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sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Guiné 63/74 - P12751: Notas de leitura (566): A descolonização da Guiné: Depoimentos de protagonistas - Parte 4 de 4 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Setembro de 2013:

Queridos amigos,
Carlos Fabião, talvez o oficial português que melhor conheceu a Guiné entre 1955 e 1974, deixou vários depoimentos de inegável valia.
Sentiu, em meados da década de 1960, que a guerra se transformara num atoleiro para as nossas tropas; acreditou convictamente que Spínola cativaria as populações e poria a Guiné do nosso lado, foi assistindo à escalada armamentista e não hesita em dizer que se perdera a solução militar, a partir de 26 de Abril todos os dados estavam lançados.
Reitero que todas estas intervenções, cheias de deficiências devido a aspetos técnicos, devem ser lidas no site que se indica.

Um abraço do
Mário


A descolonização da Guiné: Depoimentos de protagonistas (4)

Beja Santos

A última jornada de trabalho sobre a descolonização da Guiné promovida pelos Estudos Gerais da Arrábidas realizou-se em 11 de Abril de 2002 e o interveniente principal foi Carlos Fabião (1930-2006), membro do Movimento dos Capitães, colaborador próximo do general Spínola e último governador da Guiné. Recordo aos confrades que toda a documentação atinente a estas jornadas de trabalho pode ser encontrada no site (www.ahs-descolonizacao.ics.ul.pt/guine.htm), de que é titular o Instituto de Ciências Sociais. Esclarece-se novamente que a transcrição destas jornadas têm defeitos de vária ordem, correspondentes a interrupções, conversas inaudíveis, gravação desaparecida, aconteceu de tudo um pouco, é lamentável que assim seja dada a alta qualidade dos participantes, protagonistas da descolonização da Guiné.

Carlos Fabião, talvez o oficial português com melhor conhecimento da realidade guineense, começa por referir o seu currículo militar, incluindo as diferentes comissões que fez na Guiné. Chega à colónia em 1955 e aqui permanece até Março de 1961. Volta a Lisboa e é mobilizado para Angola, segue no Batalhão 132, já como capitão. Em 1965, faz nova comissão na Guiné. É questionado sobre o teatro de operações, e descreve-o: “A situação já é muito má. Quando eu cheguei à Guiné, havia entre os indivíduos que aqui estavam e os que chegavam uma rivalidade estúpida: os que tinham já feito Angola, os que ainda não tinham feito Angola. O chefe do Estado-Maior perguntou-me se eu já tinha estado em Angola, respondi-lhe afirmativamente, disse-me para esquecer tudo o que tinha aprendido lá”. Vai permanecer na Guiné até 1965. Volta para a Guiné em 1669.

Spínola modificou drasticamente a quadrícula, impôs a aproximação às populações, reservou para o Comando-Chefe as zonas de intervenção onde só iam as tropas especiais. Spínola decide uma nova conceção para as milícias, quer que passem a ter uma estreita ligação às populações a que pertenciam. Fabião não regateia elogios a esta primeira fase de Spínola e como mudou dispositivos, como gerou hábitos de auscultação das populações e como foi bem-sucedido com os congressos do povo, talvez o seu maior êxito na política social: “Spínola criou na Guiné uma maneira de estar em África que eu considero que foi o mais extraordinário que ele fez, pôs a manobra militar subordinada à manobra política. Fez uma guerra política em que a manobra militar servia só de suporte”. E criou as aldeias junto às lavras. Fabião é questionado sobre o estado de espírito no teatro de operações antes do 25 de Abril. Tem uma resposta pronta: “A Guiné estava perdida. O 25 de Abril evitou um desastre militar na Guiné”. E pede para que as suas declarações subsequentes sejam eliminadas na transcrição.

Retomada a conversa, Fabião descreve a iniciativa de Spínola para se encontrar com Senghor, ambos analisaram uma proposta de acordo, Senghor foi firme: descolonização em dez anos; cessar-fogo imediato; pôr a diplomacia internacional a colaborar nesta solução pacífica. A fama de negociador chega aos altos comandos conservadores, por exemplo o general Câmara Pina envia-lhe uma carta apelando um retorno à bandeira. Segue-se o Congresso dos Combatentes, os ultranacionalistas fizeram uma jogada para exigir a continuação da doutrina monolítica. Os slogans do congresso eram do tipo: “As pátrias não se discutem, defendem-se”, “Alerta, há inimigos escondidos no altar de Deus”, “Ninguém aprova o desmembramento do seu corpo. Portugal também não”. Muitos antigos combatentes foram aliciados para comparecer no Porto, seria uma forma de reavivaram a camaradagem.

Em 1971, Fabião é responsabilizado por Spínola para encontrar um novo enquadramento para as milícias, foram fundamentais para a arrancada no Sul, quando Spínola decidiu no fim do ano de 1972 a reocupação do Cantanhez. A conversa direciona-se para a operação “Mar Verde”. Fabião comenta: “Spínola tenta de todas as maneiras a vitória militar. A “Mar Verde” é encarada como a hipótese de ganhar a guerra” e explica o que correu bem e o que correu mal. A partir do momento em que não foram destruídos os MIG, havia que regressar o mais cedo possível a casa. Critica a má qualidade das informações da PIDE/DGS. E a seguir a conversa centrou-se nos acontecimentos a seguir ao 25 de Abril. Senghor pede a Spínola para enviar um emissário a Paris, seguem Fabião e Nunes Barata. O presidente do Senegal declara estar disposto a ajudar Portugal na descolonização, a independência da Guiné-Bissau é já um dado indiscutível, a OUA ficaria extremamente agradecida. Spínola não comenta os apelos de Senghor. Fabião chega a Bissau no início de Maio, sente que não há condições para se realizar um Congresso do Povo como Spínola pretende. O PAIGC ameaça retomar prontamente a guerra.

O que passa agora a estar em discussão é se o modelo da descolonização portuguesa fora dado pela descolonização da Guiné. Fabião retoma as suas observações sobre a especificidade dos acontecimentos na Guiné, continuar a guerra era inviável, não encontrara uma fórmula de negociação com o PAIGC para o cessar-fogo teria redundado num desastre. Fabião veio a Lisboa e Spínola ter-lhe-á apresentado hipóteses que ele considerou delirantes: criar-se um Vietname ou criar-se uma Coreia, Fabião terá dito a Spínola: “Eu isto não faço, não pense. E vou-me embora”. Spínola volta a insistir no Congresso do Povo, medida sem pés nem cabeça. O próprio Comandante Militar, General Galvão de Figueiredo foi perentório: “Diga ao general para não pôr aqui os pés”. Decorreram bem as negociações com o PAIGC, acordou-se que eles ocupariam alguns destacamentos e que depois, de forma progressiva as tropas portuguesas iriam regressando a Bissau.

Fabião é confrontado pelos moderadores sobre a dimensão das áreas chamadas libertadas, referindo que mesmo nos santuários como Sara-Sarauol, Morés, Cantanhez, o PAIGC era forçado à mobilidade e à dissimulação, se assim não fizesse a aviação destruía tudo, liquidava civis e militares. E, por fim, veio à baila a especificidade da guerra na Guiné: clima e tensão, a penosidade dos abastecimentos, as terras alagadas e o inimigo agressivo. Fabião comenta a mentalidade daquela guerra, o estado mórbido que se desenvolvia nos militares: “A gente na Guiné dizia que o clima jogava a nosso favor. Só quem o vive é que pode adivinhar. A gente está no quartel e o quartel é atacado todos os dias, ou dia sim dia não, e um tipo habitua-se àquilo. De repente, o quartel começa a ser atacado de cinco em cinco dias e eu, a partir do terceiro dia, já não durmo. Já não durmo porquê? Porque devia ter sido atacado na véspera e não fui. E, às vezes, os tipos estão dez dias sem atacar. A partir do sexto ou sétimo, já ninguém dorme. Tem que haver um ataque, tem que haver. Se não for esta noite é a de amanhã. Se não é a de amanhã, é a outra. Mas tem que haver”. É um depoimento significativo de quem conheceu a Guiné pacífica dos anos 50, conviveu com as diferentes fases da guerra e ali esteve como último governador, sujeito a pressões incríveis, procurando remediar soluções honrosas e tendo procurado levar por diante o espírito do Acordo de Argel.

Paquete Carvalho Araújo, pintura de Fernando Lemos Gomes: postal adquirido na Feira da Ladra, deu para lembrar as viagens que nele fiz: em Outubro de 1967, a caminho de Ponta Delgada; Março de 1968, regresso de Ponta Delgada a Lisboa; Agosto/Setembro de 1970, de Bissau a Lisboa, passando pelo Sal e São Vicente e Ponta Delgada. Terei muito gosto em oferecer este postal a quem for colecionador.
____________

Nota do editor

Vd. postes da série de:

7 de Fevereiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12688: Notas de leitura (560): A descolonização da Guiné: Depoimentos de protagonistas - Parte 1 de 4 (Mário Beja Santos)

10 DE FEVEREIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12705: Notas de leitura (561): A descolonização da Guiné: Depoimentos de protagonistas - Parte 2 de 4 (Mário Beja Santos)
e
18 DE FEVEREIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12737: Notas de leitura (565): A descolonização da Guiné: Depoimentos de protagonistas - Parte 3 de 4 (Mário Beja Santos)

terça-feira, 14 de maio de 2013

Guiné 63/74 - P11567: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (6): Léopold Senghor, o poeta, ou lembranças da Ala dos Namorados

1. Mensagem de Armando Pires [ex-fur mil enf, CCS/BCAÇ 2861, Bula e Bissorã, 1969/70]

Data: 12 de Maio de 2013, 18:06

Assunto: Reenvio

Meu caro Luís Graça. Camarada.


Ontem, 11 de Maio, em Paredes, foi o almoço da minha companhia.

Palavra puxa palavra e fui buscar um meu portátil para, como imaginas, tirar dúvidas que a memória acentua. As conversas são como as cerejas, e "vejam lá como se entra e se fazem buscas no blogue do Luís Graça".

E veio-me de novo à ideia: "mas que raio se passará com a história que eu enviei no 26 de Abril"?

Dizia assim o texto do e-mail:  "Meu Caro Luís Graça. Camaradas Editores. Blog Amigo. Perdoa que tardiamente te felicite pelo teu nono aniversário. Leva-o à conta de prementes afazeres, que não de menos cuidado por quem, na sua ainda que curta existência, tem sabido ser o ombro disponível a acolher gente caturra, em acertos de contas com a memória.

Deixa-me recompensar-te da falha, remetendo para teu acervo o 6º episódio da série que acolhes como "Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista".

Não sei se aprecias o estilo, mas quero aproveitar para fazer homenagem ao Manuel Joaquim, ex-furriel miliciano da CCAÇ 1419, que numa solitária demonstração de despojamento intimista, connosco tem partilhado as suas Cartas de Amor e Guerra. Vai com abraços."

E seguia em anexo o texto que também aqui vai anexado. Vais desculpar, meu Caro Luís, mas cheira-me que o e-mail passou à peluda antes de cumprir o tempo de serviço.

Toma lá um abraço e não te zangues comigo. Armando Pires


2. Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (6) >  Léopold Senghor, o poeta, ou lembranças da Ala dos Namorados 

por Armando Pires


Raios te partam, Manel Jaquim, que as tuas Cartas de Amor e Guerra incendeiam-me a memória na razão directa do respeito que me provocam.

Começo pelo fim, em que sou mais breve, para dizer de quanta admiração sinto por essa cumplicidade entre ti e a Dionilde, tua mulher, nascida no tempo do amor e dos segredos, trazida pela vida fora, chegando hoje à comum aceitação da partilha dessas palavras escritas, tão intensas de paixão e raiva, que só os amantes sabem dizer.

Faz tempo que andava para te o dizer, para te escrever.

Chegou a hora, sacudido pela inspiração desse teu Tombe la Pluie (poste P11263, de 16 de março de 2013), versos que bem podias ter deixado ao cuidado do teu soldado Lavinas, aquele que se perdeu pelo cheiro à terra e aos amores de Bissorã, e por lá ficou em negócio de restauração, para que deles, os versos, me fizesse entrega, que boa figura me teriam dado fazer, como adiante saberás.

Daqueles tempos, desses tempos, não tenho uma carta que seja.  Perderam-se nos vendavais da vida. Delas resta a memória do que quiseram dizer.

O rapaz do SPM tinha muito pouco trabalho comigo. Eu que escolhi a escrita como modo de vida, era espaçado e breve nos parágrafos em que alinhava, “por cá vou indo bem, felizmente”.  (Ó minha mãe, a paixão das nossas palavras são segredos indizíveis)

Parti sem deixar alma à minha espera. Amizades, sim, romances, também, mas a vida em que cedo fui esculpido não comportava melancólicas saudades. Agarro-me a gestos e afectos para me sentir nos lugares onde quero estar.

Foi assim que lá na Guiné venci o tempo, protegido por objectos de virtude, talismãs, ícones ou fetiches, figuras a que quiseram atribuir poderes tão sobrenaturais, que fossem capazes de me proteger e trazer de volta, são e salvo.

E porque assim deve ter sido, porque não sendo crente quero crer que o tenha sido, continuaram pela vida fora ao meu lado, e aqui perduram, na que já disse chamar-se a minha caixa dos segredos (poste P10629, de 7 de novembro de 2012 ), e para dentro da qual gosto, de quando em vez, de olhar e sorrir.

Porque lá dentro estão, a Maria da Luz, de trouxa às costas para me acudir nas aflições, mais aquela rapariga sardenta da Nazaré, que me julgava um lobo do mar, vê lá tu, eu que enjoo só de o ver, está também a versão francesa de “Le Petit Prince” [, o Princepezinho, criação de Saint Exupéry], aquele rapazinho que a Anne-Marie, lá porque ele andava sempre de chache-nez ao pescoço, teimava que era parecido com o fadista que eu era, e o corno do Aleixo, que me foi dado pela Odete. 







Guiné > Região de Cacheu > Bula > 1969 > CCS/BCAÇ 2861 (Buila e Biossrã, 1969/71) > Relíquias, ícones, fétiches, e talismãs… e a Maria da Luz, a Sardenta, Le Petite Prince, o cinto do “Rapina” mais o corno do Aleixo...

Foto (e legenda): © Armando Pires (2013). Todos os direitos reservados. [Edição: LG].



O Aleixo não era corno. O Aleixo tinha um corno que pertenceu a um toiro que numa praça de Espanha o ia varando num sitio que, vida fora, lhe faria imensa falta. Recuperou da colhida e o corno, que trouxe de lá para por atrás da porta do bar da Odete, para que dela e da casa desviasse o mau olhado.

A Odete, namorada do Aleixo, uma “balzaquiana” bem apessoada, que tinha um pequeno bar, já o disse, ali às Amoreiras, em Lisboa, frequentado por gente tão apessoada quanto ela, não sendo eu apessoado quanto eles, dedicava-me gosto e estima, porque eu tinha o que eles não tinham mas gostavam de ter tido: Voz e jeito para cantar o fado.

Sucede que aquele bar de muitas vezes passou a ser o bar de todas as vezes quando, terminado o curso de enfermeiro, no Hospital Militar Principal, fui colocado no seu Anexo, antigas instalações militares que ocupavam quase todo o quarteirão da Rua de Artilharia 1. Do Anexo ao bar da Odete não se corria mais de duzentos metros.

Naquela espécie de depósito de doentes em geral, fui metido em serviço na Medicina 3, onde cabia gente que se declarava demente para fugir à tropa, até tipos no seu mais perfeito juízo que apenas esperavam que viesse a funcionar a cunha que o sr. de patente, ou de posição, amigo do pai, metera ao médico da junta médica militar.

E havia, também, embora esporadicamente, uma outra clientela que fazia todo o meu enlevo. Eram os velhos veteranos da primeira guerra mundial, que esperavam pelo fim dos seus dias no Lar Militar de Runa, próximo de Torres Vedras, e ali iam recuperar dos achaques próprios da idade e, sobretudo, da tragédia em que os mandaram envolver-se.

Via e respeitava neles a figura do meu avô João, meu ídolo, boieiro nos campos do Ribatejo. Ninguém lhes tocava. Só eu cuidava deles. E as manhãs começavam com o banho em que, se não morriam afogados, quase morriam de riso com os disparates que eu lançava às suas inertes partes pudengas.

E havia ternura nos olhos quando, à hora da despedida, diziam, “obrigado, nosso cabo miliciano, e até qualquer dia”.

Ao lado do meu Serviço havia um outro que exigia forças mentais tão poderosas que quase se tornavam incompatíveis com as nossas imberbes e frágeis idades. O Serviço 5, onde os mutilados de guerra e paraplégicos cumpriam a “última etapa” da sua recuperação, antes de serem lançados para os braços de uma sociedade e de famílias a mais das vezes impreparadas para os receber.

À tarde, quando o sol iniciava o seu declínio para ocidente, sentava-me à porta com eles em conversas de amigos. À noite, no imenso espaço que era aquela espécie de parada do Anexo, à vez, um havia que me emprestava a sua cadeira de rodas para disputadas gincanas que tinham como prémio uma cervejinha no bar que fechava às dez.

Ganhava quase sempre um transmontano a quem uma mina anti-carro levara as duas pernas, conhecido pelo “Rapina”, porque depois de embalar a cadeira à força de pulso, fazia o percurso curvado para diante e de braços abertos, imitando o voo das águias que caçavam nos alcantilados do Marão.

Caramba, Manel, que lições de vida e humanidade eu ganhei naquele Anexo!

Às vezes, muitas vezes, eu saía com um deles, empurrando-lhe a cadeira até ao bar da Odete (é aqui que volta a entrar a Odete), que não só lhes franqueava a porta como nada lhes cobrava pelo jantar e, o melhor de tudo, lhes dava “à morte” companhia feminina até antes das seis, que era o prazo máximo combinado com o homem da porta de armas para nos deixar passar.

Em Setembro de 1968, após seis meses a prestar serviço no Anexo, já promovido por antiguidade a Furriel Miliciano, chegou a ordem de me apresentar em Chaves para formar Batalhão com destino à Guiné. Foi então, na hora da despedida, que a Odete me entregou o corno do Aleixo para que de mim afastasse o perigo, e o “Rapina” me desse o seu cinto militar porque já não precisava dele para segurar a farda.

Certa manhã de Abril de 1969, lá em Bula, foi à enfermaria ter comigo o rapaz do SPM.
- Furriel, tem aqui uma encomenda para si.

A letra firme, imensa e bem desenhada do endereço, bem que dispensava o selo para que eu reconhecesse a sua origem. Do norte de França, da Bretanha, da cidade costeira de Sainte-Marine, a Anne-Marie, minha namorada de então e minha muito amiga de hoje, enviava-me um novo livro.

Era uma biografia e um estudo sobre a obra poética de Léopold Sédar Senghor, de autoria de Armand Guibert, poeta ele também, que traduziu para francês obras do nosso Fernando Pessoa. Em dedicatória, a entre capa do livro recomendava que era “para ler nas noites azuis, nas noites sem guerra”.

Não esperei tanto. Sentei-me à porta da enfermaria e logo ali comecei a ler

La faiblesse du coeur est saint…
Ah! Tu crois que je ne l’ai pas aimée
Ma négresse blond d’huile de palme à la taille de plume
Cuisses de loutre en surprise et de neige du Kilimandjaro…



Dos lados da sala de operações surgiu o major Candeias. Fechei o livro entre o polegar e o dedo médio, deixando o indicador marcar a página onde seguia, e levantei-me para o cumprimentar.
- Então o que estás a ler, perguntou-me.

Exibi-lhe a capa e indiquei-lhe tratar-se de um poeta.
- Olha lá, rapaz, tu achas que isso são leituras para aqui?

Respondi-lhe: “ó meu major, poesia é para ler em qualquer lado”.

O Candeias fitou-me por brevíssimos segundos, fiquei sem saber se quis ou não quis dizer-me mais alguma coisa, se ficou a pensar se era eu que era parvo ou se o estava a fazer passar a ele por estúpido, e partiu sem resolver tão grande equação. Não sei por onde anda, meu major, mas talvez eu vá ainda a tempo de dizer-lhe que nem uma coisa nem outra.




Foi assim uma espécie de, “e se fosse à merda e me deixasse ler em paz?”. E pronto, Manel Jaquim, era aqui que eu precisava que tivesses deixado ao Lavinas o teu Tombe la Pluie, para que eu pudesse escrever à Anna-Marie e dizer-lhe

Tombe la pluie 
Et tu es si loin de moi
Tombe la pluie
Et mon couer s’habille de noir
….

Tombe la pluie
Et tu es si loin de moi.
Tombe la pluie
Oh, comme je voudrais te voir! 


Adeus, Manel Jaquim. Obrigado por esta oportunidade.

Até segunda-feira, lá no armazém da Amadora, onde teimamos em não esquecer o futuro daqueles que, lá nas bolanhas que deixámos, o não têm.
__________

Nota do editor:

Último poste da série > 3 de fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11048: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (5): O dia em que a minha mala voou

quinta-feira, 25 de março de 2010

Guiné 63/74 - P6050: O grave incidente, com repercussões no Conselho de Segurança da ONU, provocado pela incursão no Senegal da pequena força portuguesa comandada pelo Cap Cav Alves Boltelho (Esq Rec Fox 3431), em 12/10/1972


Guiné > Zona Leste > Galomaro > CCS do BCAÇ 3872 (1972/74) > Chaimites durante uma visita do General Spínola... Data provável: início de 1973... Estas viaturas blindadas pertenciam ao Esq Rec Fox, com sede em Bafatá...  Quem sabe se alguma delas não terá estado envolvida no incidente, na região fronteiriça de Pirada,  que levou à desgraça do Cap Cav Alves Botelho...  As autoridades militares portuguesas tentaram, publicamente, branquear o caso, remetendo a explicação para o insólito comportamento do oficial de cavalaria para  um "caso de perturbação mental" (sic)...

Já aqui reproduzimos  excertos do depoimento do Sérgio Marques, que foi testemunha do acontecimento, em reportagem publicada no Correio da Manhã,  revista "Domingo", na conhecida série "A Minha Guerra"  (*):

(...) Foi uma tarde louca, aquela de [12 ] Outubro de 1972, em Pirada, no Leste da Guiné, na fronteira com o Senegal. Eu integrava um pelotão de reconhecimento composto por duas viaturas blindadas, uma ‘White’ e uma ‘Chaimite’, que fazia escolta ao comandante do Batalhão de Caçadores (BCAÇ) 3884, a Uacaba, Mafanco, Sonaco, Paúnca e Pirada.  A certa altura, no intervalo de uma reunião de oficiais, o nosso comandante, o capitão de Cavalaria Manuel Eduardo Alves Botelho, diz: 'Venham comigo, vamos dar uma volta!' Fomos, éramos uma dezena de homens.


"Passámos a fronteira e penetrámos quatro ou cinco quilómetros no Senegal. Nenhum de nós adivinhava a intenção do capitão, que continuava entusiasmado a conduzir-nos por território estrangeiro adentro. A certa altura, avistámos um acampamento militar de senegaleses [, em Niano] . A ‘White’ foi obrigada a interromper a marcha, por causa das valas feitas pelos militares estrangeiros, mas a ‘Chaimite’, que tudo passa, entrou no acampamento" (...).

Foto: ©  Juvenal Amado (2008). Direitos reservados


1. Em relação ao "incidente fronteiriço" provocado, em 12 de Outubro de 1972,  pelo primeiro comandante do Esq Rec Fox 3431 (Bafatá, 1972/74), o Cap Cav Alves Botelho, já aqui referido em postes anteriores (*), veja-se algumas das repercussões que teve a nível diplomático e militar: (i) apresentação de queixa do Senegal na ONU; (ii) condenação de Portugal no Conselho de Segurança da ONU; (ii)  pedido de desculpas ao Senegal  por parte do Com-Chefe Gen Spínola e oferta de indemnização às vítimas;  (iii) prisão imediata do ofiicial português e seu posterior julgamento em tribunal militar e sua muito provável expulsão do exército, se não fora o golpe militar de 25 de Abril de 1974...


"Em relação ao Senegal, Portugal continuou[, em 1972] empenhado em manter um canal de comunicação  confidencial com Senghor, pois era um meio seguro e secreto de chegar ao PAIGC.

"Em Março realizaram-se contactos bilaterais entrre delegações dos dois países para a criação de uma comissão mista que controlasse a fronteira comum, mas esta não chegou a concretizar-se porque o Senegal queria estabelecer uma relação directa entre a segurança e a perpectiva de uma paz duradora para o confllito da Guiné-Bissau, com a participação do PAIGC. Para o discutir, Spínola e Senghor chegaram a encontrar-se dois meses mais tarde.

Mas a recusa do Governo português em modificar o estatuto do território levou a um aumento da actividade militar que, por sua vez, resultou  numa incursão das forças portuguesas ao posto senegalês de Niano, a 12 de Outubro [de 1972].

Este facto provocou um protesto de Dacar no Conselho  de Segurança, o qual condenou Portugal por não respeitar nem a integridade do Senegal, nem os  países vizinhos das suas colónias. A resolução obteve 12 votos a favor e três abstenções, dos Estados Unidos, Grã-Bretanha e Bélgica."

A 15 de Outubro de 1972, o jornal Le Monde, editado em Paris, publica excertos de um comunicado do Comando-Chefe das Forças Armadas Portugueses, no TO da Guiné, Gen Spínola, "apresentando as suas desculpas ao Senegal depois de um incidente de fronteira" (sic).(**)

"Le  12 octobre, dit le communiqué, une unité de l'armée portuguaise composé de trois véhicules blindés a violé la fontière du Sénegal, dans la région de Pirada, causant un morte  et un blessé dans un détachement  de l'armée du Sénegal et provocant égalemet la morte d'un civil portugais.

"Le commandement en chefe des forces armées de Guiné déplore profondément ce qui est arrivé, et a adressé un constat du délit au commandant de cette unité en vue de le traduire ultérieurement  devant um conseil de guerra. On suppose qu'il s'agit d'un cas de perturbation mentale du commandant de cette unité, étant donné qu'il  a agi em dehors de sa zone d'action et contre toutes les directives supérieures.

"Le commandement en chef est entré immédiatement en contact ave c les autorités sénégalaises afind e leur présentar ses excuses et de les assurer que toutes les indemnisations seront payées comme cela est juste". (***)

O jornal acrescentava que o Senegal, país francófono, como se sabe, tinha apresentado queixa contra Portugal à ONU na sequência deste incidente fronteiriço, e que no passado estas incursões em território senegalês eram frequentes, com os portugueses a invocar a legítima defesa ou o direito de perseguir os nacionalistas do PAIGC, acoitados no país vizinho...

A propósito do importante depoimento do nosso camarada Sérgio Marques [dos Santos], gostaríamos de o poder contactar e confirmar a sua versão. Sabemos que ele é (ou era) taxista da praça do Porto e que, em 2007, o seu telemóvel era o 914 181 777. Talvez alguém da Tabanca de Matosinhos o possa contactar e falar com ele pessoalmente...para tentar saber mais pormenores desta estranha história... Fica desde já feito o convite para ele ingressar na nossa Tabanca Grande: se ele aceitar, será o primeiro camarada do Esq Rec Fox 3431 (Bafatá, 1972/74) a pertencer ao nosso blogue...

____________________

Notas de L.G.:


(*) Vd. último poste, 23 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6039: (Ex)citações (53): O desvario de um capitão de cavalaria, que matou a tiro um militar e um civil, no Senegal, e que apanhou 12 meses de presídio militar (Carlos Cordeiro)


(**) Extractos de: Sanchez Cervelló, Joseph [ foto à esquerda,]: 1972: Da reeleição de Américo Tomás a Wiriyamu.

In:  GOMES, Carlos Matos, e  AFONSO, Aniceto - Os anos da guerra: volume 13: 1972:  negar uma solução política para a guerra. QuidNovi: Matosinhos. 2009. pp. 95-96.



(***) Tradução de L.G.:

(...) "Em 12 de Outubro, diz o comunicado, uma unidade do exército português, composta por três veículos blindados,  violou a  fronteira do Senegal,  na região de Pirada, causando um morto e um ferido num destacamento do exército do Senegal  e provocando igualmente um  morto civil português.

" O comando das forças armadas da Guiné lamenta profundamente o que aconteceu e enviou uma cópia do auto de corpo de delito levantado  ao comandante desta unidade que deverá ser presente a tribunal de guerra. Presume-se que se trata de um caso de perturbação mental , por parte do comandante da unidade, uma vez que agiu fora de sua área de ação e contra todas as ordens superiores.

"O comando-chefe entrou imediatamente em contaco com as autoridades senegalesas a fim de les apresentar o seu pedido de desculpas e garantir que todas as indemnizações serão pagas como de direito ".  (...)

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5793: Pré-publicação de Mulher Grande, de Mário Beja Santos (4): S. Domingos, 21 de Julho de 1961: Benedita, eles já aqui estão!


Guiné > Região do Cacheu > Varela > 1961 > Luta felupe, de Augusto Trigo. Painel que se encontra(va) numa parede de um restaurante/café, completamente em  ruínas. O painel foi restaurado, digitalmente, pelo Rui Fernandes. Foto de Rui Fernandes, cedida ao nosso amigo Pepito e aqui reproduzida com a devida vénia. (O Rui integra a nossa Tabanca Grande, desde Janeiro de 2008).

Augusto Fausto Rodrigues Trigo nasceu em Bolama, a 17 de Outubro de 1938. Órfão de pai em 1945, veio com mais dois dos seus irmãos para Portugal. A  mãe ficou  na Guiné, com o filho mais novo.

Esteve na Casa Pia até aos 19 anos (1957). Aí começou a revelar e a desenvolver o seu talento artístico. O seu primeiro emprego foi como pintor de publicidade. Regressa à Guiné para rever a mãe e os irmãos. Trabalha como desenhador cartográfico. Nos momentos livres, desenha e pinta (a óleo e a aguarela). Em 1964 realiza a sua primeira exposição de pintura. O Governo da província faz-lhe encomendas... O quadro, cuja imagem reproduzimos acima, data de 1961... Ainda viveu na Guiné-Bissau, a seguir à independência, tendo dirigido o Departamento de Artesanato Nacional, mas regressou definitivcamente a Portugal, em Setembro de 1979. É hoje um conhecido ilustrador e consagrado autor de Banda Desenhada (em parceria com o argumentista Jorge Magalhães). Para saber mais,  clicar aqui.


Foto: © Rui Fernandes / AD - Acção para o Desenvolvimento (2008). Direitos reservados


1. Pré-publicação de excertos do próximo livro do nosso amigo e camarada Mário Beja Santos, Mulher Grande. Trata-se da terceira parte do Capº III (*):


Mulher Grande > III > A Guiné em chamas ou o “Tubabo Tiló”
por Mário Beja Santos


[III. 4] Décimo segundo solilóquio


O tempo esfriou, chuvisca, aproveito para ir ao Google ver o que aconteceu em S. Domingos, naquele dia 21 de Julho de 1961. Coisa estranha, parece que a luta armada só começou em Janeiro de 1963, com o ataque a Tite, desencadeado pelo PAIGC. No entanto, aos farrapos, fala-se da formação de rebeldes no Senegal, de um Movimento para a Libertação da Guiné, nalguns documentos fala-se mesmo da FLING. Imprimo tudo, algumas respostas podem ser encontradas nas entrelinhas.

Afinal, a FLING fora alimentada pelas autoridades de Dakar, tinha um projecto exclusivamente guineense, não queria o envolvimento dos cabo-verdianos. Noutro documento encontro referências à fuga de quadros, vejo mesmo o nome de Rafael Barbosa ligado à FLING, surpreende-me, pois o seu nome também aparece associado ao PAIGC.

No último almoço em casa da Benedita vi a emoção com que ela falou na degradação das relações com as novas autoridades senegalesas do Casamansa. Falámos na missão da Christine Garnier, ela ter-se-á encontrado com Senghor que mandou uma mensagem para Salazar apelando-lhe a um quadro de pequenas concessões imediatas e sugerindo-lhe um plano de transmissão de poderes com a duração de 20 anos. O que quer que tenha acontecido, Salazar, que recebeu Benjamim Pinto Bull em S. Bento, recusou qualquer modalidade de negociação. Segundo a Benedita, 15 a 20 dias antes do ataque atribuído à FLING apareceu o administrador do Casamansa em S. Domingos. Encontrou-se em privado com o Albano, ele partiu para Bissau com uma mensagem e entregou-a ao Governador. Soube-se mais tarde que foi uma derradeira tentativa para a negociação.

Dou comigo a pensar como certos protagonistas secundários têm às vezes entre mãos responsabilidades que podem levar à mudança da História. A acreditar-se no relato da Benedita, o Albano tinha consciência que se estava a dançar à beira do abismo. Seria muito interessante saber-se como Bissau transmitia para Lisboa a versão das hostilidades iminentes.

Estou a entusiasmar-me por um pedaço da história da Guiné que eu ignorava completamente. Mas o que mais me surpreendeu foram as respostas que me deram quando telefonei, por sugestão da Benedita, para um administrador e dois chefes de posto do tempo, bem como dois coronéis na reserva, alferes na Guiné em 1961. Foram muito cordatos ao telefone, ninguém se lembrava do nome dos rebeldes, aonde se situava o seu acampamento, embora se tenha falado que estava dentro do Casamansa ou em Kolda, nunca tinham ouvido falar na FLING ou no Movimento para a Libertação da Guiné.

Porque será que estes homens não querem falar? Pondo imediatamente de parte a hipótese de uma conspiração de silêncio, somos levados a pensar que ninguém acreditava que dois países independentes à volta da Guiné portuguesa iam ficar quietos, sem explorar o descontentamento existente nas várias linhas de independentistas guineenses. E não menos curioso é como esta sucessão de episódios não consta na história da Guiné-Bissau.

Mais recordações da Benedita (décimo segundo trabalho de casa)

Haverá o direito de eu estar a arrogar-me a um papel importante nos acontecimentos do ataque a S. Domingos? Tenho a consciência que a memória não me atraiçoa. Aí uns dez dias antes do ataque o Albano soube que ia haver um desfile contra Portugal, em Ziguinchor. Aquelas informações eram vitais, ele não podia ir nem ninguém da administração.

Vendo-o tão preocupado, sem saber o que fazer, tomei uma decisão sem hesitar: “Albano, eu vou, não se preocupe, toda a gente me trata bem em Ziguinchor, diga-me exactamente o que pretende saber”. Ele ainda tentou dissuadir-me, mas acabou por me dar razão. Ao amanhecer do dia previsto do desfile, parti com o chefe da central eléctrica de S. Domingos, pretextei uma indisponibilidade do Albano, referi que tinha umas compras urgentes, ao princípio da tarde estaríamos de regresso.

Em Ziguinchor, notava-se à vista desarmada um clima de grande tensão, as pessoas procuravam não falar comigo, ou respondiam-me com monossílabos. Estive na farmácia, no escritório de Hugues Lemaire, depois comprei tecidos a um mercador ambulante. Na farmácia, o farmacêutico que era claramente contra a presença portuguesa, perguntou-me por Monsieur le Commandant, senti-me bem tratada.

O desfile anti-português estava praticamente no fim, via papéis a convocar para a manifestação espalhados pelo chão, resolvi não apanhar nenhum. Na loja de um djila, senti que ele me estava a fazer perguntas acintosas, do tipo “o que é que eu pensava se ele abrisse um magasin em S. Domingos”, respondi que ficaria encantada. Hugues Lemaire recebeu-me imediatamente e advertiu-me: “O Albano que se organize e se defenda. O melhor seria vocês abandonarem já S. Domingos, eles vão atacar em breve”.

A mulher dele deu-me uma pistola e Hugues Lemaire precisou as últimas instruções: “Não posso escrever nada, a partir de agora, se souberem que estou a passar informações estamos perdidos. Estão a ser preparados 200 homens nas granjas de Tibelor, perto dos serviços de agricultura de Ziguinchor”. Ainda fui comprar umas conservas, livros e revistas.

Foi no carro que o Augusto, o chefe da central eléctrica, me mostrou os panfletos que tinham sido distribuídos na manifestação do tipo um capitalista gordo com charuto na boca às costas de um nativo, um cipaio com uma palmatória na mão a maltratar um indígena com as correntes nos pés e de mão estendida. Um dos panfletos falava na luta para expulsar os portugueses, admitindo se necessário recorrer à destruição de vidas. O Augusto disse-me: “Senhora, as coisas estão muito feias, eles têm espingardas e granadas”. Seguimos imediatamente para S. Domingos, o Albano não escondeu o seu alívio quando ali cheguei. Ouviu-me, escreveu uma longa mensagem, o secretário seguiu imediatamente para Bissau.


Antes do ataque a S. Domingos, em 21 de Julho de 1961


Pela primeira vez na minha vida, eu sentia-me no centro de uma agitação política que não entendia, onde não participava directamente, olhava, ouvia os comentários do Albano, lançaram-me avisos em Ziguinchor, mas como não via guerra nem era evidente qualquer hostilidade, continuei a viver sem alterar nada.

Enviaram de Bissau um novo secretário e um novo aspirante para S. Domingos, logo percebi que era para dar mais tempo ao Albano, libertá-lo das tarefas administrativas, os acontecimentos do Senegal e o espectro da guerra ocupavam-no cada vez mais. Nós estávamos preocupados com o que tinha acontecido em Angola, começava-se a pensar que íamos ser brutalmente atacados, até mesmo chacinados.

A mexer nos meus papéis, nas coisas que juntei nos últimos dias, tenho aqui registada a chegada de um homem que só nos deu dores de cabeça, Aventino Guerreiro, um aventureiro que chegou a S. Domingos com uma proposta de instalar um negócio de óleo de palma, queria que o Albano lhe concedesse mão-de-obra gratuita. Claro que o Albano recusou e pô-lo fora do gabinete.

Este Aventino Guerreiro só no ano de 1961 apresentou 15 queixas contra o Albano. Ele devia ter muitos apoios em Bissau, deve tê-los sugestionado com um conto do vigário, qualquer coisa como montar um sistema de informações ao longo de toda a fronteira, o pretexto seria a compra de mancarra, seria aí, durante as transacções, que se obteriam informações.

Um dia, vínhamos nós de Bissau, o Albano contou-me tudo no carro, como publicamente se manifestara contra este embuste, se Bissau queria boas informações, se queria confirmar e ampliar as informações que a PIDE oferecia, deviam estar atentos ao que ele escrevia, sobretudo às informações que ele recolhia em Ziguinchor.

O Albano tudo fazia para manter excelentes relações com os colegas do Casamansa. Ele sabia, desde 1960, que as relações iam ficar tensas, esforçou-se por fazer convites oficiais às novas autoridades senegalesas, recebemo-los em nossa casa, notámos da parte deles que não queriam muita intimidade, sentia-se no ar que em breve se iria chegar à ruptura. O Albano estava a sofrer muito, tinha recebido um telegrama a anunciar que a mãe estava a morrer, decidiu não vir a Portugal com tudo o que se estava a passar ali à volta.

Pode parecer contraditório, mas eu estava a receber novas alegrias. Fui admitida como professora no ano lectivo de 1960-1961, ninguém mais concorreu para S. Domingos. Comecei a juntar dinheiro, pois o ordenado de professora ia inteirinho para Lisboa, aproveitando o direito à transferência. Adorei ensinar, ver aquelas crianças que por vezes faziam quilómetros a pé a mostrar entusiasmo com a tabuada, começavam a soletrar e meses depois assistia àquele milagre das palavras serem ditas, mesmo aos solavancos.

É de repente que começo a sentir o desânimo do Albano por causa da indiferença de Bissau face aos seus avisos. Aquela indiferença deitava-o por terra. Já na festa da independência do Senegal ficara ao lado de um oficial reformado do exército francês que se mostrou muito glacial comigo. Perguntei ao meu amigo Hugues Lemaire o que levava aquele senhor a ser tão pouco gentil comigo e ele disse-me sem papas na língua: “Benedicte, tu não acreditas no que te andamos a dizer, tu jantaste ao lado do oficial que anda a treinar os rebeldes guineenses aqui no Senegal”. Fiquei sem saliva, olhei-o sem poder articular uma palavra. Hugues Lemaire também já avisara o Albano que Senghor queria marcar posição antes de Sekou Touré, iria apoiar insurreições no Norte da Guiné com rebeldes da nossa província. Senghor era a favor de uma Guiné para os guineenses, não apreciava os cabo-verdianos. Senghor dizia abertamente que o futuro desta nova Guiné independente iria ficar sob a sua custódia.

Vão seguir-se dias de tensão, nunca mais na minha vida tive uma espera tão dolorosa, inquietante, como aquela. Sentimos que muita gente estava a partir, até mesmo gente da população local deixou de vir a S. Domingos. Os comerciantes de Bissau, do Cacheu, de Bissorã ou Bula, nunca mais apareceram. O silêncio nocturno era horrível, nunca mais se ouviu um batuque, acabaram as fogueiras, as cerimónias e festas dos Felupes ou dos Manjacos. Eu procurava resistir dando aulas mas sentia também a falta de muitos alunos.
Estávamos todos à espera, num enervamento horrível. Chegara entretanto um contingente de tropa que ficou a viver dentro da povoação, e não muito longe de nós. Começava o nosso relacionamento com a tropa, que não foi nada feliz. Na noite de 21 de Julho, estávamos deitados quando se ouviram tiros, um deles partiu um vidro do nosso quarto. Como uma mola, saltámos da cama e rastejámos para a porta, punha-se assim termo a todos aqueles meses de expectativa.

Há quem diga que quando morremos a nossa vida passa no nosso cérebro como um filme acelerado, já me disseram que vemos e pensamos aquilo que mais no impressionou na existência. Pois eu sei que vou ouvir nesse momentos a voz do Albano gritar-me ao ouvido, plena de exaltação: “Benedita, eles já aqui estão!”.

(Continua)

[ Revisão  / fixação de texto / título: L.G.]
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Nota de L.G.:

(*) Vd. último poste desta série > 4 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5758: Pré-publicação de Mulher Grande, de Mário Beja Santos (3): Dois anos maravilhosos: S. Domingos, Varela, Ziguinchor, antes da guerra...

sexta-feira, 18 de maio de 2007

Guiné 63/74 - P1767: Spínola e Senghor encontram-se na região de Casamance em 1972 (Pedro Lauret)

Mensagem de Pedro Lauret:

Caros companheiros,

Em 18 de Maio de 1972 Spínola e Senghor encontravam-se na região do Casamance numa tentativa de encontrar uma solução negociada para a Guerra na Guiné.

No blogue da A25A, Avenida da Liberdade, textos do Coronel Carlos Fabião e Prof. Marcello Caetano em Efemérides.

Por considerar que tem interesse para a nossa tertúlia aqui estou a fazer propaganda a este blogue de que sou responsável.

Um abraço
Pedro Lauret