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segunda-feira, 5 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18381: Notas de leitura (1046): “A History of Postcolonial Lusophone Africa”, autor principal Patrick Chabal, com participações de David Birmingham, Joshua Forrest, Malyn Newitt, Gerhard Seibert e Elisa Silva Andrade, Hurst & Company; Londres, 2002 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Maio de 2016:

Queridos amigos,
Continuo sem compreender como é que este livro não teve editor em Portugal ou Brasil em 2002, atendendo à investigação original e ao ineditismo do seu esquema básico: uma abordagem abrangente das cinco antigas colónias portuguesas em África.
Acresce que se juntou um naipe de oiro de grandes investigadores: Patrick Chabal, ao tempo professor do King's College em Londres, deve-se-lhe àquela que porventura é a melhor biografia internacional de Amílcar Cabral; David Birmingham, da Universidade de Kent; Joshua Forrest, professor da Universidade de Vermont e que deixa aqui um ensaio notável sobre a Guiné-Bissau; e também Malyn Newitt da Universidade de Londres e Gerard Seibert e Elisa Silva Andrade, investigadores com créditos firmados.
Sem hesitação, leitura recomendada para conhecer no grande ecrã 30 aos de história pós-colonial das cinco colónias portuguesas em África.

Um abraço do
Mário


A História da África Lusófona Pós-colonial: 
Uma investigação de leitura obrigatória (1)

Beja Santos

O livro intitula-se “A History of Postcolonial Lusophone Africa”, o autor principal é Patrick Chabal, nome cimeiro da investigação dos movimentos revolucionários e das repúblicas africanas lusófonas, aparece neste livro com participações de David Birmingham, Joshua Forrest, Malyn Newitt, Gerhard Seibert e Elisa Silva Andrade, Hurst & Company, Londres, 2002.

Logo nos agradecimentos, Chabal recorda a evolução positiva da historiografia sobre os países africanos lusófonos e apresenta este volume que coordena como uma tentativa de fornecer uma visão abrangente das cinco antigas colónias portuguesas em África, e confessa que se utilizou uma abordagem iconoclástica: apresentação da história dos cinco países a partir de dois anos complementares, o que têm de comum e de divergente da restante África, seguindo-se uma enunciação sistemática dos eventos que ocorreram depois da independência com a utilização de fontes de investigadores, oficiais, semioficiais e até jornalísticas; a procura de um contexto histórico rigoroso articulando o período pré-colonial com o pós-colonial; numa tentativa de ultrapassagem de uma visão estreita do foco lusófono, apresenta-se a evolução comparada e igualmente contrastada dos cinco países. O âmbito do estudo centra-se no período entre 1975 e 2000.

Temos em primeiro lugar o fim do Império e chama-se a atenção para uma declaração do MFA feita em 5 de Maio de 1974 em que é proposta uma nova e fraternal cooperação entre Portugal e Guiné, o que parece ilustrar a contradição entre um regime que existia numa solução militar e um estado de espírito dos sublevados que ofereciam uma colaboração desinteressada como forma de reparar os crimes do fascismo e do colonialismo. Recorda-se que o regime de Salazar e de Caetano recusou sempre negociações com os movimentos independentistas, estas só apareceram de forma muito dissimulada no estertor do regime. Estes movimentos anticolonialistas são encarados em três categorias: os vanguardistas, os tradicionalistas e os etno-nacionalistas. Como vanguardistas são invocados o MPLA, o PAIGC e a FRELIMO, não terá sido por acaso que eram todos provenientes de uma geração jovem, de um modo geral com formação universitária ou bases culturais e com uma preparação ideológica da Esquerda do seu tempo. Entre os movimentos tradicionalistas aparecem agrupamentos com brancos, pretos mestiços e indianos e o exemplo escolhido para movimentos etno-nacionalistas são apresentados a FNLA e a UNITA. Estas guerras foram sempre conflitos políticos, resultantes de uma total incapacidade de o regime de Salazar e Caetano se aperceber da insustentabilidade para as razões da potência colonial teimar em ficar em África. O PAIGC aparece como um movimento mais bem-sucedido quanto aos critérios da eficácia da luta anticolonial: preservação da unidade nacional, a despeito do mosaico étnico; enorme capacidade para a mobilização política das populações rurais; submissão da luta armada a objetivos políticos; eficácia para apresentar na cena internacional as chamadas áreas libertadas graças a um bom uso diplomático. É também observado que o espírito de a missão colonial se foi desgastando ao longo dos anos e no fim da guerra o moral das tropas dava sinais de ser crítico.

O estudo prossegue com uma perspetiva histórica da descolonização a partir do momento em que os movimentos de libertação conseguiram uma plataforma de entendimento, a CONCP – Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas que gerou um elevado espírito de solidariedade e que permitiu a Amílcar Cabral encontrar formas de comunicação verdadeiramente criativas para sensibilizar a opinião pública em muitos países onde dava entrevistas, fazia conferências, distribuía documentos, conversava e justificava a guerrilha dada a inflexibilidade do regime de Salazar e Caetano. Na hora da descolonização, os políticos portugueses foram confrontados com movimentos nacionalistas influenciados pelo marxismo. Todos eles enveredaram, na fase de arranque da vida independente, por nacionalizações, estatização económica, monopólio de comércio externo, contando com a ajuda dos países da Europa Oriental, Cuba, URSS e China.

Pôs-se, obviamente, o problema da unidade nacional e do Estado-Nação, com disparidade de respostas. No que toca à Guiné-Bissau, a unidade Guiné-Cabo Verde resistiu até 1980, Cabo Verde enveredou pela sua via específica de identidade nacional, no caso vertente da Guiné-Bissau nem o tremendo conflito político-militar de 1998-1999 fez minimamente questionar a afloração de conflitos étnicos, nunca se questionou em propriedade nacional mas também nunca se iludiu a fragilidade do Estado, logo patente nos primeiros anos da era de Luís Cabral em que o PAIGC se desentendeu com a questão rural e as expetativas dos agricultores que recusaram sistematicamente vender ao Estado as suas produções, transferindo-as em muitos casos para os países limítrofes. O livro estuda os efeitos da guerra, as especificidades do nacionalismo revolucionário e dedica um importante estudo à construção do Estado-Nação. Nesta aceção, é sequenciada a história da África portuguesa e as sequelas que deixou nos Estados pós-coloniais, comparando-os com os países vizinhos. A construção do socialismo é igualmente analisada com a deteção dos pontos frágeis e dos obstáculos para os quais os partidos vitoriosos se revelaram incapazes de ultrapassar. Esta construção do socialismo tem uma importante análise do contexto histórico nos cinco países. Chama-se à atenção para a inviabilidade de seguir políticas similares em Cabo Verde e na Guiné: Cabo Verde não podia hostilizar as comunidades sediadas nos Estados Unidos e na Europa Ocidental, para já não esquecer a comunidade cabo-verdiana residente no Senegal; na Guiné-Bissau ensaiou-se um apelo à ajuda internacional dos países socialistas e acenou-se a uma ajuda dos países ocidentais, com os escandinavos e os Países Baixos à frente. Mas é uma leitura estimulante ler toda esta construção da Nação-Estado no xadrez africano, no permanente relacionamento entre os fatores internacionais e as políticas domésticas. Até porque os limites destes nacionalismos surgiram muito cedo quando se verificou que os partidos únicos se revelavam incapazes de conciliar o todo nacional.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de março de 2018 > Guiné 61/74 - P18373: Notas de leitura (1045): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (24) (Mário Beja Santos)

sábado, 9 de dezembro de 2017

Guiné 61/74 - P18065: Bibliografia (43): “Mário Pinto de Andrade, Uma entrevista dada a Michel Laban”, Edições João Sá da Costa, 1997 (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Novembro de 2017:

Queridos amigos,
Aqui se põe termo às dez entrevistas que Mário Pinto de Andrade concedeu a Michel Laban, um especialista em literatura africana de língua portuguesa.
Documento importantíssimo não só para a génese do MPLA como para a compreensão do trabalho conjunto desenvolvido, de forma embrionária, pelos líderes nacionalistas no exílio, no Norte de África, em conferências em Londres, na obtenção de apoios financeiros e de formação militar, em que os chineses tiveram um papel primordial.
Pinto de Andrade relata as tensões no interior do MPLA que levaram à sua rutura bem como a de Viriato da Cruz. Pena é que o seu testemunho pare em 1971, por razões de saúde de Pinto de Andrade não houve mais entrevistas, o primeiro presidente do MPLA morreu pouco depois, em Londres.

Um abraço do
Mário


Uma importante entrevista de Mário Pinto de Andrade (3)

Beja Santos

Não se pode estudar em toda a sua amplitude o movimento anticolonial em Portugal sem conhecer o pensamento e ação de Mário Pinto de Andrade, um angolano que veio estudar Filologia Clássica em Lisboa e constituiu amizades com futuros líderes, caso de Marcelino dos Santos, Agostinho Neto e Amílcar Cabral. “Mário Pinto de Andrade, Uma entrevista dada a Michel Laban”, Edições João Sá da Costa, 1997, encerra dez sessões de trabalho que vão de Março de 1984 a Junho de 1987.

Em textos anteriores[*], falou-se das sua vida em Luanda, a sua passagem pelo seminário, as suas amizades angolanas, com destaque para Viriato da Cruz, a sua vinda para Lisboa, estudar Filologia Clássica que foi um desapontamento, a formação embrionária de grupos inspirados pela independências das colónias que se canalizou no Centro de Estudos Africanos, a dispersão do grupo, a partida de Mário Pinto de Andrade de Paris e a formação do efémero MAC – Movimento Anticolonial, bem como a importância de um evento, o Congresso dos Escritores Negros, em Paris, em 1956. Pinto de Andrade continua como redator da revista Présence Africaine, corresponde-se muito com Amílcar Cabral, com Joaquim Pinto de Andrade e Viriato da Cruz, está já a viver-se uma época de explosão organizacional. Nisto, em 1957, Viriato da Cruz chega a Paris. Em Novembro de 1957, fazem uma reunião a cinco, em casa de Marcelino dos Santos. “Foi talvez a primeira pequena assembleia a ponto da situação do movimento geral das organizações nos cinco países africanos. Nas nossas análises, parcelares para cada um dos países procurávamos sempre determinar e medir a classe operária. Era uma visão muito estreita das forças sociais”. Foi assim que se constituiu o MAC.

Pinto de Andrade [foto à esquerda] sentia dentro de si mudanças: “Foi-se aprofundando uma contradição entre a necessidade de ação, a disponibilidade para essa ação e o meu trabalho normal, o meu trabalho de assalariado na revista”. Demite-se da Présence Africaine, envolve-se em reuniões internacionais, comparece no Congresso dos Escritores Asiáticos, viaja até à China. África muda de rosto: independência do Gana em 1957, da Guiné Conacri em 1958, esta com a particularidade de ser o primeiro país africano fronteiriço de uma colónia portuguesa. No fim de 58 realiza-se a Conferência dos Povos Africanos em Acra, aí comparece Holden Roberto. Em 1959 realiza-se o segundo Congresso dos Escritores e Artistas Negros, em Roma. Aí reúnem com Franz Fanon que informa que os argelinos estavam prontos a ajudar na formação político-militar de jovens quadros de Angola. “Este encontro com Fanon reforçou em cada um de nós uma decisão importante: era preciso voltar a África. Não podíamos estar dispersos pela Europa, a Europa era um lugar de passagem, era uma transição para África”.

Em Maio de 1960, estes jovens dirigentes nacionalistas estão reunidos em Conacri: Pinto de Andrade, Amílcar Cabral, Viriato da Cruz e o de Meneses. Eles constituíram o núcleo dirigente de uma nova organização, a FRAIN – Frente Revolucionária Africana para a Independência Nacional das colónias portuguesas, que veio substituir o MAC. Todos se metem ao trabalho de agitação numa atmosfera onde já se desenhava a fisionomia repressiva do regime ditatorial de Sékou Touré. Constituiu-se o primeiro comité diretor do MPLA, Pinto de Andrade assegura a responsabilidade de presidência, o secretário-geral passou a ser Viriato da Cruz. O MPLA e o PAIGC coordenavam a sua ação no quadro da FRAIN, que também não terá uma vida muito longa. Observa que a personalidade de Amílcar Cabral fazia medo aos governantes de Conacri, não havia grandes ilusões que em Conacri havia a tentação de se apoderarem da colónia portuguesa da Guiné para criarem a “Grande Guiné”. Serão os chineses os primeiros a apoiarem os movimentos de libertação. “Altos responsáveis, ligados à Grande Marcha e à luta armada, à revolução chinesa, deram verdadeiros cursos de formação sobre a guerra de guerrilha a Amílcar Cabral, Eduardo dos Santos, Viriato da Cruz. Os outros, aqueles que acompanhavam Cabral, ficaram lá, para uma formação diferente – uma formação político-militar de base”. Os chineses deram uma ajuda financeira substancial, tudo em notas de dólar. Mais tarde, esta ajuda será ocultada por causa do conflito sino-soviético e pelo facto da União Soviética ter tomado o primeiro lugar no quadro da ajuda direta. E Pinto de Andrade recorda que a China teve um papel muito importante na formação da FRELIMO.

Pinto de Andrade esclarece que os acontecimentos do 4 de Fevereiro de 1961 foi uma ação interna que ultrapassou a visão da direção do MPLA. Abrem-se expetativas para os movimentos de libertação. “É por isso que organizámos, alguns meses depois do quatro de Fevereiro de 1961, a Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas, em Casablanca”. Logo a seguir, houve uma conferência de solidariedade em Nova Deli, a questão de Goa não era inocente. Criou-se a FRELIMO. A situação ganhava complexidade: o MPLA concorria com a UPA, o PAIGC, era antagonizado por outros movimentos de libertação, tanto em Conacri como em Dakar, o principal ponto de discórdia era a unidade Guiné-Cabo Verde, mas o facto de o PAIGC começar a ter sucessos militares fez desaparecer a concorrência. Tudo mexia em África: dissensões entre os argelinos, o Congo em chamas, e é neste contexto que se dá a libertação de Agostinho Neto, surgirão tensões insanáveis entre ele e Viriato da Cruz, falava-se que havia um sério desentendimento nas escolhas de alianças, o MPLA tomou a decisão de se fundir com outros movimentos, Pinto de Andrade considerava que eram movimentos reacionários, e então demite-se da direção e como militante do MPLA. Em rutura, Viriato da Cruz aliou-se a Holden Roberto, patrocinado pela CIA. Pinto de Andrade vai para Marrocos, no final de 1963, dirigir os trabalhos da Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas, depois muda as suas atividades para Argel. “Sentia-me mais à vontade a escrever textos e a manejar os conceitos e a informação de que estar propriamente no aparelho organizacional. Fiquei em Argel, onde publicámos pequenas monografias sobre a Guiné, Angola, Moçambique”. Retomou os seus estudos. A luta armada alastrava em Angola e então que lhe propõem para ele ir ver e participar, parte para a frente Leste, em 1971, irá tornar-se etnólogo no seu país. Aqui terminam as entrevistas de Michel Laban a Mário Pinto de Andrade, infelizmente o seu precioso testemunho ficou truncado, o seu estado de saúde já estava seriamente abalado, morreu em 1990, em Londres.
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Notas do editor

[*] - Vd. postes de:

18 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17984: Bibliografia (41): “Mário Pinto de Andrade, Uma entrevista dada a Michel Laban”, Edições João Sá da Costa, 1997 (1) (Mário Beja Santos)
e
25 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18013: Bibliografia (42): “Mário Pinto de Andrade, Uma entrevista dada a Michel Laban”, Edições João Sá da Costa, 1997 (2) (Mário Beja Santos)

sábado, 25 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P18013: Bibliografia (42): “Mário Pinto de Andrade, Uma entrevista dada a Michel Laban”, Edições João Sá da Costa, 1997 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Novembro de 2017:

Queridos amigos,
Em 1954, descrente da formação universitária a que se propusera vir fazer a Lisboa, e já atraído pela causa nacionalista, Mário Pinto de Andrade parte para Paris onde terá o privilégio de se encontrar e corresponder com os principais intelectuais negros contestatários de vários continentes. Trabalha numa prestigiada revista, acompanha o que se passa no seu país, reúne regularmente com Marcelino dos Santos e Aquino de Bragança, tem uma relação fraterna com Amílcar Cabral. Foi assim que germinou e se veio a criar em 1957 o Movimento Anticolonialista, é o primeiro gérmen da cooperação entre os movimentos de libertação das colónias portuguesas africanas.
Os dados estão lançados.

Um abraço do
Mário


Uma importante entrevista de Mário Pinto de Andrade (2)

Beja Santos

Não se pode estudar em toda a sua amplitude o movimento anticolonial em Portugal sem conhecer o pensamento e ação de Mário Pinto de Andrade, um angolano que veio estudar Filologia Clássica em Lisboa e constituiu amizades com futuros líderes, caso de Marcelino dos Santos, Agostinho Neto e Amílcar Cabral. “Mário Pinto de Andrade, Uma entrevista dada a Michel Laban”, Edições João Sá da Costa, 1997, encerra dez sessões de trabalho que vão de Março de 1954 a Junho de 1957. Este grupo de amigos constitui o Centro de Estudos Africanos, na Rua Ator Vale, ao Bairro dos Atores em Lisboa, ali se reuniam Alda e Julieta do Espírito Santo, Francisco Tenreiro, Agostinho Neto e Amílcar Cabral. Encontravam-se igualmente na Casa dos Estudantes do Império e no Clube Marítimo, na Graça, tinna sido uma escolha do Agostinho Neto.

Pinto de Andrade não perde o contacto com os jovens nacionalistas angolanos, trocam muita correspondência. Dá-nos conta da atividade desenvolvida nesse grupo de reflexão que foi o Centro de Estudos Africanos, a partir da primeira reunião que se realizou em Outubro de 1951. Pouco estimulado pelos estudos da Filologia Clássica, desperta o seu interesse pela literatura africana, começa pelo Kimbundu, amplia as suas leituras, lê autores antilhanos, norte-americanos e africanos, tais como Nicolás Guillén, Richard Wright, Aimé Césaire, Léopold Senghor. Pôs-se em marcha uma antologia: o Caderno de Poesia Negra de Dispersão Portuguesa. Depois, o Centro dispersou-se, Amílcar Cabral foi trabalhar para a Guiné, Tenreiro ficou em Lisboa, a família Espírito Santo ficou sob suspeita na PIDE, supunham que estavam implicados, visto que um dos tios de Alda Espírito Santo era acusado de conluio do protesto contra o trabalho forçado no massacre de Batepá. A última reunião deste grupo de reflexão realizou-se em Abril de 1954. E rememora duas figuras hoje injustamente esquecidas: o pintor António Domingues e o escritor António Mário Domingues, pai do primeiro. Domingues era um artista muito próximo dos comunistas, estava muito atraído pela pintura mural mexicana e pela arte negra, fez desenhos de toda esta gente do grupo. Mário Domingues pertencia à geração dos anos 20, foi colega de jornalista de Ferreira de Castro. Para ganhar a vida escrevia obras históricas publicadas por Edições Romano Torres, traduzia muito e escrevia sobre pseudónimo romances policiais. Era um português nascido na Ilha do Príncipe que escreveu um romance sobre a sua experiência, O Menino entre Gigantes. Distinguiu-se por ter enviado uma mensagem para o Congresso dos Escritores e Artistas Negros que se realizou em Paris.

Estes jovens africanos reuniam com gente do MUD Juvenil, explica a organização manobrada pelos comunistas e as causas que defendiam. Mas os jovens africanos sentiam-se dececionados porque a questão africana era um tema marginal para o MUD e faz o seguinte comentário: “A ideia que os comunistas tinham na altura era a de uma especificidade – a especificidade colonial portuguesa – muito diferente da colonização francesa ou inglesa. Recordo-me de uma conversa com Aboim Inglês quando eu lhe disse que não queria militar no MUD juvenil porque a minha atenção estava fixada no Centro de Estudos Africanos. Ele chamava a isto uma posição racista e, sobretudo, considerava que nós não tínhamos em conta a especificidade da colonização portuguesa pelas ações de outros colonizados, justamente os colonizados do domínio francês e do domínio inglês, que a questão não devia colocar-se nesses termos porque o que era necessário – do seu ponto de vista, era criar um vasto movimento antifascista. Era o derrube do fascismo que ia abrir perspetivas à libertação das colónias”.

Amílcar Cabral e Mário Pinto de Andrade

Refere a vida efémera do Partido Comunista Angolano, em 1954 Pinto de Andrade parte para Paris, quer especializar-se em assuntos africanos. Vai trabalhar com Alioune Diop na revista Présence Africaine, graças a este trabalho vai conhecer algumas das mais pertinentes figuras intelectuais francesas e escritores negros de todo mundo. Estuda na École Pratique des Hautes Études, seguia as aulas de Roger Bastile. Dá-se muito com Marcelino dos Santos e Aquino de Bragança. As lutas de libertação e as independências das antigas colónias são um tema da agenda política mundial. Há a guerra da Argélia, os preparativos para as independências de Marrocos e da Tunísia, em 1955 realizou-se a Conferência de Bandung, onde nasceu o movimento dos não-alinhados, a conferência teve consequência na Ásia e em África. É nesse contexto que se prepara o congresso dos escritores africanos onde as teses de Aimé Césaire saíram vencedores, derrotando as teses conciliadoras de Senghor. Este congresso teve repercussões, foi o caso da American Society of African Culture dos Estados Unidos, que reunia os escritores negros americanos. Em Paris, Pinto de Andrade continuava a trocar muita correspondência: com Lúcio Lara, com Amílcar Cabral, com Viriato da Cruz. Em meados de 1957 chega Viriato da Cruz fugido à polícia. A visita foi seguida quase imediatamente pela de Amílcar Cabral, este tinha participado no conjunto das formações que em seguida levaram à criação do MPLA. Pinto de Andrade atribui a Viriato da Cruz um papel charneira, por ter participado no nascimento de todas as organizações importantes de Angola, colaborar na redação do manifesto do MPLA. Viriato veio para ficar, o mesmo não ocorreu com Amílcar que trabalhava em Angola, Amílcar reuniu em Paris com a comunidade africana lusófona na diáspora.

Em Novembro de 1957, em Paris ocorre uma reunião de consulta e estudo para o desenvolvimento da luta das colónias portuguesas, participam Amílcar Cabral, Viriato da Cruz, Marcelino dos Santos, Guilhermo do Espírito Santo e Pinto de Andrade. “Foi talvez a primeira pequena assembleia a fazer o ponto da situação do movimento geral das organizações em luta nos cinco países africanos, do estado do que se chamava as forças vivas da nação e da capacidade de mobilização das forças sociais nessa altura”. E tomou-se uma decisão importante: criar uma organização unitária. “Nós tínhamos visto que cada organização por si própria, tomada isoladamente, em cada um dos nossos países, não era suficientemente forte para que nos concentrássemos. Era preciso encorajar essas organizações, mas elas eram frágeis. Foi a origem do Movimento Anticolonialista que se criou em Lisboa, mas tinha um outro nome na altura, um nome muito mais amplo: Movimento de Libertação Nacional das Colónias Portuguesas, e tinha mesmo estatutos”.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 18 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17984: Bibliografia (41): “Mário Pinto de Andrade, Uma entrevista dada a Michel Laban”, Edições João Sá da Costa, 1997 (1) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P17965: Notas de leitura (1014): “A PIDE no Xadrez Africano, Conversas com o Inspetor Fragoso Allas”, por María José Tíscar; Edições Colibri, 2017 (3) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Outubro de 2017:

Queridos amigos,

Aqui se põe termo às considerações sobre uma obra de leitura obrigatória para quem pretenda conhecer a montagem e o funcionamento das redes de informações a cargo da PIDE/DGS em Angola, nos países limítrofes, entre 1963 e 1970, e na Guiné, entre 1971 e 1973, 

Fragoso Allas foi protagonista cimeiro de tais atividades. Vemo-lo como alferes e tenente miliciano na Guiné, mais de quatro anos. Em 1962 ingressa na PIDE, depois de lhe ter sido recusada a carreira militar. A convite do inspetor São José Lopes vai para Angola, instala nova cifra e dá vida a um sistema de informações que envolve os dois Congos e a Zâmbia. É nessa fase de notoriedade que lhe determinam que deve ir para a Guiné, Spínola é muito insistente.

Renova a rede de informações, aproveita os comerciantes que se deslocam pelo Senegal e pela Guiné Conacri. Diz categoricamente que a PIDE na Guiné não foi minimamente havida e achada no assassinato de Cabral. Finda a sua comissão, vê as suas férias interrompidas, precisam do seu talento em Moçambique. Segue-se o 25 de Abril e mais tarde a fuga para a África do Sul.
Livro de leitura obrigatória.

Um abraço do
Mário


De leitura obrigatória: o diretor da PIDE/DGS na Guiné, no tempo de Spínola, na primeira pessoa (3)[1]

Beja Santos

António Fragoso Allas permanece na Guiné de meados de 1971 a Setembro de 1973, Spínola regressa em Agosto, Allas não aceita o convite de Bettencourt para ficar, diz-se exausto, fizera uma longa comissão na Guiné no período que antecede a eclosão da guerrilha, ingressa na PIDE, segue para Angola e daqui para a Guiné. Supusera vir desfrutar de uns meses de descanso. Mas em Março de 1974 é-lhe comunicado que devia assumir imediatamente o seu novo posto, Moçambique.

Todo este percurso consta do livro “A PIDE no Xadrez Africano, Conversas com o Inspetor Fragoso Allas”, por María José Tíscar, Edições Colibri, 2017.

A sua presença na Guiné foi aqui observada com detalhe. Não é despiciendo tudo quanto ele vai fazer em Angola, logo em 1963, a convite do inspetor São José Lopes. Aqui se inicia uma longa conversa sobre a reorganização da rede de informações, em postos de fronteiras cruciais, com a colaboração de alguns comerciantes e explica porquê:  

“Os guerrilheiros vindos dos países vizinhos entravam no território nacional e, mais tarde ou mais cedo, precisavam de comprar coisas, desde uns fósforos até mercurocromo para as feridas. Se o comerciante era pessoa que estava atenta e quando alguém lhe dizia isto é para os que estão lá, logo se começava a saber algo. Esse próprio comerciante podia chegar a tornar-se a cabeça de uma rede de informadores, dado que ele estava em condições de fazer favores ou fornecer qualquer coisa aos guerrilheiros, que depois nós compensávamos, pagando as coisas fornecidas ou patrocinando-lhe algum favor. No Leste de Angola, os madeireiros sabiam muita coisa. Eles tinham as serrações instaladas no mato. O importante é que eles tinham assalariados africanos e estes, mais tarde ou mais cedo, quando se estabelecia alguma confiança, falavam e começavam a ser ponto de ligação com o outro lado”.

Allas recebera uma importantíssima missão: melhorar a qualidade das informações, intensificar as relações com as autoridades dos países vizinhos onde isto podia ser feito, caso do Congo-Kinshasa ou na Zâmbia. O entrevistado detalha o seu trabalho, o trabalho com a rede de Léopoldville, a criação de corpos auxiliares (o antecedente dos “Flechas”), o que se sabia sobre a FNLA, o MPLA e a UNITA, as operações para intimidar a Zâmbia, grande apoiante do MPLA. E depois Kinshasa, havia que dividir para reinar, estimular o ódio de Mobutu pelo Congo-Brazzaville, deixá-lo intimidado com os catangueses instalados em Angola.

Mesmo depois de Mobutu ter cortado relações com as autoridades portuguesas, as coisas mudaram a partir de 1969, o tirano de Kinshasa propunha às autoridades portuguesas de Angola que convidassem Holden Roberto para visitar Angola e negociar com ele o pagamento a fazer pelos portugueses de todas as contas decorrentes da guerra conduzida pela FNLA contra o MPLA. E Fragoso Allas observa: “Se tivesse sido aceite o plano de Mobutu não teria sobrado um MPLA vivo”.

As autoridades portuguesas rejeitam, o circuito informações em Kinshasa não perdeu importância, a PIDE colaborou nas operações em Brazzaville, era imprescindível desestabilizar o regime de esquerda, chegou mesmo a propor-se a operação Bikini, o Governo de Caetano rejeitou a participação portuguesa, havia o receio de que Mobutu pretendesse ocupar Cabinda. Com minúcia, Allas expõe o seu relacionamento com as figuras gradas as informações zairenses, como se constituíra a rede de espiões em Brazzaville, dá conta do relacionamento entre as autoridades portuguesas e a UNITA, contactos que se estabeleceram na zona Leste, em 1972 e explica:  

“Os aspetos mais importantes, para os interesses portugueses, em todo este processo de conversações resume-se em três pontos: Em primeiro lugar, a obtenção de informações sobre a atividade do MPLA e da FNLA na zona militar Leste e dados referentes às bases e meios do MPLA na Zâmbia. Em segundo lugar, conseguir que a UNITA atue contra o MPLA e a FNLA, sobre coordenação do comando militar português e nas áreas determinadas por este. Esta coordenação conduziu a resultados dignos de menção. Em terceiro lugar, a não intervenção das forças da UNITA contra as tropas portuguesas, as quais, por sua vez não interfeririam com os guerrilheiros daquele movimento quando atuavam nas zonas que tinham atribuídas para a execução de ações devidamente autorizadas para comando português. Em troca desta colaboração por parte da UNITA, as autoridades portuguesas comprometiam-se a satisfazer duas solicitações de Savimbi: o fornecimento de diverso material (medicamentos, sementes, material escolar básico, animais de raça caprina) e, além disso, a assistência de um médico militar português a Savimbi, doente na mata, o que foi concretizado em 2 de Dezembro de 1972”.

É este o inspetor da PIDE a gozar de prestigioso currículo que é chamado para a Guiné, pelo seu trabalho receberá um prestigiante louvor.

Já vimos que as suas férias foram interrompidas, é enviado para Moçambique em 1974. Fala-se do apoio discreto dado por Baltazar Rebelo de Sousa à GUMO (Grupo Unido de Moçambique), cuja figura de proa era Joana Simeão, havia que cooperar no estreitamente de relações entre Portugal e a República da África do Sul e fala-se no plano ALCORA, Allas apresenta-o:  

“O plano ALCORA tinha interesse porque permitia a compra de importante material de guerra. Estão a dizer que era muito importante mas só o era por este lado. Nós comprávamos aviões C-130 e T-6 de treino à República da África do Sul que ali tinham chegado ao fim da vida e nós transformávamo-los em aviões de combate”.

Fala-se a seguir na operação Coliflower, organizada por militares rodesianos. Quando detetavam um grupo da ZANU registavam nos mapas da grande sala de operações e enviavam os helicópteros Alouette III. A seguir iam no seu encalço, dividindo-os em pequenos grupos até os exterminar completamente.

Era previsível que Fragoso Allas assumisse o cargo de diretor da DGS em Moçambique, entretanto dá-se o 25 de Abril, em Maio o General Costa Gomes manda-o prender Jorge Jardim na Beira, aqui descobriu que Jardim nada tinha a ver como fomentador das manifestações contra os militares, além disso não estava na Beira, encontrava-se em Lisboa.

A conversa deriva para o desmantelamento da PIDE, inicialmente supusera-se o aproveitamento da PIDE em África como polícia de informações militar, mas tudo estava em derrisão, os Flechas já tinham fugido para a Rodésia. Segue-se a operação Zebra que tinha finalidade de deter na sua quase totalidade os quadros da direção e investigação da extinta DGS. Allas recebe guia de marcha para Angola, descreve o clima convulsivo que se vive em Luanda. Spínola demite-se após os acontecimentos de 28 de Setembro de 1974, Fragoso Allas, via Madrid, ruma para a África do Sul, dedicou-se a negócios. Anos mais tarde, passou a visitar Portugal.

O livro inclui um anexo fotográfico e um anexo documental bastante interessante. Doravante, não se pode estudar as redes de informações instituídas pela polícia política do antigo regime sem consultar este imprescindível trabalho.
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Nota do editor

[1] - Vd. postes de:

30 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17917: Notas de leitura (1009): “A PIDE no Xadrez Africano, Conversas com o Inspetor Fragoso Allas”, por María José Tíscar; Edições Colibri, 2017 (1) (Mário Beja Santos)
e
6 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17940: Notas de leitura (1011): “A PIDE no Xadrez Africano, Conversas com o Inspetor Fragoso Allas”, por María José Tíscar; Edições Colibri, 2017 (2) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 10 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17956: Notas de leitura (1013): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (8) (Mário Beja Santos)

sábado, 4 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P17935: Caderno de notas de um mais velho (Antº Rosinha) (53): Os "comerciantes" e os "outros"... Lá, em Angola, Guiné e Moçambique, muitas vezes mais valia um ano de tarimba do que dez de Coimbra...



Guiné > Região de Tombali > Catió > CCS / BART 1913 (1967/69) > Álbum fotográfico do Victor Condeço > Quartel > Foto 32 A > Pormenor; quatro funcionários dos correios (à esquerda), seguidos de quatro comerciantes, o libanês José Saad (e filha), o Mota, o Dantas (e filha) e o Barros.


 Foto (e legenda) do nosso saudoso Victor Condeço (1943/2010) / Edição e legendagem complementar:  © Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Todos os direitos reservados.



I. Três comentários do nosso amigo e camarada António Rosinha, ao poste P17920 (*):


1. No início da Guerra do Ultramar houve sempre uma enorme falta de diálogo entre quem chegava ("tropa") e quem residia ("brancos").

Nunca houve diálogo entre os "brancos" e "tropa", antes pelo contrário. A mentalidade de quem chegava para combater os "turras", diziam os oficiais milicianos, e não só, que estavam ali por culpa dos "brancos" que trataram mal os "pretos" e estes revoltaram-se.

Testemunhei isto em Angola, ao vivo e a cores.

E insistia-se,  e ainda hoje se ilude muita gente, que os comerciantes ("brancos") roubavam os "pretos", quando na realidade, para quem viu por dentro,os comerciantes eram os únicos brancos que se entendiam em várias línguas com o povo.

O comerciante que não tivesse uma afinidade e confiança total com o povo, (várias etnias) podia fazer as malas e mudar de vida,  pois falia muito rapidamente

Nem os missionários nem chefes de posto, (metropolitanos, indianos ou cabo-verdianos) tinham o conhecimento e o relacionamento com os povos, igual ao dos comerciantes.

Foi esta gente o grosso dos "brancos", colonialistas, exploradores e futuros retornados,  que nem Spínola, nem Lobo Antunes, nem os alferes-de-coimbra, chegaram a compreender.

E gente como os estudantes do império, Pedro Pires, Amílcar Cabral, Lúcio Lara,  etc. souberam explorar maravilhosamente esse desentendimento, "tropa"  versus "brancos".

Se em Angola, não na Guiné, a "vitória era certa" contra os "turras", u ma das razões que ninguém menciona, era um entendimento mútuo dos comerciantes,  e mesmo capatazes de fazendas, poliglotas, e sua prole, com os povos, que formavam uma barreira onde o adversário era naturalmente repelido.

Claro que muitos comerciantes ficaram reféns, como este Rendeiro, pois tinham família para cuidar.
Só falo do que vi.

2. A maioria dos comerciantes oriundos de Trás-os-Montes e Alto Douro, Minho e gradualmente por aí abaixo, com dezenas de anos de trópicos, com famílias constituidas lá, brancas ou mestiças, tinham opinião bem mais formada do que qualquer Governador, com comissões de 4 anos, ou Generais e Intendentes de passagem como cão por vinha vindimada ?

E que «antiguidade" devia ser um posto?

É que aquela gente sabia bem mais que qualquer PIDE, que mais que evidente, tiveram pouco sucesso, deviam ser aproveitados inteligentemente, como em muitos casos aconteceu em Angola, para na língua materna dos povos se fazer em directo, a tal luta da psico-social.

Falar os idiomas nativos era sucesso garantido para aquela guerra, comprovadíssimo em Angola.

Só eles mesmo é que tinham esse trunfo nas colónias africanas, a tropa nunca entendeu completamente esse pormenor, e em Angola, só a partir de certa altura (1966 mais ou menos)é que aproveitou os imensos poliglotas que eram esses comerciantes e sua prole.

Atenção que, se olharmos para o PAIGC, MPLA e FRELIMO, tinham na sua direcção, filhos ou netos dessa estirpe de gente, (brancos ou mestiços)e vejam quem ficou no "poleiro" em todas as colónias.

No entanto, havia muitos movimentos que ficaram todos a ver navios, eram os tribais.

O  "pau de dois bicos" dos comerciantes não era propriamente dar informações militares aos "turras", até porque a maioria pouco saberiam do que se passava nos quarteis mais do que qualquer garoto que vivia à volta dos quarteis.

O pau de dois bicos constava em simplesmente em fazer aviados de mantimentos aos "turras" sem os denunciar, caso não pudessem evitar. Eram casos conhecidos publicamente, caso de madeireiros em Angola.

E pelo que se deduzia na Guiné em conversas entre velhos comerciantes, após a luta, com Luís Cabral a mandar, aconteceria esse "fenómeno", era o desenrascanço.

Os únicos que já não eram periquitos, eram esses velhos comerciantes do mato, porque até os da cidade nunca chegaram a saber bem o que se passava no cabeça dos indígenas e dos brancos.

Ao fim de 30 anos nos trópicos, sou um periquito, porque nunca falei com um indígena na sua língua.

3. É natural que da maioria dos militares que passaram pelas colónias, mesmo aqueles que tinham papéis de comando, a nível quer de pelotão ou companhia  ou quer a nível de  batalhão, só poucos se teriam debruçado sobre o que era o "comércio de permuta", que se praticava no interior, não nas cidades, no caso da Guiné, Bissau apenas.

Mesmo em Gabu e Bafatá, quer comerciantes fulas ou caboverdeanos que ficaram com as lojas dos europeus, retornados, alugadas ou usurpadas a estes, ainda praticavam em alguns casos , o comércio de permuta.

Isto em 1987, residi um ano em Gabu onde fui inquilino numa casa de um desses antigos portugueses.

Por exemplo uma simples bola de cera de mel de Canjadude, para ser negociada entre a família vendedora e o comerciante, requeria um diálogo em que se discutia o que podia valer de coisas das prateleiras que podiam interessar aos elementos da família.

Desde óleo, sal, panos, chinelos chineses, arroz...e isto tudo usando argumentos em que na colheita anterior bola de cera idêntica ainda estava na memória de todos, o que tinha rendido.

Quem diz uma bola de cera, diz um carneiro, uma vaca, ou o  mesmo saco ou bacia ou balaio de arroz ou mancarra após cada safra.

Quando se diz que o comerciante "roubava na balança", ou no rol, isso era conversa de merceeiro das nossas velhas aldeias, ali essa da balança podia contar para o controle do próprio comerciante, mas não contava nada para o cliente, aliás, na permuta, eram clientes quem estava do lado de dentro ou de fora do balcão.

Quero com isto dizer que para ganhar dinheiro naquele tipo de negócio, era preciso uma especialização para quem saía das nossas terrinhas, algumas destas que arderam agora, nem com coimbra-e-tarimba se chegava lá.

Nem com comissões de dois ou quatro anos de função pública, e canudo universitário se chegava a entender o que era aquele trabalho.

Quando se fala em «periquitos», esta gente seriam aqueles que na realidade não eram periquitos.

E alguns desses comerciantes tinham uma particularidade. é  que chegavam a dominar dois e mais idiomas tribais, porque era-lhes necessário, o que lhe granjeava o respeito muito particular entre os populares.

No caso da Guiné, todos os comerciantes que quiseram ficar, continuavam, após o 25 de Abril, e até com protecção mais ou menos garantida, embora fossem sapos que alguns dirigentes tiveram que engolir.

Só que com o regime comunista/cabralista instalado, já nada compensava insistir em tanta incongruência e desordem económica e a maioria foi saindo de vez.

Além de Spínola, eram os comerciantes aquilo que os guinenses tinham mais lembranças nos primórdios da libertação.

A independência tinha que ser, e o que tem que ser...!

Mas tenhamos mais respeito pela inteligência daqueles povos, já que os vencedores, alguns "Estudantes do Império", se esqueceram tanto desse mesmo povo.  (**)
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 31 de outubro de 017 > Guiné 61/74 - P17920: (D)o outro lado do combate (14): a odisseia do português, da Murtosa, Rodrigo Rendeiro: uma viagem atribulada, de cerca de mil km, de 3 a 26 de setembro de 1963, de Porto Gole, onde tínha um estabelecimento comercial e era casado com uma senhora mandinga, de linhagem nobre, Auá Seidi, e tinha cinco filhos,até ao Senegal (Samine, Ziguinchor e Dacar), unindo ocasionalmente o seu detino ao do PAIGC... Relatório, assinado por ele, mas de autenticidade duvidosa...

(**) Último poste da série > 15 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17862: Caderno de notas de um mais velho (Antº Rosinha) (52): Das pequenas recordações dos vários quartéis a mais artística que ficou lá a "apodrecer", foi o memorial na ponte de Caium

sábado, 21 de outubro de 2017

Guiné 61/74 - P17889: (Ex)citações (325): Os capitães de África, pelo professor Rui Ramos (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Outubro de 2017:

Queridos amigos,

A história das guerras do império, por vagas sucessivas, envereda pelos seguintes domínios: 

(i) logo a seguir ao 25 de Abril os teóricos à esquerda e extrema-esquerda a desvelar aspetos sombrios do colonialismo, desde a palmatória aos massacres, 

(ii) e o teóricos da direita e extrema-direita a apontar para a tragédia da descolonização; 

(iii) o novo fluxo prendeu-se com o sofrimento daqueles que combateram pela presença portuguesa, perseguidos e executados, isto a par da permanente acusação do dedo soviético e da ganância norte-americana à espreita de petróleo e diamantes; 

(iv) seguiu-se a acusação irrestrita de que a descolonização prejudicou por inteiro os descolonizados; 

(v) no fluxo presente, em que é impressionante o acervo de conhecimentos sobre o que foram as campanhas de África e em que contexto internacional se moveram as decisões de Salazar e Caetano, passa-se banho lustral sobre os fundamentos das lutas de libertação e temos historiadores a falar dos teatros de guerra sem jamais os ter estudado.

Encontra-se no trabalho de Rui Ramos bojardas como a seguinte, a propósito da invasão da Guiné Conacri, em 1970: "O PAIGC acabou por abandonar todos os acampamentos permanentes no interior do território".

Pasma como quebra o silêncio para denunciar a inqualificável besteira.

Um abraço do
Mário


Os capitães de África, pelo professor Rui Ramos

Beja Santos

Em escassas duas semanas, de quatro proveniências diferentes recebi o artigo que o professor Rui Ramos publicou no jornal Independente em 2006 sobre as guerras que travámos em África:

http://macua.blogs.com/moambique_para_todos/2017/09/oscapit%C3%A3es-de-%C3%A1frica-por-prof-rui-ramos.html. (*)

O documento é naturalmente polémico, será precisamente por isso que anda nas redes sociais, dá satisfação aos descontentes e azedumentos. À pergunta de que aquela guerra fora o simples resultado da natureza do regime político em 1961 ou da idiossincrasia do seu chefe, o historiador não hesita: “Nenhum governo português poderia ter feito outra coisa em Março de 1961”.

E refere as chacinas, os apelos à violência da UPA, incluindo o ideólogo de alguns revolucionários, Frantz Fanon. Na suposição de que o historiador aposta na imparcialidade e na contextualização dos factos, estava sem querer que houvesse algumas palavras abonatórias de que se encetara desde o termo da II Guerra Mundial uma gradual consciencialização anticolonial, que o Estado Novo estava ciente de que vinham problemas do principal anfiteatro planetário, as Nações Unidas, onde as novas nações independentes clamavam pelo fim das colónias.

O Estado Novo iludiu a realidade, e depois de umas largas pinceladas sobre a chegada de colonos a Angola e Moçambique, remata que não teria sido fácil em 1961 o abandono de África, ninguém pensara em retirar nem mesmo o PCP e os demais antissalazaristas. Houve portanto guerra aos movimentos de libertação porque era inevitável, ponto final, foi uma História sem antecedentes, um autêntico conto de fadas.

Rui Ramos fala da evolução da guerra e da estratégia salazarista, cita mesmo Marcelo Caetano em Março de 1974: “Não será por falta de dinheiro que nos renderemos”. Dinheiro houvera muito, mas estava tudo a correr mal desde 72, primeiro a crise mundial de alimentos, dispararam os preços, só baixarão no fim da década, a seguir o primeiro choque petrolífero e o castigo árabe a Portugal, pensou-se em racionamento, houve quilómetros de bicha, candonga a gasolina, se o professor Rui Ramos conversar com alguns do seus colegas e que conhecem economia e finanças, ficará surpreendido como a inflação subiu acima dos 30% no fim do primeiro trimestre de 1974.

Apregoa os mesmos argumentos de que a guerra se apresentava viável, que os principais movimentos de libertação constituíam um complicado folhetim de desânimos, cisões constantes, ajustes de contas sanguinários e deserções espetaculares. Era bom que o professor Rui Ramos estudasse a fundo o que foi o PAIGC, por exemplo, teve altos e baixos mas foi-se fortalecendo e prestigiando, conseguiu os necessários apoios técnicos, em armamento e equipamento, formou quadros e nos últimos anos da guerra fez reverter para o interior da Guiné uma matéria-prima de grande qualidade, os quadros cabo-verdianos que não tinham condições de estender a guerrilha a Cabo Verde.

Não esclarece muito bem o que mudou de Salazar para Marcello Caetano, deste refere novos argumentos, mais complicados, assentes numa solidariedade humanitária, para justificar as operações militares. “Convenceu-se também de que a estratégia da guerra limitada e de longa duração não podia continuar”.

Então, o historiador atira uma régua para cima da mesa, já que era necessário pôr fim à guerra: “Caetano proporcionou aos chefes militares os meios para romperem com a modesta rotina salazarista e tentarem esmagar a guerrilha. O ano 1970 foi marcado por iniciativas dramáticas: a invasão da Guiné Conacri, o grande assalto ao Planalto dos Macondes em Moçambique, e um novo plano de operações no Leste em Angola. Os resultados iniciais não foram maus. Na Guiné, o PAIGC acabou por abandonar todos os acampamentos do território”.

Penso que nunca ficaremos a saber se o académico ilude os factos, é ignorante e tacanho ou consultou os dossiês errados. Tivesse ele procurado ler o que foi o ano militar da Guiné de 1970, e mesmo 1971, e descobriria que o PAIGC não abandonou nenhum acampamento, esquece-se que ainda há muita gente viva que por aqui anda e que os arquivos estão cheios dessa documentação. O académico sugestionou-se, sentiu-se livre para dizer umas bojardas.

O que aconteceu depois? Kaúlza e Spínola teriam ficado despeitados por não terem sido candidatos à presidência da República, em 1972 e foi posta a propalar a tese de que o governo não lhe dera os recursos materiais ou as autorizações políticas necessárias. Curiosamente, esta argumentação não bate certo com o que, depois do 25 de Abril escreveram militares como Kaúlza de Arriaga ou Silvino Silveira Marques e mais recentemente um tenente-coronel aviador de escrita alucinada, Brandão Ferreira.

O que escreve sobre o desfecho do regime e a ascensão do MFA é pura pirotecnia argumentativa: os capitães entendiam que a democracia portuguesa se iria fazer abrindo estradas, administrando escolas e hospitais, como se fazia em África. O historiador profere estes dislates, tanto quanto sei ninguém lhe foi ao pelo. Será por indiferença? Segue-se, no termo do artigo, a verrina e a destilação de veneno:

“Só a mitologia de esquerda podia dar uma boa consciência aos homens do MFA. Só ultimamente se começou a perceber o verdadeiro sentido da retirada portuguesa. Havia mais africanos a combater do lado português do que do lado dos partidos armados. Na Guiné, metade dos confrontos com o PAIGC eram da responsabilidade das milícias locais”.

Que ninguém se pasme como se pode ser tão leviano. E nem uma palavra sobre aquele trimestre fatídico para Marcello Caetano, em que mandou negociadores sigilosos falar com o PAIGC, a FRELIMO, o MPLA, a FNLA e a UNITA. Numa entrevista a um jornal brasileiro, Caetano irá com uma certa displicência que era inevitável as independências, era um fenómeno internacional onde já não cabia a argumentação portuguesa em prol de um Portugal do Minho a Timor. (**)
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Notas do editor:

(*) O link constante no texto não funciona pelo que tive de pesquisar na net uma alternativa. Encontrei este: http://macua.blogs.com/files/os-capit%C3%A3es-da-%C3%A1frica-ii---2004.pdf que permite até carregar o PDF.

(**) Último poste da série de 16 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17867: (Ex)citações (324): os memoriais de Buruntuma (CART 1742, 1967/69) e Ponte Caium (3º Gr Comb, CCAÇ 3546, Piche, 1972/74): Abel Rosa, António Rosinha, Carlos Alexandre e Valdemar Queiroz

sábado, 14 de outubro de 2017

Guiné 61/74 - P17861: Notas de leitura (1004): “Casa dos Estudantes do Império, Subsídios para a História do seu período mais decisivo (1953 a 1961)”, por Hélder Martins; Editorial Caminho, 2017 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Outubro de 2017:

Queridos amigos,

Hélder Martins, fundador da FRELIMO, foi um estudante ultramarino que chegou a Lisboa em 1953 e a partir dessa data e até 1961 teve um papel ativíssimo na Casa dos Estudantes do Império (CEI).

Em seu entendimento, muito do que está escrito sobre a CEI mostra imprecisões e muito pouco rigor, em certos casos. Levou por diante, com vários apoios, ao levantamento da legislação, ouviu inúmeros participantes, recorreu a ajudas que passaram pela pesquisa dos boletins do Comissariado Nacional da Mocidade Portuguesa, e algo mais. O resultado é um testemunho resoluto, amável e desmistificador, porque numa associação de jovens há de tudo e tratar a CEI como uma casa de heróis é desumanizar-nos, protesta ele.

Obra indispensável para quem pretenda saber como é que a CEI foi uma grande escola do nacionalismo africano e serviu para consolidar a consciência anticolonial em muitos estudantes ultramarinos.

Um abraço do
Mário


A Casa dos Estudantes do Império

Beja Santos

De forma irregular mas persistente, estudantes ultramarinos, investigadores e jornalistas, recordam a importância e o significado que teve a Casa dos Estudantes do Império (CEI) na formação anticolonial e na forja das lutas de libertação, pois por aquele edifício passaram figuras como Amílcar Cabral, Vasco Cabral, Agostinho Neto, Lúcio Lara, Hélder Martins, Tomás Medeiros e Alda Espírito Santo.

Acaba de aparecer o testemunho de uma das figuras mais relevantes desse período Hélder Martins com “Casa dos Estudantes do Império, Subsídios para a História do seu período mais decisivo (1953 a 1961)”, Editorial Caminho, 2017.

Hélder Martins nasceu em Maputo, formou-se em Medicina em Lisboa em 1961. Foi um ativista estudantil na Comissão Pró-Associação da Faculdade de Medicina e na Casa dos Estudantes do Império. Incorporado no serviço militar obrigatório, na Marinha, desertou em Novembro de 1961, tendo ido para Tanganica, onde foi aceite na UDENAMO. Foi fundador da FRELIMO e participou na luta de libertação do seu país. No imediato pós-independência foi Ministro da Saúde durante cinco anos. Foi também funcionário sénior da OMS, docente em saúde pública em vários países.

Segundo o título, o seu testemunho centra-se no período que ele viveu intensamente e teve uma participação ativa. Observa que, salvo honrosas exceções, a grande maioria dos testemunhos e trabalhos de investigação histórica e jornalística que existem sobre a CEI, têm pouca informação factual e nem sempre as referências às fontes são rigorosas, têm sido detetadas grandes falhas. Escreve que o seu testemunho procurou incorporar o máximo de informação sobre esse período da vida da CEI, cingindo-se a factos e pondo de lado a fantasia e alguma carga mitológica sobre a convivência havida ao longo dos anos pelos estudantes das colónias.

Em primeiro lugar, refere que há claramente duas fases da vida estudantil colonial, a primeira que se estende dos anos 1940 até aos anos 1950 em que a maioria dos estudantes eram brancos, de um modo geral ligados ao Estado Novo, portanto alinhados com a ideologia política dominante. Basta ver as fotografias desde 1943 em diante. Dizia-se mesmo num boletim da Mocidade Portuguesa que a CEI era filha da Mocidade Portuguesa.

Ainda nos anos de 1940, e depois com maior preponderância nos anos 1950, começam a chegar estudantes negros e mulatos de Angola, S. Tomé, Cabo Verde e Guiné, tudo tinha a ver com o desenvolvimento económico angolano, com bolsas de estudo, etc. Naquele pós-guerra foi-se criando a consciência nacionalista, a PIDE desde 1946 que estava atenta às atividades políticas dos sócios da CEI, havia informações sobre Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Mário Pinto de Andrade, Lúcio Lara, Alda Lara, Vasco Cabral, Alda e Julieta Espírito Santo, Francisco José Tenreiro, Hugo Azancot de Menezes, Marcelino dos Santos, entre outros.

Eduardo Mondlane teve uma curta passagem pela CEI, de Junho de 1950 a Junho de 1951, estava à espera de uma bolsa de estudo para os Estados Unidos, o que aliás veio a acontecer. Nos anos 1950, há prisões como a de Vasco Cabral, Lúcio Lara, Mário Pinto de Andrade e Marcelino dos Santos conseguem escapar à prisão, irão abandonar Portugal para o exílio. Neste período entra em funcionamento um Centro de Estudos Africanos, ali se reuniam num prédio da Rua Actor Vale Mário Pinto de Andrade, Agostinho Neto, Francisco José Tenreiro e Amílcar Cabral.

Quem chegava, encontrava o bálsamo do acolhimento e os que gostavam de fazer desporto eram incentivados a continuar. Mário Wilson e Juca foram duas importantes figuras de acolhimento. Formou-se a equipa de futebol de CEI onde jogaram, entre outros, Fernando Vaz, Marcelino dos Santos e Amílcar Cabral.

Uma das maiores lutas entre os estudantes e as entidades governamentais era a permanente exigência para que não houvesse comissões administrativas. Os estudantes ultramarinos juntaram-se aos metropolitanos na luta contra o Decreto-Lei n.º 40.900, de 12 de Dezembro de 1956, destinado a regulamentar o associativismo juvenil, o governo recuou, a CEI passou a ter uma comissão de estudantes, elegeu-se uma direção e a CEI foi reconhecida para a proteção e defesa dos interesses ultramarinos e para o estreitamento dos laços de solidariedade e camaradagem entre os estudantes ultramarinos e metropolitanos, Em ondas, chegam estudantes às revoadas, convivem na cantina da CEI, fazem reuniões, dispõem de uma farta biblioteca, publicam livros.

Hélder Martins é minucioso na composição dos corpos diretivos, no trabalho desenvolvido, na vida cultural que abarcava conferência sobre música e arte, espetáculos de teatro, saía regularmente um boletim, a vida participativa era enorme. A qualidade dos conferencistas era de primeira água: João de Freitas Branco, José-Augusto França, Jorge de Sena, Keil do Amaral, José Palla Carmo, Alexandre O’Neill.

Procura desfazer mitos: nunca se registara qualquer luta pelo poder dentro da CEI, soubera-se operar um espírito de solidariedade inquebrantável; e que era um puro mito dizer-se que a CEI era sinónimo de uma geração de heróis. Descreve taxativamente: “Houve de tudo: bons e maus estudantes, uns que tiraram os seus canudos no tempo mínimo e com boas notas, outros que conseguiram atingir o almejado canudo com notas menos boas e num tempo mais dilatado e ainda os que nunca tiraram curso nenhum. Não fomos diferentes dos outros. Na CEI houve sócios dedicados mas houve também sócios que participavam pouco. Há provas que havia muitos estudantes que tinham fraca participação. Isto faz parte da natureza humana”.

O que o autor mais exalta foi a CEI como centro de convívio salutar.

Em 1961, tudo vai mudar substancialmente, fogem às dezenas os estudantes e com o início da luta armada em Angola apertou-se mais a vigilância à CEI. Outro ponto que o autor destaca é a CEI como escola de nacionalismo africano e de consciência anticolonial bem como a influência que exerceram nas lutas de libertação nacional da diversas ex-colónias.

É uma obra que toca pela serenidade, pelo extremo cuidado na citação dos factos e na busca da legislação certa. Não sendo um mito da geração de heróis, o facto é que pela CEI passaram figuras determinantes de nacionalistas africanos e aquele espaço foi indispensável para consolidar a consciência anticolonial entre muitos daqueles estudantes ultramarinos.
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de Outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17858: Notas de leitura (1003): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (4) (Mário Beja Santos)

domingo, 24 de setembro de 2017

Guiné 61/74 - P17794: Bibliografia de uma guerra (81): “A Guerra Civil em Angola - 1975-2002”, por Justin Pearce; Tinta da China, 2017 (Mário Beja Santos)



1. Em mensagem do dia 18 de Setembro de 2017, o nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), fala-nos do livro "A Guerra Civil em Angola", um período conturbado que aquele país viveu entre 1975 e 2002.


A guerra civil em Angola, por Justin Pearce

Beja Santos

Como soe hoje dizer-se, é muito provavelmente o livro mais rigoroso, mais documentado e que melhor retrata algo que até agora a historiografia da guerra civil não considerava como matéria essencial: como viveu a população angolana a guerra civil, como definiu a sua identidade política com os dois poderosos contendores, o MPLA e a UNITA?

Até agora as investigações partiam do entendimento de que o conflito angolano não passava de um produto da Guerra Fria, os acordos de Bicesse não tinham surgido por iniciativa da sociedade angolana, era uma solução desenhada por atores políticos exteriores a Angola. Logo em 1993 a guerra civil eclodiu com um fragor mais destrutivo do que nunca, os estudos minimizam as continuidades ideológicas e de identidade em que passou a contextualizar-se um MPLA entendido como um partido urbano e a UNITA olhada como o partido das matas. Eram duas forças frontalmente antagónicas, o MPLA liderado por intelectuais, a UNITA comandada por um chefe absoluto e indiscutível. O investigador britânico preambula o seu trabalho falando sobre Angola e a natureza da pretensa política e aborda a questão da identidade. Será um trabalho permanentemente atravessado por depoimentos de pessoas que viveram os transes da guerra civil.

A intervenção externa foi o gatilho que levou à declaração do conflito, os contendores escolheram apoios declarados: a UNITA recebeu algum armamento de África do Sul, vieram depois instrutores; o MPLA recebeu apoio cubano e soviético. “A supremacia da UNITA na região do Planalto Central, em Agosto de 1975, e o controlo de Luanda por parte do MPLA, na mesma data, ficaram sobretudo a dever-se à mobilização local apoiada pela aprovação ativa ou tácita do Estado português. Em Agosto de 1975, estava definido o caráter territorial do conflito angolano”. A FNLA, terceiro movimento, foi sol de pouca dura, rapidamente esmagado pelas tropas do MPLA. Onde o MPLA controlava era violento e procurava a imagem de ser o único grupo de libertação capaz de coordenar um governo; a UNITA, nos territórios onde era preponderante, sem se subtrair a que vivia em guerrilha contínua e sempre dominada por uma ideologia flutuante, onde não estava excluída uma certa simpatia maoísta, privilegiava a educação e a saúde, eram estes os eixos das respetivas propagandas. Liquefeito o diálogo, Agostinho Neto a independência em Luanda e Savimbi anunciava a criação da República Democrática de Angola no Huambo.

Com detalhe, o investigador debruça-se sobre a UNITA, como esta se vai retirando das cidades e lança-se no novo tipo de guerrilha, assentava o seu poder em comunidade camponeses, muitas vezes sujeitas a uma vida ditatorial. O MPLA assentou raízes na construção de um estado urbano e dentro de uma certa lógica: “Consolidou o seu poder nas zonas de Angola por si controladas durante a guerra civil através da instauração de uma visão de desenvolvimento orientada pelo Estado, e da definição do discurso público sobre o papel do Estado e do partido na concretização dessa visão”. A questão da identidade e do sentido de pertença a um movimento é escalpelizada no importante capítulo sobre a migração e identidade, ilumina-se ao pormenor as complexidades da identidade política e a sua relação com o controlo político, no contexto de uma estratégia governamental assente na deslocação de populações como forma de cortar o fornecimento de apoio material à UNITA. Analisa-se, em sequência o desempenho da UNITA no Planalto Central, entre 1976 e 1991. É tempo de responder ao modo como o povo interpretou e reagiu à disputa pelo poder, nos anos que se seguiram às eleições de 1992, são fatores interligados: as anteriores filiações no plano individual; a proximidade ou envolvimento das populações no processo de construção do Estado liderado pelo MPLA; o grau de dependência dessas populações em relação à economia urbana; a dicotomia entre cidade e campo, que se exprimia na ideia do partido urbano ou do partido das matas. “Os entrevistados quando se referiram a questões de legitimidade política e filiação depois de 1992, as considerações ideológicas estavam praticamente ausentes do seu discurso, já que todos avaliaram o MPLA e a UNITA com base no tipo de condições de vida proporcionadas por cada um”.

E no rescaldo da morte de Savimbi, primou o discurso dos vendedores. Como lembra o autor, o MPLA mantém uma ideologia que dificilmente se coaduna com as ideias de reconciliação. No 20.º aniversário da batalha de Cuíto Cuanavale, José Eduardo dos Santos apelou à propaganda, dizendo que a batalha dera origem a mudança profundas na África Austral, abrindo perspetivas para a queda do regime Apartheid, é um discurso que não menciona a existência de angolanos nos dois campos do conflito e a importância decisiva do apoio militar cubano ao MPLA. Este partido, sempre que necessário, convoca as memórias da luta anticolonial e repudia as diferentes oposições dizendo-se do lado da paz e da tranquilidade e que os críticos mais não oferecem que desacato, destruição e desordem. Quando se chegou à paz, depois da morte de Savimbi, desarticularam-se os núcleos populacionais da UNITA, o Estado/MPLA arvorou-se na legitimidade política sem limites. Sobre a trajetória e a organização do seu trabalho, Justin Pearce também dá explicações: “O que estava em causa era saber qual das duas elites era a herdeira legítima da autoridade conferida pelo conceito de Estado, uma questão que foi elidida por outra: qual das duas elites estava mais habilitada a transformar o Estado enquanto conceito teórico numa realidade. A melhor forma de compreender as mudanças verificadas na adesão política ao longo da guerra é vê-las como uma reação a circunstâncias e realidades em constante mudança. Embora durante a guerra, o controlo do território pendesse ora para o MPLA ora para a UNITA, no que diz respeito à identidade política o movimento foi, em larga medida, unidirecional”. E a concluir: “O MPLA venceu a guerra graças ao seu poderia militar. O fim da guerra, porém, foi o culminar de um processo no qual o potencial de fogo, o derramamento de sangue e a fome foram utilizados para transformar as possibilidades do que era imaginável”.

De leitura obrigatória.
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Nota do editor

Último poste da série de 23 de Setembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17789: Bibliografia de uma guerra (80): “Changing the history of Africa”, por Gabriel García Marquéz, Jorge Risquet e Fidel Castro; Ocean Press, Austrália, 1989 (Mário Beja Santos)

sábado, 23 de setembro de 2017

Guiné 61/74 - P17789: Bibliografia de uma guerra (80): “Changing the history of Africa”, por Gabriel García Marquéz, Jorge Risquet e Fidel Castro; Ocean Press, Austrália, 1989 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Setembro de 2017:

Queridos amigos,

Este livro é de 1989, não passa de um panegírico, estamos a caminho do fim da Guerra Fria, sob o impulso da Nações Unidas encontrou-se uma saída nas negociações entre Angola, Cuba e os Estados Unidos: as tropas cubanas retiram de Angola, bem como as sul-africanas e consagra-se a independência da Namíbia, tudo isto se passa no início de 1989, havia que fazer um relato hagiográfico, destacando que a luta em Angola preludiava a derrota do Apartheid.

Só muito recentemente estão a aparecer investigações que escapam ao estafado discurso dos vencedores. Foi por essa razão que se juntaram duas peças que merecem ser lidas em conjugação.

Um abraço do
Mário


Cubanos em Angola, com uma referência ao PAIGC

Beja Santos

“Changing the history of Africa”, por Gabriel García Marquéz, Jorge Risquet e Fidel Castro; Ocean Press, Australia, 1989, é manifestamente um livro apologético, aqui se justifica e glorifica a presença cubana em África, tudo começa com uma entrevista a Jorge Risquet, na altura secretário das relações internacionais do Partido Comunista Cubano, segue-se um artigo intitulado Operação Carlota por Gabriel Garcia Márquez, um rol de discursos de Fidel Castro, até se ter chegado a um acordo que levou à retirada dos conflitos dos cubanos em Angola e na Namíbia.

Todas as revoluções assentam em dados mitológicos, rasuras, interpretações glorificadoras, estabelecimento de verdades feitas e definição irrevogável de inimigos. Logo no prefácio, o organizador da obra panfletária atribui um papel descomunal à resistência angolana, cubana e da SWAPO em Cuito Cuanavale à ofensiva sul-africana, hoje está demonstrado que esse papel determinante não passa de retórica. Na longa entrevista com Risquet também se diz que o MPLA foi crido em 1956, que tem tanta verdade como o PAIGC ter sido criado nesse ano (nunca Amílcar Cabral faz uma referência ao PAIGC antes de 1959, ano em que efetivamente o partido foi criado depois da sua passagem discretíssima por Bissau, ali se assentaram as bases no trabalho clandestino, no interior e no estrangeiro), que Portugal não pertencia à NATO, que o MPLA impulsionou o 4 de Fevereiro de 1961, e muito mais.


Dentro da apologia, omite-se o que Che Guevara escreveu sobre as suas passagens em África, em 1965 e 1966. Conacri recebeu os dirigentes do PAIGC e do MPLA, foi aqui que os dirigentes cubanos encetaram a sua solidariedade. Che visitou uma série de países em 1965, esteve com Agostinho Neto, Lúcio Lara e outros dirigentes do MPLA em Brazzaville. Escreverá mais tarde que achou dirigentes ideologicamente mal preparados e com uma estratégia militar tresloucada. Neste período, havia duas colunas cubanas, pretendia-se atuar no Congo, tudo se esbarrondou em 1966. Os comentários de Jorge Risquet tudo transformam em edulcorante para o MPLA, este é sempre o legítimo, o genuíno representante de todo o povo angolano, a FNLA era um partido tribal e Holden Roberto um agente da CIA, Savimbi um aventureiro cúmplice da PIDE. No diário de Che a referência mais elogiosa a um político africano foi a Amílcar Cabral, para que conste. Este livro australiano aparece profusamente ilustrado e aqui se mostra uma fotografia em que Amílcar Cabral aparece com Agostinho Neto, Marcelino dos Santos e Jorge Risquet no Congo, em 1966, antes de tudo acabar mal.


Esta obra chegou-me às mãos depois de ter lido uma trabalho de grande rigor e baseada em múltiplas entrevistas, “A Guerra Civil de Angola”, por Justin Pearce. Aproveitando este ensejo da história do envolvimento cubano em África, talvez valha a pena ler o que investigou o conhecido académico inglês.
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Nota do editor

Último poste da série de 20 de Outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15273: Bibliografia de uma guerra (79): Acaba de ser lançado o livro "Nos Celeiros da Guiné - Memórias de Guerra", da autoria de Albano Dias Costa e José Jorge Sá-Chaves, com prefácio do Gen Ramalho Eanes, que conta história da CCAÇ 413

segunda-feira, 4 de setembro de 2017

Guiné 61/74 - P17729: Notas de leitura (993): “A verdadeira morte de Amílcar Cabral”, por Tomás Medeiros, althum.com, segunda edição revista, 2014 (1) (Mário Beja Santos)

A Verdadeira Morte de Amílcar Cabral, por Tomás Medeiros


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Março de 2016:

Queridos amigos,
Aquando da primeira edição, aqui se fez referência a este trabalho. Esta segunda edição comporta alterações, quem se interessa pela temática tem a ganhar com esta nova leitura.
Temos poucos biógrafos de Amílcar Cabral em língua portuguesa: Julião Soares Sousa (o mais importante), António Tomás, Daniel Santos e Tomás Medeiros, a despeito de numerosíssimas referências em ensaios, estudos e até trabalhos sobre a história do movimento de libertação na Guiné.
As reflexões de Tomás Medeiros têm uma singularidade: concentram-se num jovem de cultura cabo-verdiana que triunfou nos estudos em Lisboa no exato momento em que a problemática da descolonização preocupava estas jovens elites africanas. E há o pensamento de um líder inflado por um sonho utópico que acabou por matar o seu criador: a unidade Guiné-Cabo Verde, uma bela consigna para juntarem a melhor mão-de-obra revolucionária e o mais destrutivo explosivo para juntar no mesmo país gente que não esqueceu o passado, tantas vezes doloroso.

Um abraço do
Mário


A verdadeira morte de Amílcar Cabral (1)

Beja Santos

Tomás Medeiros é nome incontornável no movimento anticolonial português. Conviveu de perto com os futuros líderes dos movimentos de libertação e tem sobre os mesmos uma ideia sobre o seu valor e a importância do seu desempenho. Acompanhou e fez um estudo aturado do pensamento e obra de Amílcar Cabral. O seu trabalho intitula-se “A verdadeira morte de Amílcar Cabral”, Tomás Medeiros, althum.com, segunda edição revista, 2014. Já aqui se fez referência à primeira edição, acabo de comprovar que esta revisão dada a público inclui elementos importantes para a ponderação da vida e obra do mais consagrado dos líderes revolucionários africanos das colónias portuguesas.

Tomás Medeiros começa por enquadrar o tempo histórico após a II Guerra Mundial e traça a emergência da descolonização, da negritude, revela com rigor esse novo estado de espírito das elites africanas a estudar nas universidades europeias. Medeiros vinha de S. Tomé e aproximou-se desses estudantes do Império que ganhavam notoriedade, caso de Amílcar Cabral, Mário de Andrade, Francisco Tenreiro. Segundo nos diz na introdução, pretendia ir muito mais longe nas suas investigações mas foi apanhado por doença prolongada e diz que o que hoje se publica constitui a síntese de um projeto que precisa de ser desenvolvido a longo prazo.

Recorda que a juventude de Amílcar Cabral ficou indelevelmente associada a Cabo Verde, um ambiente africano arquipelágico particular, com fomes cíclicas, dentro de uma intelectualidade crioula que se exprime sem equívocos na sua iniciação poética, atravessada pelo modernismo e um naturalismo de cariz africano.

Segue-se a descrição de Lisboa em 1945, aonde chega o estudante de agronomia que vem com o firme propósito de ser um bom poeta e de aprender o que for necessário para lutar contra as crises de Cabo Verde, não terá sido por acaso que foi atraído desde cedo pela erosão dos solos. Convive, mas com distâncias, com o MUD Juvenil, lê afincadamente, e discute com o mesmo afinco, o que lhe cai às mãos sobre colonialismo, africanidade e sopros da descolonização. Vai emadurecendo e quando regressa a Cabo Verde em 1949 mostra um grande entusiasmo em palestras radiofónicas sobre soluções para o problema das secas. Enquanto tira a licenciatura no Instituto Superior de Agronomia frequenta os diferentes espaços por onde transitam os estudantes africanos das diferentes colónias. Medeiros refere a Casa dos Estudantes do Império, o Centro de Estudos Africanos, na residência da família Espírito Santo, no primeiro andar do n.º 37 da Rua Actor Vale, ali para os lados da Fonte Luminosa, por ali circulam Alda do Espírito Santo, Amílcar Cabral, Mário de Andrade, Agostinho Neto, Francisco Tenreiro.

Concluído o curso, parte em 1952 com a mulher para a Guiné, leva na bagagem uma série de trabalhos de agronomia, de valor científico: o problema da erosão dos solos; contribuição para o estudo da região de Cuba (Alentejo); o conceito de erosão – projeto para o estudo dos solos em Cabo Verde. Revela-se um funcionário público metódico e inovador, publica na imprensa local as sínteses das atividades que desenvolve sobretudo em Pessubé, uma estância experimental agrícola onde surgem algumas maravilhas. O seu nome aparece ligado a um projeto da Associação Desportiva e Recreativa dos Africanos, não aceite pelas autoridades. Terá tido encontros com os dirigentes do MING – Movimento de Independência da Guiné, que tinha à frente os nomes de Rafael Barbosa, Aristides Pereira, Fernandes Fortes, Abílio Duarte, e alguns mais. O MING, no dizer de Aristides Pereira era um movimento que não andava. Entretanto, vão crescendo nos países limítrofes organizações políticas que vão sendo conhecidas e discutidas na Guiné Portuguesa.

Em 1955, a sofrer de paludismo, regressa a Lisboa. Tomás Medeiros assegura que Amílcar Cabral esteve na Guiné em 1956 e 1958, o que Julião Soares Sousa contesta, Cabral não terá assistido à fundação do PAI e era impossível em 1958 ele ter passado pela Guiné. Cabral esteve a trabalhar em Angola na cartografia de solos, o seu trabalho foi muitíssimo apreciado, é um trabalho que ele abandona em 1959. Em Angola, escreve propaganda anticolonial e colabora na redação do manifesto que leva à fundação do MPLA. É o tempo em que toma decisões de fundo, parte para a clandestinidade. As diferentes organizações ligadas à luta de libertação criam o MAC – Movimento Anticolonial, o desempenho de Cabral é decisivo. Em Setembro de 1959 regressa a Bissau, no rescaldo dos acontecimentos de 3 de Agosto. Tiram-se ensinamentos de que não há condições para a luta urbana, são fundamentais militantes que precisam de ser recrutados no interior da Guiné. A estratégia do partido fica definida: luta armada para a obtenção da liberdade nacional. Cabe a Cabral desenhar o diagnóstico que irá levar à formulação estratégica: uma parte da direção estará no exílio, em Conacri, a outra parte dirige a sublevação e o envio dos novos quadros para Conacri. Logo no seu primeiro diagnóstico, Cabral enuncia que a vanguarda é caracteristicamente pequeno-burguesa, mais tarde este raciocínio será desenvolvido numa frase ainda com consonância explosiva: a pequena burguesia revolucionária deve ser capaz de se suicidar como classe para ressuscitar como trabalhador revolucionário, inteiramente identificado com as aspirações mais profundas do povo a que pertence.

Os contornos da luta armada que Medeiros refere acompanham de perto tudo aquilo que é hoje conhecido e considerado. E depois aborda o problema da unidade Guiné-Cabo Verde, e cita Cabral: “Nós na Guiné e nas ilhas de Cabo Verde somos as mesmas gentes, temos a mesma língua e temos o mesmo partido". Noutro registo, deve-se a Cabral a seguinte apreciação: “Somos pela unidade africana, à escala regional ou continental como meio necessário para a construção do progresso dos povos africanos, para garantir a segurança e a continuidade deste progresso (…) A liquidação total do colonialismo e das suas sequelas, a conquista prévia da independência nacional de cada país ou colónia, a transformação das estruturas económica e sociais e a aproximação das novas estruturas criadas nos países, deverão, na nossa opinião, constituir a base fundamental da realização da unidade africana”.

(Continua)

Em maré de sorte, este achado na Feira da Ladra, um mapa da Guiné, presumivelmente de trabalhos cartográficos aí pelos anos 1930. Envolvida pela Senegâmbia, o que leva a querer que a colónia francesa do Senegal ainda não se distingue da colónia britânica da Gâmbia. Quem vê este mapa é capaz de pensar que mais de metade do país era ocupado por Fulas, vejam com atenção. No Sul, preponderavam os Biafadas, o que não era totalmente incorreto, os Fulas tinham empurrado os Biafadas para o Litoral, os Nalus e os Sossos, por exemplo, tinham pouca expressão. Não há uma só referência a Mandingas nem a Papéis, parece que essas etnias eram puros epifenómenos. E vale a pena estudar a toponímia. Do que me foi dado ver e viver, na região centro-leste Goli corresponde a Porto Gole, Malafo era nome de rio mas não de povoação, Enxalé fica em frente ao Xime. Em frente a Bambadinca vêm referidas povoações inexistentes em 1960: Sambel Nhanta, que fora a sede do régulo do Cuor, tinha desparecido, Caranque Cunda era um pequeno lugar, que fora importante para acantonar as tropas macuas, em 1908, mas rapidamente perdeu importância. E Checibá talvez seja Madina. Podemos questionar se houve tantas migrações em escassas décadas. O ponto assente é que este mapa tem muitíssimo pouco a ver com a Guiné que conhecemos. O mapa terá sido produzido pelo Istituto Geografico de Agostini – Novara: talvez queira significar que os padres italianos já estavam a caminho.

Beja Santos
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Nota do editor

Último poste da série de 1 de setembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17718: Notas de leitura (992): Relatório científico do Aspirante de Artilharia Wilmer Delgado Pinto para o Mestrado em Ciências Militares na Especialidade de Artilharia, Academia Militar, 2014 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 1 de março de 2017

Guiné 61/74 - P17094: Notas de leitura (933): “Baía dos Tigres”, por Pedro Rosa Mendes, Publicações Dom Quixote, 1999 (4) (Mário Beja Santos)



Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Dezembro de 2015:

Queridos amigos,
Nesta gigantesca biblioteca da literatura de guerra há momentos muito compensadores quando pegamos em obras de qualidade irrefutável. É o prazer da descoberta, o ultrapassar pelos próprios meios este espesso território de nevoeiro em que andamos às apalpadelas a descobrir gemas literárias.
Foi consolador encontrar por puro acaso esta obra-prima de Pedro Rosa Mendes, uma peregrinação centrada no drama da guerra civil angolana. Penso que o autor fez bem em não nos relatar toda a sua viagem socorrendo-nos de um mapa, dá-nos a imagem de vários países da África Austral, por lá terá andado, mas é impossível que qualquer leitor português ou angolano não se tenha arrepiado com o que ele descreve acerca do Huambo ou do Cuíto, dos mutilados, dos que vivem vida dúplice, dos que perderam a esperança e até os ideais.
Por favor, logo que possam procurem ler "Baía dos Tigres" e depois conversamos mais a preceito.

Um abraço do
Mário


Baía dos Tigres, por Pedro Rosa Mendes: 
uma obra-prima na descida aos infernos (4)

Beja Santos

Neste livro prodigioso de nome “Baía dos Tigres”, das Publicações Dom Quixote, Pedro Rosa Mendes pega por vezes num protagonista que vai acompanhar uma narrativa dramática, onde não falta o horror e as situações delirantes. É o caso de Maria Alexandre Dáskalos que disse a um embaixador em Luanda acerca da guerra que ia voltar pior do que antes e que recebeu uma resposta vexatória:
“Estou aqui para lidar com negros. Os brancos de Angola são filhos de emigrantes miseráveis”. E o pior veio mesmo, em Huambo. Depois da ocupação da cidade pela UNITA, o MPLA regressou em Fevereiro de 1976, enviando a pior espécie de gente. Quando Maria Alexandra voltou a Luanda, alertou os militares e civis que iriam aparecer mais vítimas. “No quartel-general das FAPLA disseram-lhe que o Huambo era um caso perdido e que já tinham consciência disso há seis meses atrás. Não fizeram nada para salvar a vida dos seus militantes. No estado-maior das FAPLA ouviu também uma frase que lhe ficou para sempre: a revolução precisa de heróis. Foi a definitiva machada enquanto militante do MPLA”.

E há as descrições apocalíticas dos dramas vividos nas regiões transfronteiras. O viajante pretende atravessar de Kanyemba para o Zumbo. Vê o sol a desaparecer vermelhão na cordilheira do Zambeze. E chegaram ao Zumbo, onde não há comida, nem eletricidade, telefone, água ou estrada, ouve-se o resfolegar dos hipopótamos no rio. A descrição que se segue é inesquecível:
“Zimbabueanos, zambianos e moçambicanos sobem as escadas do terraço, como se subissem da água, e entram na casa da imigração para carimbar passaportes – bocados de papel amarrotados que inventam três países diferentes nesta corrente igualmente leitosa. Há uma fronteira tripla onde o Zambeze entra em Moçambique: Moçambique é aqui e do outro lado, o Zimbabué é do outro lado mas mais a montante, a Zâmbia é deste lado mas também a montante, com outro rio entre nós e ela, o Luangwa, afluente do Zambeze. Zumbo, Kanyamba e Feira (o posto zambiano) são uma encruzilhada do nada, pontos cortados dos respetivos centros. Pesca-se muito e o peixe circula em quantidade – come-se em Harare, Lusaca e até Lubumbashi. A água é, portanto, a única nacionalidade.
Os pescadores sobem as escadas dos escravos, as escadas onde estou há horas agrilhoado ao flutuar dos hipopótamos. O posto tem uma bandeira no mastro ao fundo do terraço e posso quase fingir, neste ponto alto, que é a Emigração é um barco de pavilhão FRELIMO a quem proibiram o rio”.

As histórias prosseguem, há crianças em permanente risco de vida, e há crianças que aprendem as regras mais elementares da sobrevivência, um exemplo:
“Os putos do Lobito Velho inventaram uma armadilha para apanhar gaivotas na baía. Espetam dois pauzinhos verticais na areia, à beira da água, de forma a aguentarem-se sozinhos, e atam um fio entre os pauzinhos. Deixam um laço bem largo, com uma ponta ligada a uma pedra. Colocam um isco entre os paus. As gaivotas apanham o isco entre voo, passando pelo meio dos paus e enfiando o bico no laço. O nó aperta-se com o próprio impulso do pássaro, asfixiando-o em poucos segundos. A pedra não deixa as gaivotas levantar voo. Os putos precipitam-se sobre as aves, partem-lhes uma asa e começam a depená-las ainda vivas”.

Isso tudo já é pungente, o mais horrível está por chegar, o massacre em Wiriyamu:
“Ao meio-dia, 13 horas, começou. A 6.ª Companhia de Comandos fez o assalto praticamente em simultâneo em Wiriyamu, Juwau, Chaola e Jimusse. O massacre foi em todos os sítios com um sistema igual. Eles faziam o seguinte: foi um sábado, as pessoas estavam a beber pombe, a conviver, havia portanto aglomerados nos sítios de bebida tradicional. Os Comandos pegavam, metiam as pessoas nas casas maiores e incendiavam-nas e elas morriam queimadas lá dentro. Algumas que tentavam fugir eles matavam a tiro e outras até à baioneta. Até às crianças, pegavam e atiravam-nas para cima das palhotas em fogo. No Jimusse foi onde morreu mais gente mas puseram o local do monumento aqui porque era melhor. No Jimusse juntaram as crianças e as mulheres num sítio e os homens noutro. Punham os homens em fila indiana e três militares armados mandavam-nos correr para ver quem acertava primeiro. Alguns conseguiram fugir aos ziguezagues e a correr. Houve mulheres e crianças que assistiram à morte dos pais e maridos, mesmo em frente deles. No fim, pegavam em granadas e atiravam para os aglomerados de mulheres e crianças”.

Todas as digressões têm imensos riscos, mas há pontos onde se deve esperar sempre uma tragédia, assim:
“De Benguela ao Lubango corre uma das estradas mais perigosas de Angola, das mais riscas em histórias de sangue: as perseguições, os combates, as emboscadas, as serras onde se perderam guarnições das FAPLA, campos das FALA, bases da SWAPO. A viagem é longa e penosa. Tem que ser feita em dois dias porque o piso está péssimo – só os 80 quilómetros finais, a partir de Cacula, demoram 4 horas. Normalmente não se viaja depois do sol-pôr. Em guerra, é um paraíso da guerrilha. Na bizarra paz angolana, é território para os bandos armados. Os camionistas de Benguela avançam para a Huíla armados e em comboio”.
É perto do fim de toda esta dolorosa narrativa que se fala na baía dos tigres:  
“Os cães na Baía dos Tigres eram apanhados da seguinte maneira: os colonos arranjavam uma gaiola muito grande e punham um angolano lá dentro, ou um gajo que aparecesse a querer ganhar dinheiro. Metiam o gajo numa jaula dentro da outra, depois de o fazerem correr um bocado para ele ficar a pingar suor. E ele ficava a ali. Os cães vinham de noite, Sentiam o cheiro do tipo. Mas ele já tinha um atilho na porta e quando os cães entravam ele puxava e os cães ficavam enjaulados. O homem passava lá a noite com o cão a babar-se de ladrar. Os colonos vendiam os cães. Cães bravos. Atacavam tudo o que viam”.

E findamos este horror de dramas com Domingos, a quem 14 anos em combate ensinaram que o pior da guerra são os heróis. “Domingos Pedro, 31 anos, angolano é refugiado em Mongu, capital da Zâmbia Ocidental. Estava no Rivungo (Cuando Cubango) quando o conflito recomeçou em 1992. Resolveu fugir, atravessando o rio Cuando. Salvou-se de morrer na guerra para viver na miséria. É natural do Bié. A família ficou para trás, como é também normal entre grande parte da população angolana afetada pela guerra – os parentes mais queridos desapareceram algures num pontão, ataque, emboscada, evacuação, num desadeus traumático. Uma espécie de morte sem a perfeição do luto que liberta os sobreviventes”. Em criança, Domingos já estava incorporado nas FAPLA, anos depois mudou para a UNITA. “Por duas razões de convicção: uma, foi capturado; duas, MPLA e UNITA há muito que deixaram de precisar de um ideal nos seus soldados – basta-lhes o sacrifício e as disciplina”.
E ficamos a saber como vive Domingos:
“Domingos atravessa o Cuando a salto, contratado por traficantes interessados em entrar-se em perigo e sair com diamantes. Sete anos de Luanda, sete anos de Jamba. Domingos tem uma lucidez privilegiada”.
A sua conclusão aproxima-se da tragédia desta empolgante literatura de viagens que é a Baía dos Tigres:
“Já não há mais nada a libertar. O quê? É negócio, no fim. Um é o petróleo, o outro é os diamantes e o mercúrio. O povo não recebe. Não tem parte. O povo morre. O Santos começou a divergir depois da morte do Neto. E o Savimbi diz-se que nunca teve governo mas um chefe deve tratar bem os empregados”.

Incontestavelmente, uma obra-prima que ultrapassa as dimensões de todos os dramas vividos na descolonização.
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Nota do editor

Último poste da série de 27 de Fevereiro de 2017 > Guiné 61/74 - P17088: Notas de leitura (932): “Baía dos Tigres”, por Pedro Rosa Mendes, Publicações Dom Quixote, 1999 (3) (Mário Beja Santos)