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sábado, 11 de junho de 2011

Guiné 63/74 - P8402: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (24): Perdendo a plumagem

1. Mensagem de José da Câmara* (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73), com data de 1 de Maio de 2011:

Meu caro amigo Carlos Vinhal,
Quarenta anos depois volto à Mata dos Madeiros. É uma história simples, igual a muitas outras passadas por muitos de nós, mas que a esta distância nos trazem um pequeno sorriso aos lábios. Bem precisamos disso nos dias que correm.

Para ti e para os nossos camaradas os meus votos de muita saúde.
Um abraço amigo,
José Câmara


Memórias e histórias minhas (24)

Perdendo a plumagem

As sentinelas perscrutavam o silêncio e o breu daquela noite cálida, serena, estrelada. Eles eram a garantia possível da segurança aos nossos extenuados corpos entregues ao macio barro vermelho da Mata dos Madeiros. Estoicamente tentavam distinguir os sons desconhecidos que chegavam de todos os lados.
Para periquitos a situação não podia ser mais enervante. O tempo ajudaria a distinguir todos os sons das matas guineenses.

Para nós, furriéis milicianos, a nossa vida era bem mais fácil que a das sentinelas. Tínhamos que fazer uma ronda nocturna e mesmo essa estava muito facilitada pela competência, camaradagem e qualidades humanas do nosso Fur Mil Trms João Henrique Nunes Correia.

Ele tinha requisitado Walkie Talkies, um luxo do tempo, que estavam distribuídos pelos postos de sentinela, o que facilitava a comunicação entre todos. Para além disso, o Correia passava longas horas acordado na noite, mantendo o contacto constante com o pessoal de serviço. Por outras palavras, ajudava-nos a manter os sentinelas alerta e permitia-nos descansar um pouco mais.
O João Correia era aquilo a que podíamos chamar de um homem às direitas. Por isso mesmo gozava da simpatia de todos nós.

O Fur Mil Trms João Correia (de braços cruzados) no convívio da CCaç 3327

Embora extenuados, alguns de nós preferíamos ser acordados para fazermos a nossa ronda pelos postos. Entendíamos que a nossa presença junto dos sentinelas, por alguns minutos que fosse, não só era reconfortante para eles, mas também servia de exemplo. Ninguém era melhor que ninguém.

Foi assim que numa noite o Correia foi acordar-me um pouco antes da minha hora de serviço. Vinha afogueado e apercebi-me de imediato que algo de muito grave se estava a passar.

Pedindo desculpa por me ter acordado um pouco antes da minha hora de ronda, de imediato acrescentou que o sentinela do canto, junto da estrada, virado ao Cacheu, tinha ouvido vacas a berrar, visto sombras a passar na frente do posto e o motor de uma camioneta para os lados da estrada velha, a picada que ligava o Bachile ao Cacheu..

O que podia dizer ao sentinela, indagava ele.

Apercebi-me que algo não parecia bater certo. Sombras andantes e vacas a berrar junto do acampamento nem pensaria ao diabo. Mas o barulho dos motores ao longe deixou-me apreensivo. Não éramos alheios a que a mítica Caboiana era frequentemente visitada pelo PAIGC.

- Ele que dispare nas sombras de duas pernas. - Foi a minha resposta

Pum! Pum! Pum! Três tiros em cadência, demonstrativas de presença de espírito de uma sentinela em controlo das suas emoções. Não obteve resposta retaliatória!

Enquanto o Correia corria para o posto de transmissões, eu voava sobre as minhas canetas pelas ruelas da nossa aldeia apenas iluminada pelas lâmpadas do firmamento em direcção ao posto de sentinela.

Quando cheguei junto da sentinela, esta, demonstrando bastante sangue-frio e ainda antes que lhe fizesse qualquer pergunta, disse-me:

- Eu fiz o que o meu furriel mandou!

Foi então que me apercebi que o Correia deveria ter mantido o botão do comunicador do Walkie Talkie aberto e o sentinela ouvira a minha resposta à sua pergunta.

O nosso Capitão Alves, que também chegara ao posto, decidiu que seria melhor ficarmos alerta até porque os alvores da manhã se aproximavam. Ainda tínhamos presente a fogueira que ardera toda a noite e que precedeu a emboscada aos Comandos.

Fui juntar-me à minha Secção. A palavra do acontecido já tinha passado por toda a gente.

De repente…

...as vacas voltaram a berrar e mais uma vez ouvimos o motor da camioneta ao longe, muito ao longe.

O José Cristiano Arruda Massa, um micaelense da bacia leiteira dos Arrifes, muito sério diz:

- Meu furriel, as vacas de São Miguel não berram desta maneira!

- As do Faial também não, respondi. Mas e o barulho do motor o que é?

- Eh meu furriel, aí é que a porca torce o rabo - respondeu o Massa na sua forma peculiar de dizer as coisas.

Com o raiar dos alvores da manhã, os nervos suavizaram-se e a lição foi aprendida.

Nessa noite de Junho de 1971, soubemos que as sombras andantes de quatro pernas apenas se movimentavam em duas, que o choro das hienas podia ser confundido com berros de vacas, mas não das açorianas, que o barulho dos motores das lanchas da marinha no rio Cacheu podiam ser emitidos pelas camionetas do PAIGC.

Aos poucos íamos perdendo algumas penas da nossa bela plumagem de periquitos. Afinal a velhice também se construía com pequenas histórias como esta.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 7 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7566: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (23): Com humor também se fazia a guerra

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Guiné 63/74 - P7566: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (23): Com humor também se fazia a guerra

1. Mensagem de José da Câmara* (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73), com data de 26 de Setembro de 2010:

Meu caro amigo Carlos Vinhal,
Para quem conheceu a Ilha das Flores e as suas gentes ao tempo da história, sabe que os calões usados faziam parte do dia-a-dia florense. O mesmo acontecia por outras ilhas, numas mais que outras. Nem por isso havia menos respeito entre as pessoas. Tudo dependia do sentido dado à conversa e às circunstâncias.

Um abraço enorme para ti e para os nossos camaradas,
José Câmara



Memórias e histórias minhas (23)

CCAÇ 3327 - 2.ª Secção do 4.º GCOMB
Em pé, da esquerda para a direita: 
Sold. José R. Serpa, (Costa do Lajedo – Flores) – London, ONT, Canadá; Sold. João Avelar Ventura (Fajãnzinha – Flores) – Terra Chã, Terceira; Fur. Mil. José A. Câmara (Fazenda – Flores) – Stoughton, MASS, EUA; Sold. António Silvestre Jr. (Urzelina – S. Jorge) – Toronto, ONT, Canadá; Sold. José C. Arruda Massa (Arrifes – S. Miguel)

Na frente, da esquerda para a direita:
Cabo José Silveira Leonardes (Topo – S. Jorge) – Praia da Vitória, Terceira; 1.º Cabo António Fernando Silva (Praia do Alomoxarife – Faial); Sold. Magno Manuel Silva (Guadalupe – Graciosa) – Lowell, MASS, EUA; Sold. José Francisco Serpa (Ponte da Fajã – Flores) – Stoughton, MASS, EUA; Sold. Emanuel A Cardoso Silva (Castelo Branco – Faial) – Newark, CAL, EUA


Com humor também se fazia a guerra

A CCaç 3327, aquando da sua passagem por Bissau, tinha a seu cargo a segurança de várias instituições militares. O Laboratório era uma delas.

Por vezes, era decretado o estado de alerta na cidade. Como era natural nessas ocasiões, o movimento de tropas ficava circunscrito aos serviços de emergência e abastecimentos e às patrulhas dos diferentes bairros de Bissau.

Também era prática generalizada reconduzir os militares nos seus postos de serviço, durante o tempo da prevenção. Portanto, ninguém se admirou de ver o pessoal de serviço ao Laboratório ser reconduzido nos seus postos por mais vinte e quatro horas.

O que não estava previsto é que os referidos militares, sem serem vistos nem achados para as circunstâncias, tivessem sido obrigados a uma dieta forçada. Alguém no AGRBIS esqueceu de dar ordens para que o rancho fosse mandado para os militares de serviço ao Laboratório.

Isso de fazer a tropa e a guerra é uma coisa. De barriguinha vazia é que não…

O José Francisco Serpa, conhecido na Companhia como o Serpa Pequenino, natural da Ponte da Fajã, Ilha das Flores, foi um dos militares apanhados de serviço ao Laboratório. Pertencia à minha Secção. Era um soldado muito disciplinado, de uma educação cívica bastante apurada e um excelente colaborador nos serviços da Secção. Uma das suas melhores qualidades era a capacidade de falar olhos nos olhos com as pessoas e com o coração bem junto da boca, fazendo jus a qualquer açoriano que se preze.

O nosso Serpa de regresso ao AGRBIS de imediato procurou pelo nosso Cap. Rogério Alves. Queria, veementemente, protestar pela falta do rancho a que tinha sido submetido nas últimas vinte e quatro horas. Encontrou-o na secretaria, e botou protesto:

- Meu capitão, quem foi o f. da p. do Oficial de Dia que esteve de serviço?! Eu quero matar o sacana que nos deixou à fome durante as últimas vinte e quatro horas!

O Cap. Alves que já se habituara à maneira de ser dos açorianos, humanamente compreendia que nesses desabafos e calões não existia qualquer maldade e muito menos falta de respeito, respondeu, serenamente, fazendo uma pergunta:

- Oh Serpa, você teria mesmo coragem de matar o seu Comandante de Companhia?

O nosso soldado não se desconcertou. Com nervos de aço e alguma graça respondeu:

- A esse não meu Capitão, mas não se esqueça de o avisar que da próxima vez deve mandar o rancho para o pessoal!

Hoje o José Serpa vive em Stoughton e é cliente na Agência de Seguros onde trabalho.

A história, contada pela sua boca, teve um final feliz. No dizer do Serpa e dos homens da Companhia, o nosso capitão era um bom homem.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 17 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7460: O Mural do Pai Natal da Tabanca Grande (2010) (6): Uma história de Natal (José da Câmara)

Vd. último poste da série de 20 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7149: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (22): Aventuras em terras manjacas

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Guiné 63/74 - P7149: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (22): Aventuras em terras manjacas

1. Mensagem de José da Câmara (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73), com data de 26 de Setembro de 2010:

Meu caro amigo Carlos Vinhal,
Junto encontrarás mais uma história simples sobre as minhas andanças por terras manjacas. Deixo à apreciação dos nossos camaradas os choques de vivências diferentes e os preçários então praticados em terras manjacas.

Para ti, para todos os camaradas e vossos familiares um grande haja saúde.
Um abraço amigo,
José Câmara


Memórias e histórias minhas (22)

Aventuras em terras manjacas

Na Mata dos Madeiros éramos, constantemente, surpreendidos com situações muito diversas. Resolvê-las era, em muitos casos, um problema que dependia mais da capacidade humana de cada um, sem esquecer o lado militar.
A incompreensão na solução das situações que nos surgiam, poderia levar a uma situação de rotura do elo de ligação entre comandos e comandados, o elo de respeito humano.

Numa das minhas saídas para a mata, fui surpreendido com um pedido formulado pelos militares da minha Secção. Queriam, pediram eles, aproveitar a nossa próxima folga de serviço para irmos a Teixeira Pinto. Bem me apercebi das suas intenções!

Bajuda Manjaca (Edição da Confeitaria Império - Bissau)

A minha reacção imediata foi negativa. Ainda tinha bem presente a emboscada feita aos Comandos, os tiros disparados pelo Fur Mil André Fernandes sobre algo suspeito, não identificado, que pressentira quando acabara de emboscar para a noite, as duas morteiradas que caíram para os lados do Balenguerez tentando localizar as nossas forças, através de uma possível resposta destas e a prisão de dois homens na mata e que acabámos por deixar ir.

Confesso que também não sentia nenhum à-vontade em fazer a deslocação para Teixeira Pinto, sobretudo o troço até ao Bachile. O perigo entre este quartel e a Ponte Alferes Nunes era menor. Para além disso, também levei em conta o facto de nunca termos estado em Teixeira Pinto, nem termos tido qualquer contacto com as populações manjacas, para além daquele que tínhamos com alguns dos capinadores, sobretudo os jovens, que nos acompanhavam no acampamento.

Notei o desânimo estampado na cara daqueles moços, tão jovens quanto eu, ao receberem o meu não imediato. Não falámos mais no assunto, mas não deixei de pensar nele. Quanto mais pensava na minha reacção menos à-vontade me sentia.

Na manhã seguinte, de regresso ao acampamento, fui ter com o nosso Cap Mil Rogério Alves, a quem coloquei o assunto. Tal como eu, a sua recusa foi imediata e pelas mesmas dúvidas que me tinham assaltado. Acrescentou o facto de, em caso de ataque, o acampamento ficar com menos uma Secção na defesa.

Para a sua última dúvida em não podia ter resposta. Já a nossa segurança no percurso até à ponte Alferes Nunes poderia ser garantida com algum atraso na escolta da tarde ao Bachile. Na manhã seguinte, a minha Secção também não chegaria a tempo de ir para a mata, mas poderia apanhar a primeira escolta do dia ao Bachile.

O capitão lá foi acrescentando que o pessoal estava farto de ração de combate, bacalhau com grão, dobrada desidratada com feijão, entre outros, que me autorizava a ir a Teixeira Pinto, mas que eu teria que trazer carne fresca e que me responsabilizava pelo comportamento da Secção.

Há muito aprendera que, nas nossas circunstâncias, a única certeza que tínhamos era a incerteza. Por isso, guardei segredo até momentos antes de acabarmos os nossos deveres do dia. Que, diga-se, acabaram logo ali...

Havia que preparar o atavio para a saída. Camuflado a preceito, botas engraxadas, brilhantina e água de cheiro bem carregadinhas, tudo em nome das pu(r)as donzelas de Teixeira Pinto.

Já nesta vila, dei-lhes conta da promessa que fizera ao Capitão. Todos compreenderam o que estava em jogo. Nenhum perguntou, nem era necessário, o que me fizera mudar de opinião. Pediram-me que os acompanhasse... só para o jantar. Fi-lo com gosto!

Passeio açorianíssimo em Teixeira Pinto: José Câmara e o Chaves (St. Maria) da CCaç 2791


Sobre este assunto, foi assim que escrevi à minha madrinha de guerra.

Mata dos Madeiros, 11 de Maio de 1971
Ontem... Ao chegar de outra operação tinha 2 cartas para mim: uma tua e outra de meus tios. Em boa verdade, até dispensei a minha Secção por um quarto de hora para as ler. Sabes que horas eram?! Nada mais nada menos que cinco horas da manhã e as cartas foram lidas à luz dos faróis da viatura que ía sair comigo.


Isto é assim: chegámos do mato e não se pára, o trabalho continua. Só vim a descansar a partir das duas da tarde e fui a Teixeira Pinto com os meus rapazes, tendo regressado há pouco.

O passeio foi agradável. Umas voltas por lá com um bom bife à noite (tirei a barriga da miséria) e fui ao cinema. O pior seria à noite na cama. Todas as vezes que me mexia acordava. Ela era tão mole que me dava vontade de dormir no chão. Só para não perder o hábito!

De manhã, logo pelas 6 horas, fomos à procura de vacas, porcos, cabritos e galinhas. Nunca tinha ido e acredita que já tive muitos problemas e horas de boa disposição. Mas, as duas ao mesmo tempo não acontecem muitas vezes.
Fomos até a uma tabanca e os soldados que estavam comigo iam entrando nas casas. Nos quartos das casas estavam os cabritos, os porcos e tudo o mais, que nem parece deste século.

Toda aquela bicharada punha-se a fugir quando entrávamos e cheguei a pensar que estavam ensinados nesse sentido. Para apanhar duas vacas levámos quase uma hora e meia. Uma pesava 90 kgs e a outra 110 kgs. Paguei pela primeira 630$00 e pela segunda 770$00. Pagámos 7$00 por kilo. Também apanhámos um porco que custou 70$00, um cabrito pelo mesmo preço e uma galinha que custou 12$50.
Imagina a festa que é ver 11 homens a correr atrás de uma vaca, de uma galinha, ou os mergulhos às pernas dos animais.

O pior viria a seguir. Quando estávamos para vir embora começaram a tocar batuque e e a dançar, numa última despedida às suas vacas. Tive pena daquela pobre gente. É que eles guardam e estimam os animais.

A reacção daquelas gentes fez-me lembrar as famílias açorianas quando embarcavam os seus animais com destino ao mercado continental. Ficava sempre a tristeza de ver partir os bichinhos que, durante mais ou menos anos, tinham feito parte das suas vidas. Porém, compreendia-se que esses animais iriam cumprir a missão para que tinham sido criados e sustentados: ajudar, financeiramente, o agregado familiar.

Em Teixeira Pinto fomos encontrar realidades bem diferentes, sobretudo as de crença religiosa.

Os manjacos professavam o animismo, acreditavam no IRÃ e abominavam o roubo. Por isso mesmo, a sua cooperação foi, na prática, nula. Daí o termos entrado nas suas moradias à procura dos animais. Não acredito que o fizemos por sermos mais fortes, mas porque a necessidade se impunha. Tanto assim é que, quando se negaram a dar um preço pelos animais, nós levámos estes e seus donos à Administração Civil. Foi aqui que os animais foram avaliados e pagos.

Ao regressar à Mata dos Madeiros, mal sabia que voltaria a viver situações semelhantes num futuro relativamente próximo. Mas com a lição aprendida! Passei a contactar o chefe da tabanca para ajudar no processo.

José Câmara
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 30 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7059: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (21): Um abraço de paz na Mata dos Madeiros

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Guiné 63/74 - P7059: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (21): Um abraço de paz na Mata dos Madeiros

1. Mensagem de José da Câmara (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73), com data de 26 de Setembro de 2010:

Meu caro amigo Carlos Vinhal,
Junto encontrarás mais uma pequena história sobre as minhas andanças na Mata dos Madeiros. É uma história simples como todas as outras, mas que que traz ao de cima uma grande verdade: na nossa guerra, para os crentes, a paz espititual era o dom mais apreciado.

Para ti e para todos os nossos camaradas, do outro lado do oceano, um grande abraço amigo.
José Câmara


Memórias e histórias minhas (21)

Um abraço de paz na Mata dos Madeiros

Conforme a nova estrada avançava, também aumentava a nossa ansiedade. O acampamento era cada vez mais visível ao longe. A zona de picagem e o espaço que percorríamos a descoberto eram cada vez maiores. Foi neste cenário que, mais uma vez, o Comandante da Companhia, Cap. Rogério Alves, se deslocou a Teixeira Pinto para uma reunião com os comandos do CAOP 1, na altura comandado pelo Cor. Ferreira do Amaral. Essas reuniões deixavam-nos sempre apreensivos, pois sabíamos que elas, de uma maneira geral, traziam mais trabalho e mais perigos para nós. Esta reunião, tinha ainda a particularidade de acontecer numa altura em que já corriam fortes rumores que, em breve, iríamos deixar a Mata dos Madeiros e seguir para os destacamentos de Teixeira Pinto.

Contrariamente às nossas esperanças, não houve qualquer palavra em relação à nossa saída da Mata dos Madeiros. Em contra-partida, tal como nas reuniões anteriores, esta veio trazer-nos uma certeza: estávamos para continuar naquele buraco!

Recebemos ordem para levantar o acampamento e avançarmos cerca de três quilómetros, em direcção ao Cacheu. A ordem foi executada a 7 de Maio de 1971, precisamente um mês depois de chegarmos à Mata dos Madeiros. O novo acampamento, também no lado esquerdo de quem sobe em direcção ao Cacheu, era em tudo semelhante ao primeiro. Em matéria de defesa, houve, de facto, uma grande diferença. Foi construído um espaldar para um morteiro 120 que haveria de chegar uns dias depois. Para grande contentamento do Fur Mil Armas Pesadas Manuel Lopes Daniel, dos lados de A-dos-Cunhados, que, assim, deixava de alinhar na mata. Esta arma era essencial à defesa do acampamento. Até então, o apoio de armamento pesado vinha dos obuses do Bachile, que agora distava cerca de treze quilómetros do acampamento.


Sobre este assunto, escrevi à minha madrinha de guerra o seguinte:

Mata dos Madeiros, 6 de Maio de 1971
"Então vamos à vida por cá, por estes sítios. Amanhã vamos mudar de acampamento, mas é para perto daqui, pois fica a cerca de 3kms. O sítio nem é melhor ou pior que este. Além disso, vamos ter mais e melhor armamento, que deve chegar dentro em breve.
No aspecto da guerra, os turras continuam sem dar sinal de vida, o que é bastante bom para nós.
Quanto a descanso, já tenho autorização do Comandante da Companhia para levar a minha Secção a Teixeira Pinto, na minha noite de descanso, o que para estes sítios é quase como um Menino Jesus. Iremos à tarde e regressaremos no outro dia de manhã.
Quanto a sair daqui, só no início das chuvas."


O nosso serviço de lavandaria tinha ao seu dispor as mais modernas máquinas de lavar roupa. Aqui, José Câmara tirando partido máximo de uma dessas dessa preciosidades

Montar o segundo acampamento em tempo útil não foi tarefa fácil, até porque não se conseguiu aproveitar nada do primeiro. O pessoal já estava sobrecarregado com as patrulhas de vinte e quatro horas, a picagem da estrada e a defesa próxima das máquinas, pelo que o trabalho teria que ser executado por um grupo de combate, que se revezava todos os dias. Este grupo também tinha a seu cargo, os postos de sentinela diurnos, as escoltas diárias ao Bachile e muitas vezes a Teixeira Pinto, o arranjo da lenha para a cozinha etc. A tarefa era humanamente quase impossível. A solução foi desviar uma Secção para ajudar na construção dos abrigos. Mesmo assim, valeu-nos a grande capacidade de trabalho e disciplina dos nossos soldados. Eles compreendiam que do seu esforço dependia toda a nossa segurança e algum conforto. Nesse aspecto, a sua luta foi indómita e o seu suor que empapou aquele pó, jamais se evaporará. A estrada lá está! Fala por eles e por todos os outros que também deram o melhor do seu esforço na Mata dos Madeiros.

Obra muito importante, como não podia deixar de ser, foi a construção da capelinha que serviria de guarida ao nosso Sagrado Coração de Maria. A obra, digna de qualquer arquitecto que se preze, tinha que estar pronta para a Procissão das Velas que iríamos realizar em plena Mata dos Madeiros. De acordo com o Cap Mil Rogério Alves, a sugestão para se fazer a procissão partiu do Comandante do CAOP 1, o Cor. Amaral, que nos honrou com a sua presença na noite do dia 12 e no dia 13 de Maio.

Fazer uma Procissão de Velas entre as míticas matas da Caboiana e do Balenguerez não era, certamente, do ponto de vista militar o mais indicado. Nós os graduados andávamos apreensivos. Muitos de nós deixamos saber as nossas reservas ao nosso Comandante. Para mais, quando poucos dias antes tinha havido uma escaramuça entre os turras e os Comandos. A verdade é que o Capitão não se podia refutar à sugestão do Comandante do CAOP e o evento de fé foi por diante.

Não constituíria surpresa para quem conhecesse o povo açoriano, ver os nossos soldados no seu Trio Preparatório que incluía reflexão e reza do terço. A minha Secção não fugiu à regra. Quando na mata, usávamos sinais, pois a reza era feita em silêncio e acontecia antes de emboscarmos para a noite. Até que chegou a grande noite!

O Santuário do Sagrado Coração de Maria era uma obra prima da arquitectura contemporânea, só possível pela imaginação dos engenheiros da CCaç 3327

Ainda com alguma claridade solar, a procissão partiu do Santuário (guarida feita em folha de palmeira onde tínhamos o altar com a nossa imagem). Aos poucos, os soldados foram acendendo as velas, rezando o terço e entoando o hino de Nossa Senhora de Fátima. Quando a procissão passou junto do posto de sentinela do canto direito, ao fundo do acampamento, foi engrossada com os dois GCOMB que regressaram do mato para participarem na procissão. Assim, ficámos sem protecção afastada no mato. O Comandante da Companhia, ao aperceber-se dessa manobra não autorizada, não se zangou mas mandou apagar as velas de imediato e a procissão, para todos os efeitos, terminou ali.

Seguiu-se a missa! Nossa Senhora nos valeria naquela noite. Incrivelmente, o Comandante do CAOP não deu pelo regresso dos grupos, e se o fez não se deu por achado.


Foi assim que me referi sobre este assunto, numa carta que ainda escrevi depois da missa.

Mata dos Madeiros, 12 de Maio de 1971
" Continuando, não posso deixar de referir a excelente jornada de hoje. Inclusive, fomos honrados com a visita do comandante cá da zona. Tivemos a nossa Procissão de Velas à volta do acampamento, que culminou com uma missa. Tudo teve um sabor especial por vários motivos. Nem todos os dias podemos aspirar a isso; é verdade que não deixou de haver o espírito de guerra, uma vez que levávamos uma vela numa mão, mas na outra levávamos a arma. Enfim, no mato da Guiné, apesar de tudo, levantamos bem alto a nossa fé.
Para todos nós e em especial para mim, foi o afirmar de uma fé que não julgava possuir com tanta dignidade."


Hoje, ao olhar para trás e para o que esse dia representa na história da CCaç 3327, continuo a sentir o mesmo orgulho de então, por ter participado no evento cristão mais bonito que ainda vivi. Na noite do dia 12 de Maio de 1971, a lua cheia e sorridente, que pairava sobre a Mata dos Madeiros, foi testemunha silenciosa de um abraço de paz entre a guerra e a fé cristã.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 5 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6938: Blogoterapia (158): Um brinde à Tabanca (José da Câmara)

Vd. último poste da série de 6 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6684: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (20): Liderança e voluntariado de mãos dadas na Mata dos Madeiros

terça-feira, 6 de julho de 2010

Guiné 63/74 - P6684: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (20): Liderança e voluntariado de mãos dadas na Mata dos Madeiros

1. Mensagem de José da Câmara (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73), com data de 26 de Junho de 2010:

Meu caro e amigo Carlos Vinhal,
Cá estou de volta a dar-te algum trabalho.
É uma história simples. O seu significado está muito para além das palavras.

Dentro de dias irei abraçar alguns dos protagonistas aqui mencionados. Ao fim de 37 anos!

Para ti e para os nossos camaradas um abraço imenso,
José Câmara


Memórias e histórias minhas (20)

Liderança e voluntariado de mãos dadas na Mata dos Madeiros


A emboscada ao grupo da 26a. CCmds junto ao nosso acampamento na Mata dos Madeiros trouxe alterações significativas à nossa actuação. Entre elas tiveram significado especial o reforço das escoltas ao Bachile e ao grupo que, diariamente, juntava a lenha para a cozinha. Porém, o esforço maior adveio do começo da picagem da estrada e da protecção próxima das máquinas e dos trabalhadores em serviço na estrada. Esta nova missão, a nível de um grupo de combate, era protagonizada por um dos grupos regressados do mato, e prolongava-se até às seis horas da tarde. Os postos de sentinela noturnos já eram reforçados com três elementos. Outra consequência não menos significativa foi o facto dos grupos de combate nas saídas de vinte e quatro horas terem o seu quadro completo de graduados.

Como consequência de todo este reforço de trabalho, os nossos soldados sem dúvida os mais sacrificados, passaram a actuar quase continuamente. O seu esforço passou a ser compensado com 12 horas de descanso a cada 12 dias de trabalho contínuo. Os graduados eram mais felizardos nas noites passadas no acampamento porque só tinham que fazer uma ronda nocturna. Comum a todos os operacionais foi o reforço das rações de combate que passou de uma em cada 48 horas, para duas e meia em cada 72 horas.

A 28 de Abril de 1971 escrevi à minha madrinha de guerra o seguinte:

"Esta manhã voltei de uma operação (24 horas), para voltar ao mato durante o dia (12 horas). No regresso voltei a sair numa escolta aqui perto (o Bachile distava cerca de 10 Kms do primeiro acampamento). O trabalho está a ser durinho, mas vai-se cumprindo da melhor maneira. Amanhã vou novamente para o mato; depois de amanhã devo descansar para voltar a alinhar mais quatro dias seguidos para o mato."

A primeira destas quatro saídas aconteceu porque o Comandante da Companhia, Cap Mil Rogério Rebocho Alves pediu-me para substituir no 2.°Pel o Alf Mil Agostinho Barata Neves por impedimento deste. Integrar aquele pelotão não era problema. Comandá-lo era. Os furriéis João Cruz, Fernando Silva e Joaquim Fermento eram competentes e, qualquer um deles, à altura de comandar o grupo. A fim de evitar mal entendidos com os meus camaradas, pedi autorização para levar a minha secção completa. Era, julgo eu, a forma mais correcta de assumir, como graduado mais antigo, o comando de um grupo que não era o meu. O Comandante da Companhia compreendeu e anuíu.

Foi assim que a minha secção saiu 'voluntariamente' para o mato sem que o pessoal soubesse das razões. Durante os próximos quatro dias só regressávamos ao acampamento para abastecimento de água e ração de combate.

Quando regressámos da primeira das quatro saídas, o 1.º Cabo José Leonardes, um excelente homem e militar, aproximou-se e disse-me sensivelmente o seguinte:

- O pessoal da nossa secção não percebe porque teve que ir para o mato só porque o meu furriel se ofereceu como voluntário. Nós já estamos sobrecarregados com trabalho. Eu acho que eles têm razão.

Perante esta manifestação correcta de desacordo, respondi:

- Eu não fui voluntário. O nosso Capitão pediu-me que o fosse. Nesta companhia eu sou, talvez, o único que não pode tentar negar-se a um pedido dele. Quanto a vocês eu só posso acrescentar que vos treinei e sei o que cada um é capaz de fazer. Tens razão numa coisa: O meu problema não pode ser o vosso. Qualquer outra explicação sobre este assunto serão vocês que a terão que descobrir e compreender. A partir de hoje, sempre que eu tiver que alinhar fora do grupo, vocês não terão que me acompanhar.

Nunca saí para o mato sem a minha secção. Os meus homens compreenderam que eu estive sempre ao lado deles. Também compreenderam que eu, tal como eles, era um açoriano com alguma responsabilidade acrescentada.

Finda a conversa com o Leonardes, enquanto me preparava para regressar ao mato, desta vez com o meu grupo, o Comandante da Companhia informou-me que o Alf Mil Francisco João Magalhães, comandante do grupo, tinha adoecido e que eu teria que comandá-lo. Essa informação originou um diálogo que não esteve muito longe deste:

- Meu capitão, o grupo não deve sair desfalcado de um graduado.

- Vai ter que ser pois não tem ninguém preparado para te ajudar.

- Meu Capitão, temos um que eu sei estar sempre preparado para qualquer eventualidade.

-Quem? - perguntou o comandante. Eu não respondi. O capitão encaminhou-se para a sua G3, pôs o cinturão com as cartucheiras, o cantil e duas granadas de mão. De seguida dirigiu-se ao depósito de géneros para recolher a sua ração de combate.

A 3 de Maio de 1971 escrevi à minha madrinha de guerra o seguinte:


"A saída de ontem teve um bom aliciante. O comandante da companhia resolveu acompanhar-nos pela primeira vez. Claro está que se andou um bocadinho mais que o normal. Tivemos interesse em que ele visse alguns aspectos da mata por onde andávamos. Rapazes novos tudo podem, como se costuma dizer, e como eu guiava a coluna no seu trajecto tentei fazê-lo tremer um bocadinho. Tudo saíu bem."

Foi assim, desta forma simples, que o comandante da CCaç 3327 recebeu o seu baptismo operacional na Mata dos Madeiros.

Para mim nunca foi importante que o comandante da companhia alinhasse no mato. Os bons líderes manifestam-se de muitas maneiras, entre elas a força do carácter e do trabalho.

O Cap Mil Art Rogério Rebocho Alves era um homem culto e humanista. Impunha disciplina com uma palavra amiga e compreensiva. Isso não o impedia de usar, em casos mais extremos, o RDM. Muito raramente o fez. Na sua missão principal fazia tudo o que lhe estava ao alcance para minimizar a miséria que era a nossa luta na Mata dos Madeiros.

A forma como ele fez a sua primeira saída para o mato dignificou o homem, o militar e o comandante.

José Câmara
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 28 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6484: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (19): Baptismo de fogo adiado

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6484: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (19): Baptismo de fogo adiado

1. Mensagem de José Câmara (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73), com data de 15 de Abril de 2010:

Caro Carlos Vinhal,
Em anexo encontrarás mais uma pequena história do meu roteiro pela Mata dos Madeiros.

Votos de boa saúde para ti e para todos os camaradas.

Um abraço amigo do tamanho do oceano que nos une.
José Câmara



Memórias e histórias minhas (19)
Baptismo de fogo adiado


A estrada desventrava, com prazer sádico, a virgindade da Mata dos Madeiros. Esta não mais seria a mesma. Cem metros de desmatação, abertura, leito e alcatroamento eram conseguidos, diariamente, em nome do progresso social e de uma estratégia militar que facilitava a comunicação terrestre Bissau/Cacheu, via Teixeira Pinto, e separava as míticas matas do Balenguerez e da Caboiana.

Ali mandávamos nós, embora soubéssemos que o perigo rondava por perto. O tempo se encarregaria de o comprovar.

O acampamento já era então visível a mais de um quilómetro na longitunital da estrada em relação ao corte da desmatação. Isso trazia-nos apreensivos na medida em que as nossas defesas contra flagelações eram bastante exíguas, e os nossos movimentos podiam ser seguidos à distância.

As nossas saídas diárias para o mato também tiveram que se adaptar à nova realidade. Muitas delas eram feitas pela estrada, e virando à esquerda no extremo frontal da descapinação. Este tipo de saída era o que mais temíamos. O avanço, a decoberto, era feito até atingirmos o corte da desmatação e não podíamos penetrar na mata, já que essa zona pertencia a outra força de intervenção. Assim, não nos restava outra alternativa que não fosse prosseguir ao longo do corte, zona ideal para uma emboscada. Pior, a possibilidade de uma infiltração IN no meio das duas forças de intervenção também não era de desprezar.

Na noite do dia 22 de Abril de 1971, um dos sentinelas no acampamento apercebeu-se de uma fogueira na orla frontal da desmatação a cerca de um quilómetro de distância. Dado o alarme, de imediato foi accionado todo o dispositivo de defesa do acampamento, ao mesmo tempo que os dois grupos de combate que se encontravam fora e a outra força de intervenção, neste caso a 26.ª CCmds, eram avisados. E foi desta última força que recebemos a mensagem para que não nos preocupássemos, pois que a fogueira tinha sido ateada por descapinadores que, possívelmente, teriam falhado a hora de recolher ao acampamento.

Relaxámos, é certo, mas ninguém saíu da vala. Até porque a fogueira ardeu toda a noite...

Elementos da CCaç 3327 em progressão nas matas da Guiné. Na frente o Soldado At. António S. Júnior da minha Secção. A seguir o Soldado Trms António Almeida.

Com o amanhacer os dois grupos da CCaç 3327 que estavam de saída ultimavam os preparativos. O intinerário desse dia seria feito pela estrada, passando junto do sítio onde ardera a fogueira.

Eu, a mando do capitão, segui na escolta para o Bachile. Neste quartel estava a secretaria da Companhia onde, sempre que possível, ajudava nos trabalhos da mesma. Era um trabalho que me agradava fazer. Nessa altura eu mantinha boas relações com o 1.° Sargento João Augusto da Fonseca, que mais tarde viria a ser transferido para a Companhia Terminal.

Foi à entrada do ramal para o Bachile que o Soldado das Transmissões, ao comunicar a nossa posição e aproximação àquele quartel, se apercebeu que algo de anormal se estava a passar.

Para horror nosso, sem precisar os dados, saíu-lhe mais ou menos estas palavras:

- A malta está a embrulhar e há feridos!

Foi já dentro do quartel do Bachile que tomámos conhecimento mais aprofundado do que se passara junto do acampamento.

A força da 26.ª CCmds ao levantar a sua emboscada nocturna resolveu fazer a sua aproximação ao local onde iria ser rendida, ao mesmo tempo que os capinadores davam início à sua tarefa diária. Para o efeito seguiu a zona da orla da desmatação fazendo o percurso inverso que estava programado para os grupos da CCaç 3327 e passando junto ao local onde a fogueira ardera toda a noite.

Foi nesse trajecto, através da orla da mata, que se deu a emboscada. Os Comandos, homens experientes por muitos meses de comissão, detectaram a emboscada e foram os primeiros a disparar sobre os elementos IN que haviam infiltrado a zona vestidos de simples capinadores. Foram eles que, despreocupadamente, tinham feito a fogueira para se aquecerem durante a noite. Não contaram, isso sim, que os grupos da CCaç 3327 iriam atrasar a sua saída e, muito menos, contaram com os Comandos a surgiriem naquela zona.

Foi assim que descrevi este episódio à minha madrinha de guerra.

Aerograma de 24 de Abril de 1971:

"...Voltando à realidade da vida aqui, ontem houve barulho a sério a cerca de 1 km do meu acampamento. Dois comandos e três civis ficaram feridos e tiveram que ser evacuados. A minha Companhia não estava presente, e eu nem estava no acampamento. Tinha ido ao Bachile. Nem cheguei a ouvir o barulho.

Amanhã devo ir para o mato, só regressando na segunda-feira. Tudo irá correr bem se Deus quiser
."

Recentemente, em troca de emails com o nosso ex-Fur Mil Enfermeiro Rui Esteves, a quem coube a responsabilidade de prestar os primeiros socorros aos feridos, pedi-lhe que me ajudasse a reconstituir o que então se passou no seu mister. Foi assim que ele descreveu o episódio:

"O ataque do PAIGC à 26.ª Companhia de Comandos

Este ataque devia estar-nos destinado, os nossos IN é que não reparam bem no armamento dos nossos camaradas Comandos (se bem me lembro, ninguém usava G3) e atacaram.

O ataque dos PAIGC's à 26.ª Companhia de Comandos no local do nosso primeiro acampamento - houve vários feridos, entre os quais alguns do IN que, por estarem mais feridos, tiveram prioridade na evacuação de helicóptero (prioridade estabelecida por mim). Tive até que meter na ordem um dos meus cabos enfermeiros que não queria tratar os feridos do IN.

De entre os nossos feridos estava um Furriel Comando que era muito porreiraço e já era a segunda ou terceira vez que apanhava uns estilhaços. Desta vez, tinha as costas com uns poucos de buracos superficiais, que tratei com pouco mais que betadine, gaze e adesivo. Quando esta Companhia acabou a comissão, este furriel fez-me herdeiro de alguns bens - ofereceu-me uma ventoínha eléctrica e um caixote para guardar as minhas coisas
."

Essa emboscada acarretou outro tipo de problema. Os capinadores tentaram aproveitar este episódio para abandonar os trabalhos da estrada. Para os aguentar foram necessários alguns tiros para o ar e o aprisionamento de dois indivíduos que pareciam ser os chefes desta nova postura. Até aí nunca houvera qualquer problema com os civis. Sanado o incidente, a vida no acampamento voltou à normalidade, mas com uma preocupação acrescentada. Agora tínhamos a certeza que o IN estava na zona e que iria dificultar a nossa missão.

Por enquanto, a guerra passara ao nosso lado. O nosso baptismo de fogo ficara adiado.

José Câmara
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 24 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6237: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (18): Estados de alma, aerograma de 20 de Abril de 1971

sábado, 24 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6237: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (18): Estados de alma, aerograma de 20 de Abril de 1971

1. Mensagem de José Câmara (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73), com data de 15 de Abril de 2010:

Caro e amigo Carlos,
Junto encontrarás mais um pedacinho da minha história por terras da Guiné. Neste caso nem tive que rebuscar na memória; limitei-me a transcrever o aerograma que então mandei à minha madrinha de guerra.

Para este bate-estradas foi a sua última missão, e vai regressar ao baú das recordações de minha esposa.

Muita saúde para ti e para todos os nossos camaradas, com um abraço imenso do
José Câmara


Memórias e histórias minhas (18)

Estados de alma


Caros camaradas
Numa das trocas de correspondência que tive com o Carlos Vinhal, este ofereceu-me a possibilidade de abrir uma página para a correspondência que mantive com a minha madrinha de guerra. Declinei o convite, por me parecer que isso não traria nada de novo. Fui sempre muito comedido na minha correspondência, e nunca esqueci que me dirigia a uma jovem com apenas 16 anos de idade.

Estados de Alma é um exemplo do que escrevia e como escrevia. Caso raro, o aerograma que transcrevo é todo dedicado à Guiné. Para além disso, refiro um acontecimento da CCaç 3327 na Mata dos Madeiros. A primeira Missa que lá tivemos aconteceu no dia 17 de Abril de 1971. Para muitos de nós também era a primeira desde que deixáramos Santa Margarida em Janeiro desse ano. Para a religiosidade do soldado açoriano, e não só, esse acto de fé constituíu um dia de festa.


Aerograma de 20 de Abril de 1971

"Isabel,
Noite cálida e serena; convidativa ao devaneio do espírito e à conversa amena e sadia.

É, sem dúvida, uma excelente noite para escrever, e para me inteirar da tua saúde, o melhor dom que podemos ter, e que espero seja tua assídua companheira.

Isto por aqui vai óptimo, melhor mesmo do que aquilo que esperávamos. Para além do trabalho que é muito, diga-se de passagem, aqui sempre temos outra liberdade; claro que essa liberdade não é em todos os sentidos, mas estamos à vontade para comer, dormir, trabalhar e ainda temos tempo para pensar e sonhar. O que não há são notícias fresquinhas. E, sinceramente, é melhor não haver.

Nesta mata, vil e cruel assasssina, em que cada árvore pode esconder um turra e cada trilho mil e uma minas, quase tudo nos tem corrido da melhor forma. Não sabemos o que são as adversidades do tiroteio. Até já estamos admirados. Imploramos a Deus que possamos continuar admirados por muito tempo.




Por falar em Deus, não sei se algum dia te disse que os soldados da minha companhia tinham comprado uma imagem do Sagrado Coração de Maria... e, no último Sábado, tivemos a nossa primeira missa no mato.

Fizemos uma capelinha com folhas de palmeira; o altar, feito à pressa, era de caixas de cerveja. Os crentes vestiram a fatiota de gala: botas de lona, camuflado e espingarda às costas para o que desse e viesse.

Foi uma missa com um sabor especial... diferente... de muita fé, em todos os sentidos. Foi, por assim dizer, a inauguração da nossa Igreja... a Missa Nova do nosso muito amado Sagrado Coração de Maria

Foi um recordar de outros tempos, mas com a alegria própria de quem é jovem e sabe sê-lo.


Acampamento e localização da capela (seta amarela). Como nota a salientar, a cuidada vedação à volta da capela

E é tudo. Cumprimentos...".


A imagem do Sagrado Coração de Maria acompanhou sempre a CCaç 3327. Sem o poder confirmar, foi-me dito que a imagem está depositada na Igreja de São João Baptista, fazendo companhia a muitas outras imagens que acompanharam as companhias açorianas do BII17.

A majestosa Igreja de São João Baptista está ao centro do castelo que ostenta o mesmo nome, e que ao tempo era a sede do BII17, na cidade de Angra do Heroísmo, Ilha Terceira.

José Câmara
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 7 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6127: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (17): Quem marca o destino é Deus

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6127: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (17): Quem marca o destino é Deus

1. Mensagem de José Câmara (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73), com data de 4 de Abril de 2010:

Caro amigo Carlos Vinhal,
Anexado encontrarás mais um pouco da minha passagem pela Guiné. É uma história diferente, que fala por si.

Para ti e para todos os nossos camaradas um abraço amigo, desejando a todos muita saúde,
José Câmara



Memórias e histórias minhas (17)

Quem marca o destino é Deus


A patrulha avançava pelo emaranhado da mata, naquela que seria a última ronda antes de pernoitar e emboscar. O homem rádio deu sinal de mensagem.

- "O Manuel Veríssimo sofreu un acidente grave. Está a ser evacuado para Bissau. Não deve escapar!". Foi com esta crueldade que recebemos, ao cair do dia de 12 de Abril de 1971, a notícia do acidente que vitimou aquele soldado.

De repente as árvores tornaram-se mais grossas e o matagal mais denso. Com o cair da noite, o coração tirou tempo para lavrar muitas presses de esperança, e os olhos perdidos no firmamento contaram estrelas até ao amanhecer. Foi uma noite muito longa!

José Câmara em patrulha na Mata dos Madeiros

Aquele soldado, de seu nome completo Manuel Veríssimo de Oliveira, era natural de São Miguel, e os seus restos mortais foram enxumados no Cemitério da Lomba de São Pedro sua freguesia natal.

Não pertencia ao meu Pelotão, e os nossos contactos eram os normais dentro de uma Companhia de Intervenção. Lembro-me que era um jovem pouco alegre e de uma educação esmerada. Talvez a vida dura que levara na ilha, e o facto de ser o amparo da mãe e de uma irmã (à altura com cerca de 10 anos, se a memória não me falha) tivessem contrbuido para modelar a sua forma de estar na vida.

Soccorri-me das memórias do Furriel Enfermeiro Rui Esteves, que prestou os primeiros socorros ao infeliz Manuel, e ainda do Soldado Condutor, Manuel Borges da Silva que conduzia o Unimog, do qual o Manuel foi projectado, para mais detalhadamente me ajudarem a construir a história do acidente.

Mas afinal o que se passou?

O Manuel pedira ao capitão para ir ver um primo que se encontrava em Bassarel. Devidamente autorizado, foi escoltado até Teixeira Pinto, tendo passado a Páscoa com o primo. Na tarde do dia 12 de Abril de 1971, estava de regresso ao acampamento.

A escolta depois de, no Bachile, pegar o pão, correio e o demais necessário, prosseguiu para o local onde a Companhia estava acampada.

Ao longo da estrada nova que estava a ser construída era normal encontrarem-se, de um lado e do outro da mesma, montes de areia que servia para cobrir e enxugar o alcatrão. Segundo o condutor, foi esta situação que encontrou, com dois montes muito próximos um do outro.

Terraplanagem da Estrada Teixeira Pinto/Cacheu na qual o Manuel foi vítima mortal

O condutor ao desviar-se de um monte, de imediato teve que fazer contradesvio ao outro. Com o movimento brusco, o Manuel, instintivamente, tentou segurar os sacos do pão, acabando por ser projectado e indo bater com a cabeça no chão.

O Furriel Esteves, num email que me mandou debruçou-se sobre este assunto da seguinte forma:

O Furriel Esteves que prestou a assistência ao Manuel
Foto: © Rui Esteves (2005). Direitos reservados

"O Manuel Veríssimo de Oliveira foi socorrido por mim na estrada onde caíu.

Deviam ser cerca das 16 horas, estava no acampamento da mata dos Madeiros, aparece-me o alferes João Luís Ferraz a gritar por mim, desesperado, porque um soldado tinha caído do Unimog e estava inconsciente.

Peguei na mochila dos primeiros socorros e arrancámos para o local do acidente. Quando lá cheguei dou com o Manuel Veríssimo de Oliveira em estado de coma.

O soldado Manuel Veríssimo vinha a segurar o saco do pão e quando o Unimog passou por um buraco agarrou-se ao saco e caíu desamparado no chão, batendo de cabeça.

Morreu para salvar o pão da nossa Companhia.

Chamámos um helicóptero para a evacuação, mas dado que o dia estava quase a acabar, já não vieram buscá-lo. O que nós praguejámos contra o pessoal da Força Aérea!

Aqui já não me recordo bem do que aconteceu a seguir. Tenho a ideia que segui eu e um condutor e que levámos o desgraçado Manuel Veríssimo a Bissau. Isto pela noite fora, sem escolta, sem nada e que o deixámos em Bissau.

Regressámos no dia seguinte e passados dois ou três dias recebemos a informação que o nosso soldado tinha morrido.

Passados estes anos todos confesso que ponho em dúvida se foi mesmo assim, se fomos mesmo a Bissau com ele. Se foi - foi uma grande loucura e tivemos muita sorte em ter percorrido tanto quilómetro sem nos acontecer nada!

A ideia que eu tenho é nós a avançar pela noite fora, os faróis do Unimog a iluminar a estrada e eu e o condutor a ver que estávamos metidos num grande sarilho se nos apareciam os homens do PAIGC."


O Manuel viria a falecer no dia 23 de Abril de 1971. Constituíu a única baixa fatal da CCaç 3327 no TO da Guiné.

Fui designado para prestar assistência à família do nosso militar sinistrado, tendo trocado vária correspondência com a sua mãe.

Aos meus olhos o Manuel era um herói. Não dos tiros, mas da educaão, da participação, do trabalho, da camaradagem, do cumprimento do seu dever militar. Esta foi a mensagem que tentei passar àquela pobre mãe.

Mais tarde, inesperadamente, recebi uma carta daquela mãe onde dizia, sensívelmente as seguintes palavras:

“ Eu era uma mãe triste por perder o meu filho, mas feliz por saber que ele tinha morrido como um herói. O Senhor mentiu-me. O meu filho morreu bêbado. Hoje não tenho nada."

Fiquei estarrecido. Não conseguia compreender aquelas palavras, até que se fez luz no meu cérebro. O Manuel tinha ido visitar um primo a Bassarel e era muito natural que tivesse tomado uns copos com este.

Infelizmente, foi a mensagem que chegou aos Açores e àquela pobre mãe. Em nome da verdade, quando o acidente aconteceu o Manuel estava, segundo os camaradas que o acompanhavam, perfeitamente sóbrio. Aliás, ele levava uma vida bastante regrada. Poupava para mandar o máximo possível para a sua mãe.

Respondi àquela angustiada mãe. Infelizmente não recebi resposta.

Mais tarde, o soldado José Medeiros (se a memória não me atraiçoa) depositou nas minhas mãos, versos de homenagem ao Manuel. Perguntei-lhe quem tinha escrito aqueles versos, respondendo ele que isso não interessava. E acrescentou:

- Nós queremos que o meu furriel guarde esses versos. Nós sabemos que o senhor saberá o que fazer com eles.

É verdade. Sempre soube o que fazer com eles. Infelizmente, nunca tive a oportunidade de me encontrar com a mãe do Manuel. Tão pouco sei se ainda vive e o que é feito da irmã, hoje uma mulher na proximidade dos 50 anos.

Aqui deposito estes versos simples, escritos na Mata dos Madeiros, por um desconhecido da CCaç 3327. O seu valor moral vai muito para além do valor literário. Essa é a melhor homenagem que podía prestar ao Manuel Veríssimo de Oliveira. Tenho a certeza de que os elementos da CCaç 3327 estão comigo neste momento.

Tal como me foram confiados, limitando-me a corrigir algum erro ortográfico.

Cópia parcial dos versos que me foram confiados


Versos sobre um rapaz que morreu na Guiné

I
Peço ao Senhor do Altar
e à Virgem Santa Maria
forças para vos contar
o que sucedeu neste dia

II
Vou-vos contar com fé
que neste mundo de enganos
morreu um rapaz na Guiné
que tinha 21 anos

III
Era boa criatura
este infeliz sem sorte
que caíu de uma viatura
que lhe causou a morte

IV
Foi no dia 12 que isto se deu
tudo o que estou a contar
e pelo seu nome chamei
e ele sem nunca acordar

V
Manuel Veríssimo de Oliveira
era o nome da criatura
que lutou pela Bandeira
e agora jaz na sepultura

VI
Ele saíu cá do cimo
com imensa alegria
para ir visitar o primo
que já há tempo não via

VII
A Teixeira Pinto se deslocou
e um adeus disse à gente
e no outro dia se lembrou
de voltar ao acampamento

VIII
Mas coitado não sabia
não podia adivinhar
que aquele era o dia
que nos ia largar

IX
Ele na viatura entrou
para vir para o acampamento
foi o Mestre que o chamou
naquele dia de repente

X
E o carro começou a andar
e pela estrada corria
e nós vinhamos a cantar
com imensa alegria

XI
Neste momento o carro entrou
na curva com um trambolhão
e o pobre não se aguentou
e foi atirado ao chão

XII
E a queda foi tão forte
que logo inerte ficou
e mais tarde veio a morte
que consigo o levou

XIII
Estou como vendo agora
quem lhe criou com tanto brilho
a sua mãe de outrora
que tanto chora pelo filho

XIV
Muito que a mãe chorou
e no seu pranto dizia
já não tenho quem me ganha
o pão nosso de cada dia

XV
Tive dó da mulherzinha
digo isto mesmo a fundo
porque o único amparo que tinha
já estava no outro mundo

XVI
Era natural de São Miguel
Lomba de São Pedro a freguesia
deste pobre Manuel
que morreu neste dia

XVII
Manuel rapaz novo
que morreu neste dia
era estimado pelo povo
da sua freguesia

XVIII
Pobre infeliz sem sorte
era um bom militar
desgraçada seja a morte
que deixa uma mãe a chorar

XIX
Foi no dia 23
que a morte o foi buscar
e já deu contas a Deus
que este o tenha em bom lugar

XX
Quem marca o destino é Deus
até à hora chegar
rezem por este português
que era um bom militar

XXI
E quem estes versos um dia
os puder ler em paz
no fim reze uma Avé-Maria
por alma deste rapaz

XXII
Agora vou finalizar
e vejo que faço bem
bem me queiram desculpar
os erros que aqui tem

XXIII
Tudo isto aqui se encerra
onde há terra também há pó
toda a gente no mundo erra
quem não erra é um Só
.

Hoje, passados que são trinta e nove anos sobre este acontecimento, continuo a escrever como então:

Minha Senhora,
Tenha a certeza de que o seu filho faleceu no cumprimento do seu dever militar. No meu sentir, e no de todos os seus camaradas, ele faleceu como um herói. Que estas palavras possam ajudar a suavizar a sua dor que todos nós, militares da CCaç 3327, sabemos ser imensa, e de que também partilhamos.

José Câmara
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 31 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6084: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (16): Páscoa e Casamento na Mata dos Madeiros

quarta-feira, 31 de março de 2010

Guiné 63/74 - P6084: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (16): Páscoa e Casamento na Mata dos Madeiros


1. Mensagem de José Câmara* (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73), com data de 25 de Março de 2010:

Caro e amigo Carlos Vinhal,
Junto encontrarás mais um pouco do meu passeio pela Mata dos Madeiros.
A Páscoa de 1971 deixou-me marcas bem vivas. Tenho pena, sim, de no meu álbum de recordações não haver fotos alusivas aos acontecimentos desse dia.
No contexto da história também uso algum palavreadao que, ao tempo, era tabú nos Açores. A intenção é relatar o que então se passou.

Um abraço amigo para ti e para todos os camaradas,
José Câmara


Memórias e histórias minhas (16)
Páscoa e Casamento na Mata dos Madeiros


Para os militares da CCaç 3327 a Páscoa, a festa religiosa mais importante do calendário litúrgico do povo açoriano, passada na Mata dos Madeiros foi diferente. Ali, no meio do mato, o cordeiro pascal seria protagonizado pelo Furriel Miliciano Fernando Pedro Ramos da Silva, que passaria à classe de sargentos milicianos casados.

Não consituíu surpresa que, a meio da tarde do dia de Páscoa de 1971, o Comandante da Companhia Cap Mil Art Rogério Rebocho Alves, um homem culto e humanista, mandasse regressar os dois Pelotões que se encontravam no mato. Para ele, a Páscoa tinha que ser partilhada em família, e a CCaç 3327 já o era; também havia que celebrar o casamento do Furriel Miliciano Fernando Silva do 2.° GComb.

O nubente, sorridente, surgiu do mato acompanhado por muitos amigos. Vinham todos vestidos da mesma cor, com adornos de todos os gostos (fossem eles morteiros, metralhadores, granadas e outros tais), perfumados com o suor de alguns dias, e cheiinhos do pó da terra que lhes servia de leito desde que chegaram à Mata. Tanto assim era que se se passasse a unha na pele, lá ficava um sulco parecido com os regos feitos pelos arados nas terrinhas dos Açores.

José Câmara no seu belo, arejado, solarengo e confortável escritório da Mata dos Madeiros.

A messe improvisada que também foi inaugurada nesse dia, e nunca mais foi usada, cujo ar condicionado era proporcionado pelos buraquinhos entre as folhas de palmeira, serviu de palco a estas celebrações da Páscoa e Casamento por Procuração.

Depois do almoço melhorado (se bem me recordo bacalhau com grão), seguiram-se os discursos, atentamente escutados pelos presentes. O mais aguardado era, sem dúvida alguma, o do Fur Mil Fernando Silva. Estoicamente, com aquele seu ar de bébé sorridente, enfrentou a plateia formada pelos seus camaradas, e botou palavra:

- Porra, eu aqui a ração de combate e ela lá, a comer bolo!

Os camaradas maravilhados com aquele longo e corajoso discurso desataram aos vivas, aos bravos, às palmas e às palmadinhas nas costas do nubente. Ninguém queria perder esta ocasião única na história da CCaç 3327, e desejar a melhor das luas-de-mel ao feliz noivo. A emoção era forte. Em algumas caras viam-se correr algumas lágrimas.

Passada a euforia e a emoção do momento, os chefes de mesa, homens experientes nestas coisas de casamentos elegantes, abriram as portas brancas de um frigorífico a petróleo que por ali tinha sido montado. Por detrás delas estavam as dançarinas que iriam deliciar os presentes.

Aleluia!

Eram todas loirinhas, fossem elas Sagres ou Cucas. Em corridinho saltaram para as mesas improvisadas, chocando umas nas outras. O tilintar dos seus adornos espicaçavam a nossa curiosidade, e aquele "pop" do abrir a boca soava a beijos mandados com a palma da mão, e faziam crescer água na boca. Aquelas meninas evoluíam nuas, frescas, jorrando suor em bica (tal era o calor) por todos os poros. Retorciam-se em velúpias de prazer todas as vezes que lhes tocávamos, para desaparecerem por encantos, todas as vezes que as beijávamos. Eram beijos de paixão contida, sôfregos de dias sem pinga.

José Câmara: na Mata dos Madeiros o visual adaptava-se à medida do tempo ali passado

De repente todos se calaram. A realidade voltava ao presente. Na face de alguns daqueles meninos ainda rolavam algumas lágrimas rebeldes. Ali, ao nosso lado, estava a guerra.

O Fernando Silva tinha que dar continuidade à sua missão. Tinha que voltar para o desconhecido, para a mata, para a segurança nocturna afastada. Vi-o caminhar com o seu grupo.

Dizem as más-línguas do tempo, que o jovem noivo cometeu o pecado de adultério durante a noite. Não se sabe ao certo o que o levou a cometer tamanho sacrilégio.

Agarrado à sua amante de ocasião, a G-3, entre suspiros, ais e velúpias de prazer a que não era alheio a ajuda do mel deixado pelas formigas, mosquitos, e outros picantes e trepadores, o Fernando lá ía atraiçoando a sua jovem esposa, que ainda comia bolo em Lisboa, perante o olhar maroto e complacente da lua que pairava sobre a Mata dos Madeiros. O barro vermelho da Mata era testemunha silenciosa dos orgasmos prazenteiros da sua traição.

Nunca se soube, se a jovem esposa perdoou o facto de ter sido, assim, repudiada na sua noite de núpcias.

No dia 13 de Abril de 1971 escrevi uma carta à minha madrinha de guerra. Foi assim que me referi a esta história:

"Tivemos uma jantarada especial, pois houve um casamento por Procuração de um Furriel da minha Companhia. Um casamento que nós jamais poderemos esquecer... discursos... e algumas lágrimas à mistura.
Enfim, este foi o meu Domingo de Páscoa. Saudade e nada mais."


Infelizmente, e após a nossa comissão, nunca mais tive contacto com o Fernando Silva. Dele apenas sei que viveu durante alguns anos na Póvoa de Santo Adrião.

José Câmara
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 30 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6067: (Ex)citações (53): As tropas Pára-quedistas preparavam-se para a guerra como para uma cerimónia em Parada (José da Câmara/Hoss)

Vd. último poste da série de 18 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6018: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (15): Um erro de periquitos e o piar dos nossos camaradas

quinta-feira, 18 de março de 2010

Guiné 63/74 - P6018: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (15): Um erro de periquitos e o piar dos nossos camaradas

1. Mensagem de José Câmara (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73), com data de 15 de Março de 2010:

Caro Carlos Vinhal,
Junto encontrarás mais um pedacinho das minhas memórias.
Apesar do dilúvio que se faz sentir lá fora, espero que chegue sequinho.

Um abraço amigo para ti e para os camaradas,
José Câmara


Memórias e histórias minhas (15)
Um erro de periquitos que nos valeu o piar dos nossos próprios camaradas
Nos primeiros dias que passámos na Mata dos Madeiros, o render das outras forças que faziam parte da segurança à estrada constituía, sempre, novidade. Porque aquelas forças eram velhinhas, e porque, entre elas, havia açorianos conhecidos e amigos de longa data de alguns dos militares da CCaç 3327.

O tempo de rendição não era muito, mas tudo servia para uma pequena cavaqueira e troca de impressões, e das últimas novidades das terrinhas que nos viram nascer. Para além disso, esse tempo também dava para observar, dentro do possível, o armamento que essas forças utilizavam, como o dispunham no seu xadrez e a forma como depois progrediam na mata.

A CCmds 26 contava nas suas fileiras com um alferes açoriano (esqueci o seu nome), natural de São Jorge; já o protagonismo da CCaç 2791 ia para o Fur Mil Chaves, natural de Santa Maria, e no DFE 13, o Jorge Sousa, natural de Santa Cruz das Flores, e hoje a morar em Stoughton, Massachuetts, EUA, era o preferido dos florenses. Nos Pára-quedistas não havia açorianos. Os tempos de Tavira também deixaram conhecidos entre os furriéis.

Para a minha curiosidade contribuía, como factor mais importante, o facto de muitas vezes ter ouvido, em Tavira e mesmo na Ilha Terceira e em Santa Margarida, que o que nos ensinavam tinha pouca praticabilidade no teatro da guerra. Nada melhor que a imagem para satisfazer a minha curiosidade, e ali era possível observá-la a diferentes níveis.

O 4.° GComb era comandado pelo Alf Mil Francisco João Magalhães (Brunhoso, Mogadouro).
1.ª Secção - Fur Mil Manuel Lopes Daniel (A-dos-Cunhados) - Met GM42 e Mort 60
2. ª Secção - Fur Mil José A. S. Câmara (Fazenda, Lajes, Flores) - Met HK21 e Dilagramas
3.ª Secção - Luís José Vargem Pinto (Norinha, Silves) - Lança-Granadas e Dilagramas


A força da CCaç 2791, uma unidade de infantaria, era a menos apetrechada em armamento, e a que melhor se podía comparar com a CCaç 3327. O seu armamento era o normal de uma companhia de infantaria, sendo a G3 a arma mais utilizada; o dilagrama e o instalazer davam cobertura à falta de lança-granadas. Já os Comandos primavam pelo uso de armamento apreendido aos turras (uso do palavreado de então e seria descabido usar outra linguagem neste escrito). Os Fuzileiros Especiais faziam das MG42 o seu armamento por excelência, e era evidente que se armavam para a luta curta ou de corpo a corpo, tal era a profusão de granadas de mão e punhais que carregavam. Os pára-quedistas, com as suas G3 de coronha rebatível, impressionavam pela forma como fardavam e pela disciplina, ao ponto de, ainda hoje, estar sem saber se eles se preparavam para a guerra ou para uma cerimónia em parada.

Das minhas observações o que mais me chamou a atenção, como sendo diferente do que aprendera na recruta e especialidade, foi a forma rápida e firme como todas aquelas forças penetravam e davam início à sua progressão na mata. Eram tropas experientes, calejadas pelo sofrimento de muitas emboscadas, assaltos, rebentamento de minas e mortes.

Com essas pequenas observações, fui-me preparando para a minha grande primeira saída, que teria lugar pelas 11 horas do Sábado de Aleluia, em 1971.

Apesar de todos os cuidados que foram tomados para essa saída, a dois grupos de combate, foi cometido um erro tremendo, um erro de periquitos que poderia ter tido consequências catastróficas.

Encarei os meus homens para os últimos conselhos. E tremi!

A 2.ª Secção do 4.° GComb. Da esquerda para direita, na frente: Cabo José Leonardes (Topo, S. Jorge), Cabo António F. Silva (Chão Frio, P. Almoxarife, Faia), Magno Silva (Guadalupe, Graciosa), José F. Serpa (Ponte, Fajã Grande, Flores), Emanuel A. Cardoso da Silva (Castelo Branco, Faial). Pela mesma ordem, em pé: José Ramiro Serpa (Costa, Lajedo, Flores), João Lourenço A. Ventura (Fajãnzinha, Flores), José A. S. Câmara , Cmdt de Secção (Fazenda, Lajes, Flores), António Silvestre Júnior (Urzelina, S. Jorge), José Cristiano Arruda Massa (Arrifes, S. Miguel)

Sim, pela primeira vez tremi com medo. Não da guerra, mas da morte possível. Não da minha, mas de um daqueles moços tão meninos quanto eu. Foi por esse medo horroroso de poder vir a perder um soldado para a morte, que comecei a tomar a consciência que o possível sucesso dos meus homens, a sobrevivência, seria tanto maior quanto maior fosse o grau de disciplina baseada no respeito, na lealdade, na camaradagem e na amizade entre todos nós. O reconhecimento colectivo dos poderes de cada um desses predicados não era mais que o perfeito reconhecimento consciente entre comandos e comandados. Essa foi a minha mensagem.

Na minha Secção sempre houve esse reconhecimento, razão pela qual, ainda hoje, sinto um respeito enorme por aqueles meninos que tive o previlégio de comandar.

José Câmara em patrulha na Mata dos Madeiros. Também se reconhece o Cabo José Leonardes.

Demos início à nossa saída. Rapidamente entrámos na mata em direcção à antiga estrada Teixeira Pinto-Cacheu. Ao longo daquela estrada, procurámos por vestígios de infiltração IN de ou para a Mata do Balenguerez.

A meio da tarde demos algum descanso às pernas, confortámos o estômago com a ração de combate, a terceira em cinco dias, e aguardámos pelo fim da tarde, altura em que reiniciámos o nosso patrulhamento, ao mesmo tempo que procurávamos um lugar apropriado, junto da estrada velha, para embuscar durante a noite.

Cada Secção era responsável por manter dois sentinelas em alerta constante. Por princípio e consciência integrei-me na rotação, muito contra a vontade dos soldados da minha Secção que disseram não ser necessário.

Com o raiar dos primeiros alvores da manhã levantámos a emboscada e demos início ao patrulhamento matinal, ao mesmo tempo que nos aproximávamos do acampamento, onde deveríamos entrar cerca das 08:00 Horas.

De tanto andar sem encontrarmos o acampamento, apercebemo-nos que estavamos perdidos. A mata densa e difícil não deixava perceber onde estávamos. Tínhamos a consciência que tínhamos passsado à cabeça da estrada, e inflitrado a zona de acção da outra força de intervenção. Para além disso, também nos apercebemos que tínhamos cometido outro erro grave, um erro de periquito: a bússola e o mapa com os pontos de apoio e reconhecimento tinham ficado no acampamento. Este foi alertado via rádio.

Retrocedemos em direcção à antiga estrada, pedindo ao Sagrado Coração de Maria que não déssemos de caras com a outra força de intervenção. As consequências poderiam ser desastrosas.

José Câmara numa das suas visitas habituais, fosse à partida ou à chegada da mata. Este pequeno recanto da Mata dos Madeiros era, em boa verdade, o único lugar que transpirava paz.

De novo na estrada velha, obliquámos à direita e entrámos no acampamento cerca de quatro horas mais tarde que o previsto. A nossa entrada foi saudada com um grande insulto: o piar dos outros dois grupos de combate que aguardavama nossa chegada para sairem. E tinham todo o direito. Já podiam considerar-se velhinhos, a avaliar por esta ser a sua segunda saída...

A 13 de Abril de 1971 escrevi à minha madrinha de guerra. Fiz uma pequena referência sobre este assunto:

... A Vida é durinha por aqui; pelo menos para mim, que já não estava habituado a trabalhos forçados. Saio de dois em dois dias para o mato.

No Sábado de Aleluia saí às 11 horas e regressei no Domingo de Páscoa.

Andámos quatro horas perdidos; foi o nosso FOLAR DE PÁSCOA. Mas tudo acabou em bem.

O resto do dia foi bom. Tivemos “jantarada especial"...


Foi um folar de Páscoa diferente. Para não esquecer. Mas houve mais.

O nosso Domingo de Páscoa de 1971 acabaria com uma cerimónia de casamento em plena Mata dos Madeiros.

José Câmara
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 12 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5979: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (14): O acampamento na Mata dos Madeiros: um buraco no meio do nada

sexta-feira, 12 de março de 2010

Guiné 63/74 - P5979: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (14): O acampamento na Mata dos Madeiros: um buraco no meio do nada

1. Mensagem de José Câmara (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73), com data de 5 de Março de 2010:

Caro e amigo Carlos Vinhal,
Junto encontrarás a continuação do meu roteiro por terras da Guiné.
Neste caso pela Mata dos Madeiros, onde os corpos se confundiam com a terra vermelha. Foi um tempo difícil para nós.
Aqui, nesta mata, aprendi o verdadeiro sentido das palavras camaradagem e amizade, comando e comandados.

Hoje, trinta e sete anos depois, continuo a recordar a cartilha de então.

Para ti e para todos os camaradas, com muita amizade, um abraço.
José Câmara


Memórias e histórias minhas (14)

O acampamento na Mata dos Madeiros: um buraco no meio do nada


A Mata dos Madeiros não era mais que uma faixa de terreno que dividia as matas da Caboiana e do Balenguerez. Foi nesta mata, na estrada velha, tipo picada, que o General Spínola ter-se-ía encontrado com os gurrilheiros do Chão Manjaco, no processo que levaria a uma possível entrega daqueles, o que não veio a verificar-se. Esse processo, como sabemos, acabou com a morte de três majores e um alferes.

Entre aquelas duas míticas matas, avançava a nova estrada Teixeira Pinto/Cacheu. A CCaç 3327 era uma das forças de intervenção do CAOP 1, então em Teixeira Pinto. Durante a nossa intervenção na estrada, contámos com a protecção afastada de uma força da Companhia de Caçadores 2791, da Companhia de Comandos 26, do Destacamento de Fuzileiros 13, e de uma força da Companhia de Caçadores Pára-quedistas (se a memória me serve bem era a 122, ficando sujeito a correcção).

Localização da estrada Teixeira Pinto/Cacheu

Passada que foi a primeira noite, em plena Mata dos Madeiros, à guerra com os mosquitos, o amanhecer veio-nos mostrar aquilo que seria a nossa vida a partir daquele momento.

O acampamento, um buraco no meio do nada, não era mais que uma terraplanagem em rectângulo sensivelmente do tamanho de um campo de futebol. A protecção física do acampamento era formada por duas grandes barreiras de terra feitas com as máquinas da companhia empreiteira da obra. Era o que tínhamos!


Foto 1 > Um aspecto de um dos acampamentos da CCaç 3327 na Mata dos Madeiros. Ao fundo, na barreira de trás e da frente já é possível verem-se alguns postos de sentinela prontos, e um em construção (em primeiro plano). Ao fundo, a tenda grande era a cozinha de campanha. Na frente, na tenda da esquerda estava montado o Posto de Transmissões com a antena montada na frente. A tenda mais pequena resguardava a água potável (?) do sol. A tenda a seguir era o Posto de Comando (Cap. Rogério Alves).
O arvoredo ao fundo seria mais tarde cortado com a passagem da estrada junto à entrada para o acampamento.


Logisticamente, as nossas malas continuavam aos montes por todos os lados, as barracas continuavam por montar, e tínhamos que dar início às primeiras necessidades de sobrevivência. Havia que definir o plano e implementar a defesa próxima do acampamento, montar as antenas de transmissões, montar a cozinha de campanha, preparar os piquetes para o corte de lenha e escoltas ao Bachile para reabastecimento de água, pão e correspondência, e possíveis evacuações de doentes e feridos. Depois houve que definir os grupos a seguir para o mato na defesa afastada do acampamento, picagem da abertura da estrada e defesa próxima das máquinas. Os arranjos dos postos de sentinela, a preparação de um local que servisse para montar barris com água para higiene, o espaldar para o morteiro 120 e a localização da Capela ao Sagrado Coração de Maria também foram enquadrados.

Foto 2 > Pormenor desta fotografia: a boa disposição dos soldados António Cardoso, Silvestre Júnior e Avelar Ventura, todos da minha Secção. Não consigo identificar o indivíduo de camisa branca. Cada uma destas instalações(?) albergavam uma equipa.

Como missão principal, tínhamos a protecção da estrada que estava a ser construída entre Teixeira Pinto e o Cacheu, e dos cerca de 800 africanos que procediam ao corte do arvoredo no itinerário por onde passava a estrada.

Essa missão seria assegurada da seguinte forma: dois (2) grupos de combate permaneceriam fora do acampamento durante 24 horas a fazer a segurança afastada à estrada e ao acampamento. Dos outros dois grupos, um faria a picagem à estrada e montava segurança próxima às máquinas que trabalhavam na mesma até cerca das 18:00 horas, e o outro mantinha a segurança do acampamento, providenciava a lenha para a cozinha, e fazia as deslocações ao Bachile e, se necessário, a Teixeira Pinto. Cinco secções destes dois grupos faziam a segurança nocturna ao destacamento. Cada posto de sentinela era assegurado por três soldados. Perante este cenário, cada secção tinha, na generalidade, um descanso nocturno ao fim de 12 dias de serviço constante.

Foto 3 > Pormenor da vala onde, muitas vezes, se perdia a paciência à espera de um ataque. Ainda não são visíveis os abrigos

O sucesso da nossa missão dependia muito da disciplina e do respeito, mas sobretudo da compreensão e da entreajuda entre todos. Ali, os salamaleques não eram o mais importante, mas cada um sabia exactamente qual era o seu lugar na hierarquia militar e o papel que desempenhava. A alegria e a camaradagem voltaram ao seio do pessoal pelo simples facto de estarmos fora daquele pesadelo chamado AGBIS. Aqui, na Mata, naquilo que nos competia, nós éramos donos do nosso destino.

Sabíamos que tínhamos uma boa companhia. Agora competía-nos comprovar isso mesmo.

Foto 4 > José Câmara (e a sua Secção preparando um abrigo) A. Ventura (com arma), Cabo Silva (com a pá), Serpa (pequenino), Cabo Leonardes, Serpa (grande) e Massa.

E pusemos mãos à obra!

Com a chegada e a ajuda dos capinadores, começámos a montar o aldeamento da Mata dos Madeiros. As canas de bambu e folhas de palmeira foram o material preferido dos engenheiros da obra. Os aposentos primavam pelas linhas rectilíneas, portas largas e o ar condicionado era providenciado pelas gretas entre folhas de palmeira. As camas de estilo contemporâneo, insufláveis, aos poucos se foram abatendo, acabando por ficarem espalmejadas no barro vermelho da área. Com o andar das semanas, aquele barro acabou por ficar moldado com o nosso corpo.

Foto 5 > José Câmara > Um pormenor do meu sumptuoso aposento. Como nota a limpeza das nossas miseráveis instalações!

Deixem-me ler-vos ao que então escrevi à minha madrihna de guerra.

Carta de 10 de Abril, 1971 (a última vez que escrevera tinha sido a 1 de Abril, ainda de Bissau):

Já me encontro no mato, num acampamento em que as barracas são em folha de palmeira. Dorme-se em colchões, tipo praia, deitados no chão. Connosco também temos cerca de 800 africanos. Entre eles, possivelmente, haverá alguns turras. A alimentação é muito à base de ração de combate.

De vez em quando, vamos para as valas esperar um ataque. Para a lenha vamos com um machado numa mão e a espingarda na outra. Temos que fazer escoltas, rondas nocturnas, e evacuações de doentes. Para as necessidades fisiológicas, só mesmo de espingarda. Dia sim, dia não, vou para o mato.

Enfim, esta é a história de um dos muitos militares que se encontram na Guiné. Não é melhor nem pior... tudo o mesmo. Defender algo que nem sei se valerá a pena.

Ainda não sei o que são tiros...


Foto 6 > Na minha Secção todos os trabalhos eram feitos em conjunto. Aqui estou cavando e ajudando a montar os pilares onde seriam colocados os bidões (em sistema de vazos comunicantes) de água para chuveiro.

No Sábado de Aleluía, 10 de Abril de 1971, pelas 11 horas da manhã, fazia a minha primeira saída de 24 horas. Essa saída ficar-me-ía na memória. Porque era a minha primeira grande saída, e porque foi cometido um erro que nos poderia ter ficado caro.

Coisas de periquitos!

José Câmara
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 21 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5862: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (13): Um buraco no inferno da Mata dos Madeiros

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5862: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (13): Um buraco no inferno da Mata dos Madeiros

1. Mensagem de José da Câmara (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73), com data de 5 de Fevereiro de 2010:

Caro amigo Carlos Vinhal,
Junto encontrarás mais uma pedaço do meu roteiro por terras da Guiné.

Os meus votos de boa saúde vão para ti e para os nossos camaradas, com um abraço amigo
José Câmara


Um buraco no inferno da Mata dos Madeiros

A partir do momento em que a CCaç 3327 foi notificada para se preparar para sair para o interior, muita coisa se modificou no comportamento diário dos militares. A alegria de sair de Bissau, contrastava com a ânsia de providenciar para as necessidades imediatas de quem iria sair ao encontro do desconhecido.

Tínhamos apenas quatro dias pela frente, e a nossa actividade militar continuava inexorável. O tempo livre era escasso, pelo que tivemos que nos socorrer da entreajuda para as pequenas, mas necessárias tarefas.

Entre as tarefas imediatas e pessoais, tivemos que contactar as nossas lavadeiras para devolverem os uniformes, tarefa arrojada pois nem sabíamos onde moravam. Eram elas que vinham até Brá levantar e depositar os uniformes. No meu caso pessoal, a minha roupa era lavada no Palácio, pelo que nesse aspecto não tive preocupações. Porque sabíamos que íamos por um período mais ou menos longo para a Mata dos Madeiros, onde estaríamos privados de quase tudo, houve a necessidade de comprarmos artigos de higiene para um período longo, e ainda envelopes, papel para a escrita e selos, pois muitos nós tínhamos os nossos familiares nos EUA e não podíamos utilizar os aerogramas.

O preço de uma carta para os States magoava os escassos recursos financeiros de alguns dos nossos soldados

A acrescentar a tudo isso, tivemos que requisitar todo o material logístico necessário ao desempenho da nossa missão - viaturas, metralhadoras, morteiros, lança granadas e respectivas munições. A acrescentar a tudo isso, uma cozinha de campanha, frigoríficos a petróleo, tendas individuais, colchões insufláveis, cobertores, mantimentos para 15 dias, incluindo as rações de combate. E ainda um posto sanitário de campanha.

No dia 5 de Abril emalamos a secretaria e aos poucos fomos emalando os nossos haveres. Muitos de nós saímos de serviço com o Render da Parada no dia 6 de Abril. Alguns minutos para limparmos os nossos alojamentos, e os últimos retoques nas nossas malas.

Finalmente soou a hora da partida.

A ordem foi dada para que as rações de combate fossem distribuídas e as as malas fossem colocadas nas viaturas. Foi então que um dos militares disse: - Malas-às-costas! Como os nómadas...

A coluna estava em marcha. Primeiro obstáculo, a jangada em João Landim. No lado de cá ficava Bissau. No outro lado... eu perdiria a minha virgindade em relação à guerra. Confesso que me sentia apreensivo, e mais ainda, quando depois de passar à entrada de Bula comecei a ver a quantidade de tropas que protegia a nossa passagem. Depois Có, a mítica Curva da Morte, um autêntico cotovelo antes de chegarmos ao Pelundo. Finalmente, entrámos em Teixeira Pinto para uma pequena apresentação no CAOP1.

A tarde ia avançada. Mesmo assim, avançámos para o Bachile. Ao chegarmos junto da Ponte Alferfes Nunes, reparámos que esta estava em obras de reparação, pelo que só uma viatura de cada vez atravessava no tabuleiro.
Nessa altura, eu ainda não sabia que estava a deixar o paraíso para entrar no inferno.

Pernoitámos no Bachile, um quartel de reduzidas dimensões, sede da CCaç 16. Ali ficaria a secretaria da companhia e a padaria. Também seria deste quartel que nos abasteceríamos de água.

No dia seguinte, 7 de Abril, rumámos ao sítio do nosso primeiro acampamento. Seguimos pela estrada nova, passando pelo primeiro buraco (acampamento) das tropas ainda ali estacionadas. Impressionantes eram as condições. Senti que não ia para melhor.

Chegada à Mata dos Madeiros. As secções agrupam-se para dar início à primeira saída

A partir de certa altura, a parte alcatroada acabou. Penetrámos na mata. O guia, engenheiro-topógrafo da obra, a determinada altura, flectiu para a esquerda, entrou numa pequena clareira e parou.

Estávamos a cerca de 10 (dez) quilómetros do Bachile - rodeados de mato, do chilrear dos pássaros, e protegidos (a fé é que nos salva) pelo Sagrado Coração de Maria.

O Furriel Pinto com a sua secção já preparada para sair

Descarregadas as malas, de imediato se preparou a protecção ao "descampado".

Enquanto penetrávamos na mata, sentimos o barulho das máquinas a arrumar o matagal e a preparar o terreno do acampamento. Com o anoitecer, regressámos. Preparados os turnos de sentinela, cada um procurou qualquer coisa para encostar a cabeça e descansar um pouco. Infelizmente tal não foi possível, pois passamos a noite à bofetada com os mosquitos.

Ali era o buraco da Mata dos Madeiros.
José Câmara
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 8 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5787: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (12): Bissau, uma guerra diferente onde os rumores também voavam