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terça-feira, 6 de abril de 2021

Guiné 61/74 - P22074: Manuscrito(s) (Luís Graça) (203): Para a Joana, que hoje faz anos: "E os adultos, esses, já morreram todos. Só ficaram as crianças, sozinhas, a envelhecer” (Louise Glück | Frederico Pedreira, "Uma Vida de Aldeia", Lisboa, Relógio de Água, 2021, p. 133)


Página do Facebook da Joana Graça / Joana Carneiro... Com a devida vénia...

Joana:

1. Queria-te oferecer, como prendinha de anos, a novela gráfica “Balada para Sophie”, da genial dupla Filipe Melo e Juan Cavia (Lisboa, Tinta da China, setembro de 220, 320 pp). 

Simplesmente,  está esgotada. Mas fica prometido um exemplar da 2ª edição ou reimpressão.

Vê e ouve aqui ao menos a interpretação ao piano da Balada, pelo autor e pianista Filipe Melo (que é amigo do João e a quem dei umas "dicas", há uns anos, para o guião de uma outra BD, também portentosa, "Os Vampiros", cuja história se passa na fronteira da Guiné com o Senegal, em dezembro de 1972). 

[Sinopse: "Guiné, Dezembro de 1972.Em plena guerra colonial, um grupo de soldados portugueses é destacado para uma operação secreta no Senegal. Porém, à medida que vão sendo consumidos pela paranóia e pelo cansaço, esta missão aparentemente simples vai transformar‑se num verdadeiro pesadelo. Embrenhados na selva, estes homens terão de confrontar sucessivos demónios – os da guerra e os que trouxeram consigo."].

2. Em alternativa, trouxe-te um livro de poesia, em edição bilingue, inglês/português. Não conhecia a autora, Louise Glück, Prémio Nobel da Literatura 2020. Nova-iorquina, de ascendência judaico-húngara.

Acho que vais gostar: A Village Life (2009) / Uma Vida de Aldeia, numa belíssima e rigorosa tradução de Frederico Pedreira, também ele poeta. [Edição da regógio d'Água, Lisboa, 2021, 160 pp.]

Lê-se na badana: 

 “Teve uma infância e adolescência difíceis, mas um contacto precoce com autores gregos e latinos permitiu-lhe acolher a herança clássica e escrever uma poesia que , através de imagens universais, aborda a fragilidade essencial dos seres humanos”.

Acho que vais gostar. É o meu “feeling”. E mais: acho que podias escrever poemas quase tão bons como estes,   naqueles “notebooks”, baratuchos,  do Auchan,  que eu te costumo oferecer, e que tu approveitas da primeira à última folha, com notas, pensamentos, poemas, (in)confidências, desenhos, esboços de qualquer coisa… que um podia poderão transformar-se em livro. Tenho sempre a esperança que tenhas mais golpe de asa do que eu. Porque talento, felizmente, não te falta para o desenho e a escrita.


3. Folheando o livro, "Uma Vida de Aldeia", lendo na vertical, destaquei uma meia dúzia de versos:

(...) “Para poder nascer, o nosso corpo faz um pacto com a morte,

e, a partir desse momento, tudo o que tenta é fazer batota”
(p.77)


(...) “Que belas estão as flores – símbolos da resiliência da vida.

Os pássaros aproximam-se vorazes.”
(p. 105).


(...) “Nada prova que estou viva.

Há apenas a chuva, a chuva é infindável”
(p. 117).


(…) “E as pequenas coisas que antes nos

faziam felizes

já não conseguem chegar a nós”
(p.125)


(...) “E os adultos, esses, já morreram todos.

Só ficaram as crianças, sozinhas, a envelhecer”
(p.133)…


(...) “Corpo meu, (…)

não é da Terra que irei sentir falta,

é de ti que eu irei sentir falta”
(p.137).


Joana, é uma escrita muito feminina, austera, depurada, de alguém que sabe fazer, com as palavras, a necessária logoterapia que transforma a(s) nossa(s) fragilidade(s) em beleza poética. As palavras não servem para mais nada, se não para criar beleza e reordenar a realidade. Sem as palavras, teríamos o caos. 

Que tenhas um lindo dia 6 de abril de 2021

Teu pai e tua mãe (que, todos os anos, por este dia, às 10h30, deixa cair uma lágrima ternurenta  com a memória do teu parto, no Hospital de Santa Maria há 43 anos).

_________

Nota do editor:

Último post da série > 4 de abril de 2021 > Guiné 61/74 - P22066: Manuscrito(s) (Luís Graça (202): A Páscoa: este ano resta-nos a saudade... e as fotografias e os vídeos de antanho. E a Covid-19 que nos confina e nos espreita.

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20822: Manuscrito(s) (Luís Graça) (182): para a Joana que hoje faz anos, e para todos os nossos filhos que estão sozinhos em casa...


Capa da agenda 2008, da revista  "Pais & Filhos".
 Ilustração: Joana Graça
 (com a devida vénia, ao autor e editor...)



Para a Joana, que hoje faz anos e está sozinha em casa.

Para os filhos dos nossos leitores 
que fazem anos em Abril,
e que estão sozinhos em casa.



Era Abril
E tu acabavas de nascer.

Era Abril
E trouxeste-nos a alegria e o amor
Que as crianças trazem ao mundo.

Era Abril
Mas o mundo não era tão perfeito
Como a gente o queria.

Era Abril
E ainda não havia o mal
Nem o pecado original
Nem a caixinha de Pandora.

Era Abril
E ainda não tínhamos asas para voar
Como Ícaro, até ao sol.

Era Abril
Mas já era tempo de provação.

Era Abril,
Abril, águas mil,
As que te alimentaram no ventre de tua mãe,
As que alimentam a vida na terra

Era Abril
E éramos jovens e felizes e livres.

Era Abril
E tu dizias a quem te deu o ser:
“Mamã, gosto mais de ti
Do que de gelado ao copinho”,

Era Abril
E o teu pai contava-te a história da fada Oriana.

Era Abril,
E havia poesia e magia.

Era Abril
E éramos inconscientemente felizes
E jovens e livres.

Era Abril,
E a gente perguntava
Porque é que a felicidade não era para sempre.

Era Abril
… E continua a ser tempo de provação.


Era Abril
…E hoje temos que fazer prova de vida.

Era Abril,
… E será sempre Abril o teu mês,
Mesmo que o horóscopo esteja em branco.

Era Abril
…E a vida segue dentro de momentos,
Diz o locutor de serviço.

Era Abril
… E continuaremos sempre
A celebrar a tua vinda ao mundo.

Era Abril
… E só o amor por ti
Não tem prognóstico reservado!

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15525: Agenda cultural (449): Joana Graça, exposição de pintura, na livraria Ler Devagar, LXFactory, Alcântara, Lisboa, até 26 deste mês



Cortesia de: Joana Graça – A kind of blue (2009). Técnica mista sobre tela. Exposição de pintura, Livraria Ler Devagar, LXFactory, Lisboa, de 16 a 26/12/2015.








Lisboa > Alcântara > LXFactory > Livraria Ler Devagar > Instalada num gigantesca rotativa de 3 pisos... Há magia neste lugar...E dezenas de milhares de livros a treparem pelas paredes,,,

Fotos: © Luís Graça (2015). Todos os direitos reservados


1. Há uma Lisboa desconhecida que espera por nós... O LXFactory é desses sítios...
.
"É no ano de 1846 que a Companhia de Fiação e Tecidos Lisbonense, um dos mais importantes complexos fabris de Lisboa, se instala em Alcântara. Esta área industrial de 23.000 m2 foi nos anos subsequentes, ocupada pela Companhia Industrial de Portugal e Colónias, tipografia Anuário Comercial de Portugal e Gráfica Mirandela.

"Uma fracção de cidade que durante anos permaneceu escondida é agora devolvida à cidade na forma da LXFACTORY. Uma ilha criativa ocupada por empresas e profissionais da indústria também tem sido cenário de um diverso leque de acontecimentos nas áreas da moda, publicidade, comunicação, multimédia, arte, arquitectura, música, etc. gerando uma dinâmica que tem atraído inúmeros visitantes a re-descobrir esta zona de Alcântara.

"Em LXF, a cada passo vive-se o ambiente industrial. Uma fábrica de experiências onde se torna possível intervir, pensar, produzir, apresentar ideias e produtos num lugar que é de todos, para todos."


(Fonte: LXFactory, com a devida vénia)



2. LER DEVAGAR

"FÁBRICA A FÁBRICA, A LER DEVAGAR CHEGOU À LXFACTORY Dez anos depois de ter nascido numa Litografia do Bairro Alto em Lisboa, é à volta de uma rotativa de três andares que está instalada a Ler Devagar. Instalações, performances, debates, conferências, poesia, teatro, dança, música: fado, jazz, música portuguesa, francesa, brasileira, africana, clássica e experimental instalações , performances, debates, conferências, poesia, teatro, dança, música: fado, jazz, música portuguesa, francesa, brasileira, africana, clássica e experimental."

(Fonte: LXFactory, com a devida vénia)


3. Jona Graça

Psicóloga, pintora, ilustradora e contadora de estórias... Está aqui no Facebook. E com algumas das suas obras na Ler Devagar, no LXFactory, até 26 deste mês. 

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15440: Agenda cultural (441): Joana Graça > "Riscos & Rabiscos: Estórias Abensonhadas" > Exposição de ilustração, Oeiras, Carnaxide, Biblioteca Municipal de Carnaxide, até ao final do ano...





Joana Graça > Exposição de ilustração, novembro - dezembro de 2015

Oeiras, Carnaxide > Biblioteca Municipal de Carnaxide

Rua Cesário Verde, Edifício Centro Cívico 
2790 Carnaxide
Telef.: + 351 210 977 430
Fax: +351 214 170 328

De 3ª feira a 6ª feira das 10 às 19h00

Público-alvo > Comunidade escolar, pais, filhos, netos e bisnetos...



Pintura mural de Joana Graça, em paragem de autocarro, Atenor, Miranda do Douro. Foto da página do Facebook da artista, A Lua Mora Aqui

___________________

Nota do editor:

Último poste da série > 30 de novembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15426: Agenda cultural (440): Apresentação dos livros Radiografia Militar e os 4 DDDD? e Tempo Africano, de Manuel Barão da Cunha, dia 3 de Dezembro de 2015, pelas 15 horas, na Messe do Porto, Praça da Batalha (Manuel Barão da Cunha)

terça-feira, 5 de maio de 2015

Guiné 63/74 - P14573: Agenda cultural (395): Estórias Abensonhadas, exposição de Joana Graça, Biblioteca Municipal Orlando Ribeiro, Telheiras, Lisboa, até 19 de maio


Joana Graça é: (i) contadora de estórias na associação  Estórias de se Tirar do Chapéu; e (ii) ilustradora e artista plástica na empresa A Lua Mora Aqui.

Contactos: 

joana_graca@yahoo.com
https://joanagraca.carbonmade.com
www.facebook.com/aluamoraaqui

A Biblioteca Municipal Orlando Ribeiro fica em Telheiras,  Lisboa, com metro à porta,

"Desde cedo que as estórias a fascinaram... Depois do curso de piscologia, imaginou personagens que ganharam vida nos seus cadernos, quadros e agendas e, depois,  como contadora de estórias (atualmente na Associação Estórias de se Tirar do Chapéu).

"Foi autodidata durante alguns anos, mas depois o seu interesse pela ilustração fê-la procurtar mais estímulos e aprendizagens na FBAUL - CIEAM e na SNBA.

"Também descobriu a pintura, motivada pelo seu impulso mais inconsciente e transcendente.

"São linguagens diversas, mas em tudo gosta de colocar o seu traço: em caixas de estórias, objetos tridimensionais, quartos e paredes, cadeiras e mobiliário, pintura de murais.

"Bem vindos à Lua Mora Aqui... desejo que este mundo vos abensonhe!"

(Do catálogo, com a devida vénia)

___________________

Nota do editor:

Último poste da série > 2 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14553: Agenda cultural (394): Apresentação do livro "Guerra na Bolanha - De Estudante, a Militar e Diplomata", de Francisco Henriques da Silva, dia 5 de Maio de 2015, pelas 18h00, no Palácio da Independência, Largo de São Domingos, Lisboa (Francisco Henriques da Silva)

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Guiné 63/74 - P13413: Agenda cultural (333); Exposição de pintura de Joana Graça (n. Lisboa, 1978), no "Wine Up Lisboa", bar de vinhos e clube social, Rua do Alecrim, n.º 49, Lisboa... Hoje, às 18h00. Apareçam.



Cortesia de © Joana Graça (2014). Todos os direitos reservados


Exposição de Pintura de Joana Graça

Hoje, 18 de julho de 2014, às 18:00

Wine Up Lisboa

Bar de vinhos, clube social, ponto de encontro no coração de Lisboa
Rua do Alecrim, n.º 49, Lisboa
Telem 917 224 296

Transportes públicos: Metro - Cais do Sodre / Baixa Chiado


Vernissage - Entrada gratuita

E para os apreciadores de bons vinhos, não deixem de aproveitar a oportunidade de uma prova do vinho terras de S. Miguel (Dão) com direito a levar uma garrafa e uma lembrança da artista.

Joana Graça:

(i) Contador de estórias na empresa Estórias e se Tirar do Chapéu;

(ii) Ilustradora e artista plastica na empresa A Lua mora aqui

CONVITE:

Se os filhos dos nossos camaradas nossos filhos são, então os camaradas  da Guiné, que se sentam à sombra do poilão da Tabanca Grande, não precisam de convite para vir hoje à "vernissage" da Joana Graça, às 18h... Era para ir para o Porto, mas assim só vou amanhã... A Joana bem o merece...
LG
_______________

Nota do editor:

Último poste da série > 8 de julho de 2014 > Guiné 63/74 - P13375: Agenda cultural (332): Lançamento do livro "Wellington, Spínola e Petraeus: O Comando Holístico da Guerra", do Cor Nuno Correia Barrento de Lemos Pires, dia 16 de Julho de 2014, pelas 18h15, na Academia Militar em Lisboa

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Guiné 63/74 - P13015: 10º aniversário do nosso blogue (15): Manuscrito(s) (Luís Graça): O país que via passar os comboios (Ilustração de Joana Graça)

O país que via passar os comboios

por Luís Graça


14:13h. Coimbra B.
Estação da CP.
Deprimente.
Como todas as estações B do mundo.
Como todas as estações da CP.
B, de 2ª classe.
B, segunda letra do alfabeto.
Como todas as estações da CP 

urbanas, suburbanas e rurais.
Deprimentes.
Todas as estações de caminho de ferro do mundo 

são deprimentes.
Abro talvez uma exceção para os apeadeiros.
São bonitos, os apeadeiros.
Ou eram bonitos os apeadeiros da CP,
quando havia o cavador, 

o burro, 
o boi, 
a charrua,
o camponês, 

o zé povinho, camponês e burro,
besta de carga, carrejão.
A horta, a saída direta para os campos.
As hortas.
Ah!, e os azulejos azuis e amarelos Viúva Lamego
nas quatro estações do ano!
O termo apeadeiro enternece-me,
faz-me lembrar os tempos em que se ia às hortas.
Eu já não sou desse tempo.
Mas os alfacinhas iam às hortas dos saloios:
Benfica, Porcalhota, Pontinha, Sintra, Caneças, Colares ...
Faziam piqueniques,
cantavam o fado da desgraçadinha

e no fundo eram felizes.
Gosto do termo apeadeiro.
E da ideia de ir passear às hortas.
Em família, aos domingos, de comboio.
Ronceiro, o comboio.
Ronceira, a vida da gente.
Li isso algures numa história qualquer sobre os comboios
que unificaram o país de norte a sul.
Há uma dívida de gratidão 

que é devida aos comboios.
E aos homens dos comboios.
E aos engenheiros das estradas e pontes.
E aos operários que as construíram.
Ao zé povinho da cidade e dos campos.
Ao engenho e à obra.
Ao Fontes.
Ao Pereira.
Ao Melo.
Ao fontismo.
Ao positivismo.
Ao génio organizativo.
Mesmo que a minha professora
de Sociologia Histórica das Classes Laboriosas,
discípula do E.P. Thompson,
só gostasse dos corticeiros.
Que eram anarcossindicalistas.
Sempre suspeitei que ela não gostasse dos cavadores.
Nem de comboios.
Nem de hortas.
Nem do Fontes.
Nem dos ferroviários,
Nem dos camponeses e dos burros e dos bois.
Naquele tempo parava-se em todas estações e apeadeiros.
E havia tempo, 

não havia pressa.
Não havia stresse naquele tempo.
Colhiam-se papoilas vermelhas no meio do trigo.
Não havia tempo para se ter stresse.
Morria-se cedo.
Ou nascia-se tarde,
sem tempo de ver crescer filhos e netos.
O stresse é uma construção social do meu tempo.
E não havia bombas nos comboios.
Ao alcance de um qualquer toque de telemóvel,
da Nokia, da Samsung ou da Siemens, tanto faz,
que as novas tecnologias quando nascem 

(não) são para todos!
Ou talvez houvesse stresse
mas chamavam-lhe outra coisa.
Afinal, essa coisa é tão velha como a vida.
E morria-se cedo naquele tempo.
A esperança média de vida é um artefacto estatístico.
E há sessenta e tal anos, na França ocupada,
os ferroviários também punham bombas.
Nas linhas de caminhos de ferro.
Matavam os seus postos de trabalho
em nome da liberdade.
Punham bombas para fazer descarrilar os comboios.
Sabotagem. 

Resistência ao ocupante nazi.
Hoje seriam caçados como terroristas internacionais.
Não sou ferroviário 

nem resistente 
nem terrorista.
Nem sequer anarcossindicalista.
Estou numa estação deprimente.
Coimbra B.
Coimbra merecia, pelo menos, uma estação A.
Este país, bom aluno da Europa, 

devia merecer uma letra A.
Nem que fosse Coimbra A.
Ouço uma voz gritante.
Alfarelos. 

Com paragem não sei onde.
Nunca soube, ao certo, onde fica Alfarelos.
É algures no meu país profundo.
Assim como Freixo de Espada à Cinta 
que ninguém conhece.
Não, vim de boleia.
Muito obrigado.
De Viseu.
Aguardo o Alfa Pendular para Lisboa.
Aliás, Lisboa SA.
Deve chegar às 15:16h.

── Lisboa, Santa Apolónia ?
── Não, Lisboa, Sociedade Anónima! 
──
corrijo o portuga por detrás do guiché.
── Não, não quero Santa Apolónia.
Quero a Estação de Lisboa Oriente.
E depois... o que diria o Zé (Cardoso Pires)!
── Lisboa, SA!
Pergunta o portuga, caixa de óculos,
por detrás do bunker envidraçado,
que fala em nome da CP de todos nós.
── Conforto ou turística ? ──
olhando para mim, 
como se quisesse me tirar as medidas.
Ou adivinhar a minha secreta conta bancária.
── 2ª classe, se faz favor!
── Turística.... 2ª classe, por defeito.
Para quem não ostenta sinais exteriores de riqueza.
Classe B.
E eu a pensar ingenuamente que já não havia 2ª classe.
Comboios de 2ª classe.
Gente de 2ª classe.
País de 2ª classe no desconcerto das nações.
(Ah!, meu velho José Rodrigues Miguéis,
e a tua, nossa, gente de 3ª classe
nos porões nauseabundos dos cargueiros
que rumavam às Américas da Liberdade!).
Devo ter percebido mal.
Os comboios e a CP também se democratizaram.
Agora só há conforto e turística,
no Alfa Pendular de todas as emoções e condições.
O Portugal SA já não é mais classista.
Para ter classe basta ter dinheiro no multibanco,
minha querida professora.
Mas, mais seguro, é no cofre forte da Suiça 
ou num off shore qualquer.
É o que se chama mobilidade social total.
Fugir à condição de besta de carga.
── Vê-se mesmo que o senhor 
é um utente acidental da CP,
já não há 2ª classe.
── Sou um mau utilizador do comboio, 
peço desculpa ──
Comprei um bilhete de 2ª classe.
17 euros, IVA incluído à taxa de 5%.

Apeteceu-me dizer-lhe:
── O senhor, desculpe, 
mas eu sou fã dos comboios.
Tenho uma dívida histórica 
para com os comboios,
que unificaram o meu país.
Pode não ser seu, mas é meu.
Tenho orgulho nele, o meu país.
E tinha que lhe dizer isto.
Vou para Lisboa, SA, 

capital do reino que já foi império,
desço na Gare do Oriente...

Tenho tempo.
Ou penso que tenho tempo.
Nada como esperar um comboio
numa estação de tipo B, Coimbra B
para saber o que é isso de ter tempo.
É bom ter tempo.
Uma hora de avanço.
Nada de stresse.
Não penses na morte.
Que o stresse mata, 
como uma bala de Kalash.
Peço uma sandes manhosa no bar da esquina.
Bebo uma topázio que é uma cerveja local.
Compro o Zé Cardoso Pires no quiosque.
A república dos corvos.
Um livro de contos.
Jornal Público.
Colecção Mil Folhas, ao preço de hipermercado.
Redescubro o meu velho Dinossauro Excelentíssimo,
que li na revista Almanaque, se bem me lembro.
Deambulo no cais de embarque
como o prisioneiro no pátio da prisão.
E leio a única coisa interessante
que está afixada numa das paredes da estação de Coimbra B.
Alguém ali mandou afixar,
creio que em bronze (sou mau em metais),
o seguinte:
"Neste cais da estação de Coimbra, embarcou,
no dia 15 de Maio de 1982, Sua Santidade,
o Papa João Paulo II".

O artista não quis desqualificar a estação nem a cidade.
Coimbra B ?,
O que diria a corte papal! 
Os grandes deste mundo!
E os turistas que visitam a cidade dos doutores!
E os vindouros!

Que mais vale um ano de tarimba
do que dez de Cloimbra ?!
Nem pensar.
Por isso lá fica a tabuleta. 
Para a história.
Para o viajante distraído, apressado ou deprimido como eu.
Ou se calhar para ninguém.
Só para a História.
Afinal, quem lê neste país placas de bronze
afixadas em estações B da CP ?
Aliás, quem lê neste país, 
perguntaria a minha querida professora ?
Histórias aos quadradinhos
mas não a História com H grande.
Um dia um arqueólogo, um historiador ou um antiquário
desaparafusa a placa 

e leva-a para casa,
para o museu 

ou para a loja de antiguidades.
Não, nada acontece em Coimbra B.
Mas por aqui passou um peregrino.
João Paulo II. 
Um dia, em 1982.
Por aqui passou Jesus Cristo,
na pessoa do seu representante na terra.
Sou mau em metais e em teologia,
mas esta é a minha leitura.
Que me desculpem os escribas mais doutos do que eu.
Que me desculpem os lentes de Coimbra.
Chega o Alfa, just in time, à tabela,
como na linha de montagem automóvel pós-taylorista 

da Auto Europa.
Entro no Alfa e sinto-me quase europeu
na ponta mais acidental da Europa ocidental.
Com o lusitano Mondego aqui ao lado.
Admiro a eficiência das sociedades pós-tayloristas e cosmopolitas.
A nossa nunca chegou a conhecer o sr. Taylor
nem os seus principles of scientific management.
Nem a ética protestante nem o alemã Max Weber.
Provinciana e ronceira, a tua terra,
lá diriam o Eça e a minha professora,
que é queirosiana e estrangeirada.
Acelera o Alfa

E bate o meu coração.
Tenho um secreta vertigem suicidária pela alta velocidade.
Dou por bem empregues os meus 17 euros,
IVA incluído à taxa de 5%.
Isto faz bem à minha autoestima.
Sobretudo depois da sandocha manhosa e da topázio morna
que engoli, de pé, 

ao balcão do bar manhoso
da estação deprimente de Coimbra B.
── Quanto vai dar ?
── Chega aos 200 ou mais! ──
diz-me um puto de brinco na orelha...
Não apostei. 
Nem gosto de apostas mútuas.
Deixei de ser solidário, 
que me desculpe a Santa Casa da Misericórdia.
── Umas cartas para passar o tempo ?
── Não, obrigado, não jogo, não aposto, não fumo.
Tenho livros para ler. 
──
Abranda o Alfa,
lá para os lados da Albergaria dos Doze.
Regresso à idade média da minha memória coletiva.
O caminho de Santiago. 
As albergarias.
Já em terra dos mouros.
La folie meutrière de la réligion.
A tua, a minha.
Deus é grande e tem muitos profetas.
São bons hortelãos, os mouros e os moçárabes.
── Chega à tabela. 
Dezassete e seis na Estação do Oriente ──
diz-me o pica, orgulhoso.
── Até que enfim que os comboios partem 
e chegam à tabela,
na nossa terra.
Fico sempre com inveja 
quando vou a Amesterdão e a Leiden.
Quando ia à Holanda, que agora já não vou.
Quero dizer, ao estrangeiro de fora.
── Já não te calha na rifa, ó Ramalho!,
agora são vinte e cinco cães a um osso, 
ó Ortigão!
── Vai desejar tomar alguma coisa ? ──
pergunta no futuro próximo o homem-do-chá-café-laranjada...
── Um Prozac, por favor.
── Lamento, mas já não temos. Esgotou-se.
── Sim ?
── Esgotou-se na última viagem que fizemos ao inferno.
11 de Março último. Estação de Atocha.

── Atocha ?
── Sim, Atocha, Madrid...Não lê os jornais ?
── Não, acabo de chegar doutro planeta.
── En Madrid existen dos estaciones principales de tren:
Chamartín y Atocha.
Ambas son estaciones de trenes 
de largo recorrido y de cercanías...
── Muchas gracias!, não sabia.
Não vou a Madrid há anos. 
Estou de costas viradas para a Europa.
── Atocha está situada en la zona sur de la ciudad,
muy cercana al centro.
Desde ella salen todos los trenes de largo recorrido
que van a levante y al sur de España.
También algunos trenes de los que pasan por la estación
se dirigen luego a Chamartín
y luego a destinos en la mitad norte de la península.
Dentro de la estación hay otra estación,
llamada Puerta de Atocha
desde donde sale el tren de alta velocidad (AVE)
que va a Andalucía.
..
── Muchas gracias! Vejo que é um homem lido e viajado.
── Só faço a península ibérica.
── Ah!, a jangada de pedra...
── Perdão ?!... 

Sabe, nasci no Entroncamento,
Filho e neto de ferroviários.
Os comboios estão-me na massa do sangue...
Mas a Espanha para mim é pura emoção.
Uma tragédia horrível, aquela..
.
── E não tem medo do futuro dos comboios ?
── Não... Sabe, com os aviões passou-se o mesmo.
Enfim, um homem tem que ganhar a vida. 
De qualquer jeito.
── Deixe, a vida continua... 
As bombas explodem...
As guerras passam.
Olhe, já agora dê-me um compal de maçã.

Fico sempre deprimido quando tomo o comboio.
Ou quando parto.
Ou penso em bombas nas casas de banho
das carruagens dos comboios.
Ou quando bebo compal de maçã.
Não sei por que pedi o raio do compal.
Reflexo condicionado. 
Empatia. 
Compaixão.
Que é coisa rara, tomar o comboio.
E pensar em bombas.
E ter empatia.
E beber compal.
Houve um tempo em que pensava em minas.
Anticarro. 
Antipessoais.
Minas. 
Bailarinas. 
O ballet da morte.
Nasci numa terra onde não passavam comboios.
É um estranho sentimento, esse,
que me acompanha desde pequeno.
Mas o compal de maçã até é bom.
É português, é nosso.
E dizem que vale mais do que uma chávena de café.
Para te tirar o sono.
Antes de partires às 3 da manhã,
para a Ponta do Inglês.
── Ponta do Inglês ?!... 

Já sei, saíste cedo da casa de teus pais,
Ainda menino e moço!
── É a voz do sangue,
o meu lado de marinheiro que nunca fui.
Em boa verdade, detesto os entroncamentos.
Rodo ou ferroviários.
As picadas. 
Os trilhos.
Detesto o Entroncamento.
Da primeira vez que lá passei.
Meia de dúzia de casas mal caiadas,
uma feixe de linhas,
cheiro a óleo, a mijo e a sucata.
Mas tenho a nostalgia dos cais de embarque.
A nostalgia do mar e da maresia.
Uma palavra que mexe comigo.
Cais. 
Cais de embarque.
Cais de partida.
Niassa. 
Rocha Conde de Óbidos.
Num comboio que veio da noite, silencioso e triste.
Do Campo Militar de Santa Margarida.
Destino: Lisboa.
Com carga para outro destino: Bissau.
Mercadoria=carne para canhão,
alguém escreveu, a spray,
um grafito na última carruagem.
na primavera de 1969.
Numa outra primavera que não chegou a haver.
── Política, meu estúpido!,
a primavera política do Marcelo Caetano.

── Sim, eras jovem.
E não vias a luz ao fundo do túnel.
Nem muito menos as luzes da cidade-luz.
Paris. 
Perdeste o último comboio para Paris.
Com o teu amigo que queria ser pintor,
Fernando Nobis.
Com paragem, talvez em Atocha,
para visitar o Greco, o Velasquez, o Goya,
os grandes de Espanha que estão no Prado...
── Paris, es doido, ou quê ?! 
Com a pide à perna,
mais os carabineiros da guardia civil!



Fazia sol e frio em Viseu.
O país profundo. 
O país que mexe, dizem-te.
Gosto sempre de ler os jornais da terra
quando estou no hotel.
Duas estrelas, o hotel. 
Novo, a cheirar a tinta.
Bom serviço. 
Comida caseira. 
Faces rosadas.
E duas mamocas que cabem na palma da mão.
Mas faz frio à noite.
── Voyeurismo! ── pensa ela,
a rapariguinha do bar. 
Oito páginas,
Entre notícias locais 
e os pequenos anúncios desclassificados.
Duas páginas de anúncios pessoais.
"A brasileira do bumbum"...
"A universitária que faz oral"...
"A mulatchinha dengosa"...

Linguagem de código.
A semiótica da solidão. 
Do sexo triste e solitário.
── Meu bem, ligue para o meu telemóvel,
que a crise bate a todas as portas,
sem distinção de género, 

etnia, 
cor, 
condição 
ou religião.
── A crise também chegou ao teu país profundo, baby.
── Ah!, mas Viseu, como cresceu, meu Deus!
── Não sei se cresceu bem... 
Não sou de cá.
O Politécnico. 
O túnel de Viriato.
Os colóquios. 
Os debates.
As ideias. 
Os intelectuais e artistas que vêm de fora.
O génio do Grão Vasco.
O comércio. 
O fórum, que há-de vir.
A Grande Área Metropolitana de Viseu.
Quase 400 mil.
O orgulho de se ser do Kavaquistão.
O que é feito do RI 14 ?
Não sei, a guerra acabou.
Foi bom para cidade,
A tropa, a guerra, o regimento.
── Ruas, estás de granito! ── 
diz o grafito.
(Ruas é o chefe da tribo, presumo.
Nada como um bom grafito na terra do Grão Vasco).
── Apreciem o lado empreendedor dos beirões.
── Só falta a Universidade,
que mais de 10 mil estudantes do politécnico já cá temos.
── Tiraram-nos a Faculdade de Medicina,
os sacanas da Covilhã.
──
(Outro lóbi beirão, o da Covilhã).
Registo o orgulho dos miúdos e miúdas
da Associação de Estudantes
da Escola Superior de Enfermagem de Viseu
que realizam anualmente as suas jornadas.
O país mexe. 
Viseu mexe.
O país profundo mexe. 
O Kavaquistão.
Os jovens deste país mexem.
Mesmo com capa e batina,
vestidos de preto,

como o corvo do Zé (Cardoso Pires).

16:30h. 
Passei o corpo pelas brasas.
Perdi um pedaço de mundo.
Revisitei outros infernos.
── O Alfa vai a 140, ó puto.
──
Temperatura: 19º interior. 20º exterior,
leio no tableau de bord.
── Mas agora abranda. 129, 101, 74, 52...
Está parado.
── Porquê ?
Uma placa com um S, outra com um M.
Não percebo nada da sinalética dos comboios.
Obras. 
Modernização da linha.
Tenho um pensamento piedoso e nobre
para com os trabalhadores anónimos
que constroem as novas linhas 
dos caminhos de ferro do futuro.
Ucranianos ? 
Africanos ?
Guineenses ? 
Ex-camaradas teus ?
Imigras ? 
Clandestinos ?
── Não lhes vejo nem a cara nem o passaporte.
── Podiam estar a trabalhar na estufas de Almeria,
O inferno na terra. 
Mas aí são magrebinos.
── O novo proletariado do Século XXI...
── Desço na Oriente.
Mandem alguém da empresa buscar-me.
── Dá o Benfica na esporte tê vê.
── 
E de novo o Alfa em marcha...
A paisagem muda.
A paisagem industrial da bacia do Tejo.
A ocupação selvagem da lezíria.
Mataram os campinos e o gado bravo.
E os flamingos. 
E as ostras,
Les petites portugaises,
acompanhadas com Champagne.
Em Paris.
Comment ils sont toujours gais, les portugais!
O branqueamento de dinheiro
que vai por essa nova Lisboa 
do Próximo Oriente.
A luxuriante estação do Oriente,
desenhada pelo Calatrava.
A ostentação dos ricos.
Just in time
17:06h. 
Cheguei.
Balanço do cliente:
── Pensei que já fosse o TGV. 
O TGV é que é.
── Não é o TGV, 
mas por mim não desgostei.
De viajar no Alfa Pendular. 
Turística, claro.
Que é como quem diz, 2ª classe.
De Coimbra B a Lisboa SA.
17 euros, IVA incluído à taxa de 5%.
Mais 10% de desconto nos Hotéis Tal &Tal.
Tive tempo para (des)arrumar algumas ideias.
── Ah!,o  país que via passar os comboios!...
E o puto tinha razão:
── Na ponta final, o Alfa Pendular dá mesmo os 210.

Um dia ainda vou ter orgulho na CP.
E na terra onde nasci, ao pé do mar.
E onde nunca vi sequer passar os comboios.
Os comboios não passam na minha terra.
onde só há moinhos de vento
com búzios do mar
que falam de mouras encantadas.
Nem os comboios chegam a Viseu.
Um abraço aos Viriatos.
Até para o ano.
Voltarei, se me convidarem,
de Expresso, por esses ipês acima.

Com regresso de comboio,
se não sabotarem o comboio 
que pára em Coimbra B.
E prometo ao barman 
que não me esquecerei de Atocha.
Sobretudo não esquecerei Atocha,
quando voltar a Coimbra B,
outra vez.
Não esquecerei as bombas de Atocha,
nem as minas e armadilhas 
da Ponta do Inglês.

Coimbra-Lisboa, Alfa Pendular, 25/3/2004. 
Revisto, Alfragide, 21 de abril de 2014

© Luís Graça  (2004). Todos os direitos reservados



Joana Graça (2014) - S/ título. Técnica mista 100 cm X 80 cm

Cortesia de © Joana Graça (2014). Todos os direitos reservados


_____________

Nota do editor:

Último poste da série > 20 de abril de 2014 > Guiné 63/74 - P13014: 10º aniversário do nosso blogue (14): Manhã de Páscoa, ao som da Sonata Moonligth, de Beethoven (J. L. Mendes Gomes)

sexta-feira, 21 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12871: Blogpoesia (378): O Dia Mundial da Poesia, 21 de março de 2014, na nossa Tabanca Grande (IX): La crise, c'est fini, vive la poésie! (Luís Graça / Joana Graça)


Joana Graça (2014) - Técnica mista, 30 x 40 cm.  S/ título (1)


Joana Graça (2014) - Técnica mista, 40 x 30 cm. S/ título (2).

Cortesia de © Joana Graça (2014). Todos os direitos reservados



la crise, c'est fini, vive la poésie!

[a crise acabou, viva a poesia!]

no verão,
entre cigarras e grilos,
éramos arquitetos esquilos,
desenhávamos à mão,
dedo a dedo,
frágeis barreiras de areia
contra a maré cheia
do medo.

em agosto,
ainda não se adivinhava setembro,
às portas do império,
as pousadas estavam repletas
e éramos deliciosa e inconscientemente felizes.

em damasco caíam bombas
e em lampedusa davam à costa
cadáveres subsarianos.


nas autoestradas do norte havia abatises,
o verão já era outono,
vindima, mosto,
passeávamos agora
com as nossas bicicletas,
à volta do círculo polar ártico,
furando o buraco do ozono.


definitivamente cancelámos
o nosso cruzeiro pelo adriático.

na rentrée,
rejubilámos,
os novos príncipes deste mundo
anunciavam a boa nova
pela têvê:
vem aí a retoma!


luís graça

sexta-feira, 7 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12804: Manuscrito(s) (Luís Graça) (25): O Pepito que eu conheci... em 16/2/2006 e que, no fim da conversa de 1 hora, me fez um pedido algo insólito: um obus 14 para o Núcleo Museológico Memória de Guiledje...


Joana Graça (2014): Africa > Homenagem ao Pepito 1 > Acrílico com digital,  40 x 30 cm.



Joana Graça (2014): Tabanca Grande: caixa de histórias > Homenagem ao Pepito 2 > Técnica mista, colagens e digital,  30 x 20 x 15.

Fotos: © Luís Graça (2014). Todos os direitos reservados.



1. Conheci, pessoalmente, o Carlos Schwarz da Silva, Pepito (1949-20014),  em 16/2/2006...

Ele costumava, por essa altura do ano, vir a Lisboa, para passar os anos da sua mãe, Clara Schwarz, hoje uma veneranda senhora, de 99 anos, de origem judia, de pai polaco e mãe russa, mas portuguesa de gema, nascida em Lisboa, a 14 de fevereiro de 1915, casada com o caboverdiano Artur Augusto Silva (1912-1983).

Já nos conhecíamos do blogue, por intermédio do saudoso Zé Neto (1929-2007). Foi ele que me falou do Pepito e do seu projeto museológico de Guileje.

Como prometido, o Pepito esteve  connosco, nesse dia já longínquo de 16/2/2006:  com o Zé Neto (de manhã, na Fundação Marquês de Valle For) e comigo (à tarde, no meu local de trabalho, na Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de  Lisboa).

Foi muita gentileza, da parte dele, ter-se deslocado só para me conhecer pessoalmente, dar-me notícias da sua terra (que ele amava com um coração muito grande), e falar-me, com entusiasmo contagiante, da menina dos seus olhos - que era então o Projecto Guiledje (com dj, como ele gostava de grafar Guileje).

Capa do livro de contos de Artur
Augusto Silva (1912-1983)
 (Bissau, edção de autor, 2006)
Na altura fez questão de presentear-me com o livro de contos do seu pai, Artur Augusto Silva (Ilha Brava, Cabo Verde, 1912- Bissau, 1983), um homem de leis e de cultura, amante da justiça e da liberdade: O Cativeiro dos Bichos era o título de uma colectânea de 25 contos, selecionados pelos seus filhos, Henrique, João e Carlos Schwarz, alguns dos quais tinha sido escritos na prisão de Caxias, em 1966. O  livro tinha acabado de ser editado em Bissau (Fevereiro de 2006, edição de autor).

A conversa, de cerca de 1 hora, que tive com o Pepito (ninguém o conhecia, em Lisboa ou em Bissau, por Carlos Schwarz da Silva, nem quando fora ministro dos transportes num governo de transição antes do golpe de Estado de 1998) só pecou por ser curta... Mas deu para, de imediato, eu fazer mais um amigo guineense...

Bem razão tinha o capitão Zé Neto quando um mês antes tinha escrito sobre o Pepito o seguinte:

" (...) Eu conheço pessoalmente o engº Carlos Schwarz da Silva, o nosso Pepito. Passei uma tarde a conversar com ele em casa do nosso amigo comum, engº António Estácio. Eles foram colegas de infância e condiscípulos, pois o Estácio também é guineense.

"Tenho a pretensão de conhecer o carácter dos homens ao fim de dois dedos de conversa. Não tão cientificamente como tu, profissional do ramo, mas, como dizia o outro, raramente me engano.

"E asseguro-te que o Pepito é do melhor que há. Talvez um pouco sonhador, porque abdica duma vida confortável que poderia gozar cá em Portugal, em troca das mil e uma tarefas que desenvolve na sua querida Guiné em prol do seu povo. É fácil entender que o seu espírito superior choca com certo primitivismo que grassa naquela região, mas não desiste e essa é a qualidade que faz dele um amigo que muito admiro e a quem dispenso a minha modestíssima colaboração sem reticências.

"Quando ele vier, para o mês que vem, vais confirmar o quer te digo" (...).

De imediato comfirmei a opinião do Zé Neto, que era de facto um grande conhecedor da natureza humana. Para mim,foi um privilégio conhecer, ao vivo, uma pessoa com a qualidade humana do Pepito.




Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > 2005 > Núcleo Museológico Memória de Guiledje > 

Antigos combatentes do Exército Português em Guileje, e que viviam no quartel.  O seu conhecimento do terreno permitiu mais facilmente a localização de cada um dos edifícios do quartel.

Foto: © AD - Acção para o Desenvolvimento  (2005) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.


2. No seguimento da nossa conversa, no meu gabinete, na Escola Nacional de Saúde Pública, o Pepito, jà quase à despedida, veio-me fazer um pedido algo insólito: ele precisava de um obus 14...

Para quê ? Para pôr no seu Núcleo Museológico Memória de Guileje, a criar a partir da reconstrução do nosso antigo aquartelamento, abandonado em 22/5/1973... E eu repliquei, no blogue, esse pedido:
- Camaradas, algum de vocês sabe de um velho obus 14, para aí abandonado num qualquer ferro-velho da tropa ? Se souberem, digam-nos... Levá-lo até Guileje será outra carga de trabalhos, mas até lá folgam as costas...



Guiné > Região de Tombali > Bedanda > CCAÇ 6 > Agosto de 1972 > O temível obus 14 [140 mm] em ação... à noite.

(...) "O Obus 14 cm (...), de origem inglesa, foi  recebido em Portugal, em 1943, para equipar as Unidades de Artilharia pesada, substituindo os  Obuses 15 cm T.R. m/918 e 15 cm / 30 m/41. O Obus foi concebido para tracção auto exercida  pelo camião tractor de 8 ton A.E.C. (Matador)  4x4 MA/46 e pelo camião tractor de 8 ton Magirus  – Deutz 4x4 MA78. Serviu operacionalmente nos teatros de guerra da Guiné, Angola e Moçambique,  entre 1961 e 1974, tendo sido substituído, em 1987, pelo Obus M114 155mm/23"... O obus 14 pesava mais de 6 toneladas... Cada granada pesava c. 45 kg...  Tunha um alcance de c. 15 km... e uma cadência de tiro de 2 granadas por minuto... Tinha uma guarnição de 10 militares... (Fonte: sítio do  Exercito Português).

Foto: © Vasco Santos (2011) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.



Ele falou-me com entusiasmo do progresso das escavações efetuadas pelo pessoal da AD e população local no antigo aquarteklamento de Guileje. Nas limpezas e escavações até então feitas feitas,tinham já sido encontros e recuoperados objectos do quotidiano dos militares portugueses,  alguns curiosos como garrafas de cerveja com o rótulo de papel intacto ou garrafas de sumo de laranja - de um conhecido fabricante de refrigerantes de então, com sede em Venda do Pinheiro, Mafra...

Divertidas, para o Pepito, eram as manifestações de humor (e de carinho) dos fulas para com os seus antigos camaradas de guerra, metropolitanos: ele  referiu-se às gravações audio que estavam a fazer e em que os antigas combatentes fulas, que estiveram do lado das NT, imitavam descaradamente os tugas, quando estes estavam debaixo de pressão (na época ainda não se usava o termo stresse...):
- Seus c...lhos...! Seus ca...ões! Seus s... nas! Seus filhos... da p...!

O Pepito prometeu-me depois mandar alguns excertos dessas gravações áudio, reveladoras do superior sentido de humor fula... E comentei-lhe:
- Ora quem diria! ... Eu, pessoalmente, sempre os achei inteligentes e com grande capacidade para negociar e estabelecer alianças estratégicas.

O Pepito também corroborou este ponto de vista: os fulas eram um povo  orientado para o poder, aliaram-se ao Spínola contra o Amílcar Cabral; e depois ao Luís Cabral, a seguir à independência, contra os balantas...

Lisboa, ENSP/UNL, 13 de julho de 2007 >
 Pepito no meu gabinete. Foto  de L.G.
Como diria o Príncipe de Salinas, protagonista do filme O Leopardo (Visconti, 1963), eles eram os leopardos, os leões, enquanto os novos vencedores - que se aliaram ao PAIGC - não passavam de chacais e de hienas... Mesmo assim, eles tinham a consciência de que, presas e predadoras, têm de coexistir (mais ou menos pacificamente) naquela terra, que é a sua terra...

O Pepito mostrou-se, por outro lado, deveras impressionado com o que estava a acontecer com o nosso blogue e o ritmo de produção das nossas memórias... E eu, na altura, avancei com uma explicação de vulgata sociológica:

 (i) a nossa geração, os machos, tinham  mais ou menos à sua frente quinze anos a vinte de 
esperança média de vida;

(ii) para muitos de nós, a experiência da guerra colonial terá sido porventura o acontecimento maior, talvez o mais  emociante, das nossas vidas cinzentas;

(iii) tivemos a sorte de sobreviver e, ao fim de cinco anos, retomar a marcha do comboio, não contando com os que ficaram precocemente pelo caminho: os mortos, os traumatizados, os inadaptados, os desadaptados, os cacimbados;

(iv) muitos de nós já tinham deicado (ou estavam em vias de deixar) a vida activa e sentiam o vazio do presente: os filhos que partiram, os netos que só se veem nos dias festivos, as companheiras que sempre se recusaram a partilhar essa experiência, a guerra, que é uma actividade de machos;

(v) enfim, a memória seletiva do passado, a disponibilidade de tempo, a redescoberta da camaradagem, o apelo dos verdes anos..



Lisboa > Universidade Nova de Lisboa > Escola Nacional de Saúde Pública > 13 de Julho de 2006 > Três homens de Guileje!... Visita de cortesia e reunião de trabalho do Pepito (AD - Acção para o Desenvolvimento) - na foto, ao centro - e dois dos amigos que o apoiam no seu Projecto Guiledje: O capitão Zé Neto (à esquerda) e o coronel Nuno Rubim, especialista em história da artilharia (à direita). Os membros eram então membros, da primeira hora, da  nossa Tabanca Grande. O anfitrião fui eu.

Almoçámos juntos (tivémos a agradável surpresa da visita, embora rápida, do José Martins, que trabalhava, na épcoa, no MARN e que passou pela Av Padre Cruz a caminho do médico para uma consulta de rotina). Fizemos o ponto da situação do Projecto Guiledje, contámos histórias, conhecemo-nos pessoalmente (do grupo, eu só conhecia o Pepito, embora já tivesse falado ao telefone com o Zé Neto e o Nuno Rubim).

Tal como Pepito, o Zé Neto, infelizmente, já não está entre nós. O nosso querido Zé Neto (ex-2º sargento da CART 1613, Guileje, 1967/68, e na altura capitão reformado, com 10 anos de Macau), era o veterano da nossa tertúlia, na altura. Era um pessoa dotada  de uma invejável energia e de uma memória fabulosa.  Foi o primeiro "tertuliano" a falecer, em 2007.

 Quanto ao Nuno Rubim, ex-capitão da CCAÇ 726, Guileje, 1964/74, é bom que se recorde que foi um dos oficiais mais condecorados da Guiné (onde fez duas comissões). É hoje coronel na reforma e historiador militar. Teve a gentileza de me oferecer um das suas publicações, além de um CD-ROm com os seus trabalhos.... Por razões de saúde, também está retirado doas nossas lides bloguísticas. Falei-lhe, ainda há relativamente pouco tempo, pelo telefone.

Foto: © Luís Graça (2006). Todo os direitos reservados.


3. Sabendo das suas suas obrigações como diretor executuivo da AD e das dificuldades de comunicações da Guiné-Bissau com o mundo exterior, o Pepito surpreendeu-me, na altura,  ao dizer-me que não dispensava a visualização diária do nosso blogue. Achava que este fenómeno (a vontade de abrir o livro, o baú da memória...) também estava a acontecer na Guiné: os antigos combatentes, de um lado e do outro,  sentiam necessidade de falar do passado e passar a escrito (ou ao videogravador) as suas memórias... A necessidade de falar da luta, na cidade ou nas matas, com alguém...

Grande parte da memória (escrita) de guerra de libertação, na posse do PAIGC, dos seus militantes e ex-militantes, desapareceu, foi destruída, extraviou-se ou ficou reduzida ao Arquivo Amílcar Cabral, em boa hora tratado e preservado pela Fundação Mário Soares.

Há um sério risco da geração pós-independência ver amputada uma grande parte da memória do seu povo, a luta pela independência, a difícil construção da Guiné-Bissau, a revolução que devorou os seus filhos, a fabricação dos novos mitos, os ajustes de contas, o cinismo pós-revolucionário, a subversão de valores...

Daí que o Pepito e os seus colaboradores da AD - Acção para o Desenvolvimento estivessem  afanosamente a gravar depoimentos dos antigos combatentes e habitantes de Guileje... Começaram pelas bases, mais acessíveis e espontâneas... Numa segunda fase, esperavam poder entrevistar os dirigentes, os comandantes operacionais, os comissários políticos, quando as defesas psicológicas e as pressões dos pares se começassem a quebrar ou a esbater...

Respondi-lhe que nós também cá tínhamos esse problema: como dissera uma vez  o Jorge Cabral, ainda havia, na época, muito boa gente (militar) com culpa e vergonha de ter feito a guerra da Guiné, a começar pelos nossos oficiais superiores... A hierarquia militar não nos  parecia ainda disposta a dar a senha e a contra-senha de acesso aos arquivos militares da guerra colonial...

O que o Pepito e a sua ONG estavam então  a fazer era, na  minha opinião,  um trabalho meritório e sobretudo patriótico, com dividendos para o futuro... Foi o que transmiti ao Pepito; não há futuro para um povo que tenha perdido a memória, a historicidade e a identidade.  E o tempo urgia, porquanto a geração que fez a guerra colonial (ou a guerra de libertação, conforme os lados da barricada), estava a desaparecer... Mais rapidamente na Guiné, devido à menor esperança média de vida à nascença dos homens guineenses da geração da guerra...

Também falámos da  situação económica, social e política da Guiné-Bissau, nessa épcoca (2006).  Dos medos e das esperanças que os guineenses sentiam em relação ao futuro. Do retorno à pertença e à identidade étnicas, na ausência de um Estado de direito que garantisse a proteção e o respeito do indivíduo e da sua família... Dos terríveis acontecimentos de 1998, que levaram o Pepito e a família a refugiar-se em Cabo Verde, terra de seu pai... E do doloroso regresso a Bissau, um ano e tal depois, o retorno à casa, no bairro do Quelelé,  completamente pilhada, violada, destruída... Os livros, as fotografias, as memórias de uma vida...

O que foi espantoso, para mim,  foi  ouvir este homem, que era um profissional do optimismo, contar isto sem ódio, sem ressentimento, sem rancor, qause sem mágoa... Tinha vindo a recuperar algumas coisas, com emoção: uns negativos, umas cartas, uns livros... E isso era suficiente para lhe dar alento e força para retormar a picada de uma vida, fértil de acontecimentos, sonhos, emoções, projetos, realizações...



Seta de sinalização de um dos antigos espaldões da artilharia.
Foto: © Carlos Afeitos (2013).  Todo os direitos reservados.

Para além das suas obrigações como deputado (por Contuboel, e independente, se bem recordo), o que mais lhe dava gozo era viajar de jipe - apesar dos problemas de coluna de que já sofria, em consequência dos milhares de quilómetros feitos através das picadas da Guiné... E estar no sul, em Iemberém ou em Guileje, com os seus amigos e vizinhos... A Mata do Cantanhez, o futuro Parque Transfronteiriço do Cantanhez, era um espanto, com riquíssima fora e fauna - onde se incluíam elefantes e chimpanzés ! - e, felizmente, ainda então ao abrigo, devido ao seu isolamento, dos apetites vorazes da clique político-militar no poder em Bissau e em Conacri...

Last but not the least, o Pepito também gostaria de ter contactos com todas as companhias que passaram por Guileje e, se possível, ter acesso a uma resumo da sua actividade operacional na região. Disse-lhe que esse pedido não seria  difícil de conseguir... Mais difícil seria desencantar, adquirir, encaixotar e transportar o raio do obus 14!... E a verdade é que o tempo passou e a gente esqueceu-se mesmo do obus!... Mas seguramente não vamos esquecer-nos do nosso querido amigo Pepito!...Dele e do Zé Neto, o primeiro a falar-me do Pepito.

Até sempre, amigos Pepito e Zé Neto! Um alfabravo para o Nuno Rubim a quem desejo saúde e longa vida.
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sábado, 6 de setembro de 2008

Guiné 63/74 - P3179: Os nossos regressos (15): Facas de mato, paludismo e ataque no meu regresso...(Paulo Santiago)


Ilustração feita pela Joana Graça (2008), designer e filha do Luís Graça, para "Os nossos regressos". Com os nossos agradecimentos.

O meu regresso

Paulo Santiago

Em fins de Julho de 1972 vim a Bissau, penso que a uma REP (1) ligada ao material, tratar de um auto de abate de facas de mato, que estavam em falta na carga do PelCaçNat 53. Herdei a situação do meu antecessor, como piriquito pensei estar tudo certo, não imaginava faltarem a merda das facas. Ficou tudo resolvido, regressando ao Saltinho de avião, via Xitole.


Saltinho, uma paisagem idílica se não fosse ....
Com a devida vénia ao autor da foto que não identifiquei.

Paludismo agora

Na aeronave comecei a sentir arrepios de frio,"estou lixado, agora vou ficar doente"pensei.
Estava mesmo doente,diagnóstico paludismo.

Tirando umas otites,nunca qualquer doença tinha convivido comigo naqueles vinte e dois meses,tinha tido o acidente com o morteiro, o que originou uma colecção de pontos no toucinho da coxa, mas não me atirou para a cama, andei agarrado a uma bengala improvisada, o psico também andava alterado, mas doença, daquela de atirar um gajo abaixo, chegava agora. Fui medicado,mas aquilo era lixado, tinha frio e transpirava rios de água, levantava-me e sentia-me como se fosse numa tempestade em mar alto, cambaleava e caía como se estivesse com a maior das bebedeiras, um suplício.
Andava nestas bolandas, chega o meu substituto, esqueci o nome, era da Figueira da Foz. Chegou a 30 ou 31 de Julho. Passado um dia ou dois, ainda muito atordoado, mas já melhor, lá lhe transferi a carga do pelotão. Tudo certinho.

No dia 3 de Agosto, pela manhã, informaram-me que tinha sido pedida uma evacuação, não urgente, para uma mulher da população, evacuação que seria feita através de avião do Xitole. Preparei as malas, dei dois camuflados, um ao Bobo outro ao Cristóvão e iniciei as despedidas.

Estava contente, mas a despedida abalou-me imenso. Primeiro, era o Fur Mil Mário Rui, com mais tempo de comissão, ainda ia continuar no 53 até chegar quem o substituisse, segundo, eram os meus cabos e soldados com quem convivera desde Out. 70, que tanto me tinham ajudado e apoiado, principalmente nestes últimos meses de enfrentamento com o Lourenço.

Choraram e chorei lágrimas sentidas. Será que algum dia iria encontrar alguns deles?

De coluna para o Xitole, primeira vez sem G-3

Pela primeira vez sem arma, lá fui na coluna, ao início da tarde de 3 de Agosto de 72, para o Xitole, à espera de um avião que não chegou. Conhecia mal a malta do Xitole, na anterior companhia tinha algum convívio com os Alf's, nesta, quem conhecia melhor era o médico. Como o avião não veio, arranjaram-me sítio para ficar. Estava a escurecer, e sentados junto à messe bebíamos um copo fazendo horas para o jantar.

Com o PAIGC é Guerra até ao fim

Há um Alferes matulão que diz "faz hoje um ano, o quartel foi atacado, é o aniversário do PAIGC e o Jamil não está cá".

Ainda o eco destas palavras não se tinha extinto, ouvem-se saídas de canhão S/R. Tudo para a vala que ficava ao lado.

Merda, um ataque na despedida, a vala com alguma água e eu meio febril.
As granadas a rebentarem ali perto, acho que uma acertou numa qualquer edificação, e o Alferes matulão começa a levantar a cabeça "oh caralho baixa-te", dizem-lhe os outros e ele responde "esta saída já foi nossa, é o 10,7".
Passado pouco tempo,acabaram os rebentamentos, aproximando-se um militar que informou ter o morteiro 10,7 encravado logo com a primeira granada que lhe enfiaram.
Sei hoje o nome do Alferes matulão,chama-se Joaquim Mexia Alves.

Com a PM a Guerra é só em Bissau

No dia seguinte, mais uns medicamentos tomados, apareceu o avião que me trouxe para Bissau. Fui ao QG saber quando tinha avião para regressar à "Metrópole"e quando fazia o pequeno trajecto até ao Clube de Oficiais, pára um jipe da PM ao meu lado, donde sai um cabo que se me dirige e após a continência da praxe diz "o meu Alferes não pode andar com essas botas" (eram botas de fuzileiro).
Fiquei fodido "ó seu caralho, já ando com estas botas há muitos meses, perante toda a gente, portanto não me foda, não vim ontem do mato para você me chatear a cabeça" e segui para o Clube.
O NRP Orion estava atracado em Bissau, onde bebi os últimos copos com o Comandante Rita que me ofereceu para despedida uma garrafa de Napoleon.

De Boeing para Lisboa e de táxi para casa, com paragem na Ponderosa

Passada uma semana em Bissau, um sábado, apanho o Boeing dos TAM de regresso a Lisboa.
Não tinha ninguém à minha espera, os meus pais não sabiam da minha vinda naquele dia.
Juntámo-nos quatro militares, três iam para o Porto, apanhámos um táxi e viemos por aí acima.
Em Alcoentre parámos na Ponderosa, aí telefonei para casa dizendo ao meu pai que ia a caminho de casa. Trazia comigo a minha máquina fotográfica Olimpus que ficou esquecida no táxi, nunca mais aparecendo.

Na segunda-feira fui a Lisboa aos Adidos, onde me passaram a papelada habitual. Depois parti para outra...mais ou menos apanhado.

Paulo Santiago
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Notas de vb:

(1) 4ª Rep, eventualmente;
(2) art. relacionado em