio assustados e cobertos de lama. Dois helicópteros levaram-nos depois para Bissau. A DO não foi abatida, tratou-se mesmo de acidente.


Ontem foi dia de ataque a Cadique, o aquartelamento a sul mais perto de Cufar. Às seis e meia da tarde, estavam a jantar, mal tiveram tempo para fugir para as valas e levaram com canhão sem recuo, RPG e morteirada. Houve um pobre soldado que corria para um abrigo e foi atingido por um estilhaço de canhão sem recuo que lhe perfurou o crâneo. Contaram-se mais meia dúzia de feridos. Era já noite quando os sintex trouxeram o ferido grave para Cufar e aqui aguardámos duas longas horas por um avião que transportou o rapaz para o Hospital Militar de Bissau. Como de costume, iluminámos a pista com as garrafas acesas e os faróis das viaturas. Quando o avião desceu, já o soldado estava a oxigénio, a caminhar para a morte. Na madrugada de hoje, no hospital, não resistiu. Tinha perdido massa encefálica, o estilhaço apanhara-lhe o cérebro.

Podia ter acontecido a qualquer um de nós, um destes dias posso ser eu.

(...) Cufar, 24 de Dezembro de 1973

Tempo de Natal. Paz na terra aos homens de boa vontade, na Guiné em guerra.


Fui a Cadique com o meu coronel, de sintex, dez quilómetros descendo o rio Cumbijã. Os pobres de Cadique, que tiveram dois mortos na terça-feira passada, estão a entrar na engrenagem da loucura. Já houve soldados que se recusaram a sair para o mato. Outros, ou os mesmos, na confusão de uma flagelação, atiraram com uma granada de mão ao tenente-coronel comandante do batalhão que não o atingiu por pura sorte. O tenente-coronel não tem culpa do sofrimento e da morte dos seus homens, limita-se a cumprir ordens, não pode pegar no batalhão e marchar sobre Bissau, ou sobre Lisboa. De resto, entre os muitos oficiais do QP que tenho conhecido, este tenente-coronel é um dos homens mais humanos e sensíveis ao sofrimento dos seus subordinados.

A zona de Cadique é terrível, os guerrilheiros deixaram construir a estrada para Jemberém e agora passam o tempo a dinamitá-la e a emboscar as NT. Sabotaram os sete pontões do trajecto, abriram enormes brechas no asfalto, em vários sítios. Para arranjar a estrada, a tropa de Cadique avança com camionetas carregadas de terra e troncos de árvore. Depois dos primeiros dois quilómetros, começam a ser flagelados. Quem quer caminhar para a morte?

Os dias estão tão bonitos! Frescos, serenos, com pouca humidade, manhãs de sol que abrem os braços para os homens, o fumo a sair das tabancas e a espalhar-se sobre os campos, como em Portugal. A natureza não tem culpa da insensatez, do desvairo da espécie humana.


(...) Cufar, 26 de Dezembro de 1973

Graças ao Natal, umas tantas iguarias rechearam as paredes dos nossos estomagos. Houve bacalhau do bom, frango assado, peru para toda a gente e presunto, bolo-rei, whisky e espumante à discrição, só para oficiais. Fez-se festa, fados, anedotas, bebedeiras a enganar a miséria do nosso dia a dia.

 Hoje, 26 de Dezembro, acabou o Natal e, ao almoço, regressámos às cavalas congeladas com batata cozida e, ao jantar, ao fiambre com arroz. Isto não tem importância, importante é a ofensiva contra os guerrilheiros do PAIGC desencadeada na nossa região com o bonito nome de Estrela Telúrica. Acho que nunca ouvi tanta porrada, tantos rebentamentos, nunca vi tantos mortos e feridos num tão curto espaço de tempo. E a tragédia vai continuar, a Estrela Telúrica prolongar-se-á por mais uma semana.

Tudo começou em grande, com três companhias de Comandos Africanos, mais os meus amigos da 38ª., fuzileiros e a tropa de Cadique a avançarem sobre o Cantanhez. O pessoal de Cadique começou logo a levar porrada, um morto, cinco feridos, um deles alferes, com certa gravidade. Ontem de manhã, dia de Natal, foi a 38ª de Comandos a embrulhar, seis feridos graves entre eles os meus amigos alferes Domingos e Almeida, hoje foram os Comandos Africanos comandados pelo meu conhecido alferes Marcelino da Mata, com dois mortos e quinze feridos. Chegaram com um aspecto deplorável, exaustos, enlameados, cobertos de suor e sangue. Amanhã os mortos e feridos serão talvez os fuzileiros… No dia seguinte, outra vez Comandos ou quaisquer outros homens lançados para as labaredas da guerra. O IN, confirmados pelas NT, só contou seis mortos, mas é possível que tenha morrido muito mais gente, os Fiats a bombardear e os helicanhões a metralhar não têm tido descanso.

Na pista de Cufar regista-se um movimento de causar calafrios. Hoje temos cá dez helicópteros, dois pequenos bombardeiros T-6, três DO, dois Nordatlas e o Dakota. A aviação está a voar quase como nos velhos tempos. Os helis saem daqui numa formação de oito aparelhos, cada um com um grupo constituído por cinco ou seis homens, largam a tropa especial directamente no mato, se necessário os helicanhões dão a protecção necessária disparando sobre as florestas onde se escondem os guerrilheiros, depois regressam a Cufar e ficam aqui à espera que a operação se desenrole. Se há contacto com o IN e se existem feridos, os helicópteros voltam para as evacuações e ao entardecer vão buscar os grupos de combate novamente ao mato. Ontem, alguns guerrilheiros tentaram alvejar um heli com morteiros, à distância, o que nunca costuma dar resultado.

Sem a aviação, este tipo de operações era impossível. Durante estes dias os pilotos dormem em Cufar e andam relativamente confiantes, há muito tempo que não têm amargos de boca. Os mísseis terra-ar do IN devem estar gripados porque senão, apesar dos cuidados com que se continua a voar, seria muito fácil acertar numa aeronave, com tanto movimento de aviões e hélis pelos céus do sul da Guiné.

Cufar fica a uns quinze, vinte quilómetros da zona onde as operações se desenrolam. Todos os dias, às vezes durante horas seguidas, ouvimos os rebentamentos e os tiros dos embrulhanços, das flagelações. É impressionante o potencial de fogo, de parte a parte. Os guerrilheiros montam também emboscadas nos trilhos à entrada das matas onde se situam as suas aldeias. Aí as NT começam a levar e a dar porrada, e não têm conseguido entrar nas povoações controladas pelo IN.

Natal, sul da Guiné, ano de 1973, operação Estrela Telúrica. Tudo menos paz na terra aos homens de boa vontade.

(...) Cufar, 4 de Janeiro de 1974

Ontem de manhã acordei com mais um tremendo embrulhanço, os rebentamentos uns atrás dos outros. Era a estrada Cadique-Jemberém. Ainda na cama pensei: “Lá estão mais pobres desgraçados a morrer!” Era verdade, dois soldados mortos do batalhão de Cadique, os corpos destroçados. Vieram para Cufar e, como de costume, aqui foram metidos nas urnas junto com um fuzileiro que esperava por caixão há dois dias e já cheirava mal. O cangalheiro vestiu o fato de madeira e chumbo aos três. Já ninguém estranha muito, estamos habituados, a vida continua. Mas porque diabo é que o rodopio dos mortos e feridos passa sempre por Cufar?...

Tenho constatado que em muitos de nós existe um prazer sádico, mórbido em ver mortos e feridos. Faço parte do grupo. Há qualquer coisa de macabro no ser humano, talvez uma silenciosa nostalgia da morte que nos aguarda a todos. Ontem, ao fim da tarde, quando o cangalheiro metia os três rapazes nos caixões, ao ar livre, no largo no centro de Cufar, juntaram-se à volta umas dezenas de mirones, brancos e negros. Um furriel pegou numa G 3 e ameaçou disparar sobre os curiosos se não desaparecessem imediatamente. Assisti a tudo, parado, insensível como um boneco de gesso, a cinquenta metros de distância.
(...) Cufar, 13 de Janeiro de 1974

No domingo fui a Caboxanque com o Dias da Silva, o capitão da 4740, outro alferes e mais cinco soldados em dois sintex, os botes com que se viaja por estes rios. Íamos bem armados, eu levei uma espingarda Kalashnikov (um dos soldados que nos acompanhou chama-lhe Calaxmicose!) emprestada pelo capitão e senti-me um verdadeiro guerrilheiro. É fácil atacar os nossos botes que sobem e descem o rio Cumbijã. O tarrafo das margens é alto e basta os combatentes do PAIGC esconderem-se na vegetação e dispararem umas dezenas de carregadores das espingardas ou uns RPG para provocarem baixas nas NT. Raramente tal acontece. Não sei porquê, não entendo porque é que o inimigo, às vezes, é tão nosso amigo. Em paz, fomos a Caboxanque, em paz regressámos.



O objectivo da curta viagem até ao aquartelamento nosso vizinho foi simplesmente sair de Cufar, a ideia do passeio foi ver outras pessoas, beber uns copos com o pessoal amigo de Caboxanque. Dei uma volta pela povoação, que até é maior do que Cufar, e tudo tão pobre! Comprovei como são miseráveis as tabancas, deploráveis as instalações dos nossos militares.

(...) Cufar, 7 de Fevereiro de 1974

Em alguns aquartelamentos aqui do sul também existem carências de todo o tipo, mas de natureza diferente das deste pobre povo guineense. No Relatório Mensal Janeiro 1974 do nosso CAOP 1, no ponto 4. b. Logística, os meus chefes referem, em diferentes destacamentos da nossa zona operacional, falta de medicamentos, falta de mesas e bancos para os refeitórios, falta de víveres frescos e de arroz para distribuir pela população, falta de armamento, falta de peças de substituição para muitas das viaturas auto-metralhadoras Fox e White que têm dezenas de anos e estão na sua maioria avariadas, falta de geradores eléctricos, de moto-serras, de electro-bombas, de motores para os barcos sintex.


(...) Cufar, 5 de Março de 1974

Guerra, só guerra. O PAIGC não pára, desencadeou mais uma ofensiva. Flagelaram uma série de aquartelamentos e lançaram-se em força sobre Jemberém. Com o abandono do aquartelamento de Guileje em meados do ano passado, foi-lhes possível abrir uma estrada desde a Guiné-Conacri até às florestas situadas entre Bedanda e Jemberém. Vêm com as viaturas até bem dentro do território carregados com toneladas de material de guerra. Jemberém tem estado dias e dias debaixo de fogo. Encontram-se lá duas companhias, mais de trezentos homens, ainda há soldados a viver em tendas e tudo aquilo está muito destruído. 


Por incrível que pareça, com tanta flagelação não registaram ainda nenhum morto, só bastantes feridos. Cavaram valas profundas e praticamente vivem nesses buracos. A tropa portuguesa já pensou em abandonar Jemberém por várias vezes, mas a situação é tão má, tão má que não têm por onde sair. Jemberém fica encravada na região do Cantanhez, voltada para sul, para o rio Cacine e agora só se chega lá com os barcos pequenos, os zebros e os sintex, em viagens pelo rio nada seguras a partir de Cacine. Foi construída uma boa estrada asfaltada entre Cadique e Jemberém mas os guerrilheiros tornaram-na intransitável ao dinamitarem vários troços. Quando as NT avançam a pé, o IN monta emboscadas e é cada vez mais extenso o rol de mortos e feridos.

Jemberém encontra-se numa situação crítica mas nestas últimas semanas não registaram nenhum morto. Nós,  em Cufar, estamos bem melhor mas há dias, com o inferno das minas, dos incêndios nos batelões carregados de gasolina contámos dezanove mortos, em meia dúzia de horas.

(...) Cufar, 7 de Março de 1974

Neste exacto momento em Portugal, há milhões de pessoas especadas diante do televisor à espera do Festival da Canção. Aqui na guerra do sul da Guiné, acabou de morrer um homem, outro está moribundo. Oiço o roncar dos motores do Nordatlas que, com a pista iluminada acabou de aterrar e vai levar gente ferida para Bissau.

Lá longe, satisfeitos, os portugueses deliciam-se com melodias, músicas capazes de enternecer uma mula ou um burro. Neste pequeno lugar do mundo, em África, um homem retalhado tem o corpo a arfar nos estertores da morte. Vim há pouco da enfermaria, vi tudo, continuo a ver demais.

Foi em Caboxanque, os nossos vizinhos do outro lado do rio Cumbijã. O aquartelamento não costumava ser muito flagelado embora se situe numa zona praticamente controlada pelos guerrilheiros. Neste momento Caboxanque tem duas companhias, a velhinha que terminou a comissão e está de partida no merecido regresso a Portugal, e a de periquitos acabados de chegar. Por isso, para assustar os piras, foram atacados quatro vezes em doze dias. 


As flagelações sucessivas também se integram na ofensiva geral sobre os nossos aquartelamentos desencadeada pelo IN. Hoje acertaram na tropa de Caboxanque e nem sequer foi um grande ataque, dez minutos apenas com vinte disparos de canhão sem recuo. Estou farto de ouvir, e até de sofrer, ataques piores. Mas a tropa de Caboxanque teve azar, uma granada de canhão caiu numa vala e rebentou lá dentro. Resultado, um morto, um soldado cozinheiro da companhia velhinha cortado ao meio, a cabeça voou para um lado, o tronco e as pernas caíram para outro, mais um ferido gravíssimo com os intestinos de fora e vários feridos ligeiros.

Na noite de luar, os barcos sintex trouxeram os feridos para Cufar. Neste momento o Nordatlas levanta de voo levando os homens de Caboxanque para o hospital de Bissau. No rádio, no Festival da Canção, o Artur Garcia canta a “Senhora Dona da Boina”. (...)


Fotos: © António Graça de Abreu (2012) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.
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Nota do editor:


Último poste da série > 27 de janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9406: Excertos do Diário do António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (6): Bissau, 23 de Junho de 1972, e 25 de Março de 1974: dois estados de espírito diferentes...