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terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Guiné 61/74 - P16983: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (39): 3 - O amigo Mohammed de Marrocos

Tânger


1. Em mensagem do dia 23 de Janeiro de 2017, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), autor do Livro "Memórias Boas da Minha Guerra", enviou-nos a terceira história da sua mini-série "O meu amigo Mohammed", este de Marrocos.

Caros amigos
Junto a história do amigo Mohammed.

Grande abraço
JFSilva


Memórias boas da minha guerra

39 - O amigo Mohammed

3 - De Marrocos

Foi uma viagem incrível a que fizemos no verão de 1975, também conhecido pelo Verão Quente do período revolucionário da nossa democracia. Éramos dois casais, amigos de infância, que se lançaram para a aventura, a caminho de Marrocos. A curiosidade levou-nos a almoçar em Rio Maior onde uma semana antes tinha havido fortes escaramuças provocadas por agricultores contra a reforma agrária, personificada pelas forças políticas de esquerda, especialmente pelo PCP e FSP. Tivemos oportunidade de ver os restos da “barricada” que havia paralisado o País durante alguns dias.

Estive preso mais de cinco horas na fronteira Vila Verde de Ficalho/Rosal de la Frontera, por me terem confundido como um PIDE em fuga, Após uma noite mal dormida (e mal comida) em Sevilha, seguimos para Algeciras. Esfomeados, pensámos aproveitar bem a viagem no restaurante do barco para Ceuta, onde não faltava alimentação. Porém, o enjoo e os vómitos aterraram-nos. Foi horrível quando vomitei lá de cima, da esplanada, sobre as pessoas do piso inferior.

Ceuta ainda era Espanha e, para passarmos para Marrocos, precisávamos de “Visto”. Isso levou-nos para uma fila interminável. Passámos esse Domingo quase todo em Ceuta, mas de uma forma pouco agradável.

Tânger 

Já em Tânger, optámos pelo regresso, uma vez que a frágil mulher do meu amigo, além do medo permanente, não suportava a comida local nem aqueles fortes aromas. Acumulámos, rapidamente, várias peripécias inesperadas com arriscados contratempos à mistura.

Embora me sentisse bastante ligado a África (estive na guerra da Guiné e, como civil, em Angola), apercebi-me de que perdera o entusiasmo de lá voltar.

Mas, 25 anos depois, tive um convite de Rabat para uma possibilidade de negócio. Foi o vizinho Neca Souto, camarada da guerra da Guiné, que me proporcionou essa ligação. Conheci então o meu amigo Takirene, ex-deputado parlamentar e herdeiro de uma grande empresa corticeira que entrara em queda logo após a crise causada pelo desmantelamento da URSS.

Acabámos por fazer uma sociedade com base na cortiça de Marrocos, fornecida por ele, e o seu tratamento em Sta Maria da Feira. Passei a fazer viagens assíduas a Rabat e à fábrica de Bouznika, a uns 30 Km a sul de Rabat.

Naquela viagem levava a preocupação de aclarar a estranha discrepância dos tickets das balanças, entre a origem e a chegada.
Posto o problema ao Mohammed, encarregado dos carregamentos dos camiões, ele acabou confessando que “é natural que alguns indivíduos se tenham escondido entre a cortiça para passar as fronteiras”.


Naquela época, era prática diária o aparecimento de relatos chocantes sobre a passagem ilegal de migrantes pelo estreito de Gibraltar, vindos do norte de África. Foram descobertos corpos destroçados nas estradas e outros asfixiados entre os ferros de suporte dos camiões. Na costa marítima espanhola, as pequenas embarcações de fugitivos eram recebidas a tiro pela guarda civil.

Muitos dos migrantes eram apanhados e devolvidos à origem e outros desapareciam por Espanha e Portugal, vagueando de terra em terra, ora escondidos, ora aparecendo como vendedores de artigos supostamente desviados, de contrafacção.

Como eu estava hospedado em Temara, no Hôtel la Felouque, junto à Plage Sable D’or, esperava jantar ali com o meu sócio. Porém, dada a movimentação de pessoal na preparação do palco anexo à esplanada, virado ao mar, por motivo da aproximação dos serões festivos do Ramadão, optámos por ir até um clube naval perto de Skhirat Plage.

Ali, em ambiente bastante mais acolhedor, saboreámos uma espécie de “Paelha à Marroquino”, onde era evidente a fartura de bom marisco. E, embora a “proibição” do álcool fosse uma regra sagrada, eu estava salvaguardado pela excepção do seu cumprimento, ao abrigo duma cláusula governativa que o legalizava, por interesse turístico. Não posso esquecer os bons vinhos que lá bebi, especialmente um tal Cabernet Sauvignon, da região de… Casablanca.

Foi mais um agradável serão, em que muito falámos sobre aquela cultura árabe, um tanto virada para o ocidente europeu. Ouvir o Takirene falar sobre isso era fascinante. Ele próprio, apesar de rico e de formação académica na Europa, vivia entre esses dois mundos. Era licenciado em Direito numa Universidade Católica Espanhola. Contava que seu pai gostava da cultura europeia. Todavia, não podia afastar-se muito dos costumes e da lei islâmica. Por exemplo, referiu que a sua mãe “oferecera ao pai, como prova de amor” uma jovem, para segunda mulher, capaz de lhe dar o prazer que já não conseguia.

Tinha uma irmã mas, segundo a lei, foi ele, filho varão, o principal herdeiro. Casou e procurava o seu descendente varão, que não apareceu. Teve cinco filhas que colocou na Europa a estudar nos melhores colégios. Vivia com o desgosto de ter como principal herdeiro, o seu sobrinho, órfão, tido como vadio, quase sem formação escolar e sem interesse em ocupação responsável. Suspeitava que se metera na droga. Enfim, apesar da fortuna familiar, vivia preocupado com o futuro das filhas.

Aquele agradável serão do jantar prolongado foi interrompido pelo Contabilista Hassan, que se aproximou, a solicitar a atenção do Dr. Takirene. Veio informar que o camião TIR ainda não saíra para Portugal, devido a um grave incidente. Quando o Mohammed, encarregado das cargas, tentou impedir a feitura do buraco no meio da carga, foi ameaçado de morte. O camião está pronto para sair da fábrica e à espera do motorista. O Hassan queria saber o que fazer, antes de o ir buscar ao hotel e lhe entregar as guias.

Seria fácil a denúncia destes foragidos. No entanto, era visível a complexidade de situação tão perigosa. A bonomia habitual do meu sócio não queria alhear-se do problema social daquele gente que lutava pela sobrevivência. Por outro lado, preocupava-se com as consequências que o Mohammed pudesse vir a sofrer.
- Que me dizes, José, sobre esta situação?
Não contava ter de lhe dar opinião. Todavia, adiantei:
- Por mim, não sei de nada, nem virei a saber.

****

Uns anos mais tarde, já fora de qualquer negócio com Marrocos, quando saía do Restaurante As Cubatas, logo a sul de Albergaria, dava uma olhadela aos artigos expostos no chão. O vendedor fitou-me e disse:
- Patrão, escolhe o que quiseres, tenho muito bom material.

Disse-lhe que não precisava de nada e lamentei que a cana de pesca não fosse o que precisava. Ele respondeu que eu poderia comprar outras coisas em Lourosa, porque ele também andava por lá e se abastecia nos armazéns de Sanguedo. Notei que já me conhecia.
- Como sabe que sou de lá?
Ele logo respondeu:
- Tu trabalhaste na cortiça e eu conheço bem Bouznika e o Dr. Takirene, de Rabat. Vous êtes bonne personne.

Ao afastar-me, ele insistia:
- Quero oferecer-te alguma coisa.

Surpreendido com a oferta, olhei para trás e ele acrescentou:
- Nous sommes amis de Mohammed.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 17 de janeiro de 2017 > Guiné 61/74 - P16961: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (38): 2 - O amigo Mohammed da Mauritânia

sábado, 3 de dezembro de 2016

Guiné 63/74 - P16794: O inicio da guerra colonial no CTIG, contada pelo outro lado: entrevista, de 2001, com o homem que liderou o ataque a Tite, Arafam 'N’djamba' Mané (1945-2004) - Parte I (José Teixeira)




Sítio das FARP - Forças Armadas Revolucionárias do Povo, Guiné-Bissau, onde vem inserido o poste "O fim da dominação colonial", com uma entrevista, concedida em 2001, pelo cor Arafam Mané (1945-2004), sobre o histórico ataque a Tite em 23 de janeiro de 1963.



O inicio da Guerra Colonial no CTIG, contada pelo outro lado:  entrevista,  de 2001, com o homem que liderou o ataque a Tite, Arafam Mané (1945-2004) -Parte I  (José Teixeira)



1. Enquadramento 

por José Teixeira



[Foto à esquerda: José Teixeira, em 2013, com o régulo de Medjo: 

(i) é nosso grã-tabanqueiro da primeira hora; 

(ii) tem mais de 300 referências no nosso blogue; 
(iii) foi 1.º cabo aux enf,  CCAÇ 2381, "Os Maiorais", Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70; 

(iv) está reformado como gerente bancário;  (v) vive em São Mamede de Infesta, Matosinhos; 

 (vi) é dirigente no movimento nacional escuteiro, onde é conhecido por "esquilo sorridente"; 

(vii) é um dos fundadores e 'régulos' da Tabanca de Matosinhos e continua a ser um dos nossos grã-tabanqueiros mais solidários e inquietos;

 (viii) foi talvez dos poucos de nós que, graças ao seu papel de enfermeiro (e também por mérito pessoal, pela sua generosidade, coragem, inteligência emocional, sensibilidade sociocultural,, empatia  e demais qualidades humanas), conseguiu saltar a 'barreira da espécie': ele, "tuga" e cristão, foi aceite e amado pela população fula e muçulmana, e ainda hoje tem verdadeiros amigos, fulas, lá Guiné-Bissau profunda, onde  é amado, mimado, adorado quando lá volta (e já lá voltou não sei quantas vezes) ]


Todos nós, os que passamos pela guerra, temos vindo com o tempo, a tentar passar aos vindouros as situações vivenciadas no ambiente agressivo da guerra. É o nosso ponto de vista. Com mais ou menos romantismo; com mais ou menos realismo, vamos escrevendo o que a nossa memória registou. É comum ouvirmos camaradas nossos contar testemunhos de situações que vivemos em conjunto e encontrarmos diferenças nas versões dos acontecimentos, ou pormenores que desconhecíamos. Foram vividas em comum, mas analisadas por outro ponto de vista. Alguém, com outra base académica ou cultural, ou até com outra visão politica e militar da situação. O local e ângulo de onde se está a vivenciar o acontecimento, afetam a informação registada na memória. A memópria humana é seletiva.

Neste caso concreto, estamos a tomar conhecimento de um testemunho de alguém que vivenciou o ataque a Tite. Foi o seu comandante, mas do outro lado da barricada, logo, o relato dos acontecimentos que viveu e a visão global do ataque são à partida diferentes (e tão "respeitáveis", omo os nossos relatos). São estes conjuntos de pontos de vista, diferentes entre si, e muitas vezes contraditórios, dos acontecimentos que vão permitir escrever a História.

José Teixeira, Tabanca de São Martinho do Porto,
11/8/2011. Foto de LG.
É comum afirmar-se que a guerra colonial na ex-província da Guiné teve o seu inicio com um ataque a Tite na célebre noite de 22 para 23 de janeiro de 1963, Aliás, o próprio Amílcar Cabral afirmou-o uns dias depois.

Na realidade, este ataque, pela sua dimensão e resultados, com mortos e feridos de ambas as partes em contenda, assinala simbolicamente a abertura das hostilidades.
E, no entanto, foi um acontecimento fortuito, desorganizado, sem comando definido e sobretudo à revelia dos órgãos do PAICG. 
Assim o afirmou, em 2001, o coordenador do ataque,  o então coronel Arafam Mané. 

Segundo ele, a guerrilha, à data, já era um facto no Norte, no Centro Sul e Sul desde 1961. Tite já terá sido atacada em 1962. As regiões do Tombali e Quínara estavam a fervilhar numa luta surda entre as forças portuguesas e o PAIGC, com muitas mortes (assassínios) na população, da responsabilidade de ambos os intervenientes. Esases primeiros tempos foram de terror e contarterror, subversão e contraversão... Uma época muito mal conhecida (e pior estudada)...

Revivo com saudade o meu amigo Samba, de Mampatá Foreá, infelizmente já falecido há muitos anos. Sargento da milícia, imã da comunidade muçulmana local (Fula). Homem culto, excelente cozinheiro,  que deixou Bissau para regressar à sua terra, o Regulado Foreá, e defender o seu povo. Muitos serões passámos em amena conversa, onde a religião e o drama da Guiné eram assunto.

Recordo, apesar da poeira do tempo, uma conversa sobre a forma como o inimigo procurava conquistar aderentes à força, no início da luta. Eles, dizia-me, o PAIGCV, entravam, armados, pelas tabancas dentro, e tentavam convencer o chefe da tabanca a entregar os jovens para as forças da guerrilha. Se não o fizesse,  era morto ali mesmo, e os homens válidos eram convidados a segui-los ou em caso de resistência eram forçados, com muitas mortes pelo meio.

Não foi por acaso que o Amílcar Cabral convocou o Congresso em Cassacá, em 1964. Um dos objetivos deste Congresso, foi acabar com as barbaridades,  as arbitrariedades eos abusos de poder, praticadas por alguns chefes de guerrilha, sem qualquer preparação política, de modo a que o povo voltasse a ganhar a confiança no Partido, nos seus dirigentes e no destino da luta de libertação nacional.

Muitos anos mais tarde, em 2008 no Simpósio Internacional de Guileje, tive oportunidade de conhecer e conversar com um ex-combatente das FARP da Guiné-Bissau que me tinha atacado várias vezes em Mampatá e na estrada de Gandembel, em 1968. É dele esta frase, que recordo com emoção:

“Guerra é guerra, meu 'ermon', quando passa não deixa saudades, mas, muitas amizades, neste mundo perdido. Os antigos inimigos se procuram, para saldar as contas com um abraço sentido.” Dizia-me ele: "Desculpa. Eu fui apanhado na minha tabanca, tinha quinze anos."

Mas não pensemos que as autoridades portuguesas ofereciam mel e pão aos guineenses para os conquistar para a sua causa. Os factos narrados nesse Simpósip, por vitimas guineenses, que fugiram para o mato, creio que por medo (alguns) e posteriormente integraram a guerrilha, são de fazer arrepiar o mais “durão”. Era o tempo do “chapa ou fogo” na versão mais agressiva do temido e odiado capitão Curto por parte dos guineenses afetos ao PAIGC (*).. E, nas minhas idas à Guiné-Bissau, tenho conversado com ex-combatentes do PAIGC, onde relembram os tempos de terror imposto pelos "tugas" nas tabancas do interior, que os levou a fugirem para o mato e entrarem na luta.

Mas voltemos ao ataque a Tite para rever os acontecimentos através de relatos insuspeitos de terceiros e presenciais.

".... Em Janeiro de 1963, foi a sede do Batalhão atacada com armas automáticas e de repetição e granadas de mão. Deste ataque resultou 1 morto e 1 ferido das NT e 8 mortos confirmados e vários feridos graves IN. Depois deste ataque foram intensificados os patrulhamentos de que resultou a morte do Papa Leite, elemento IN que actuava na área e que facultou a recolha de valiosíssimos elementos da Ordem de Batalha IN..."

In, Carta de 7-07-1981 do ten cor  Manuel José Morgado, enviada ao director do Arquivo Histórico Militar, em resposta ao assunto " História das Unidades ".

Resumo da Actividade do BCaç. nº 237/BCaç. nº 599 - Maio de 1963 a Maio de 1965 [Caixa nº 123 - 2ª Div/4ª Sec., do AHM


O historiador José de Matos fala em quinze a vinte elementos do PAIGC, que mantem o quartel sob fogo intenso, durante cerca de meia hora, provocando um morto e dois feridos às nossas tropas e deixando três mortos no terreno.(vd. poste  P15795).

O nosso investigador de serviço ao blogue, o incansável José Martins, convidado pelo Luís Graça a investigar o ataque a Tite, concluiu:

“Arafan Mané (, nome de guerra, 'Ndajamba'), militante do PAIGC, destacado Combatente da Liberdade da Pátria, é considerado o 'responsável' pelo inicio das hostilidades na Guiné, ao ter disparado a primeira rajada de metralhadora e comandado a ofensiva. Teria menos de 20 anos. Veio a falecer em 2004, em Espanha, de doença". (P10990)

Estranhamente pouco ou nada se escreveu oficialmente sobre este acontecimento tão marcante, (seria?) para o desenvolvimento da guerra na Guiné.

Há o testemunho do Gabriel Moura, (vidé P 3294; P 3298 e P 3308 de 11/11/2008; 12/10/2008 e 13/10/2008 respetivamente). Foi este soldado português de Gondomar que estava de sentinela ao quartel de Tite, naquela fatídica noite, que entrou no Blogue pela mão do Carlos Silva, (seu conterrâneo e amigo) já depois do seu falecimento para contar a história que vivenciou. Foi o primeiro militar português, quando se encontrava de guarda ao aquartelamento, a responder ao fogo da força que atacou as instalações de Tite. Na reação ao fogo de que foi alvo, consumiu todas as munições de que dispunha, provavelmente três carregadores, assim como utilizou as duas granadas que lhe estavam distribuídas para o serviço. Faleceu em 2004, dois anos após ter editado as suas impressões sobre o acontecimento, e por coincidência no mesmo ano da morte de Arafan Mané.

Temos agora a oportunidade de tomar conhecimento do testemunho do Arafam Mané, ou seja, a versão de quem comandava o outro lado da barricada, numa entrevista publicada em 2001 no jornal O Defensor – Orgão de Informação Geral do Estado Maior das Forças Armadas da Guiné-Bissau. Reproduzida em 2015 no sítio das FARP – Forças Armadas Revolucionárias do Povo, por iniciativa do major  Ussumane Conaté,. diretor da publicação.



2. Arafam 'N' djamba' Mané (1945-2004)
(segundo nota biográfica redigida pelo major Ussumane Conaté, diretor de O Defensor; adaptação de JT])

[Foto à esquerda, Arafam Mané, cortesia de O Defensor]


O comandante Arafam 'N’djamba'  Mané nasceu no dia 29 de setembro de 1945, em Bissau, sendo filho de Lassana Mané e de Nhalin Cassama. Faleceu, de doença de evolução prolongada,  no dia 4 de setembro 2004,  num hospital de Madrid,  onde estava internado, [A data de nascimento pode não ser precisa, os guineenses nessa época não tinham registo civil].

Arafam Mané entrou cedo para o PAIGC, tendo chegado a Conacri, capital da República de Guiné em 1961, onde se foi juntar a Amilcar Cabral e outros militantes do PAIGC que tinham deixado Bissau para, a partir dali, organziar e dirigir a luta de guerrilha.

Após a proclamação unilateral da independência do país em 24 de setembro de 1973, o coronel Arafam 'N´djamba'  Mané ocupou vários cargos  entre as quais os  de chefe de Casa Civil da Presidência da República, director geral da farmácia Farmedie, governador (sucessivamente) das regiões de Gabú e Bafata, ministro da Defesa Nacional,  ministro dos Combatentes da Liberdade da Pátria.

Foi também deputado  durante vários mandatos legislativos, membro do Comité Central, membro do Bureau Politico do PAIGC e também membro do Conselho de Estado durante o mandato presidencial de Koumba Yala. (Notas de Ussumane Conaté,  coronel, diretor de O Defensor)

[Mais elementos sobre Arafam ou Arafan Mané: vd.  poste P2190 de Virgilio Briote]

Esta entrevista, de que se reproduz uam primeira parte, hioje neste poste,  foi concedida em 2001 ao jornal O Defensor  "no quadro da recolha de depoimentos dos Combatentes da Liberdade da Pátria sobre os acontecimentos históricos que marcaram a luta armada de libertação nacional para a independência total da Guiné-Bissau do jugo colonial".

É um documento de interesse para todos nós, pelo que tomamos a liberdade de o reproduzir e divulgar, no nosso blogue, com a devida vénia.  São raros os testemunhos de históricos dirigentes e comandantes do PAIGC, como o Arafam Mané.  Muitos deles morreram, levando consigo irremediavelmente para a tumba as suas memórias.  Nunca escreveram ou deram uma entrevista em vida.


3. Sinopse da entrevista (parte I) 


O Arafam Mané assumiu, com 18 anos, o comando da operação. Começa por confessar que o grupo,  vindo de Conacri,  não tinha experiência militar e estava muito mal armado - tinham apenas, três armas e uma pistola.  Ao grupo juntaram-se civis,  de várias tabancas locais, num total de cerca de 150 pessoas, munidos de catanas, paus, pedras e algumas armas de fogo, suponho que mausers (?) e canhangulos.

A iniciativa partiu do grupo sem que tenha sido dada qualquer ordem superior. Ele mesmo afirma ao entrevistador: “Garanto-lhe que ninguém nos tinha dito nem ordenado atacar o inimigo no quartel de Tite”. E explica o "contexto":  "A operação foi realizada com raiva porque, em 1962, fomos corridos pelos 'tugas'. Este episódio aconteceu, depois de termos efetuado uma sabotagem, cortando as linhas telefónicas e os cabos elétricos daquela zona sul do país. Foi a partir das ações de sabotagem, que a administração colonial e suas forças de defesa e segurança souberam da nossa presença na área."

Muito interessante a ideia (romântica?) de se fazer acompanhar de um “djidiu” de kora (músico tradicional) para cantar, animar e elogiar os camaradas, enquanto combatiam no interior da unidade. Só que o “djidiu” deu ás de “vila diogo” e o combate ficou sem música, que não fosse a das espingardas e os gritos de dor.

Afirma que só tiveram um morto, creio que o seu guarda-costas, Wagna Na Bomba, o que contradiz a informação recolhida no nosso blogue, que fala em 8 mortes. Dado que grande parte dos atacantes eram da população local, talvez se esteja a referir apenas aos elementos do grupo vindo de Conacri e os outros mortos tenham sido dos elementos civis, locais

Refere que o  Quemo Mané [, um homem temperamental  e violento, associado a cenas de terroer, pós-independência, segundo o testemunho do nosso Cherno Baldé] foi encarregado de tentar eliminar o major Fabião.

Suponho que ele se queria referir ao major Pina, comandante da unidade sediada em Tite. [Nessa altura, era o BCAÇ 237, chegado à Guiné em 18/7/1961; esteve em Tite até ao fim da comissão, em 19/10/1963; teve dois cmdts: major inf [José] António Tavares de Pina; e depois o nosso conhecido ten cor Hélio Augusto Esteves Felgas, que será mais tarde o cmdt do Comando de Agrupamentio nº 2957, Baftá, 1968/70.]

Aconselho a leitura do testemunho do Gabriel Moura / Carlos Silva para se entender o conteúdo da entrevista que se segue e apurar as contradições. (Sinopse de JT).



Primeira página de O Defensor, órgão das FARP - Forças Armadas Revolucionárias do Povo. Edição nº 22, dezembro de 2015, 16 pp.,   disponível aqui em formato pdf. O jornal, fundado em 1994, e de periodicidade mensal, tem como  diretor o major Ussumane Conaté.


4. Entrevista com o coronel Arafam Mané - Parte I

Com a devida vénia ao jornal O Defensor, ao seu diretor, major Ussuame Canoté, e ao sítio das FARP. Revisão e fixação de texto: José Teixeira.



O Defensor – O coronel fez parte do comando que em janeiro de 1963 orquestrou o ataque 

contra o aquartelamento fortificado de Tite, em Quínara, no sul do país. 

O que é levou o vosso comando, mal-armado e inexperiente, 
a atacar esse quartel colonial?



Coronel Arafam Mané - O ataque contra o aquartelamento de Tite foi realizado com poucas experiências militares, pois o efetivo que participou nele, era constituído por um grupo de camaradas do partido vindo de Conakry, [a que se juntaram elementos das] populações locais , munidas de algumas armas de fogo, catanas, paus e pedras. 

O ataque que surpreendeu as tropas do exército colonial, [que era]  muito temido pela sua barbaridade contra os autóctones, foi de facto executado sem um comando designado. Foi um ato de coragem e patriotismo que, desde a época dos nossos antepassados, sempre caracterizou a resistência dos guineenses contra qualquer tipo de dominação.

Em termos de armamentos, tínhamos apenas quatro (4) armas, uma pistola (1). Entreguei aos camaradas uma pistola e a arma que eu tinha, e fiquei com uma pistola automática com a qual disparei o primeiro tiro {[para o]  ar para assinalar ]a]os companheiros o início do ataque quando estávamos no interior do quartel fortificado de Tite. Com esse disparo, os camaradas entraram em ação,  utilizando todos os meios de combate que possuíam. O estrondo das armas,  misturado com as vozes de comando dos guerrilheiros que procuravam orientar melhor os companheiros para evitar perdas humanas, acordou as tropas coloniais e despertou a atenção dos sentinelas.

A operação foi realizada com raiva porque,  em 1962, fomos corridos pelos "tugas". Este episódio aconteceu, depois de termos efetuado uma sabotagem,  cortando as linhas telefónicas e os cabos elétricos daquela zona sul do país. Foi a partir das ações de sabotagem, que a administração colonial e suas forças de defesa e segurança souberam da nossa presença na área.

[Em] 1963 repetimos a mesma operação de corte de linhas telefónicas e cabos elétricos. Estas práticas que eram prejudiciais para a comunicação e o funcionamento das instituições públicas e militares, irritaram os colonialistas que começaram a pressionar as populações com ameaças e torturas para obterem informações sobre os que eles chamavam “terroristas”. No âmbito da repressão foram alargadas as redes da PIDE-DGS (Polícia colonial).

O Defensor  – Na altura, a guerrilha já tinha criado 'barracas' 
a partir das quais coordenava as ações militares 
contra os interesses coloniais?

Coronel ADM - Na altura ainda não tinha constituído 'barracas' [acampamentos temporários]. Às vezes alguns camaradas nossos saiam do Sul, iam até Bissau cumprir missões do partido e regressar sem serem descobertos pelas autoridades portuguesas, a PIDE e os seus agentes. Para além de Bissau, cidade capital, mais controlada, os guerrilheiros também se infiltravam nas tabancas,  partilhando refeições e outros alimentos com as populações sem que ninguém desse  conta ou soubesse quem eram.

Mas não pense que tínhamos homens prontos para efetuar trabalhos de reconhecimento e outras missões arriscadas. Não. Às vezes era eu, o meu guarda-costas e meu adjunto, camarada Fernando Badinca, entre outros.

Foi assim que,  em 1962, nos instalámos na tabanca de Cantongo a 3 km de Nova Sintra, a partir de onde nos movimentávamos até as aldeias de Flac-An, Flac Mindé, Flac-Mim, Flora, Bunaussa... Às vezes atravessávamos o rio, íamos a Bolama e daí íamos para a tabanca de Uato para entabular contactos com a população, com o régulo Oliveira Sanca, contactar Jaime Sampa, Lai Canté e outros camaradas. [Eram]  estes que nos enviavam jornais e outros objetos de que precisávamos.

Tínhamos também contactos com o camarada Rafael Barbosa, Aristides Pereira,  inclusive o senhor Eustáquio que, ultimamente, depois da independência teve problemas [de saúde mental]. Foi assim que se iniciou a luta armada de libertação nacional.

O Defensor  – Qual é a estratégia adotada pela guerrilha 
quando se sentiu ameaçada pela movimentação 
da força militar colonial na zona?


Coronel ADM - Alguns tempos depois fomos obrigados a abandonar esses locais, devido as ações do inimigo que, em termos de material bélico, nos superava na altura. Este é o primeiro fator. 

O segundo fator é que abandonamos a zona para salvaguardar as nossas populações, alvos de torturas quando os "tugas"  descobriam que a tabanca manteve contactos connosco ou albergava os nossos camaradas.

Entretanto, quando nos retiramos de lá, fomo[-nos]  instalar na tabanca de Calunca a partir da qual conseguimos ocupar todas as tabancas da fronteira com a Guiné Conakry. Logo depois da ocupação daquelas tabancas,  mandamos o camarada Malam Sanhá, para Conacri, para contactar os membros da Direção Superior do Partido e dar-lhes informações sobre a nova situação.

A chegada de Malam Sanhá a Conacri coincidiu com a chegada das primeiras armas provenientes do reino de Marrocos. Eram cerca de quatro a cinco armas de marca “Patchanga” [metralhadora ligeira DEGTYAREV RDP Cal. 7,62 mm] que,  quando chegaram,  foram distribuídas entre nós,  antes de voltarmos para o mato.



Guiné > 1964 > PAIGC > Cassacá > I Congresso.do PAIGC, Quinta, 13 de fevereiro de 1964 - Segunda, 17 de fevereiro de 1964, Da esquerda para a direita, Abdulai Barry, Arafam Mané, Amílcar Cabral, Domingos Ramos e Lai Sek durante o I Congresso.do PAIGC, em Cassacá,

Foto (e legenda): Portal Casa Comum / Fundação Mário Soares, Consult em 28 de junho de 2016. Disponível em http://www.casacomum.org/cc/visualizador?pasta=05224.000.056 (Reprodução parcial, com a devdia vénia)


O Defensor –A chegada das primeiras armas do reino de Marrocos 
às mãos da guerrilha, foi acompanhada de uma ordem superior 
para atacar o quartel colonial de Tite?


Coronel ADM – Garanto-lhe que ninguém nos tinha dito nem ordenado atacar o inimigo no quartel de Tite. Amílcar Cabral não nos tinha dito nem ordenado atacar o fortificado quartel com três ou quatro armas. Amílcar Cabral recomendou apenas que voltássemos para o mato,  visto que estávamos armados. Mas, no entretanto, para assustar os colonialistas e também para libertar os nossos companheiros, encarcerados na prisão, decidimos assaltar o quartel de Tite.

Eu me encontrava baseado em Nova Sintra enquanto Malam Sanhá estava na área de Cantona (Fulacunda), onde já se sentia sufocado,  devido a falta de matas densas para se esconder melhor. Esta realidade que representava um potencial risco para ele e seus homens, obrigou[-o] a abandonar o local e juntar-se a nós,  em Nova Sintra.

Recordo que Malam Sanhá chegou a Nova Sintra, precisamente na altura em que nós já estávamos em plena preparação da operação de assalto ao quartel de Tite. Aproveitamos logo a oportunidade para apresentar-lhe a nossa ideia de assaltar as instalações militares de Tite e ele concordou.

Portanto, uma vez a ideia acertada, procedeu-se a distribuição de tarefas claras e concretas a cumprir por cada um de nós. Assim, o camarada Malam Sanhá,  que já tinha sido militar no exército colonial português, foi designado para destruir a caserna dos soldados, enquanto o camarada Quemo Mané tinha como missão eliminar fisicamente o major Fabião, comandante da força colonial em Tite. Quemo Mané, que era grande caçador, tinha essa missão porque conhecia muito bem a residência do major, a quem ia sempre vender carne de caça.

O camarada Dauda Bangura tinha como missão rebentar as portas da prisão, [fazendo  explodir uma mina. Ele tinha feito um treino militar na República Popular da China por isso tinha alguns conhecimentos sobre as minas.

Eu fui encostar-me [a uma] das esquinas da caserna que devia ser atacada pelo camarada Malan Sanhá. Foi a partir dali que disparei a pistola, o primeiro tiro que deu início ao histórico ataque da guerrilha contra o quartel fortificado de Tite. 

Neste ataque, levámos connosco um “djidiu” de kora (músico tradicional) para cantar, animar e elogiar os camaradas, enquanto combatiam no interior da unidade. Mas este camarada,  com a intensidade do fogo e a tentativa de resposta do inimigo, não desempenhou o seu papel e acabou por desaparecer,  abandonando os instrumentos musicais.

Eu, a partir da posição que ocupava,  gritava com força ao camarada Dauda Bangura,  dizendo-lhe “Dauda! Mina, mina, coloque a mina no sítio indicado e faça-a explodir”. Eu gritava tanto, porque não tínhamos experiência de guerra. Talvez foi por essa razão que não sentíamos o perigo que pairava sobre nós assim como as consequências que poderiam advir.

(continua)

Introdução, seleção, notas, revisão e fixação de texto:  Zé Teixeira

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Nota do editor:

(*) Vd. poste de 18 de agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6866: O Nosso Livro de Visitas (97): José Pinto Ferreira, ex-1º Cabo Radiotelegrafista, CCS/BCAÇ 237 (Tite, Julho de 1961 / Outubro de 1963): Evocando o lendário Cap Curto (CCAÇ 153, Fulacunda, 1961/63)

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15430: Fotos à procura de... uma legenda (66): Expedição Porto-Bissau, organizada por Xico Allen e A. Marques Lopes. 9 de abril de 2006, dia 5, de Roc Chico a Nouakchott, capital da Mauritânia... Um encontro amigável com sarauis e camelos (Hugo Costa)



Foto nº 1



Foto nº 2


Foto nº 3

Foto nº 4


Expedição Porto-Bissau, organizada por Xico Allen e A. Marque Lopes... 9 de abril de 2006...Dia 5, De Roc Chico a  Nouakchott, capital da Mauritânia... Um encontro amigável com sarauis e camelos... Fabulosa a foto nº 2. Grande fotógrafo, o nosso Hugo Costa, filho do Albano Costa que, juntamente com a Inês Allen, integrou esta viagem à Guiné, por terra, pelo deserto do Sara...  No foto nº 3, para além do Xico Allen, do A. Marques Lopes, dos dois sarauis, e da Inês Allen (de costa), aparece o Manuel Costa (se não erro), junto á porta traseira do jipe.

Estive há dias a rever estas fotos... que merecem uma boa legenda!...

Fotos: © Hugo Costa (2006). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]

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Nota do editor:

Último poste da série > 26 de novembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15414: Fotos à procura de... uma legenda (65): Os que deram, não a vida, mas uma parte do seu corpo (um pé, uma perna, uma mão, um braço, ou os olhos) pela Pátria (José Maria Claro / Francisco Baptista)

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Guiné 63/74 - P15405: Expedição Porto-Dakar, integrada na 2ª edição do Dakar Desert Challenge: Coruche, Marrakech, Bissau, Dakar: 26 de dezembro de 2013- 9 de janeiro de 2014 (Abílio Machado, ex-alf mil, CCS/BART 2917, Bambadinca, 1970/72) - Parte I

1. Mensagem,  de 31 de agosto de 2015,  do Abílio Machado 

[o nosso "Bilocas" de Bambadinca, grande amigo dos velhinhos da CCAÇ 12, eu, o Tony Levezinho, o Humberto Reis, o Gabriel Gonçalves, entre outros; ex-alf mil, contabilidade e administração, CCS / BART 2917, Bambadinca, 1970/72; e também um dos fundadores do grupo musical Toque de Caixa; vive na Maia; publicou recentemente o Diário dos Caminhos de Santiago, Porto, 2013]

Caro Luis :

Em anexo, segue o texto digital da expedição à Guiné (e não só).

Datando o evento : 26 de Dezembro 2013 a 9 de Janeiro 2014, passando por Portugal, Espanha, Marrocos, Sahara Ocidental, Mauritânia, Guiné-Bissau, Gâmbia e Senegal.

Enviarei depois algumas fotos que possam "engalanar" o texto.

Grande abraço
Bilocas


PS - A passagem pela Guiné foi - não o escondo - um dos motivos maiores que me trouxeram a esta expedição [, do Dakar Desert Challenge]. E a aventura, que sempre me estimula.  A oportunidade de rever amigos e voltar a um território onde, por força da guerra,  gastei dois anos da minha juventude, tornavam esta jornada mais que aliciante.


Abílio Machado, foto atual
2. Porto-Dakar - Parte I

por  Abílio Machado  

[, integrado na 2ª edição do Dakar Desert Challenge: Coruche, Marrakech, Bissau, Dakar: 26 de dezembro de 2013- 9 de janeiro de 2014 ] (*)


Fotos (e legendas): © Hugo Costa (2006). Todos os direitos reservados.  Como o Abílio Machado não nos mandou as fotos a tempo, usamos as da Expedição Porto-Bissau, realizada em abril de 2006, por Xico Allen e A. Marques Lopes. [Edição e legendagem complementar: L.G.].


A expectativa era alta, largos os horizontes, imensa a vontade de partir e rasgar o desconhecido… O jeep, um Land-Rover robusto e fogoso, artilhado e armado para todos os Bojadores, quase intimidava o neófito que mal adivinhava as aventuras que o esperavam. Não fora a carga humanitária que o trotamontes carregava - o que lhe dava um ar quase humano - e o secreto desejo de retornar a um país onde gastara dois dos seus jovens anos, o pobre estreante destas descobertas teria arrepiado caminho na sua decisão.

Partimos … a chuva molhava uma noite, escura como breu, que exigia ao condutor do Land todos os sentidos alerta. Assim melhor sentíamos as ânsias e o temor dos velhos marinheiros de antanho que nos revelaram o mundo.

Revigorados por três horas de sono em Coruche (*) - era o prenúncio das vigílias que nos esperavam - rumamos a Tarifa, porta aberta para Tânger e o exótico de Marrocos.

Porto-Bissau... 6 de Abril de 2016...Dia 2, Marrocos,
Marraquexe: gare ferroviária.
Foto: © Hugo Costa (2006)legenda
Nada nos tolhia o entusiasmo, mesmo os dois furos com que o primeiro dia nos recebeu. Se mal despertos íamos, foi-se-nos o sono : nunca pensei que fossem tão pesados os pneus de um jeep. Esgotamos na primeira etapa a nossa dotação de furos: nem os mais pedregosos tracks do deserto fizeram a mais pequena mossa aos neumáticos do "cavalinho". ("Cavalinho" era o nome com que eu afagava o Land nos apertos das areias ou dos trilhos mais rugosos).

Ainda tonto das novidades, de tudo querer ver e saber, de tudo apreender (o que é um “erg”, oued é djelabha, xocram…), vês-te no turbilhão da Praça Jemaa el Fna, mendigos, serpentes, Marraquexe recebe-te com um chá de menta que te aquieta a alma. A alma perde-se-te nos labirintos da medina, entre tapetes, especiarias, babuchas, fezs, ferragens e frutos secos.
um rio?,

Agadir é já ali, ali é já o dia seguinte, o ”cavalinho” afeito às distâncias nem arfava, arfávamos nós de fome. Num descampado à face da estrada entrava pela janela um aroma conhecido : peixe grelhado. Mesmo a calhar.

Sondamos o peixe e o menu : sardinhas assadas sobre pão marroquino e cebola crua. Tudo sobre um rectângulo de papel, pratos não havia, talheres também não, nem intérprete. O preço apelativo : 5 sardinhas,  1 euro. Será que entendi bem? Não será ao invés, 1 sardinha cinco euros?

Porto-Bissau... 7 de Abril de 2016...Dia 3, Marrocos:
 a caminho de Tânger...o Atlas ao fundo
Foto: © Hugo Costa (2006).
Abancamos. Gordas, grávidas, pediam-nos que as comêssemos. Comemos. O ar de satisfação que os marroquinos exibiam estendeu-se à mesa dos portugueses.  As sardinhas estavam - se o usasse - de se tirar o chapéu, um regalo! Arrematamos com um queijo de Serpa e bolos artesanais. E tangerinas de Marraquexe. Um manjar de Califa.

Não houve refeição que melhor nos soubesse : quase grávidos, sonolentos fomo-nos aos jeeps.

O vale-oásis, mais te fascina que surpreende, sabes que o deserto tem seus segredos, mal esperas e um oásis abre-se para ti ao virar da duna, não há coisa que mais deleite tuaregs e camelos.


Adicionar Porto-Bissau... 8 de Abril de 2016...Dia 4,
Sara Ocidental: 
a caminho de Tantan - Roc Chico, a 73 km
de Tarfaya 
Foto: © Hugo Costa (2006).legenda
Este foi lugar aprazível - fácil é imaginá-lo - para os ocupantes de Fort Bou Jerif que lhe fica sobranceiro, os soldados da Legião Estrangeira [Francesa] que o ocuparam durante anos, não nós que nele pernoitamos uma noite, uma noite limpa, estrelada e de estrelas tão brilhantes que as julgávamos ao alcance da mão.

O deleite dos olhos trouxe-nos o sacrifício do corpo : o briefing do dia sinalizava a passagem na Praia Branca e advertia para a hora da praia-mar, de olhar o oásis, esquecemos o detalhe, enchia a maré quando desembocamos na praia, paisagem de sonho, areia branca mas perigosa, como certas mulheres, fofas mas movediças, ao fim da praia contamos cinco horas para fazer 87 kms, coisa - amigos - ao alcance de um bom maratonista, digo-vos eu.

Atascamos, desatascamos, ajudamos, partilhamos, suamos, cervejamos, mais fácil é escrevê-lo que sofrê-lo.

A praia termina na foz do Oued Aoerora, subimo-lo e como nós, deslumbrados pela beleza, cáfilas de camelos que, na pouca água do rio, matavam sedes de semanas.

Porto-Bissau... 9 de abril de 2016...Dia 5, Roc Chico a 
Nouakchott,  capital da Mauritânia... Um dos maiores 
comboios do mundo  Foto: © Hugo Costa (2006)
Fotos com os pastores, até que alguém grita, ala que se faz tarde!, chegaremos a Smara de noite. Arrancamos, pressurosos… Sustém a marcha, "cavalinho", a noite vem, eu sei, mas deixa que uma outra vez deleite os olhos ao pôr do sol. Há muitos, sabemos, e de vários cambiantes, mas morrer sem um pôr de sol no deserto é morrer cego, cego não morrerei, eu vi o sol pondo-se sobre o deserto de Smara.

Smara é já no Sahara Ocidental, cidade rodeada de quartéis, tantos são que se julga a cidade ela mesma aquartelada, militares nas ruas, desarmados mas visíveis, como visíveis são algumas mudanças : não nas mulheres, que trajam o tradicional, mas nos homens, como se nos dissessem, sou do Sahara Ocidental, como ocidental visto.
AdicionarPorto-Bissau... 9 de abril de 2016...Dia 5, Roc Chico
 a 
Nouakchott,  capital da Mauritânia... O comboio...
Foto: © Hugo Costa (2006)
 legenda

Muda o deserto também, uns taludes de terra acompanham os trilhos que fazemos, muros contra a Frente Polisário, dizem-nos, lemos que este é território em disputa, o povo sarauhi reclama autonomia.

Autónomo, não, não falo do Alberto João!, autónomo foi o nosso jantar. Porquê? - dirão. Vejamos : num lado se compra a carne, noutro se cozinha. Assim mesmo : vai-se ao talho e compra-se 1 kg de bifes e costeletas; vai-se ao restaurante a grelhar e comer. Duas operações, autónomas como as nossas autonomias, mas baratas : 1 kg de carne, 10 euros.

Para os ecónomos, aí vai : 5 sardinhas 1 €, 1 kg de carne 10 €, tagine de borrego 5 €, 1 kg de tangerinas 40 cents, 1 djelabha 15 €, 3 gorros 60 cents, carpete de lã 60 €, a mesma de seda 125 €, 2 punhais 7 €, a dormida foi em quarto duplo Hotel Amine, Smara, com banho privativo e cilindro prestes a rebentar 25 €, para compra e venda de acções direi que 10 dirhans 1 €, 350 oughias cotam-se a 1 €, o franco cfa está cotado a 0,650 do €, cotação de Wall Street acabadinha de abrir, 14 h na Euronext.

Montamos a tenda. Era dia de acampamento, era noite, o dia já se fora e com ele as primeiras miragens : são como as bruxas : no me creo en brujas, mas que las hay, las hay, direi em português : sei que não existem, mas que as vi, vi.

Lagos, largos de água, ao longe, que o deserto, uns metros à frente, esconde.

O deserto dá, o deserto o tira, o deserto é todo ele uma miragem, vasta, bela, um horizonte infindo de fantasia e ilusões.

No brinde da meia-noite desejámo-nos fantasia e sonhos, também saúde e acções, das boas …Hoje é a passagem de ano : 2014 entra pé ante pé, surpreende-nos no deserto, belo mas inóspito e frio, um cozido de bacalhau com grão e batatas aquece-nos o corpo, à alma aquece-a um bagaço odoroso, perfumo o café, repito, nem assim a noite será mais quente, pior será a manhã, negativos os graus, no lavar da loiça caem-nos os dedos, de tão frias logo cairão as mãos. Retorno à infância, não retenho da minha vida momentos de tanto frio, o velho professor esperava que as mãos nos aquecessem para iniciar os trabalhos.

Passamos o trópico de Câncer, um tronco de madeira, artisticamente esculpido, assinala o ponto. Um dia passarei, sou Capricórnio - passaremos - o outro, não nos negue a vida vontade para tal feito. Alguém faz anos na caravana.

Porto-Bissau... 9 de abril de 2016...Dia 5, Roc Chico
 a Nouakchott, capital da Mauritânia... Sarauís...
Foto: © Hugo Costa (2006)
r legenda
Hoje direi das acácias a cada dia mais magras e ressecas, da ave bip-bip (sem coiote), das beduínas tendas, nómadas, dos cães selvagens, das mariolas, dos pneus e montes de terra, balizas-guias no deserto, dos bebedouros, das duas ovelhas perdidas e seus anhos de um dia, como se dissessem vamos ali ter um filho e já vimos e na volta se vissem abandonadas da família, da vasta planura do deserto sarauhi, infindo, uma colina, vaidosa, exibe-se no horizonte, de uma penugem verde que cobre o deserto, não me dás de comer hoje?, dou o que tenho, também o céu não me dá água, come essa ervinha tenra, chamar a isto erva, vê-se bem que nunca foste à Europa, não posso ir, não tenho pernas como tu, o aventureiro não vê só miragens, também ouve as conversas que têm as ovelhas e o deserto, é do sol que abrasa e lhe coze o cérebro, das conversas das mulheres sarauhis quando se encontram - um beijo na face direita, dois na face esquerda - , ou dos homens - dois beijos em cada face, a mão posta sobre o coração do amigo -, ouve, mas nada entende, também aqui Deus confundiu as línguas, outro dia direi de outras coisas mais, longo vai já o dia. Dito está.

Um almoço no deserto. Lembro o filme de Bertolucci, “Um chã no deserto”. Se de italianos falamos, em italiano comemos : spaghetti alla bolognese.

Resgatamos do Land mesas e cadeiras, fogão e panela, talheres e guardanapos, o deserto não nos verá comer à mão, isto não são sardinhas marroquinas.

Abeiramo-nos de uma acácia-abrigo, alguém, os animais comendo ou os homens rasgando, abriu uma entrada para o interior da acácia, junto dela é visível a estada de animais e humanos, um bebedouro perto indica-a como poiso de descanso e alimento. Comemos, bem. Fruimos, melhor. Não reservará a vida muitos momentos iguais, gozemo-los. Gozamos.

Em Dakhla [, Villa Cisneros, no período colonail espanhol,] estás em casa, tens o mar e o vento, o surf, o wind, o kite, a cidade recebe-te na ponta de uma península estreita que, afoita, rasga as entranhas do mar adentro, 40 kms de terra que a noite te esconde, adivinhas o mar de um e outro lado, em Dakhla, capital do Sahara Ocidental, podes ser dakhliano, no ocidente estás. Tanto mar, peixe tem, vamos ao peixe, que a fome aperta.

O Samarcanda - nome mítico para outros povos - desdobra-nos um menu variado, não lhe damos atenção, sabemos ao que vamos : um misto de peixes vários, sobre o qual repousam duas pequenas lagostas dissecadas. Como tuaregs esfomeados, lançamo-nos aos bichos, trucidamo-los, na travessa restam umas tristes folhas de alface, um pitéu para as ovelhas, o que a uns abunda a outros falta, é assim o mundo, mas bem não está…

Aos curiosos ou especuladores : 4 refeições 170 dirhans. Abençoamos o Samarcanda e prometemos retornar. Cumprido foi.

Como as miragens, afirmo sem receio de contradita que as terras de ninguém existem, e, sendo embora de ninguém, é certo que lá vive gente, vive e prospera.

Venham comigo. Mas sem pressas. Vamos passar uma fronteira e as fronteiras fizeram-se para que o people espere, canse, desista e não passe além…

Ou caia de sono, morra de fome ou de tédio… Para isso os estados têm um tirano a seu mando : a burocracia. Despótica, autoritária, inexorável, definitiva… Irónico,  o bicho homem : quanto mais pobre é, mais predador se torna.

É assim nas fronteiras de África. E nas fronteiras de todos os países onde à pobreza juntas o atraso, o subdesenvolvimento, o analfabetismo…

Se a isto acrescentares uma pitada de religião, tens o panorama que as notícias diariamente te dão do mundo : radicalismos políticos, fanatismos religiosos…
- Maintenant, on va prier!

Eram duas da tarde. Os funcionários da alfândega, na fronteira da Mauritânia, não intervalam para comer mas para rezar, e entre abluções - passam água pelas mãos, pela cara, pelas orelhas, pelos braços, pelos pés, entre os dedos dos pés, também no mindinho - e orações, passou meia hora, a fila engrossou e estendeu-se, o ajudante prepara aos senhores da douane um chá de menta no fim da reza. Sem pressas.
Porto-Bissau... 9 de abril de 2016...Dia 5, Roc Chico a Nouakchott,
capital da Mauritânia... Foto: © Hugo Costa (2006)

Vamos, é a nossa vez.

Passamos a fronteira. O que temos à frente é um terreno escalavrado, pedras salientes, agressivas, até o mais corpulento jeep tem de pisar com cuidado não vá criar calos nos pneus : é a terra de ninguém, zona-tampão, espaço com 4 kms de largura imposto pela ONU, para que os vizinhos desavindos, Marrocos e Mauritânia, só se vejam ao longe, assim as mulheres de um e outro lado não se puxam os cabelos nem os homens as armas. O Land pisa lento, cauteloso, olha pensativo as carcaças ferrugentas, carros esventrados, pneus velhos, capots abertos, enfim, corpos mortos a cada lado do estradão, o nome é um favor meu!

Mas há vida aqui : junto à parte marroquina, carros novos, usados, marcas francesas a maior parte, não sei, não quero saber, recuso-me a saber o que fazem os seus donos, sentados, alheados, esperando o quê em terra de ninguém…

Vendem, compram, cambiam, traficam - diz-me o jeep, vai por mim que já sou velho nestas andanças, aqui é a 2ª vez que passo.

Ao Land não o contrario, é ele que nos leva, se lhe dá uma birra ainda nos deixa em terra, mas não é birrento o cavalinho, um trabalhar suave que deixaria dormir não fosse o acidentado dos tracks, a suspensão poupa-nos o rabo a cada solavanco…

Passamos a via férrea - aqui prestamos a nossa homenagem - do comboio mais longo e mais lento do mundo : carruagens que podem estender-se por 3 kms, 45 minutos de lentidão a passa…a…a…ar. Num mundo cada vez mais apressado, o comboio da Mauritânia - transporta minério do interior para o porto de Nouadhibou - ensina-nos a virtude da espera e obriga-nos à reflexão do que persegue o homem com tal sofreguidão…

Pelo deserto da Mauritânia, uma voz, como surgida do mais fundo da terra, embalava os ares, um
chamado de acasalamento, camelos e ovelhas levantavam os narizes, não era ainda o tempo de procriar :

Vem viver a vida, amor
Que o tempo que passou
Não volta, não.
Sonhos que o tempo apagou
Mas para nós ficou
Esta canção.

O condutor do Land espantava o sono e, romântico mas não trôpego, lembrava os primeiros amores. Fugiam camelos e pastores, as ovelhas protegiam as crias…

O Land, solidário, parou…
- Algum problema?
- No. Han visto uns amigos atras, un Toyota parado…
- No, nada - disse o cavalinho.

O Land não quer saber de Toyotas, e se os vê, com risco nosso, ignora-os.

Tem sido assim desde o início, a cada passo rosna, é um deles que nos passa, ri-se-lhe o motor quando os deixa para trás.
- Podemos seguir con vosotros…
- Claro, vamonos… diz o condutor do Land, mirando a espanhola.

Eram catalães, um catalão e uma catalã.

O dia bafeja-nos com um trilho ameno e uma passagem pela praia.

Ao longe, aldeias de pescadores e, poisados no mar, cansados da faina, os mesmos barcos que cruzavam o mar da Póvoa e a minha infância : a vela latina enfunava ao vento. E pelicanos, cansados também.

O mar convidava a um banho azul, tão azul era a água.


Mapa dp Parque Nacionao do Banco de Arguim (**)... Imagem do domínio público.

Fonte: Cortesia de Wikimedia Commons



Mas algo nos intimidava : a Maité - o marido, Tomás - não era Eva, nem nós Adão, o decoro exigia calções que nenhum de nós tinha. Caberia ao Tomás a decisão.
- En calzoncillos, amigos…
- Em cuecas, pois seja…

Todos trazíamos cuecas, felizmente. A Maité acompanhou-nos no gesto, os homens tiraram as calças, pois ela tiraria a camisa…

Exibido o músculo e encolhida a barriga, fomo-nos ao banho, entramos mar adentro, água
convidativa, cálida… Como lembrar que estamos em Janeiro? Demos umas braçadas a espantar a preguiça.

Alá, lá onde mora, olhando a praia, três machos em cuecas, uma mulher em soutien :
- Então, não querem lá ver… Estes pensam estar no paraíso terreal…

E era, amigos, palavra de Alá! era o paraíso terreal, estivemos no Éden naquela tarde… A praia - 50 kms - integrava um parque natural, o Banc d’Arguin, e foram garças, pelicanos, gaivotas, barcos, pescadores, até uma praga de gafanhotos, esvoaçavam à nossa frente, faziam negaças, brincavam com o cavalinho.

Era noite, à chegada a Nouakchott, a capital mauritana.

 (Continua)

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Notas do editor:

(*) 28 de outubro de 2013 > Guiné 63/74 - P12214: Ser solidário (153): Expedição solidária Dakar Desert Challenge arranca de Coruche, em 26/12/2013, e apoia a AD - Acção para o Desenvolvimento, com sede em Bissau. Inscrições até 31 do corrente.

(**) "Arguim é uma ilha na Baía de Arguim, Mauritânia, costa ocidental de África. Com apenas 12 km² de área, a ilha é alongada, medindo cerca de 6 km de comprido por 2 km de largura média. Está situada a 12 km da costa, dela separada por canais arenosos repletos de recifes e de bancos de areia que se movem com as correntes.

"A ilha faz parte do Arquipélago do Golfo de Arguim e está incluída no Parque Nacional do Banco de Arguim, uma vasta zona dedicada à protecção da natureza, classificada pela UNESCO como património mundial graças à sua importância como local de invernada de aves aquáticas.

"Nela localizou-se a primeira feitoria portuguesa na costa ocidental africana, a partir do qual os portugueses trocavam tecidos, cavalos e trigo, produtos essenciais para as populações locais, porgoma-arábica, ouro e escravos, que traziam para a Europa.

"A ilha foi sucessivamente ocupada por portugueses [de 1445 a 1633], holandeses, ingleses, prussianos e franceses, até ser abandonada, dada a crescente aridez e as dificuldades de acesso a navios de grande calado, resultantes dos perigosos bancos de areia e extensos recifes que a rodeiam. Na actualidade a ilha encontra-se quase deserta, com excepção da pequena povoação de Agadir, na sua costa oriental, habitada por cerca de uma centena de pescadores-recolectores da etnia Imraguen." (Fonte: Wikipedia)

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Guiné 63/74 - P12214: Ser solidário (153): Expedição solidária Dakar Desert Challenge arranca de Coruche, em 26/12/2013, e apoia a AD - Acção para o Desenvolvimento, com sede em Bissau. Inscrições até 31 do corrente.




Página principal do sítio Dakar Desert Challenge - A grande aventura africana. Têm página também no Facebook. As inscrições para a segunda edição do Dakar Desert Challenge, de 26/12/2012 a 9/1/2014, estão a terminar (prazo-limite:  31 do corrente). É muito útil a consulta do guia de partipação, com informações sobre equipemantos,  obrigatórios para os participantes (em 4 x 4, 4 x 2 ou em moto), bem como estimativa de custos, e outras informações de interesse, tendo em conta os ensinamentos da 1ª expedição (em 2012). Por exemplo, para uma viatura 4 x 4 (a forma mais dispendiosa de participante, com 2 participantes, estima-se um custo de 2600 € a 3000 €, o que equivale a  1300 € / 1500 € por pessoa (incluindo preço de inscrição, dormidas e refeições contempladasa na inscrição, ferruyboat, vistos, combustível, etc.). A organização recomenda ainda que cada participante leve uma  quantia adicional de 350 €, dinheiro de bolso para despesas pessoais extras (avarias mecânicas, peças, lembranças, etc.).
1. Notícia publicada na página dos nossos amigos (e parceiros) da AD - Acção para o Desenvolvimento, com data de 24 do corrente, e que reproduzimos aqui, com a devida vénia e com algumas adaptações:



A segunda edição da expedição Dakar Desert Challenge, que este ano arranca no dia 26 de Dezembro,  de Coruche, vai ter um cariz humanitário. “Viajar por um mundo melhor” é o mote da “Missão Solidária DDC Guiné-Bissau”, uma iniciativa da expedição intercontinental que se realiza em Portugal, Espanha, Marrocos, Mauritânia, Guiné-Bissau, Gâmbia e Senegal,  entre 26 de Dezembro e 9 de Janeiro de 2014.

O objetivo da missão solidária é recolher material escolar, material de alfabetização para adultos, medicamentos, consumíveis hospitalares e pequenos equipamentos de apoio hospitalar. 

Entre o material escolar prioritário estão:

mochilas, 
cadernos de linhas, 
réguas, 
esquadros, 
lápis, 
afiadeiras, 
borrachas, 
canetas de várias cores, 
ardósias pequenas, 
giz branco, 
livros de literatura, 
jogos e materiais didáticos para utilização comunitária.

Em relação aos medicamentos são prioritários os relacionados com doenças como:

paludismo, 
cólera, 
filariose, 
malária, 
tuberculose, 
lepra, 
parasitoses digestivas e sanguíneas, 
SIDA, 
anti-inflamatórios, analgésicos e antipiréticos. 

Do equipamento de uso hospitalar são necessárias:

gazes, 
ligaduras, 
algodão, 
compressas, 
seringas, 
luvas, 
máscaras de oxigénio, 
estetoscópios simples, 
batas brancas, 
kits de material cirúrgico básico, 
medidores de glucose
e tiras e medidores de tensão arterial.

O material recolhido é destinado à Organização Não Governamental (ONG) Acção para o Desenvolvimento (AD), que desenvolve projectos educativos e de saúde em algumas regiões de Bissau. 

Também a ONG Silo Gambasse vai ser apoiada. 

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Guiné 63/74 - P7050: Parabéns a você (157): Fernando de Portugal, ex 2º Comandante das Forças Expedicionária a Tânger, Norte de África (1437), faria hoje 608 anos (José Martins / Nuno Rubim / Editores)

Foto 1 > Capa do livro do Nuno Rubim, sobre as tapeçarias de Pastrana (edição de autor, 2005)



Foto 2 > O Intante D. Henrique representado nas tapeçarias de Pastrana, segundo Nuno Rubim.


Fotos: © Nuno Rubim (2010) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados 


1. Hoje,  dia 29 de Setembro de 2010,  temos festejo porque está de parabéns um dos nossos camaradas mais velhos, a quem vimos endereçar os nossos parabéns pela feliz data.

O Fernando de Portugal [, aqui eventualmente representado em termos pictóricos,  nos célebres painéis de São Vicente, que estão hoje no  Museu Nacional de Arte Antigo,] esteve em Tânger, depois de ter feito uma pequena paragem em Ceuta. Ainda esteve em Arzila e Fez, mas sabemos que desses tempos não guarda gratas recordações.

Caro Fernando,  são desejos da Tabanca Grande que tenhais um bom dia de anos, alegre, com oportunidade para ver aqueles familiares e amigos que durante os outros dias do ano estão mais distantes.

Que o vosso nome se prolongue na memória dos Portugueses, ainda por muitos e bons anos. Sabemos que hoje é dia de festa na Sala do Fundador, na Batalha, onde se reunirá toda a família.

Os vossos amigos e camaradas desta Tabanca Virtual estarão por aqui atentos e aliar-se-ão à vossa alegria em cada dia dos vossos aniversários. (*)

Pela tertúlia e pelos editores,

José Martins [, foto à direita]

2. Comentário de L.G.:

Este nosso camarada, para quem não sabe ou está esquecido dos tempos de escolinha, ficou na história também conhecido como o Infante Santo. Nasceu a 29 de Septembro de 1402: faria hoje, portanto, 608 aninhos, se entretanto  não tivesse morrido   em 5 de Junho de 1443 (, portanto aos 41 anos, o que na época já era uma provecta idade, dada a então baixa esperança média de vida dos portugueses e demais europeus ). E morrido pela Pátria (,díriamos hoje, se bem que o conceito de Pátria não fosse talvez exactamente o mesmo que nós temos hoje).

Fernando era o oitavo filho do rei D. João I de Portugal, fundador da 2ª Dinastia, a de Aviz,  e de sua mulher, a inglesa Filipa de Lencastre, e portanto o  mais novo dos membros da Ínclita Geração. Feito refém no decurso de uma controversa e desastrada expedição militar no Norte de África em 1437 (mais exactamente, na tentativa de conquista de Tânger,  no reinado do seu irmão D. Duarte), é usado como moeda de troca na processo de tréguas, que implicavam também a exigência da devolução da praça de Ceuta, conquistada pela coroa portuguesa em 1415. Acabou por morrer, como é sabido,  no cativeiro,  em Fez, em 1443, sem que Ceuta tivesse sido entretanto devolvida pelos portugueses. Pelo sacríficio (supremo) da sua vida, passou a ser conhecido, pela vox populi, como o Infante Santo.

Depois da tomada de Arzila, em 1471,  e de Tânger (abandonada pelos mouros logo a seguir), no tempo D. Afonso V, o Africano, sobrinho do Infante Santo, e agora também rei de Fez,  foi possível trazer para Portugal os seus restos mortais. (Repousam desde então no Mosteiro da Batalha, na Capela do Fundador).

Alguns capítulos da Crónica do Infante Santo Dom Fernando (redigida em meados do Séc. XV, por Frei João Álvares, seu secretário e que esteve com ele na prisão, tendo circulado pelo reino e pela cristandade sob a forma manuscrita, antes de ser  impressa, pela primeira vez, em Lisboa em 1527, sob o título  Trauado da vida e feitos do muito vertuoso Sor Iffante D. Fernando) podem ser consultados aqui, em documento em formato pdf.

E, a propósito, meus amigos e camaradas, ainda estão a tempo de ver (com olhos de ver...) até 3 de Outubro próximo, a excepcional exposição, A Invenção da Glória. D. Afonso V e as Tapeçarias de Pastrana, que está no Museu Nacional de Arte Antiga, nas Janelas Verdes, em Lisboa. Antes que elas, as tapeçarias, voem de novo do nosso território...

Tomem boa nota: Visitas Guiadas (obrigatório, sozinhos não entendem o texto e o contexto...): Sábados e Domingos: 11h30 e 15h30 (excepto dias 2 e 3 de Outubro); Terças, Quartas, Quintas e Sextas-feiras: 15h00. Sem inscrição prévia. Participação com o bilhete de entrada do Museu. Encontro no átrio principal. Duração: cerca de 1h. (As dicas são do Museu...).

Com já tive a ocasião de vos dizer, em mail interno que circulou pela Tabanca Grande, em 10 de Setembro passado, e citando o site do Museu, "a exposição ‘A Invenção da Glória. D. Afonso V e as Tapeçarias de Pastrana’ reúne pela primeira vez em Portugal os quatro monumentais panos, tecidos em Tournai [, Flandres,] por encomenda de D. Afonso V, conservados na Colegiada de Pastrana [, Espanha,] desde o século XVI e recém-restaurados sob o patrocínio da Fundação Carlos de Amberes. Peças de extraordinária monumentalidade e absolutamente únicas em termos da produção borgonhesa, relatando as conquistas de Arzila e Tânger, a sua encomenda e produção — ainda envolta em sombras — enquadra-se num programa mais vasto, de construção mítica da História, que o conjunto de obras em seu redor agora reunidas procura enquadrar e problematizar" (...).


Trata-se de verdadeira banda desenhada tecida em algodão e seda, com cerca de160 metros quadrados no seu total, e com mais de 500 anos... Sobretudo para a malta da região de Lisboa, seria uma pena perderem esta exposição... Já lá fui duas vezes (E o Carlos Nery, três...). Imprescindível para se perceber também a guerra colonial (ou guerra do ultramar, como quiserem)... Importante também para se perceber o making of da História,  o processo de, como nós, seres humanos (dos actores aos historiógrafos),   fazemos história, antes de mais,  como representação social... Em resumo, e usando um chavão caro aos sociólogos, a construção social da História...

Cito a propósito um notável texto do António Filipe Pimentel, director Museu Nacional de Arte Antiga, justamente sobre a exposição "A Invenção da Glória: D. Afonso V e as Tapeçarias de Pastrana".. Diz ele:

(...) "Poderá talvez dizer-se,com razoável propriedade, que a História é como uma tapeçaria: a tal ponto o desenho final resulta do lento entretecer dos fios que a conformam, sempre dependendo da mão que conduz a urdidura, sempre denunciando olhar do historiador. No fim, uma imensa composição, onde evoluem personagens e acontecimentos, em operação que sempre implica a perspectiva e os valores de luz e sombra" (...).


(Extracto de António Filipe Pimentel - D. Afonso V e a Invenção da Glória: as Tapeçarias de Pastrana no Museu Nacional de Arte Antiga. Lisboa: MNAA, Junho de 2010, p. 2).


3. Está também na altura de publicar um mail que recebi, em 23 de Junho passado,  do  Nuno Rubim (nosso camarada e meu muito especial amigo, aqui na foto, em 2006, no meu gabinete) sobre este tópico...ou com ele relacionado. 

Caro Luís:

Terás de confessar que tenho um bom "sistema de informações " no que se refere ao blogue... Sabendo da minha reduzida disponibilidade em eu o consultar com a assiduidade que merece, mais uma vez um amigo me alertou hoje mesmo sobre um poste que hoje mesmo foi publicado, sabendo ele que estudei parte do percurso da vida do Infante D. Henrique.

Fui pois lá ver e deparei-me com o artigo do nosso camarada José Martins, que de facto tem colaborado de forma notável no blogue.

Acontece que publiquei em 2005 um livrinho (edição do autor, porque não surgiu ninguém nisso interessado ..., embora a Fundação Gulbenkian tenha comparticipado) em que é referida essa ainda hoje controversa figura do Infante D. Henrique [Foto 1]

O livrinho não foi comercializado. Recebi pouco mais de 2 centenas de exemplares que já distribuí. a já quase no ocaso da sua vida (três anos antes do seu falecimento ) o velho soldado de África ainda participou na conquista de Alcácer Ceguer em 1458.

Fotografei pessoalmente em Pastrana [, Guadalajara, Espanha,] as tapeçarias que descrevem a acção e numa delas identifiquei o que julgo ser a mais fidedigna representação dessa figura emblemática, que pouco tem a ver com a sua suposta imagem no célebre polítptico dito de S.Vicente, hoje exposto no Museu Nacional de Arte Antiga. [Foto 2].

Claro que em alguns (demais, para o meu gosto...) círculos dos "senhores doutores em história" ... ) essa minha opinião foi pura e simplesmente ignorada, mas mais grave, sem se apresentar sequer qualquer tipo de argumentação contraditória ... O costume ... Sem mais comentários ...

Um abraço

Nuno Rubim
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 Notas de L.G.:

(*) Último poste da série > 29 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7048: Parabéns a você (156): António Bastos, ex-1.º Cabo do Pel Caç Ind 953 e Manuel Moreira, ex-1.º Cabo Mec Auto da CART 1746 (Tertúlia e Editores)

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Guiné 63/74 - P4447: PAIGC - Quem foi quem (7): Luís Cabral (1931/2009) (Virgínio Briote)



Luís Cabral (1931/2009), por Virgínio Briote 

 Quando o pai morreu, Luís Cabral tinha 20 anos e há dois que trabalhava nos Serviços de Estatística, em Cabo Verde. Com várias propriedades no interior da ilha de Santiago, as secas prolongadas tinham deixado a família sem grandes possibilidades para o manter a estudar. 

 Com a morte do pai e irmãos mais novos para criar, a situação tornou-se ainda mais difícil para o Luís. A seguir aos funerais, um próspero comerciante da Praia, grande amigo do pai dos tempos da Guiné, ofereceu-lhe um emprego nos seus escritórios, com um salário superior ao que vinha auferindo nos Serviços de Estatística. 

  Em Bissau, na Casa Gouveia 

 Os contactos com o irmão mais velho, Amílcar, foram produzindo frutos. Na Guiné, removidas as dificuldades levantadas pela Polícia quanto à sua permanência no território, Amílcar prometeu arranjar-lhe um emprego. Seduzido pelas ideias do irmão, que afinal eram as suas, Luís deixou a mãe e os irmãos em Cabo Verde. 

 Chegou a Bissau, numa manhã de Abril de 1953, disposto a começar uma nova vida. A Guiné, de onde tinha saído com cerca de um ano de idade estava sempre presente, nas conversas, em casa com os pais e nas visitas que recebiam. Amílcar e a Maria Helena, sua mulher, levaram-no a viver com eles, em Pessubé, nos arredores de Bissau, onde se situava a Granja Experimental, de que Amílcar era o director. 

Dadas as relações e conhecimentos não foi difícil a Amílcar arranjar-lhe emprego nos serviços de contabilidade da Casa Gouveia. Nos primeiros tempos da estadia na Guiné, Luís Cabral via com impaciência o irmão não o convidar para as reuniões que, sabia, Amílcar fazia regularmente com camaradas da luta que se estava a forjar. Nem tão pouco Amílcar lhe dava conta do que estava a fazer. 

 Luís Cabral, entretanto, não perdia tempo. Enquanto progredia na Casa Gouveia, mandara vir de Cabo Verde a mãe e os irmãos. E continuou a estudar, para completar o 5º ano dos liceus. Visitava regularmente o irmão, mas era através da cunhada que Luís se mantinha a par dos movimentos de Amílcar. Segundo a cunhada, Amílcar queria que, se lhe acontecesse alguma coisa, Luís ficasse como retaguarda da família. 

  As conversas de Amílcar Cabral com o Governador-Geral 

 Amílcar já tinha provado o sabor da denúncia. Alguém que estava a par das suas actividades, deu conta delas à polícia. Um dia, Amílcar foi chamado ao governador, o oficial da Marinha Diogo de Melo e Alvim. Segundo contou mais tarde, o governador ter-lhe-á perguntado: - Ó engenheiro, então o senhor é que é o chefe dos "Mau-Mau" cá da terra? - Desculpe-me, senhor governador, mas parece-me que os "Mau-Mau" só existem na África Oriental! - Olhe, engenheiro! O senhor não me lixe! Mas seja um homem da actualidade! Viva a sua época! 

  Na fundação do PAIGC 

 Luís acabou por se integrar no grupo a que pertenciam Aristides Pereira, Fernando Fortes, Abílio Duarte e outros. É nesta altura que conhece a Dr.ª Sofia Pomba Guerra, uma farmacêutica portuguesa, que tinha sido desterrada para a Guiné, acusada de ser membro do PCP em Moçambique. É a Dr.ª Sofia que, mais tarde, lhe dá aulas de Inglês, quando Luís Cabral se propõe completar o 7º ano do liceu. 

 Os rumores da actividade que Amílcar persistentemente desenvolvia, acabaram por ser de tal forma públicos que o governador se viu na necessidade de o chamar novamente para lhe dar uma alternativa: ou Amílcar cessava tais actividades ou então, ele governador, deixava-o cair. Amílcar não teve outro remédio senão sair da Guiné, mas em condições de poder voltar de tempos a tempos. 

 Um ano depois, Amílcar estava de novo em Bissau. Aproveitando a estadia, reuniram-se em 19 de Setembro, numa casa onde moravam Aristides Pereira e Fernando Fortes, o nº 9-C da Rua Guerra Junqueiro. O grupo era composto por Amílcar, Luís Cabral, Júlio Almeida, Élysée Turpin e, naturalmente, o Fernando Fortes e o Aristides. Foi nesta data que oficialmente nasceu o Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde, com a divisa Unidade e Luta. Mais tarde, a designação do Partido viria a simplificar-se, passando a chamar-se PAI (Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde. Luís Cabral foi-se envolvendo em várias actividades. 

Nas eleições para o Sindicato dos Empregados de Comércio e Indústria da Guiné fez parte de uma lista que tomou conta da direcção. Filiou-se no Benfica de Bissau e, na modalidade de volei, teve a oportunidade de conhecer, numa das viagens a Dakar, Lucette de Andrade que se veio a tornar a sua primeira mulher. 

 Em Março de 1958, dispondo de uma licença de 6 meses, resolveu deslocar-se a Lisboa, com passagem por Dakar para se casar. Aproveitou para se apresentar a exames do 5º ano no Liceu Pedro Nunes e para conhecer Portugal, na companhia de Lucette e de Amílcar, mulher e filha. 

  Pidjiguiti 

 No seu livro Crónica da Libertação, Luís Cabral conta: 

  "A situação das equipagens das lanchas e outras embarcações das empresas coloniais era, em 1959, bastante deplorável. Os salários variavam entre 150 e 300 escudos, o capitão da embarcação ganhava ainda menos do que o motorista, pois este em geral sabia ler e gozava do estatuto de 'civilizado'. Os restantes membros da tripulação, sendo considerados 'indígenas', tinham de contentar-se com um salário de miséria, sem quaisquer regalias. Para cada viagem, o tripulante recebia, para a alimentação, uma determinada quantidade de arroz e mais 15 escudos por mês. Havia já muitos meses que os marinheiros vinham pedindo uma melhoria da sua situação, sem qualquer resultado. Faziam-lhes promessas, é certo, mas a situação mantinha-se e os trabalhadores não viam, na verdade, nenhumas perspectivas de mudança. Encorajados com o descontentamento crescente dos trabalhadores das docas, cuja situação também era má, os marinheiros fizeram saber às empresas que estavam decididos a parar o trabalho, se as reivindicações não fossem atendidas. As respostas das direcções das empresas, já concertadas, continuaram a ser promessas sem quaisquer garantias. A partir da noite do dia 2 de Agosto, as embarcações que chegavam ao porto de Bissau eram cuidadosamente arrumadas nas cercanias do velho cais de Pidjiguiti. 

(…) Os chefes das empresas, encabeçadas pelo sub-gerente da casa Gouveia, mandaram um ultimato aos grevistas: ou regressavam às suas embarcações e aos seus postos de trabalho em terra, ou pediam a intervenção da polícia. 

(…) A vida em Bissau parecia ter parado para seguir os acontecimentos. Apenas se viam passar nas ruas os carros da polícia, até ao momento em que as forças militares e paramilitares avançaram para o porto. Os trabalhadores em greve fecharam o portão de acesso aos cais de Pidjiguiti, apanharam tudo quanto podiam para se defenderem e aguardaram. 

(…) Poucos minutos depois ouviam-se os primeiros tiros: os soldados e a polícia tinham acabado de romper a frágil barragem do portão e penetravam no recinto do cais, atirando contra os grevistas, que, a princípio, ainda tentaram defender-se. Cedo, porém, depois de verem cair muitos companheiros, compreenderam que, diante da cruel realidade, a única solução era procurar fugir do cais, para escapar à morte. Uns caíam mortos ou feridos, outros procuravam por todos os meios alcançar a saída mais livre e a única que parecia segura, tentando, enquanto ainda era tempo, atravessar a estreita passagem que conduzia ao rio Geba, portanto às embarcações que ali estavam ancoradas. À medida que os homens conseguiam alcançar a ponta do cais iam-se atirando às águas do rio e nadavam desesperadamente para alcançar as embarcações. A horda colonialista com os sucessos alcançados, também avançou para a ponta do cais de Pidjiguiti. Fazendo dali calmamente a pontaria, conseguiram ainda matar ou ferir vários homens entre os que se tinham atirado desesperadamente ao Geba. E não eram só militares e polícias, os que atiravam. Também se juntaram a eles elementos civis com as suas armas pessoais, que depois se vangloriavam da sua participação na caça selvagem aos homens do 3 de Agosto. Saímos cedo do trabalho. Os escritórios da Casa Gouveia ficavam perto do cais do Pidjiguiti e não era possível trabalhar com o barulho terrível do tiroteio, tendo às portas tão criminoso espectáculo, sem precedentes nos nossos dias. Ficámos de pé no passeio, mesmo em frente do grande edifício onde trabalhávamos. (…) 

 (…) Da varanda do meu apartamento que estava situado frente ao porto, pude presenciar a parte final do monstruoso crime da caça ao homem no rio Geba. O sol desaparecera nessa tarde dos céus de Bissau; a atmosfera pesada e escura parecia gritar com o povo. A tarde sangrenta de 3 de Agosto fizera mais de cinquenta mortos e muitas dezenas de feridos entre os marinheiros pacíficos que mais não queriam que viver um pouco melhor. Na noite de 3 de Agosto, reuni-me com o Aristides e o Fortes. Este, na sua qualidade de chefe da Estação Postal, tinha podido meter no correio, que devia partir na manhã seguinte, cópias de um comunicado elaborado rapidamente sobre os acontecimentos, endereçadas às principais emissoras escutadas em Bissau. Lembro-me bem que a Rádio Brazzaville, a BBC, a Rádio Conakry e a Rádio Dakar, estavam entre aquelas que receberam e difundiram a notícia que os colonialistas não queriam que saísse da Guiné. Simultaneamente, foi também enviado um primeiro relatório ao Amílcar que se encontrava nesse momento em Angola." 

A saída da Guiné 

 No seguimento dos acontecimentos do Pidjiguiti, como era de esperar, foram efectuadas numerosas detenções. Luís Cabral era o guarda-livros da Casa Gouveia e, por altura da inauguração do novo edifício da Associação Comercial, Agrícola e Industrial de Bissau, teve conhecimento que o Administrador da Casa Gouveia pedira a Lisboa que fosse recrutado um novo guarda-livros, uma vez que o actual ia ser preso. Decide, então, sair da Guiné. Ajudado pelo madeireiro português Fausto Teixeira, Luís saiu de Bissau, por Mansoa, em direcção à fronteira com o Senegal. Perto de Fajonquito transpôs a fronteira a pé, tomou um autocarro para Koldá e rumou a Dakar. 

 Algum tempo depois recebeu a companhia da mulher e do filho. Conseguiram trabalho sem grandes dificuldades, Luís na Shell e Lucette, sua mulher, numa companhia de seguros. Viviam sem grandes problemas materiais e os seus dinheiros ainda chegavam para ajudar as actividades do Partido em Dakar, enquanto em Conakry, Amílcar como conselheiro do Ministério da Economia, e Helena, mulher de Amílcar, como professora do Liceu de Conakry, se serviam dos seus recursos para subsidiar o Lar do Combatente. Deste Lar partiram para a República Popular da China os primeiros militantes do PAIGC para receberem treino militar. 

  As primeiras acções armadas 

 Um ano depois de terem chegado a Dakar, Luís e a mulher deixaram os empregos, rumaram a Conakry e decidiram dedicar todo o tempo à luta. As primeiras acções armadas em que alguns elementos do PAIGC se viram envolvidos correram mal. Em plena fase de explicação das razões da luta às populações, nem sempre estas guardaram segredo. Em mais que uma ocasião foram cercados e atacados a tiro pelas tropas portuguesas. Vitorino Costa, armado apenas com uma pistola, foi morto numa destas situações. As armas que o PAIGC tinha num armazém em Conakry demoravam a ser libertadas pelas autoridades. Os jovens guerrilheiros, sem armas, depois dos fracassos iniciais, refugiaram-se nas fronteiras com o Senegal e com a Guiné-Conakry, reclamando armas. Amílcar conseguiu colocar a questão ao governo marroquino, que acedeu prontamente fornecer armamento. 

 As primeiras armas foram levadas para Conakry por via aérea em malas, sacos e caixotes, levadas pelo próprio Amílcar Cabral, pelo Vasco Cabral e outros, como se de bagagem pessoal se tratasse. Aquino de Bragança, que vivia no mesmo prédio de Amílcar, foi um dos que ajudou a descarregar caixotes do Volkswagen. Depois, o transporte do material de guerra de Casablanca para Conakry passou a ser feito por via marítima. As embalagens eram dissimuladas. Os volumes com granadas vinham em embalagens de medicamentos, em que na parte superior, quando abertas, mostravam fileiras muito arrumadas com pequenas embalagens de medicamentos. 

  A grande ajuda de Marrocos 

 As primeiras pistolas-metralhadoras, levadas de Marrocos, em sacos e malas, foram transportadas por Manuel Saturnino e José da Silva, dois guerrilheiros escolhidos para esta missão. O material era depois novamente embalado no secretariado do PAIGC em Conakry e a seguir levado nos transportes colectivos para Colaboi, onde era descarregado, para evitar o controle policial em Boké, a pouco mais de 80 kms da linha de fronteira. A partir daqui, os volumes eram levados à cabeça por homens que os introduziam nas zonas da guerrilha. O primeiro grande volume de material de guerra foi obtido por Luís Cabral junto do governo marroquino. Dezenas de carabinas, de PPSH e milhares de balas foram carregadas num camião civil, no pátio do Ministério da Defesa marroquino e foram entregues ali, ao portão, sem qualquer formalidade. 

  Preso por Sekou Turé 

 Este material veio a ser descoberto no porto de Conakry e Luís Cabral, Aristides Pereira, Vasco Cabral, Pedro Ramos, Armando Ramos e Fidelis Cabral, foram acusados de contrabando de armas e detidos pelas autoridades guineenses. Amílcar só não foi preso porque se encontrava na altura em Rabat. Sekou Turé libertou-os quase um mês depois, e a partir desta altura, depois de uma reunião entre Turé e Amílcar Cabral, o transporte de material de guerra pela Guiné-Conakry passou a ser feita com a autorização das entidades governamentais. “De Morés, a luta no Norte tinha-se alargado à área de Biambi e dali até Canchungo (T. Pinto), a oeste do país. No centro do Chão dos Manjacos, nome que o povo dava à circunscrição de Canchungo, ficava a floresta de Jol. Era ali que se encontrava o lugar sagrado onde o Irã de Cobiana, consultado pela população e pelos combatentes, proclamava que a luta do PAIGC era irreversível e que conduziria à libertação total do país. 

 Citações do livro "Crónica da Libertação", de Luís Cabral. 

  Luís Cabral nasceu em Bissau em 1931. Fez os estudos em Cabo Verde e na Guiné, para onde foi trabalhar na Casa Gouveia. Desde muito jovem interessado nas actividades políticas contra o governo português, colaborou com Amílcar Cabral e com outros militantes na fundação do PAIGC. Após os acontecimentos de Pidjiguiti saíu da Guiné, primeiro para Dakar e, depois para Conakry, onde participou na preparação e no desenvolvimento da luta armada que se prolongou por mais de uma dezena de anos. Fez parte do Bureau Político e foi membro do Conselho de Guerra do PAIGC. Em 1973, no decorrer do 2º Congresso do PAIGC que proclamou unilateralmente a Independência da Guiné-Bissau, foi eleito secretário-geral adjunto do partido e Presidente do Conselho de Estado da República, cargo para que foi reeleito, já depois do reconhecimento por Portugal, em 1974. 

 Luís Cabral foi presidente da Guiné-Bissau entre 1974 e 1980, ano em que foi destituído pelo golpe militar protagonizado por Nino Vieira. Esteve preso cerca de 13 meses na fortaleza de Amura, seguindo depois para Cuba e Cabo Verde, vindo a fixar-se mais tarde nos arredores de Lisboa, onde residiu até morrer em 30 de Maio de 2009, com 78 anos.

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 Notas de vb: Subtítulos da responsabilidade do editor