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segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Guiné 61/74 - P20311: Memória dos lugares (396): Roteiro de Bissau Velha: ruas antigas e ruas atuais, onde se localizavam algumas casas comerciais do nosso tempo: café Bento, Zé da Amura, Pintosinho, Pinto Grande / Henrique Carvalho, Taufik Saad, António Augusto Esteves, Farmácia Moderna...


Mapa de parte da baixa da velha Bissau (colonial), entre a  Avenida da República (hoje, Av Amílcar Cabral) e a fortaleza da Amura.  A escuro, dois prédios que pertenciam a Nha Bijagó.  Fonte: António Estácio, em "Nha Bijagó: respeitada personalidade da sociedade guineense (1871-1959)" (edição de autor, 2011, 159 pp., il.),


Guiné- Bissau > Bissau > c. 1975 > Novo mapa, pós-colonial, da capital da nova república, já com as novas designações das ruas, avenidas e praças, que vieram substituir o roteiro português: Av 3 de Agosto (,  Marginal), a Rua Guerra Mendes (, Rua Oliveira Salazar,)  Rua António Nbana (, Rua Tomás Ribeiro) . Veja-se a localização da Fortaleza da Amura, do porto do Pidjiguiti (para os barcos de pesca e de cabotagem), à esquerda do porto de Bissau (para os navios da marinha mercante).


Foto: © A. Marques Lopes (2006). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




1. Às vezes temos dificuldade em localizar, no mapa de Bissau do nosso tempo (1961/74),  aquela casa comercial, aquele restaurante ou aquela cervejaria de que temos boas memórias... Faltam-nos um mapa com a toponímia do "antigamente", e a correspondência com os nomes das ruas e avenidas atuais... 

Com a ajuda de algumas camaradas que conhecem (ou conheceram) Bissau, aqui fica um pequeno contributo, parcelar,  para nos ajudar a localizar, com mais rigor, alguns desses estabelecimentos, alguns com várias referências do nosso blogue: por exemplo, ainda recentemente falámos aqui do comerciante António Augusto Esteves, fundador da Casa Esteves, transmontano, e que ainda ficou por lá depois da independência,  tendo ido para a Guiné  em 1922 e tendo morrido em Lisboa, em 1976...  [Tinha várias filiais no interior da Guiné. A sede era em Bissau, na antiga Rua Honório Barreto (6). ]

Segundo o António Estácio, no seu livro "Nha Bijagó", "a Rua Honório Barreto foi, na Guiné, a primeira a ser asfaltada e reabriu em 06.04.1953"...  Nesta rua, agora 19 de Setembro,  "encontravam-se estabelecimentos comerciais como, por exemplo, o de Augusto Pinto, a Olímpia Rocha (10), Barbearia Constantino (9), Casa Esteves (6),  Salgado & Tomé (11), Luís A. de Oliveira (12) e, mais tarde, parte o do Taufic Saad (4), na esquina com R Oliveira Salazar.

Na Rua Oliveira e na Marginal, ficavam as instalações da Ultramarina (que pertencia ao BNU) (14), o Hotel Miramar (15), a Gouveia (13)...

Na antiga Rua Miguel Bombarda (hoje 12 de Setembro), tínhamos o Zé da Amura (7),o Abel Dieb (19),  a Casa Escada (17), o Abel Valente de Oliveira (18), o Mamud Elaward (20). Sabemos também onde ficava o Benjamim Correia (16), ao pé da Farmácia Moderna (5), o Barbosa & Comandita (21) e a Esquadra da PSP (22)



Infelizmente o croqui que encontrámos num livrinho do António Estácio, só inclui a parte oriental da Bissau Velha,  entre a  Avenida da República (hoje, Av Amílcar Cabral) e a fortaleza da Amura (8). 

Aguardamos, por parte dos nossos leitores. o envio de sugestões e correções, sob a forma de comentários, na respetiva caixa. Se nos quiserem mandar fotos, terá que ser por email... (LG)


Zé da Amura (7)

(...) Tínhamos o Zé da Amura onde se comiam uns chispes que iam para lá enlatados não sei de onde, mas que, à falta de melhor, eram apreciados. (...)

Café Cervejaria Bento [ou 5ª Rep] (1)

(...) Na Avenida principal [ , a Av da República, hoje Av A,ílcar Cabral], que ía do porto ao Palácio do Governo, também havia o Bento, café e esplanada característica da cidade a que vulgarmente nós, os militares, chamávamos de “5ª Rep.” já que o Quartel-general [, na Amura,]nsó tinha 4 Rep, 4 Repartições.

(...) O comércio de Bissau não era constituído só por cafés, restaurantes e tascas. Havia de tudo. E há nomes que não se esquecem. Para além da Casa Gouveia, o maior empório daquele então Província Ultramarina, como então se dizia, a Casa Pintosinho, a Taufik Saad, a Costa Pinheiro, e muitas outras vendiam de tudo, são nomes que ficaram para sempre na memória.

(...) "Havia, claro, várias casas de fotografia, como por exemplo a Agfa, perto da Amura, que ganhavam muito dinheiro na medida em que era raro o militar que não tivesse comprado a sua Fujica, Pentax, Nicon, etc., a que davam muito uso. Muitas casas vendiam roupa barata, nessa altura já confeccionada em Macau, especialmente aquelas camisas de meia manga, calças de ganga e sapatos leves."


Casa Pintosinho (2)

(...) Na Guiné, mais propriamente em Bissau, fomos encontrar coisas boas no comércio. Uma surpresa! Logo ali na rua paralela à marginal [, ex-Rua Oliveira Salazar, hoje Rua  Guerra Mendes,] na Casa Pintosinho, havia as últimas novidades eletrónicas. Os melhores rádios, transistores, pick-ups, aparelhagens de som, máquinas de barbear e todo o mais. Akai e Pioneer era do mais reclamado e moderno. Estavam na moda.

Um rádio para pôr na mesinha de cabeceira era o que se pretendia mais. No mato, já a ventoinha, a 5 dedos da cara, ganhava bem aos rádios. Alguns compraram autênticos rádios de sala e andavam com eles debaixo do braço, como que a dizer que o meu é maior do que o teu, e os donos da música fossem eles; outros ficavam pelos mais pequenos (vulgo transístor) que se levava no bolso e para qualquer lado.

Um camarada comprou um rádio que se transformava em pick-up após uma ligeira articulação. Foi de abrir a boca. Na Casa Pintosinho comprei ali mais tarde um “Mitsubishi”. Este transístor andava em propaganda radiofónica local e assim andou durante bastante tempo. Seduzido por tanta propaganda fui lá buscar um mais tarde, quando passei por Bissau em trânsito para férias na metrópole. Boa compra, durou muitos anos e tocava dentro do carro como se fosse um auto-rádio. Uma relíquia, mesmo depois de deixar de tocar (os tombos foram muitos), posta fora inadvertidamente, para desespero meu.

A Casa Pintosinho era uma casa atualizada e a tropa era lá muito bem recebida e atendida. Pudera! Sargentos e Oficiais tinham manga de patacão. (...)

 Taufik Saad (4)

(...) Na mesma rua e mais para o lado da Amura, na loja Taufik Saad  [, foto à esquerda, ] comprava-se, principalmente, entre outras, louças decorativas, vulgo bibelots, louças de servir à mesa, faianças e porcelanas, louça fina, entre esta bonitos Serviços de chá e café que vinham da China. 

Louça “casca d’ovo “, louça de fina espessura para não fugir aquele nome, onde no fundo se podia ver recortada na própria louça o rosto de uma linda chinesa. 

Ainda hoje guardo um serviço destes. Era uma casa requintada ao nível das melhores de Lisboa. (...)

Anúncio, Revista de Turismo,
 jan/fev 1956

Casa Pintosinho, de António Pinto  (2)

(...) O anúncio que hoje divulgamos é de uma conhecida casa de Bissau, do nosso tempo, a Casa António Pinto, ou "Pintosinho", alegadamente a melhor e a mais moderna loja da província (, em 1956, já não se dizia, ou pelo menos, não se escrevia, colónia...).

O António Pinto, que ficava na Rua Dr. Oliveira Salazar [, hoje Rua Guerra Mendes,] tinha tudo, a começar pelas "últimas novidades", desde a ourivesaria às armas, munições e demais artigos de caça e desporto, par de rádios e máquinas fotográficas (como a Zeiss Ikon)...

Era o representante,na Guiné, de uma série de marcas famosas, desde os relógios "Longines" às máquinas de escrever "Hermes", além dos "whisk" (sic, em inglês, batedeira, utensílio de cozinha...) das melhores marcas (...)


Pinto Grande, depois Ernesto Carvalho (3)



(...) Guiné > Bissau > Anos 50 > Primeira rua [, Rua Oliveira Salazar,] a ser alcatroada em Bissau. O edifício à esquerda  era o estabelecimento comercial conhecido por Pinto Grande, irmão de um outro Pinto conhecido por “Pintosinho” [,o António Pinto, ] por ser (o estabelecimento) de menores dimensões.

O “Pinto Grande” [, de Augusto Pinto], embora continuando a ser chamado por esse nome, foi, durante a guerra, propriedade de um comerciante anteriormente estabelecido em Bolama, de nome Ernesto de Carvalho que o tomou de trespasse. (...)

Mário Dias

Anúncio, Revista de Turismo, jan/fev 1956
Farmácia Moderna (5)

(...) "O Rui Demba Djassi era um jovem activo e turbulento duma família de funcionários públicos, residente na então rua de S. Luzia, entre o estaleiro da Tecnil e o Quartel-General do CTIG, desertara do Eexército Português para o PAIGC com o posto de furriel miliciano, e, antes de assentar praça, fora cobrador da Farmácia Moderna, muito dedicado à Dr.ª Sofia Pombo Guerra, comunista portuguesa e uma das mães da independência da Guiné (os guineenses não deixaram de ser polígamos na política)" (...)




Guiné > Bissau > Fins de Setembro de 1967 >– Numa rua da Baixa, pobre, suja, velha, a cidade velha, penso ser na zona comercial, onde se localizava a Casa Pintosinho e a Taufik Saad e outras. Penso que estou metido num grupo de amigos, e alguém tirou a foto, acho que estou de camisa branca.

Foto (e legenda): © Virgílio Teixeira (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Bissau > s/d [ c. 1960/70] > Rua Oliveira Salazar. Bilhete Postal, Colecção "Guiné Portuguesa, 135". (Edição Foto Serra, C.P. 239 Bissau. Impresso em Portugal, Imprimarte, SARL).

Era nesta rua, na Bissau Velha, que ficava a Casa Pintosinho, a Taufik Saad,  a Casa Pinto Grande e outras. Colecção de postais da Guiné, do nosso camarada Agostinho Gaspar, natural do concelho de Leiria, ex-1.º cabo mec auto rodas, 3.ª CCAÇ/BCAÇ 4612/72, Mansoa, 1972/74).

Digitalização e edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2010).

______________

quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Guiné 61/74 - P19338: Memória dos lugares (383): Essa tradição do Natal crioulo, descrita pelo Mário Dias, e vivida por ele em 1952, em Bissau, vou ainda encontrá-la em Nova Lamego, 15 anos depois, em 1967!... (Virgílio Teixeira, ex-alf mil SAM, CCS/BCAÇ 1933,1967/69)


Guiné > Região de Gabu> Nova Lamego > CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) > Natal de 1967 > O capelão Moita, à civil, à esquerda,  junto de um dos miúdos que transportavam uma "capelinha", uma réplica  em miniatura, com um presépio lá dentro, iluminado por uma vela;   à direita, o Virgílio Teixeira.

Foto  (e legenda): © Virgílio Teixeira (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Comentário,   ao poste P19334 (*), de Virgílio Teixeira (ex-al mil SAM, CCS/BCAÇ 1933, 1967/69):

Depois de ler esta bela história do Mário Dias, sobre o Natal em Bissau, talvez me passasse pela cabeça ter visto por alturas do Natal, antes ou depois, porque os Natais eram passados junto do comando e CCS do Batalhão (BCAÇ 1933) estas manifestações, embora não tenha nenhum facto exacto em mente.

Contudo, e a propósito, isto passava-se cá, na minha infância também se cantavam as Janeiras e os Natais, junto das portas dos senhores, com cantigas alusivas que ainda me lembro delas perfeitamente, eram os peditórios para o 'menino Jesus',  quer dizer para nós que fazíamos parte dos grupos, e era até rentável para as guloseimas que não tínhamos. Mas isto é outra história.

Ao ler este texto: "Grupos de 3 ou 4 crianças, transportavam pequenas casas feitas com armações de finas tiras de cana ou material semelhante revestidas com papel de seda de várias cores. Com um coto de vela aceso no seu interior, resplandeciam como se de vitrais se tratasse. E como havia algumas tão bem construídas e belas!... A catedral de Bissau, a casa do governador, o edifício da Administração Civil, ou simples casas saídas da fértil fantasia do seu construtor. Também havia quem desse asas à criatividade e aparecesse com navios, aviões e de quanto a imaginação fosse capaz.

"Iam parando em cada casa, ora à porta quando situada ao rés do passeio, ora penetrando nos pequenos jardins das mais recuadas, e um deles, portador de uma garrafa vazia e de um pequeno ponteiro de ferro batia o ritmo: tintim, tintim. tintim… Então, ao compasso que o “tocador de garrafa” ordenava, todos rompiam nesta cantilena: ( por sinal bem afinados)"

... Lembrei-me do meu Poste,  sobre o Tema 055, em Nova Lamego, na época do Natal, de ver estes grupos de miúdos com umas coisas que na altura disse não saber o que eram.  Pelo ao nosso editor para ver então esse  Poste - que não encontro o número nem a sua publicação, mas era sobre o Nosso Capelão Moita, e cujo texto retirei e coloquei aqui:

(...) Guiné - Portugal 67/69 - Álbum de Temas:  T055 – O Nosso Capelão, Aferes Graduado Moita, o Capelão Padre Moita que se juntou mais tarde ao BCAÇ 1933.

(...) F8 – O capelão Moita junto de um grupo de Djubis com objectos religiosos de Natal, não sei o que é aquilo. NL, Dezembro 67.


Pedia então para o Mário Dias, ou outro camarada que saiba disto, se aquela peça que os miúdos apresentam iluminada, não seria uma dessas referidas.por ele.

Parabéns ao editor por esta publicação, e agora peço que tente desvendar este dilema, podemos estar na presença das tais ´casinhas ou outras coisas´, feitas de qualquer coisa...

E assim acabaram estas festas natalícias....

2. Comentário do nosso editor LG:

Heureca, Virgíliio, é isso mesmo!... Tens olho clínico!... Essa tradição do Natal crioulo, descrita pelo Mário Dias, e vivida por ele em 1952, em Bissau, vais tu ainda encontrá-la em Nova Lamego, 15 anos depois, em 1967!...

Aqui está, como  prometido, o  teu comentário elevado à categoria de poste !... Aqui tens a foto em questão (a nº 8), depois de reeditada para dar mais destaque aos miúdos que seguram nas mãos a "igreja" em minitura, em papel... e um presépio lá dentro!... Não é a a igreja de Nova Lamego, que só tinha uma torre, mas pode ser a de Bissau ou de Bafatá... 

Que coisa linda!...Deviam ser miúdos de famílias cristãs, também as havia em Bambadinca e Bafatá, mas eu na noite de Natal, pelo menos a de 1969, passei-a... destacado na "Missão do Sono" a aguardar as costas dos senhores do comando e da CCS do BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70)...

Vê aqui o poste que tu não conseguiste localizar (**)

Lembrei-me, entretanto, que o nosso amigo (e camarada) Manuel Amante da Rosa tem um poste antigo sobre esta tradição, a que eu chamo o Natal crioulo da Guiné (***). Escreveu ele:

Uma "capelinha"...
(...) Muito provavelmente muitos dos membros da nossa Tabanca Grande que tenham passado um Natal na Guiné, terão visto e escutado grupos de crianças que, festeiramente, andavam de porta em porta com pequenos presépios ou casas de papel, iluminadas com vela por dentro, mais uns bonecos articulados, alguns com caricas de garrafas de cervejas pregadas em tábuas de ocasião a chocalhar, acompanhando um coro, por vezes desafinado. São gratas recordações dessa tradição que ainda hoje persistem em Bissau.(...)

O seu relato sobre o Natal de outrora na Guiné bate certo com o que  que já escrevera, quatro anos antes, o Mário Dias (Poste P367, de 18 de dezembro de 2005).

Um "quincom"...
(...) Outrora e até o início dos anos 70 do século passado, era frequente, nas noites de 24 e 31 de Dezembro, as ruas da cidade de Bissau serem percorridas por grupos de jovens guineenses, oriundos dos Bairros periféricos, que consigo transportavam interessantes réplicas de igrejas e capelas. Eram as “Capelinhas”.

Feitas numa estrutura de madeira muito leve, vulgarmente denominada “tara” (Raphia sp. Exsicc. Esp. Santo 766), eram forradas a papel de seda, contendo, no seu interior, várias pagelas de santos e, ao centro, iluminadas por um coto de vela, o que, no breu da noite, conferia ao conjunto um aspecto de particular carinho.

Os grupos de miúdos percorriam as ruas de Bissau, cantando, de casa em casa, saudando, a troco de 5 tostões, com a seguinte cantilena os moradores (...):

A cantinela era a mesma que já o Mário Dias ouvia em 1952...

E era   "acompanhada, sequencialmente pelos famosos bonecos, tipo espantalhos feitos de papelão, presos numa cana ou pequena haste de madeira, com os braços e pernas articulados, graças a um sistema de cordéis interligados, nas costas, dos referidos bonecos. Estes bonecos eram conhecidos pela designação vulgar de Quincões” (...).
__________________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 25 de dezembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19334: Memórias dos lugares (382): Bissau, 1952, quando lá passei o meu primeiro Natal, aos 15 anos: uma tradição crioula que se perdeu, as crianças de Bissau, vindas do Chão Papel, Alto do Crim, Cupilon, Gã Beafada, Santa Luzia e outros bairros, que inundavam as ruas com as suas casinhas luminosas ou com os “kinkons” articulados e garrafas para marcar o ritmo, "tintim, tintim, kinkon, kinkon"... (Mário Fernando Roseira Dias, compositor musical, ex-srgt 'comando' reformado, Brá, 1963/65)

(**) Vd. poste de 15 de setembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19017: Álbum fotográfico de Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) - Parte XLIII: O alf mil capelão Carlos Augusto Leal Moita

(***) Vd. poste de 11 de janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5628: Antropologia (16): Canções antigas do Natal de Bissau (Manuel Amante da Rosa)

terça-feira, 25 de dezembro de 2018

Guiné 61/74 - P19334: Memórias dos lugares (382): Bissau, 1952, quando lá passei o meu primeiro Natal, aos 15 anos: uma tradição crioula que se perdeu, as crianças de Bissau, vindas do Chão Papel, Alto do Crim, Cupilon, Gã Beafada, Santa Luzia e outros bairros, que inundavam as ruas com as suas casinhas luminosas ou com os “kinkons” articulados e garrafas para marcar o ritmo, "tintim, tintim, kinkon, kinkon"... (Mário Fernando Roseira Dias, compositor musical, ex-srgt 'comando' reformado, Brá, 1963/65)


Portugal > s/l, algures, >  de Setembro de 2005 > Um reencontro de velhos camaradas, militares portugueses que estiveram na Guiné, tendo participado na Op Tridente (Ilha do Como, de 14 de Janeiro a 24 de Março de 1964)... Quarenta anos depois... Alguns dos bravos da mítica batalha do Como... Entre eles, está o nosso Mário Dias (o segundo, a contar da direita). ... Já agora aqui fica a legenda completa (Os postos, referentes a cada um, são os que tinham à época dos acontecimentos): Da esquerda para a direita: (a) sold João Firmino Martins Correia; (b) 1º cabo Marcelino da Mata (hoje tenente-coronel, na situação de reforma); (c) 1º cabo Fernando Celestino Raimundo; (d) fur mil António M. Vassalo Miranda; (e) fur mil Mário Fernando  Roseira Dias (hoje sargento na reforma); (f) sold Joaquim Trindade Cavaco.

Foto (e legenda): © Mário Dias (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


Angola > Luanda > 1963 (?)  >  Em primeiro plano, o fur mil 'comando' Mário Dias, em segundo plano, da esquerda para a direita, o fur mil Artur Pereira Pires, o sold Adulai Jaló e o alf mil Justino Coelho Godinho (, estes três últimos já falecidos). No  aeroporto de Luanda à espera de transporte para o QG. Foto cedida por Vassalo Miranda, ex-fur mil,  Gr Cmds ‘Panteras’

Foto (e legenda): © Virgínio Briote (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


Guiné-Bissau > Bissau > 2001 > A catedral de Bissau símbolo do catolicismo, que sempre teve fraca penetração num país  em que predominam o islamismos e o animismo.

Foto: © David J. Guimarães (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1.  Mensagem de Mário Dias 

(i) Mário [Fernando Roseira] Dias [, foto de 2005, à direita]

(ii) nasceu em 1937 em Lamego;

(iii) foi pra a Guiné, com a família, em 1952, ainda adolescente;

(iv)  assistiu à modernização e crescimento de Bissau, capital da Província desde 1943;

(vi) conheceu, entre outros futuros dirigentes e combatentes do PAIGC,  Domingos Ramos, de que se vai tornar amigo, na recruta e depois no 1º Curso de Sargentos Milicianos [CSM], que se realizou na Guiné, em 1959;

(vii) com o posto de fur mil, partiu, em 29 de outubro de 1963, para Angola, integrando num grupo de Oficiais, Sargento e Praças, do CTIG, a fim de frequentarem um curso de Comandos, no CI 16 na Quibala - Norte, e on se incluía o major inf Correia Diniz; alf mil Maurício Saraiva;  alf mil Justino Godinho, 2º srgt Gil Roseira Dias, fur mil cav Artur Pereira Pires, fur mil cav António Vassalo Miranda, 1.º  cano at inf Abdulai Queta Jamanca  e Sold. At. Inf.ª Adulai Jaló.

(viii) este grupo esteve na origem da criação, em julho de 1965,  da Companhia de Comandos do CTIG (CCmds/CTIG), tendo sido nomeado seu comandante o cap art  Nuno Rubim, substituído em 20 de fevereiro de 1966 pelo cap art Garcia Leandro;

(ix) em 1966, seguiu para Angola, onde prestou serviço, seguindo a carreira militar.
(x) depois de reformado dedicou-se à música: dotado de grande sensibilidade e talentos artísticos,  é mais  conhecido por M. Roseira Dias, no meio musical, é autor de inúmeros arranjos musicais de canções populares  a açoriana Olhos Negros, e tantas outras que por aí circulam em Portugal e no Brasil: são e  dezenas e dezenas de arranjos para coro, saídos do talento musical do nosso camarada: por exemplo, Granada, de Agustin Lara; Minha História, de Chico Buarque; Morte que mataste lira (Popular, Açores); Natal de Évora (Popular); Lembranças do Douro (Folclore do Alto Douro); Perdigão perdeu a pena (Cancioneiro da Alta Estremadura); Tempo suão (Cancioneiro da Alta Estremadura)... Mas não só arranjos como músicas orignais: por exemplo, Dança do vento (poema de Afonso Lopes Vieira); Regresso ao lar (poema de Guerra Junqueira); Cantiga das tristes queixas (poema de Afonso Lopes Vieira)...só para citar uns tantos exemplos.

Escreveu ele na altura, nas proximidades do Natal de 2005 (*):

(...) Aqui vai, não propriamente uma estória, mas o que poderemos chamar uma crónica ou memória de como era celebrado o Natal pelos rapazes (nunca vi raparigas a participar) de Bissau.

Caros camaradas de tertúlia:

Tintim, tintim, tintim,… “Bom festa pa tudo dgenti. Prança Deus bó iangaça tudo quê que bó misti”

Traduzo, ou não é preciso? Então lá vai: Boas-festas para todos. Queira Deus que alcanceis tudo quanto desejais.

Mário Dias

Nota do editor: Achámos por bem reproduzir aqui, hoje, esta sua descrição do Natal de Bissau de 1952. É reveladora da sua grande sensibilidade socioantropológica.  Com votos de bom ano de 2019 e um alfabravo fraterno ao Mário, que é dos um membros da nossa Tabanca Grande, da primeira hora. Muitos dos mais recentes grã-tabanqueiros nunca tiveram oportunidade de ler os seus notáveis textos (como por exemplo as crónicas da Op Tridente, 1964 ou as "memórias do antigamente" de Bissau ou "o segredo"..., o seu reencontro no mato com o amigo Domingos Ramos...)


2. Memória dos lugares > O Natal de Bissau nos tempos do "antigamente"

por Mário Dias

Tinha 15 anos no tempo já distante de 1952. Ia passar o meu primeiro Natal em Bissau (**) e nem calculava, nesses meus verdes anos, quão verdadeiro é o ditado popular: “cada terra com seu uso; cada roca com seu fuso”.

Em casa de meus pais, reunida a família para celebrar a consoada, comecei a escutar na rua sons e cantigas que me eram de todo estranhas, bem diferentes das que, em Portugal, celebravam o Natal. Curioso, vim à varanda e deparei com um cenário que me encantou de tal forma que ainda hoje dele me recordo com muita saudade.

Toda a rua onde morava (ia dar à avenida principal, perto do cinema da UDIB) era um mar de luzinhas e de sincopados sons. Não resisti e fui ver. Não queria perder o espectáculo para mim novo e bem longe do que poderia imaginar pudesse existir.

Grupos de 3 ou 4 crianças, transportavam pequenas casas feitas com armações de finas tiras de cana ou material semelhante revestidas com papel de seda de várias cores. Com um coto de vela aceso no seu interior, resplandeciam como se de vitrais se tratasse. E como havia algumas tão bem construídas e belas!... A catedral de Bissau, a casa do governador, o edifício da Administração Civil, ou simples casas saídas da fértil fantasia do seu construtor.

Também havia quem desse asas à criatividade e aparecesse com navios, aviões e de quanto a imaginação fosse capaz.

Iam parando em cada casa, ora à porta quando situada ao rés do passeio, ora penetrando nos pequenos jardins das mais recuadas, e um deles, portador de uma garrafa vazia e de um pequeno ponteiro de ferro batia o ritmo: tintim, tintim. tintim…

Então, ao compasso que o “tocador de garrafa” ordenava, todos rompiam nesta cantilena: (por sinal bem afinados)

S. José, sagrada nha Maria,
e quando foi, quando foi para Belém,
a resgatar o Menino de Jesus,
lá ao pé, lá ao pé da santa cruz.


(refrão)

Adoro mistério sobrinho da minha alma (1)
sobrinho da minha alma louva o Senhor.
Coração Santo todo ruminado
Todo vez em quando sempre a chorar
ai, ai, ai de vez em quando sempre a chorar,
ai, ai, ai de vez em quando sempre a chorar. (2)


O Angelino, Angelino já morreu,
e não queria confessar senão do Papa,
e nem do Papa nem do Bispo confessou
para nos dar boas-festas boa sorte. (3)

(repetiam o refrão)

Terminada a cantilena, dirigindo-se aos donos da casa, soltavam o inevitável “partim festa” (dê-nos as festas), querendo com isso pedir dinheiro ou algo que lhes fosse útil. Um deles estendia a mão para o donativo que sempre surgia e enquanto iam a caminho de outra casa algum perguntava:

- Kanto qui dá-bo? (quanto te deu)
- Dôs peso e meio.
- Esse i bom branco.

Desta maneira corriam todas as ruas de Bissau, visitando as casas ou abordando quem passava nas ruas:

- Partim festa.
- Kanto que dá-bo?
- Só cinco patacon (20 centavos)
- Bé… rijo mon (bolas…que avarento)


Intercalados, outros grupos diferentes surgiam. Eram os rapazes do “Kinkon”. Traziam também uma garrafa para marcar o ritmo, (tintim, tintim, tintim,) mas o “chamariz” apelativo ao “partim festa” era outro. Um boneco recortado em papelão, com braços e pernas articuladas por um engenhoso sistema de cordéis e montado numa vara, era transportado por um dos miúdos que o fazia movimentar ao ritmo da batida na garrafa “tintim, tintim, tintim”.

O portador do boneco atirava:

- Kinkon, kinkon.

Respondiam os outros em coro:

- Rabada di kon.

De novo o líder:

- Kinkon, Kinkon.

Resposta do coro:

- Nariz di Kon.

E sempre alternando, líder e coro iam acrescentando à cega-rega diversas partes do corpo:

Kinkon, kinkon,
Cabeça di Kon.
Kinkin, kinkon,
Orelha di Kon.


Por vezes, os mais ousados lançavam alusões a partes anatómicas menos próprias. Alguns dos companheiros riam-se, outros não gostavam e protestavam:

-Abó ka t’a burgonho (tu não tens vergonha).

Mantinham a cantilena o tempo necessário a que alguém viesse oferecer as desejadas “festas” e seguiam para outro lado.

Por ali me quedava embevecido, admirando estas encantadoras cenas tão inesperadas e atraentes.

E por ter ficado de tal forma apaixonado com tão extraordinária tradição, todos os anos, mal se aproximava o Natal, não continha em mim a ânsia da sua rápida chegada, para mais uma vez veras crianças de Bissau, vindas do Chão Papel, Alto do Crim, Cupilon, Gã Beafada, Santa Luzia e outros bairros, inundarem as ruas com as suas casinhas luminosas ou com os “kinkons” articulados e garrafas para marcar o ritmo: 

…tintim, tintim… São José, sagrada nha Maria…
…tintim, tintim… Kinkon, kinkon,… rabada di kon…


Certamente que muitos dos que passaram por Bissau assistiram a esta tradição e dela se devem recordar. Quanto a mim, já passaram mais de 50 anos e ela continua tão viva na minha memória que, quando chega o Natal, dou por mim a cantarolar aquela lenga-lenga e nos meus ouvidos ecoa o “tintim, tintim”. Involuntariamente sinto-me transportado ao passado e perante mim desfila, com toda nitidez e riqueza de pormenores, o encanto de cores e de sons que os rapazes de Bissau me proporcionavam.

Falando há tempos com um amigo que lá esteve recentemente, por ele fui informado que esse costume se perdeu e que as actuais gerações nem o conhecem. Se assim for, é pena. Nenhum povo deve esquecer e, menos ainda, menosprezar as sua tradições.

Caros amigos guineenses: Vamos restaurar esta tão bela tradição?

Torna-se talvez conveniente explicar o significado da cantiga que, como devem ter reparado, não é crioulo. É pretensamente cantada em português, com versos de cânticos religiosos que os rapazes, na sua ingenuidade deturparam.

Notas do autor:

(1) “Adoro o mistério sobrinho da minha alma…” corresponde a: “Adoro o mistério sublime da minha alma…”

(2) “Coração santo todo ruminado, todo vez em quando, sempre a chorar” é do cântico “coração santo, tu reinarás, o nosso encanto, sempre serás”.

(3) Quanto a esta alusão ao tal Angelino, nunca consegui saber do que se trataria.
___________

Notas do editor:

quarta-feira, 29 de junho de 2016

Guime 63/74 - P16246: (De)Caras (43): Domingos Ramos, o "incendiário do leste": (i) João Cá, de seu nome de guerra; (ii) antigo 1º cabo miliciano das NT; (iii) amigo e camarada do Mário Dias (, do 1º CSM, Bissau, 1959): (iv) reconhecido em Bafatá, no bairro da Nema, por volta de maio de 1963, por Alcídio Marinho e Mamadu Baldé; (v) volta a encontrar o amigo e antigo camarada "tuga" nas matas do Corubal, em 1965: e (vi) "tem a felicidade de morrer em combate", em Madina do Boé, em 10/11/1966, ao lado do 'internacionalista' cubano Ulises Estrada...


Guiné > 1964 > PAIGC > Cassacá > I Congresso.do PAIGC, Quinta, 13 de fevereiro de 1964 - Segunda, 17 de fevereiro de 1964, Da esquerda para a direita,  Abdulai Barry, Arafam Mané, Amílcar Cabral, Domingos Ramos e Lai Sek durante o I Congresso.do PAIGC, em Cassacá",

Fonte: Portal Casa Comum / Fundação Mário Soares, Consult em 28 de junho de 2016. Disponível em http://www.casacomum.org/cc/visualizador?pasta=05224.000.056  (Reprodução parcial, com a devdia vénia)


1. Dois comentários ao poste P16226 (*): 




(i) Alcídio [José Gonçalves] Marinho [, foto à esquerda, da sua página no Facebook, ex-fur mil inf, CCAÇ 412 (Bafatá, 1963/65); vive no Porto; é membro da nossa Tabanaca Gradne desde 23/9/2011]


Conheci de relance o Domingos Ramos (**) em Bafatá. Assim, a CCaç 412 chegou a Bafatá a 9 de abril de 1963.. Já havia passado cerca de três semanas e um fim de tarde resolvi ir conhecer o bairro da Nema, que ficava a Leste da cidade,pois os outros bairros já os conhecia bem (Rocha e Ponte Nova).

Estava destacado na Companhia um cabo Mamadu Baldé (fula-forro) e pedi-lhe para me acompanhar, tendo ele correspondido ao meu pedido. Seguimos pela Rua, passamos a casa da D.Rosa [,. a libanesa,] , em frente das instalações  do Batalhão 238 e entramos na Nema.

Ao virarmos para uma rua transversal vimos um indivíduo alto,  que passou por nós, o cabo estremeceu e disse "Domingos Ramos!". Então fixei outra vez o individuo e vi distintamente que era exactamente igual à fotografia, existente na secretaria da Companhia.

Viramos para trás e corremos para apanhá-lo, mas ele já havia desaparecido.

Entretanto, já tinha tirado a pistola Walter que levava presa no cós traseiro das calças por baixo da camisa e esta fora das calças.

Depois viemos a correr à companhia, demos o alarme e foram deslocados diversos pelotões para cercar a Nema e outros para patrulhar a cidade.

Na altura foram capturados uns tipos suspeitos que acabaram por confirmar que o Domingos Ramos havia estado dois dias em Bafatá-Também se veio a saber que ele escapou,  atravessando o rio Colufe para oN regulado de Badora, em direcção ao sul.



(ii) Manuel Luís Lomba [ex-fur mil, CCAV 703 / BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66; autor do livro "Guerra da Guiné: a batalha de Cufar Nalu". Faria, Barcelos, Terras de Faria, Lda: 2012, 314 pp.]


Os militares adquirem uma especial sensibilidade face à injustiça. Tive essa experiência própria.

Invoco o então capitão Vasco Lourenço, de boa idade e recomenda-se, a quem as injustiças do general Bethencourt Rodrigues, então ministro do Exército, em 1969, referidas à sua mobilização para a Guiné, do general Spínola, no seu escrutínio da responsabilidade da morte do régulo de Cuntima, terão sido a causa remota da sua transformação no motor com turbo do MFA/25 de Abril/25 de Novembro.

O herói nacional bissau-guineense Domingos Ramos, o Kant de seu nome de guerra [, ou melhor, João Cá], foi aliciado por Amílcar Cabral para o PAIGC, através do seu irmão Luís [Cabral], de quem era colega quando era balconista da Casa Gouveia, tendo sido preterido como funcionário das Finanças, após estágio na respectiva Repartição, talvez por efeito da aludida "porrada" sofrida no CIM [de Bolama].

À data em que o Alcídio o viu junto ao quartel [, ou melhor, no bairro da Nema, em Bafatá], era o comandante da Frente Leste, que havia rendido o comandante Pascoal Costa  [ou melhor,  Vitorino Costa, 1937-1962] - despromovido, transferido por fracassar e que morrerá no contexto do cerco e assalto à tabanca de S. João (Fulacunda), executado pela CCaç 153  [em julho de 1962]-, sendo suposto a fazer o reconhecimento  [do quartel de Bafatá] para o atacar, como a cidade natal do Amílcar e a segunda cidade da Guiné´, objectivo que, a par de Bissau, será deferido no tempo.

Quanto aos seus rendimentos (*)- haverá no mundo algum militar profissional que não perceba ordenado ou soldo?  Pela regra do Exército Português, 80 contos corresponderia ao rendimento anual e, como se tratava de "progressistas", talvez incluísse os subsídios de férias e de Natal...


2. Domingos Ramos, o "incendiário do leste", que teve a "felicidade de morrer em combate", ou seja, como "herói":


Como aqui temos dito, Domingos Ramos é um dos nomes míticos da fase inicial da guerrilha do PAIGC que teve a "felicidade de morrer" como herói,  no campo de batalha, muito antes de chegar ao poder, portanto em "estado de graça". Sobre ele não pesam as suspeitas, as sombras e as acusações de traição, nepotismo e corrupção que mancham a memória de muitos outros "filhos" de Amílcal Cabral como Osvaldo Vieira ou 'Nino' Veira...O próprio Amílcar Cabnral, o "pai da Pátria", não chegou a conhecer a autora da liberdade... E a maior parte dos seus camaradas de luta já morreram. A última foi a Carmen Pereira, desaparecida aos 79 anos, em 4 do corrente.

Domingos Ramos era filho de um quadro local da administração colonial portuguesa, com o estatuto de assimilado, expressão "politicamemnte correta"  usada na época pelas autoridades portuguesas, para distinguir os guineenses "civilizados" e "não-civilizados".

Fez, juntamente com o nosso camarada Mário Dias, o 1º curso de sargentos milicianos (CSM), em 1959, em Bissau. Infelizmentye, este curso iria ser um autêntico viveiro de quadros político-militares para o o PAIGC. Não sabemos em que data precisa o Domingos Ramos aderiu a (ou foi aliciado para) a "causa nacionalista". Mas terá sido no ano de 1960...

Sabemos que a 8 de maio de 1959  inicia a recruta, juntamente com Mário Dias, no quartel da Bateria de Artilharia de Campanha em Bissau, Santa Luzia, defronte ao que viria a ser mais tarde o Quartel Genera (QG). O português e o guineense ficam paar sempre amigos, embora depois siagm caminhos diferentes: a guerra vai polos em campos opostos...

Em 10 de agosto foi o juramento de bandeira. Quatro dias depois, a 14, inicia-se o   1º Curso de Sargentos Milicianos (CSM) que houve na Guiné, e para a frequência do qual se exigia já, como escolaridade,  pelo menos o 2º ano do liceu, na época chamado 1º ciclo liceal.

Em 29 de novembro  de 1959 tanto o Domingos Ramos como  Mário Dias são promovidos a primeiros cabos milicianos.  Ao que sugere o Mário Dias, o Domingos Ramos ter-se-á alistado nas fileiras do PAIGC, um ano depois, em novembro de 1960, depois de ter sido vítima de uma grave injustiça (***) enquanto 1º cabo miliciano, no CIM de Bolama, por parte de um oficial português cuja identidade está por descobrir (*), 



Guiné > Bissau > 1959 > 1ºs cabos milicianos Mário Dias (à direita, na segunda fila, de pé), Domingos Ramos (à esquerda, na priemria fila) e outros...

"De cócoras, a partir da esquerda: Domingos Ramos; um outro cujo nome não me lembro mas que também foi para a guerrilha; e depois o Laurentino Pedro Gomes. De pé: não me recordo o nome mas também foi para a guerrilha; Garcia, filho do administrador Garcia, muito conhecido e estimado em Bissau; mais um de cujo nome não me recordo; eu [, Mário Dias]; e mais outro futuro guerrilheiro."

Foto (e legenda): © Mário Dias (2006). Todos os direitos reservados



Logo em janeiro de 1961, ele é enviado por Amílcar Cabral para a Academia Militar de Nanquim, na China,  frequentando o primeiro curso de comandantes do PAIGC, juntamente com João Bernardo Vieira [Nino], Francisco Mendes [ou Francisco Tê], Constantino Teixeira, Pedro Ramos ( irmão de Domingos), Manuel Saturnino,  Rui Djassi, Osvaldo Vieira, Vitorino Costa (, irmão mais velho de Manuel Saturnino) e Hilário Gomes,  (Manuel Saturnino Costa, nascido em 1942, é o único deste grupo que ainda está vivo).

Em 1962, Domingos Ramos organiza, na região de Xitole (que abarcava Bambadinca e Bafatá), as primeiras ações de sabotagem e aliciamento da população [, vd. documento abaixo, do Arquivo Amílcar Cabral]. 

Em 1964, participa no I Congresso do PAIGC, em Cassacá. na região de Quitafine.

O Domingos haveria de encontrar-se com o seu amigo e ex-camarada de armas, do 1º CSM, o furriel mil comando Mário Dias, pela última vez, em 1965... Em circunstâncias insólitas, em pleno mato,... É uma das histórias mais fantásticas que já lemos sobre a guerra e a grandeza humana que pode haver mesmo numa situação de guerra (****)....

Foi na região do Xitole, na zona entre Amedalai e os rápidos de Cussilinta, perto da estrada Xitole-Aldeia Formosa-Mampatá... Vale a pena reler o segredo que o Mário guardou durante toda uma vida e revelou, em primeira mão, em 2006,. aos seus amigos e camaradas da Tabanca c Gradne, Foi um dos momentos altos da história do nosso blogue. (*****).

Um ano depois, morreu prematuramente em combate, a 10 de novembro de 1966, em Madina do Boé, ao lado do "internacionalista" cubano Ulises Estrada, tendo-se tornado num dos heróis da luta de libertação nacional.

Os seus restos mortais  repousam agora no panteão nacional da Guiné-Bissau,m na antiga Fortaleza da Amura,
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Portal: Casa Comum
Instituição: Fundação Mário Soares
Pasta: 04609.056.033 [Clicar aqui para aceder ao original]
Título: Comunicado - Zona 7, 8 e 11

Assunto: Transcrição de um comunicado em código, assinada por João Cá (Domingos Ramos), sobre as operações de sabotagem nas áreas de Xitole / Bambadinca, bem como sobre a acção militar portuguesa na mesma zona. O comunicado solicita o envio de "camaradas" e de armamento e refere-se à situação das zonas 7, 8 e 11 como um inferno.

Data: s.d.
Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Correspondência 1962 (interna).
Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral
Tipo Documental: Documentos
Direitos:
A publicação, total ou parcial, deste documento exige prévia autorização da entidade detentora.

Citação:
(s.d.), "Comunicado - Zona 7, 8 e 11", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40543 (2016-6-28)







[ Este documento manuscrito deve ser de junho de 1962, uma vez que nele se faz referência a um dos nossos T-6 (T6-G #1677) que se despenhou, no rio Corubal, em 29 de maio de 1962,  na região de Mina / Fiofioli,  roubando a vida a dois camaradas nossos da FAP. o fur mil pil Manuel Soares de Matos, natural de Arrifana, Santa Maria da Feira,  e o ten pilav  José Cabaço Neves, Embora tenham sido comsideradas  mortes "em combate", o T 6 deve ter-se despenhado, não por ter sido atingido por fogo IN,  mas em resultado de uma manobra, aquando do reconhecimento de  uma piroga suspeita, no  rio, perto da tabanca de Mina, na maregm direita do rio Corubal. Na época poucos militantes do PAIGC teriam armas, a não ser gentílicas, e  quando muito pistolas para defesa pessoal. A pistola P38 aqui citada seria uma Walther, roubada ao exército português... Segundo o nosso especialista em, armamento, o Luís Dias, "a pistola usada pelas forças de guerrilha do PAIGC era, principalmente, a Tokarev TT-33"]




Domingos Ramos, "herói nacional": ilustração do Manual escolar, O Nosso Livro - 2ª Classe, editado em 1970 (Upsala, Suécia). Exemplar cedido pelo Paulo Santiago, Águeda (ex-Alf Mil, comandante do Pel Caç Nat 53, Saltinho, 1970/72). 

Lição nº 23: Um grande patriota... [Destaque para a frase: "Ele gostava muito dos seus soldados e não gostava de maltratar os prisioneiros".]




Portal: Casa Comum

Instituição:
Fundação Mário Soares

Pasta: 05360.000.084 [Clicar aqui para ampliar a imagem]

Título: Grupo de quadros do PAIGC recebidos por Mao Tse-Tung na República Popular da China

Assunto: Grupo de quadros do PAIGC recebidos por Mao Tse-Tung na República Popular da China, para iniciarem treino militar na Academia Militar de Nanquim: João Bernardo Vieira [Nino], Francisco Mendes, Constantino Teixeira, Pedro Ramos, Manuel Saturnino, Domingos Ramos, Rui Djassi, Osvaldo Vieira, Vitorino Costa e Hilário Gomes.

Data: 1961

Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral
Tipo Documental: Fotografias

Direitos: A publicação, total ou parcial, deste documento exige prévia autorização da entidade detentora.

Arquivo Amílcar Cabral > 11. Fotografias > 3.PAIGC > Exterior

Citação: (1961), "Grupo de quadros do PAIGC recebidos por Mao Tse-Tung na República Popular da China", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43247 (2016-6-27)

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Notas do editor:


Comentário de um leitor (guineense):

(...) Chamo me Adilson Adolfo Mendes Ramos... tanto pesquisei sobre histórias da minha família, e este blog é certamente o que mais me ajudou. Obrigado por o ter criado... Grande abraço

6 de agosto de 2013 às 15:40  (...) 

quarta-feira, 22 de junho de 2016

Guiné 63/74 - P16226: (De)caras (42): O cor inf ref José Severiano Teixeira nunca comandou o Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama, pelo que nunca poderia ter sido ele o oficial que puniu, em 1960, o 1º cabo mil Domingos Gomes Ramos, hoje herói nacional da Guiné-Bissau... E mais me disse que nessa época, em Bissau, constava que o Amílcar Cabral oferecia 80 contos (!), para se alistarem no PAIGC, a cada um dos militares guineenses do 1º Curso de Sargentos Milicianos (1959), a que pertenceu o nosso Mário Dias (Joaquim Sabido, advogado, Évora)

1. Comentário de 25 de maio último, do Joaquim Sabido, ao poste P16123 (*)

[foto à esquerda: Joaquim Sabido, ex-Alf Mil Art, 3.ª Cart/Bart 6520/73 e CCaç 4641/73, Jemberém, Mansoa e Bissau, 1974)]


[foto à direita: Joaquim Sabido, hoje, 
advogado, a viver em Évora,; 
é nosso grã-tabanqueiro 
desde 24/8/2010;
tem uma dezena de referências 
no nosso blogue]


Ora bem, Meu Caro Luís, Meus Camaradas de armas;

Aderindo à tua sugestão (vd. comentário a seguir, ponto 2] e para que não subsistisse qualquer dúvida (que eu não a tinha), conversei hoje pela manhã com o sr. coronel inf ref [José] Severiano Teixeira, que continua óptimo de saúde e de memória. 

Quando lhe falei na situação, confirmou que nunca comandou o CIM [Centro de Instrução Militar] em Bolama. Nessa comissão esteve sempre em Bissau. Não se recordou agora do nome do capitão que comandou o CIM em Bolama, mas sabe que era mais novo do que ele, logo, era de um outro curso posterior ao dele.

Assim sendo, como é, dúvidas não subsistem de que não foi o então Capitão Teixeira o oficial que condenou o então 1.º cabo miliciano Domingos Ramos em Bolama. E foi apenas esta constatação que eu fiz, em virtude de tal não se alcançar nem resultar - a meu ver - do relato do Mário Dias. 

Compreendo perfeitamente que o camarada Rosinha (*) se tenha confundido, pois os temas correm aqui e em toda a Net de tal forma vertiginosa, que eu, que ainda tenho que trabalhar e felizmente muito que fazer, não consigo acompanhar como gostaria este blogue.

O sr. coronel Severiano Teixeira (entre outros) é dos tais oficiais competentíssimos que não chegaram ao generalato, às estrelas, por motivos que se prenderam unicamente com o período e a agitação pós-revolução, que são diferentes dos que os da sua competência e capacidade enquanto militares e Homens. Igualmente aconteceu com os senhores coronéis Henrique Vaz e Vaz Antunes. É apenas a minha modesta opinião.

Bom, relativamente ao sr. coronel Severiano Teixeira, quando lhe falei no nome do nosso camarada Mário Dias, de pronto me informou que se lembra muito bem dele, assim como do Pai do Mário.

De forma clara e objectiva se referiu ao então instruendo Domingos Gomes, informando-me que, tal como a maior parte dos integrantes desse curso, ou quase todos, vieram a integrar-se nas fileiras do PAIGC. Tem e guarda lá para casa as fotografias do pessoal desse curso de Civilizados. Assim mesmo me disse, não falhou nada.

Mas o que me pareceu relevante desta conversa de hoje de manhã, foi o facto de o sr. coronel me ter dito que eles foram quase todos integrar e alistaram-se no PAIGC, porque: "o Amílcar Cabral oferecia 80 contos (Pte 80.000$00) a cada um e isso era muito dinheiro para a época". (sic) (***). Se receberam ou não, isso já não sabe. Foi o que constou na época.

Será que o Mário Dias teve algum conhecimento ou ouviu falar deste tema?

Entretanto o sr. coronel foi solicitado por outros circunstantes e eu não o quis incomodar mais. (****)

Um grande e fraterno Abraço para todos os Tabanqueiros e demais pessoal "da Guiné".

Joaquim Sabido
Évora


Amílcar Cabral e Domingos Ramos, em Cassacá (1964).
Foto do Arquiivo Amílcar Cabral. (Detalhe)
Cortesia do porta Casa Comum
2. Comentário da Tabanca Grande (editor), de 24 de maio último, ao poste P16123 (*)

Obrigado, Joaquim Sabido, pela partilha de informação sobre o ex-capitão José Severiano Teixeira, hoje coronel reformado, e felizmente vivo, e a residir em Évora, e para mais teu conhecido e amigo, pai do meu colega da Universidade NOVA de Lisboa, prof Nuno Severiano Teixeira, conhecido historiador militar, nascido em Bissau, em 1957.

Que fique claro: o Centro de Instrução de Civilizados (CIC), em Bissau, Santa Luzia, era comandado pelo capitão Teixeira, pai do professor Nuno Severiano Teixeira. Mais tarde passou designar-se Centro de Instrução Militar (CIM) e foi transferido para Bolama. Não sabemos se o capitão Teixeira também seguiu para Bolama, como comandante do CIM, ou se entretanto terminou a sua comissão e regressou à metrópole.

A história da punição (, traduzida em vários dias de prisão,) do Domingos Ramos, 1.º cabo miliciano, passa-se em Bolama, já no CIM, no terceiro ou último trimestre de 1960, quando estava a acabar o serviço militar obrigatório.

Nada no texto do Mário Dias sugere que o oficial em causa fosse o cap Teixeira. Nem isso é relevante, agora. Há um superior hierárquico do 1.º cabo mil Domingos Gomes Ramos que o pune com prisão. Não sabemos o teor da punição nem podemos avaliá-la.

Nessa época não deveria haver muitos oficiais metropolitanos na Guiné... Mas a verdade é que, segundo o testemunho de um camarada nosso, que está acima de toda a suspeita, o Mário Dias, autor do texto, um dos nossos oficiais terá cometido uma grave injustiça. Ou, melhor essa punição foi sentida como uma grave injustiça pelo Domingos Ramos, filho da Guiné...

Não sei quem teve razão, mas costuma-se dar o benefício da dúvida ao elo mais fraco da cadeia...

Talvez o Joaquim Sabido possa esclarecer essa história com o seu amigo coronel Teixeira. Sendo ele jurista e nosso camarada, e nosso grã-tabanqueiro, sabe as regras da Tabanca Grande: não somos juízes de ninguém... Contamos simplesmente histórias. Cada um faz depois as suas "leituras"... e tira as suas conclusões.

Um abraço, Joaquim Sabido, e manda também um alfabravo ao coronel Severiano Teixeira, com votos  de muita saúde e longa vida para ele, quando o encontrares. Diz-lhe que o blogue da Tabanca Grande está aberto para ele, para as suas memórias escritas e fotos de Bissau dessa época.

Luís Graça, editor
__________________

(***) Em, escudos, para a época (1960), 80 contos era muita massa... Utilizando o conversor da Pordata, seria o equivalente hoje a 34.417, 66 €... Nunca ouvimos essa história, podia ser um simples ato de contra-propaganda das autoridades portuguesas da época... Mas registamos o que nos foi trabsmitido por um canmarada nosso, que vivia em Bissau na epoca e que era ofical português do QP, o hoje cor inf ref José Severiano Teixeira em conversa com o nosso grã-tabanquieiro Joaquim Sabido.

segunda-feira, 23 de maio de 2016

Guiné 63/74 - P16123: O segredo de... (28): Domingos Ramos e Mário Dias, dois camaradas e amigos da recruta e do 1º CSM (Bissau, 1959), que irão combater em lados opostos... No último trimestre de 1960, Domingos Ramos terá sido vítima do militarismo e racismo de um oficial português quando foi colocado no CIM de Bolama, como 1º cabo miliciano

1. Já aqui publicámos um dos textos mais notáveis do blogue, daqueles que terão, obrigatoriamente, de figurar na antologia dos 100 melhores postes da Tabanca Grande  que um dia, se houver tempo, pachorra e saúde,  ainda haveremos de organizar... Referimo-nos ao poste P3543, de 30/11/2008, do nosso camarada e grã-tabanqueiro da primeira hora  Mário Dias (1).

Mário [Roseira] Dias  [, foto de 2005, à direita, ] foi para a Guiné no início dos anos 50, ainda adolescente, tendo assistido à modernização e crescimento de Bissau, capital da Província desde 1943... Conheceu Domingos Ramos, de que se vai tornar amigo, na recruta e depois no 1º Curso de Sargentos Milicianos [CSM], que se realizou na Guiné, em 1959,


[foto à esquerda, efígie de Domingos Ramos em nota de 100 pesos, emetida em 1990, pelo Banco Centreal da Guiné-Bissau]



Como é sabido, o Domingos [Gomes Ramos tornar-se-ia um dos nomes míticos da fase inicial da guerrilha do PAIGC, sendo comnhecido pelo seu nome de guerra, "João Cá".  Este CSM  acabaria, de resto, por ser um alfobre de quadros... para o PAIGC.

Segundo o próprio Mário Dias nos conta (2), o Domingos Ramos era filho de um quadro local da administração colonial portuguesa, com o estatuto de assimilado,  ou seja, já não era um indígena.

Mário Dias sugere que ele ter-se-á alistado nas fileiras do PAIGC, em novembro de 1960, depois de ter sido vítima de uma grave injustiça enquanto 1º cabo miliciano, colocado no Centro de Instrução Militar (entretanto transferido de Bissau para Bolama).

Os dois amigos seguirão  caminhos diferentes: Mário Dias será um dos fundadores da CCmds da Guiné e é combatente no CTIG (até 1966),  seguindo depois para Angola, como sargento do quadro permanente,  não sem antes ter estado frente a frente com o seu antigo camarada e amigo, em meados de 1965, nas matas do Xitole, na zona entre Amedalai e os rápidos de Cussilinta, perto da estrada Xitole-Aldeia Formosa-Mampatá...

Vale a pena reler o segredo que o Mário guardou durante anos e revelou, em primeira mão, aqui no nosso blogue, aos seus amigos e camaradas da  Guiné (1). Um ano e poico depois o Domingos Ramos morreria, em combate, em Madina do Boé, em 10 de novembro de 1966 (3). A sua perda foi particularmente por Amílcar Cabral.

O Mário, grande português e um homem de invulgar nobreza,  tem palavras de grande apreço e admiração pelo Domingos Ramos. Diz ele:

"Se um dia tiver a oportunidade de regressar à Guiné, é meu firme propósito ir visitar a sua campa e prestar-lhe merecida homenagem. Não é pelo facto de termos combatido em campos opostos que deixei de ser seu amigo e de o admirar".

Por tudo isto, estes dois homens merecem ser aqui lembrados: um já morreu sem ter podido partilhar  o seu segredo com o seu antigo camarada e amigo (e sobretudo confirmar a sua versão dos factos, passados em Bolama).

O que se passou, realmente, em Bolama, por volta de outubro de 1960 ? Domingos Ramos, segundo se depreende do testemunho (insuspeito) de Mário Dias,  terá sido  vítima do militarismo e do racismo de um oficial português, ao punir o 1º cabo miliciano Ramos com vários dias de prisão.


2. O segredo de... Domingos Ramos

por Mário Dias


Foto nº 1 > Guiné > Bissau > Centro de Instrução Civilizados (CIC) > Maio de 1959 > Recruta >  "Eu, Domingos Ramos e outros"...

 Texto e fotos: © Mário Dias (2006). Todos os direitos reservados


Manhã de 8 de Maio de 1959. Na parada do quartel da Bateria de Artilharia de Campanha [BAC] em Bissau, Santa Luzia, defronte ao que viria a ser o QG [Quartel General], mancebos agrupavam-se segundo indicações de alguns oficiais e sargentos e preparavam-se para iniciar a sua vida militar. Eu era um deles. Com receio, mas também com alguma expectativa pelo que iria acontecer.

Foi nas instalações desse quartel que funcionou pela primeira vez uma escola de recrutas seguida de um CSM [ Curso de Sargentos Milicianos ] para europeus e guineenses considerados civilizados ou assimilados, já com formação escolar de, pelo menos, o 2º ano do liceu, na época chamado 1º ciclo liceal.

Até essa data, a recruta era separada e, sendo os europeus um pequeno número que não justificava uma incorporação anual, iam ficando esperados alguns anos e, quando havia suficientes mancebos para formar um ou mais pelotões, realizava-se a recruta que tinha lugar em Bolama. Portanto, esta incorporação de 1959, foi a primeira na Guiné que juntou europeus e africanos.

Curiosamente, a unidade chamava-se Centro de Instrução de Civilizados (CIC) por se destinar a africanos considerados civilizados [ou assimilados]. O comandante era o capitão Teixeira, pai do conhecido historiador Nuno  Severiano Teixeira (4). Nos anos seguintes, talvez devido ao caricato da designação, passou a chamar-se Centro de Instrução Militar (CIM) e foi transferido para Bolama.


Foto nº 1 A

Foto nº 1 B
Aqui está o 1º pelotão do CIC da incorporação de 1959 em Bissau [Foto nº1]. Eu estou à esquerda, na 3ª fila (de óculos) [Foto nº 1 A]. Uma pequena chamada de atenção para o facto de os homens situados à esquerda do pelotão serem europeus. Tal não se deve a qualquer espécie de discriminação ou elitismo. Aconteceu que, formando-se, como sabem, por alturas, nós, os tugas, éramos os mais pequenos. Dos elementos africanos, alguns foram para o PAIGC após a passagem à disponibilidade. De entre eles, quero aqui destacar o Domingos Ramos (segundo à direita na fila de pé) [Foto nº 1 B].

O Domingos Ramos era um indivíduo bem constituído fisicamente e, sobretudo, moralmente. Aquilo que se pode chamar, um bom gigante. Desde o início da nossa vivência comum que por ele tive uma especial estima. Tornámo-nos bons amigos em todas as situações e na caserna, nas horas de descanso, trocávamos opiniões sobre os mais variados assuntos, com especial interesse da minha parte por tudo relacionado com os usos e costumes dos guineenses. Muito aprendi com ele. Recordo ainda com saudade e emoção as paródias, próprias da irreverência da nossa juventude. E da célebre água pú que ele me ensinou e a que aderi com entusiasmo.

Eu explico: Água pú era uma bebida/comida energética, fácil de fazer, fruto do desenrascanço e instinto de sobrevivência dos africanos e que eu desconhecia. Trata-se de um tigela ou caneca com água onde se dissolve açúcar, quanto mais melhor, e nessa calda se vão molhando pedaços de pão quase como se de açorda se tratasse.

Que bem que sabia! Fiquei cliente viciado desde a primeira vez que, pela mão do Domingos Ramos provei. No final da 3ª refeição, metíamos no bolso (à socapa) o casqueiro sobrante que guardávamos no armário da caserna onde, para o efeito, não faltava o respectivo açúcar. Saída para Bissau - as garotas ou bajudas estavam à espera - e, após o recolher, lá íamos repor energias com a água pú. Mal o sargento de dia dava a ordem de destroçar, era uma correria, direitos aos armários gritando com todo o entusiasmo: Água púuuuu…

Nesse ambiente de sã camaradagem se passou o tempo até ao juramento de bandeira que teve lugar em 10 de agosto de 1959, alguns dias após os célebres acontecimentos do Pidjiguiti (5). Terminada a recruta, teve início a 14 de agosto de 1959 o 1º Curso de Sargentos Milicianos (CSM) que houve na Guiné. Nesta fase, já que os instruendos do CSM eram menos que durante a recruta (alguns foram para a Escola de Cabos e outros ficaram como soldados),  os nossos laços de amizade estreitaram-se ainda mais.


Foto nº 2

Guiné > Bissau > 1959 > 1º Curso de Sargentos Milicianos (CSM) > Instruendos do  CSM / 59  . Em baixo, a partir da esquerda, : eu [, Mário Dias, de óculos]; Domingos Ramos apontando a velha Mauser; Pinhel; Orlando; e Laurentino Pedro Gomes [que, tal como eu, após passagem à disponibilidade, regressou ao serviço como furriel do quadro, seguindo a carreira milita; segundo me disseram, faleceu num acidente de viação nas proximidades de Cacheu já depois da independência].

De pé, também a partir da esquerda, está um (não me lembro o nome) que veio a ser professor de trabalhos manuais no liceu de Bissau; a seguir o Telmo que acabou por se formar em economia e já faleceu; o Armindo Birges; depois é o alferes Vigário, um dos nossos instrutores que viria a falecer em combate em Angola; segue-se o Coelho, exímio acordeonista, sobrinho de um conhecido comerciante de Cacine e que acabou emigrando para o Brasil; finalmente o 1º cabo Cerqueira, que já pertencia ao Quadro Permanente [QP] e que fez o CSM para obter condições de promoção a furriel.


Foto nº 3

Guiné > Bissau > 1959 > 1º Curso de Sargentos Milicianos (CSM)> O Domingos Ramos montando a tenda... Aqui está o Domingos Ramos nos exercícios finais do CSM (semana de campo), atarefado na montagem da barraca que era feita com 3 panos de tenda ligados entre si por botões metálicos.n Certamente que alguns tertulianos se recordam deste primitivo sistema. A fotografia não tem grande qualidade mas não deixo de mostrá-la, por se tratar de uma pessoa que muito estimei.


Foto nº 4

Guiné > Bissau > 1959 > 1º Curso de Sargentos Milicianos (CSM)> O Domingos Ramos na Semana de Campo... Aqui, como se pode ver pelos apetrechos que levam nas mãos (cantil e marmita) iam a caminho do carro que nos trazia o almoço durante a semana de campo. O Domingos Ramos é o segundo da direita.

O CSM terminou 28 de novembro [de 1959] e a 29 fomos promovidos a 1ºs cabos milicianos que era uma forma de o regime de então poupar umas massas. Fazíamos sargentos de dia, frequentávamos a messe e tínhamos as responsabilidades inerentes mas… ganhavamos como cabos.

A seguir ao CSM, tivemos que dar uma recruta como monitores. Alguns, entre os quais o Domingos Ramos, foram colocados para o efeito em Bolama, ficando outros, como eu, em Bissau. Creio que algo se passou em Bolama que o tornou permeável aos apelos do PAIGC e o levou a aderir à luta. Na verdade, enquanto com ele convivi em Bissau, nem o mais leve indício de descontentamento, nem o mais pequeno sinal de revolta ou discordância com o status quo existente demonstrou. Se algo havia na sua mente, disfarçava muito bem, o que não creio, dada a sua rectidão de carácter.

O mesmo já não se passava com outros como, por exemplo, o Rui Demba Jassi, que tinha atitudes incorrectas para com os europeus sem que houvesse razões para tal e não conseguia disfarçar animosidade contra nós. Este Rui Jassi era filho do capitão de 2ª linha Jassi que morava no lado direito da estrada de Santa Luzia, perto da capela aí existente. Era uma figura incontornável nas cerimónias e festividades às quais comparecia orgulhosamente com a sua farda branca. Quando soube que o filho tinha passado para o PAIGC, segundo constava, dizia que oferecia tudo quanto tinha a quem lhe trouxesse o seu cadáver. Talvez isto não passe de mais uma das muitas lendas que se foram gerando.

Mas, regressando ao Domingos Ramos, tema principal desta minha intervenção, creio que foi um acontecimento em Bolama que o fez mudar de ideias. Um dia, já próximo da nossa passagem à situação de licença registada, que ocorreu em outubro de 1960, seguindo-se a disponibilidade em fevereiro de 1961, o Laurentino [Pedro Gomes] mostrou-me uma espécie de memorando que o Domingos Ramos havia escrito em Bolama,  respeitante a uma tremenda injustiça por parte de um superior hierárquico que o levou à prisão durante uns dias.

Foi uma daquelas situações tão frequentes, infelizmente, na vida militar que levam a que muitos inocentes sejam punidos apenas porque a corda parte sempre pelo lado mais fraco e a máxima de que "palavra de oficial faz fé" é uma realidade. Nesse memorando, era bem patente o desgosto que ele sentia por ter sido vítima de tal injustiça e, mais do que um desgosto, notava-se o destruir das convicções que até ali o tinham norteado.

E foi isso, creio, que o levou a juntar-se ao PAIGC. Nos primeiros dias de novembro [de 1960], juntamente com o Rui Jassi, Constantino Teixeira e outros cujos nomes já não me ocorrem, partiu para Pequim, Praga, Moscovo e demais escolas de guerrilha tornando-se um dos primeiros e mais importantes chefes de guerrilha daquele movimento.

Morreu em combate num dos ataques ao quartel de Madina do Boé onde está sepultado. Se um dia tiver a oportunidade de regressar à Guiné, é meu firme propósito ir visitar a sua campa e prestar-lhe merecida homenagem. Não é pelo facto de termos combatido em campos opostos que deixei de ser seu amigo e de o admirar.



Foto nº 5

Guiné > Bissau > 1959 > 1ºs Cabos Milicianos Mário Dias, Domingos Ramos e outros...
 De cócoras, a partir da esquerda: Domingos Ramos; um outro cujo nome não me lembro mas que também foi para a guerrilha; e depois o Laurentino Pedro Gomes. De pé: não me recordo o nome mas também foi para a guerrilha; Garcia, filho do administrador Garcia, muito conhecido e estimado em Bissau; mais um de cujo nome não me recordo; eu [, Mário Dias]; e mais outro futuro guerrilheiro.

Foto nº 6

Guiné > Bissau > 1959 > O 1º Curso de Sargentos Milicianos foi uma alfobre de quadros para o PAIGC... Alguns dos outros que foram meus camaradas na recruta. De poucos nomes me recordo mas muitos também foram guerrilheiros. Dos dois que estão mais altos, o da direita é o Constantino Teixeira, mais conhecido por Chucho ou Axon, que foi igualmente figura importante do PAIGC. Chegou a ser ministro da segurança interna, salvo erro, no tempo imediatamente a seguir à independência. Apareceu, algum tempo depois, morto dentro do carro numa rua de Bissau. Daquele gordinho de óculos escuros que está com a mão no bolso da camisa, só me recordo da sua alcunha que era Diblondi. O porquê de tal alcunha, não sei. Peço desculpa por omitir tantos nomes, embora me lembre das pessoas. Nunca tive o cuidado de ir anotando os acontecimentos nem de escrever no verso das fotos os nomes das pessoas. Péssimo hábito de que agora me arrependo.

Foto nº 7

Guiné > Bissau > 1959  > O meu pelotão de recrutas africanos, de pé descalço...

Termino com esta foto [nº 7] dos meus primeiros recrutas porque ela constitui o testemunho de um facto que, possivelmente, muitos desconhecem e outros certamente acham impossível se apenas contado. Reparem bem nestes soldados indígenas na Guiné em 1959. É isso mesmo que estão a ver: descalços.

Era assim que faziam toda a recruta e só depois de prontos lhes eram distribuídas as botas. Dizia-se que eles preferiam andar descalços. Mesmo sendo verdade, e muitos de nós se devem lembrar que, de facto, o andar descalço era um hábito muito arreigado, não se justifica e é humilhante que soldados assim andassem. (6)

Mário Dias
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Notas do editor:

(1) vd. poste de 30 de novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3543: O segredo de ... (1): Mário Dias: Xitole, 1965, o encontro de dois amigos inimigos que não constou do relatório de operações

(...) De repente, ouvimos pessoas a conversar e o ruído característico de movimentação. Querendo observar melhor o que se estava a passar, ergui-me acima do arbusto que me ocultava. Foi então que aconteceu. Do outro lado, a cerca de vinte ou trinta metros, um vulto se ergueu também e olhou na minha direcção. Espanto dele! Espanto meu! Era o Domingos Ramos.

Ficámos ambos como petrificados. Não falámos, apenas nos limitámos a sorrir e houve como que uma espécie de telepatia. Mas, mesmo sem falar, as expressões de contentamento de ambos (espero que ele tivesse entendido que também eu estava contente com o inesperado mas feliz encontro) tornaram mágicos aqueles breves momentos que jamais esquecerei.

Mas era preciso regressar à terra. De imediato ouvi as suas ordens:
- Nó bai, nó bai -. E internou-se ainda mais, desaparecendo na densa mata. Voltei para trás, para junto do resto do grupo:
- Não há problema. Era um pequeno grupo mas já fugiram.

E continuámos a patrulha sem mais percalços. Claro que este episódio não constou do relatório. (...)


(2) Vd. 1 de fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - P474: Domingos Ramos, meu camarada e amigo (Mário Dias)

(3) Domingos Ramos,  morto em Madina do Boé em 10 de novembro de 1966, é um herói nacional da Guiné-Bissau, figurando em notas de banco (por exemplo, de 100 pesos, emissões de 1975 e 1990), nomes de ruas e instituições de ensino... Foi um dos pioneiros da luta de libertação, sob a liderança de Amílcar Cabral. Tinha também um irmão na guerrilha, Paulo Ramos.

Vd. referênciaa ao Domingos Ramos no postes:

22 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - P119: Antologia (10): Dossiê Guiné (Vida Mundial, 1971) (conclusão) (A. Marques Lopes)

12 de dezembro de 2007 >  Guiné 63/74 - P2343: PAIGC - Quem foi quem (5): Domingos Ramos (Mário Dias / Luís Graça)

(4) Henrique Nuno Pires Severiano Teixeira: é um académico e político português. Professor catedrático (Departamento de Estudos Políticos da Faculdade de Ciências Sociais da Universdiade NOVA de Lisboa) , é também vice-reitor da mesma instituição. Dirige o Instituto Português de Relações Internacionais. Nasceu em Bissau em 5 de novembro de 1957. Ministro da Administração Interna no XIV Governo Constitucional, dirigido por António Guterres, de 14 de setembro de 2000 a 8 de abril de 2002; e ministro da Defesa Nacional no XVII Governo Constitucional, com José Sócrates como primeiro ministro (de 12 de março de 2005 a 26 de outubro de 2009).  É autor, entre diversas obras, da Nova História Militar de Portugal, 5 Volumes (Lisboa: Círculo de Leitores, 2003-2004).

(5) Local do porto de Bissau onde, a 3 de Agosto de 1959, na sequência da repressão de um conflito laboral (uma greve de marinheiros, estivadores e outros trabalhadores portuários, reivindicando aumentos salariais e melhores condiçõs de trabalho), terá morrido um número nunca rigorosamente determinado de mortos e feridos. Estes acontecimentos foram habilmente explorados por Amílcar Cabral, passando a efeméride a ser considerada pelo PAIGC como o início (oficial ou oficioso) da luta de libertação da Guiné.

Vd. poste de 2 de junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4452: Controvérsias (19): O 'massacre do Pidjiguiti', em 3 de Agosto de 1959: o testemunho de Mário Dias

(6) Último poste da série > 3 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15192: O segredo de ... (27): A minha prenda de Natal de 1963: a destruição de Sinchã Jobel, com o meu engenhoso fornilho montado numa mala de cartão... (Alcídio Marinho, ex-fur mil at inf MA, CCAÇ 412, Bafatá, 1963/65)