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segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Guiné 63/74 - P8797: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (14): Quando do PCA veio a ordem para atacar a base de Morés...

1. Mensagem de Rui Silva (ex-Fur Mil da CCAÇ 816, Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67), com data de 15 de Setembro de 2011:

Caros Luís e Vinhal:
Recebam um grande abraço de estima e consideração, extensivo ao meu querido amigo Magalhães Ribeiro.

Aqui vai mais um extracto das minhas memórias (escritas).

Passem bem.
Rui Silva


Como sempre as minhas primeiras palavras são de saudação para todos os camaradas ex-Combatentes da Guiné, mais ainda para aqueles que de algum modo ainda sofrem de sequelas daquela maldita guerra.

Das minhas memórias “Páginas Negras com Salpicos cor-de-rosa”

Quando do PCA (Posto Comando Aéreo) veio a ordem para avançarem os dois Grupos de Combate da 816 para atacar a base de Morés.

- … viajei num Dornier com o inimigo, na véspera, o “manjaco”.

- … na emaranhada mata de Morés, vegetação “inexpugnável”, andar de gatas, lianas no pescoço, quico que se perde, catanas à esquerda e à direita a abrir caminho.

- … já dentro da mata, o inimigo surpreende-nos com morteiradas esporádicas, mas sem saber onde estávamos ao certo. Ouvia-se a percussão das granadas.

- Assisti ao diálogo, via rádio, entre o Comandante da força de assalto e o PCA que chegou a querer que avançássemos (2 pelotões!), … que estávamos perto.

Localização do Morés

Chegados a Bissau, de férias na metrópole, eu, o Baião, o Piedade e o Coutinho logo soubemos o que já também prevíamos, que a Companhia já estava instalada no Olossato e portanto era para lá que nos devíamos dirigir. A Companhia tinha deixado Bissorã depois de 5 meses ali aquartelados e a bater a zona, claro.

Uma vez em Mansoa (trampolim para o Olossato) foram primeiro o Baião, o Piedade e o Coutinho, em Dornier. Um dos quatro, por não ter lugar, teria de ficar para o próximo transporte e então foi eu o escolhido.

Em Mansoa aguardei que houvesse coluna ou lugar numa avioneta que fosse para lá, isto é para Olossato.

Passados três dias eis então que me surge a ordem para tomar lugar num “Dornier” que ia para o Olossato. Ao entrar no pequeno aparelho logo me apercebi de que grande operação estava na forja. A suspeita passou à certeza quando o Capitão de Operações dos “Águias Negras” - Batalhão a que estávamos adstritos - dirigindo-se a mim, diz:
- Você vai mesmo numa boa altura....- Disse-o com um sorriso significativo.

O Dornier ia superlotado. À frente, ao lado do piloto, o dito Capitão de Operações da BArt 645 e, atrás, metido entre cunhetes de munições, granadas e mais granadas e outro material de guerra, ia eu e, virado para mim, cara-a-cara, a agradável companhia de um “turra” que ia de mãos atadas com uma corda.

Deste modo viajei num Dornier com o inimigo, na véspera, o “manjaco”.

Raciocinei então que aquele tipo fora apanhado (logo no Olossato soube que tinha sido feito prisioneiro algures na mata de Morés) e agora nos iria servir de guia em alguma operação e que não ia ser pequena pela certa, a avaliar pelo abastecimento de grande quantidade de munições.

O Capitão chegou a oferecer-me a sua pistola temendo alguma reacção do “turra” cá atrás na avioneta. Não sei até que ponto ele admitia isto. Mais tarde, em reflexão, não me custou a admitir qualquer reboliço por parte do “turra”, ainda que isso lhe pudesse custar a vida, (e a dos outros) para provocar o despenhamento da avioneta, pois lembrei-me muito bem da resistência dos presos para interrogatórios em Bissorã, onde eles preferiam arriscar até a vida a contar algo que comprometesse os seus companheiros de luta.

Era esse o meu estado mental. Ali na avioneta poderia muito bem estar ali um desses heróis. Que se passou ao lado de uma possibilidade dessas, parece-me bem que sim.

Nunca uma avioneta demorou tanto a aterrar; era esse o meu estado de espírito.

Ao fim da tarde, já no Olossato, tomei conhecimento com os meus colegas de patente, da operação em causa. Tratava-se nem mais nem menos que ir a Morés, melhor dizendo, à base de Morés, ou melhor ainda, à base central de Morés e já naquela noite.

O nome Morés infundia terror. Morés era só… a principal base de toda a região do Oio, a mais forte do norte, e seguramente das mais fortes da Guiné.

Muito bem armada - as melhores armas estavam lá -, com trincheiras e outros abrigos subterrâneos, até em cimento (dizia-se), com arrecadações que abasteciam as várias bases do Oio, hospital, e com grande efectivo. Bom “pincel”, dizíamos nós.

Por outro lado estávamos orgulhosos de sermos os escolhidos para actuarmos no principal papel numa operação: o grupo de assalto! Fazer o assalto à tão importante base terrorista da Guiné.

Morés, tão pouco ou tão muito, onde jamais a tropa tivera qualquer êxito na verdadeira acepção da palavra. Mas, ir a Morés e… porque não?

Foi o que me estava reservado logo que regressei ao seio da Companhia, após férias. Era curioso: férias com desbunda natural, a própria da idade, e logo ao “outro dia” no mato da Guiné à “procura” da morte.

Operação: Águia Negra
Objectivo: Golpe de mão à casa-de-mato (base central) de Morés
Efectivo militar:
- 2 Grupos de Combate da 816 reforçados com milícias e carregadores indígenas e outros voluntários (a troco de alguns pesos) do Olossato, à frente da coluna e como grupo de assalto (cerca de 90 homens)
- A Companhia de Caçadores n.º 1418, sediada em Bissorã, logo de seguida na coluna e em apoio à retaguarda do grupo da 816.
- Do lado de Mansabá, isto é do lado oposto, avançava uma outra Companhia servindo de “isco” e eventualmente como reforço, se necessário, ao grupo de assalto.
Data: 3 de Novembro de 1965

MEIA-NOITE! A Companhia 1418, com os dois Grupos de Combate da 816 à frente, deixa então Olossato rumo à base de Morés. À frente ia então o “turra”, meu companheiro de viagem aérea de Mansoa para Olossato. Ia devidamente aprisionado e escoltado, não fosse dar o salto. A seguir ao “turra”, nosso guia na circunstância, o 3.º Grupo de Combate, ou seja o meu, depois o 2.º e por fim a fechar a coluna os “periquitos” de Bissorã.

Mergulhados no mato e na mais completa escuridão, (des) confiados na colaboração do guia, e entregues à sorte de Deus - e do diabo também,  sempre por ali perto - cerca de 200 homens, armados até aos dentes, seguiam ao encontro do inimigo, algures acoitado e bem seguro, melhor defendido e muito bem armado, dentro daquela vasta zona da complexa mata de Morés de seu nome.

Mas tudo se desmorona como um castelo de cartas. O guia ludibria-nos intencionalmente, fazendo-nos andar às voltas e mais voltas até que nos vimos em plena mata virgem - se não o era assim o parecia. Vimo-nos assim na emaranhada mata de Morés, vegetação “inexpugnável”, andar de gatas, lianas no pescoço, quico que se perde, catanas à esquerda e à direita a abrir caminho.

Aqui, com as consequentes dificuldades de progressão e orientação. Tínhamos entretanto,  e como era inevitável, sido detectados, ou para isso não contribuísse o “turra” com as suas deambulações pelo mato, o que não raras vezes acontecia. Mas os “turras” da base, embora já conscientes da nossa presença nas imediações, não sabiam qual o local exacto em que nos encontrávamos, como adiante se verá.

O alvorecer, altura ideal e a combinada para o assalto, já ia bem longe. Eram agora quase 11 horas da manhã e então paramos. Aí, sentados ou de cócoras – a vegetação não dava para mais -, o Alferes Costa,  da 816, que chefiava a coluna, e portanto a Operação, dada a ausência do Capitão Riquito, então de férias na metrópole, estabelece contacto com o PCA e pôs este ao corrente da situação. A resposta veio então de forma bem peremptória: “Continuem que estão perto”.

Aqui o Capitão da 1418 insurge-se com tal determinação do PCA e ameaça não avançar mais com os seus homens em face das circunstâncias, a que não era alheio uma muito reduzida possibilidade de êxito contra a hipótese mais que viável de pagarmos tudo muito bem caro. O inimigo estava perfeitamente conhecedor das nossas intenções e… à nossa espera.

Uma vez e já dentro da mata, o inimigo surpreende-nos com morteiradas esporádicas, mas sem saber onde estávamos ao certo. Ouvia-se a percussão das granadas.

Julgo que eles batiam os trilhos, só que, nesta Operação,  a ideia foi de os evitar e ir muito a corta-mato. Aqui o “manjaco” foi um bom trunfo e colaborou, até…

Entretanto as percussões de granadas de morteiro da base terrorista ouviam-se com nitidez o que queria dizer que estávamos bem perto deles. Estas eram lançadas ao redor da base, aqui e acolá, com o intuito de nos detectarem ao certo, mas isso só eles conseguiam se nós respondêssemos com qualquer tipo de fogo, o que não acontecia obviamente. Assim entre uma percussão e o rebentamento duma granada, passavam-se escassos segundos de extrema expectativa e angústia para nós. Receávamos que acabasse por cair alguma em cima de nós.

Ao fim de aturada discussão entre o Alferes Costa e o PCA, através do rádio, o PCA, em face das circunstâncias, manda então que a 1418 se instale ali fazendo a segurança à retaguarda e que PROSSEGUÍSSEMOS NÓS para o objectivo!!

Assisti ao diálogo, via rádio, entre o Comandante da força de assalto e o PCA que chegou a querer que avançássemos (2 pelotões!),… que estávamos perto.
- O quê? Só os dois Grupos de combate para a frente? Eles estão doidos!

Foi uma exclamação quase geral e em cadeia.
-  Não pode ser meu Alferes! Somos muito poucos para eles.
- Eles estão mesmo à nossa espera e ainda por cima entrincheirados, e nós a peito descoberto?

 Dizia este e aquele e ao fim e ao cabo o que ia no pensamento de todos. O ambiente era de evidente pessimismo e não era para menos. O Alferes Costa, em tão ingrata situação, não disfarçava o seu nervosismo. Ele tinha de cumprir a ordem e esta era de avançar para o inimigo. Incrível!!!

- Vamos lá ficar todos.
- Não temos qualquer hipótese.
- É uma operação suicida.
- O PCA fala assim porque anda lá em cima.
- Diga isso lá para cima, meu Alferes.

Estas e outras frases ouviam-se em tão caótica situação.

O Alferes Costa insiste com o PCA em reconsiderar tal estado de coisas, e este, finalmente, mas claramente contrariado, permite que regressemos ao Olossato abandonando assim a ideia de entramos suicidamente em confronto com o inimigo, instalado e avisado e super-armado. Sim, cerca de 90 homens (alguns apenas carregadores, isto é, sem armas) assaltarem uma base bem armada e melhor defendida, onde não faltavam os potentes morteiros de calibre 82 e as entrincheiradas metralhadoras pesadas, base já mais que prevenida das nossas intenções, era uma loucura, que resultaria, por certo, numa operação repleta de aspectos muito trágicos.

Assim:
Respiramos fundo uma vez libertos daquele pesadelo e a marcha de regresso começou logo a processar-se.

De Morés ficamos a conhecer o que era a mata para aqueles lados e, por pressentimento, quão forte era aquele refúgio inimigo.

Por insolação e/ou esgotamento foram evacuados vários militares.

Mas havíamos de lá voltar…

Descreve,  no seu Site Leões Negros - CCaç 13,  o camarada Carlos Fortunato o que era Morés ao tempo (1970) e, que coincidindo com a minha percepção e leitura, na altura, sobre aquele tão importante refúgio de Morés em 1966, transcrevo com a devida autorização do Carlos Fortunato, assim como as fotografias que se inserem.

No entanto, ao meu tempo, ainda não se falava na presença de cubanos, nem de canhões, e tenho consciência também, que Morés foi melhorando, com o tempo, aquela fortaleza, cada vez com armas mais sofisticadas e abrigos mais consistentes, ou Morés não fosse o “santuário” do PAIGC no centro da Guiné:

Uma escola na Tabanca de Morés

A mata do Morés era um dos nomes míticos da guerra na Guiné, tratava-se de uma mata muito densa, no meio da Guiné, na qual se encontrava situado o quartel general da zona norte do PAIGC.

A mata do Morés era um dos “santuários” da guerrilha, apenas superado pelas zonas junto à fronteira sul, pois aí com forte apoio do exterior, e com boas linhas de abastecimento vindas do território da Guiné-Conakry, o seu poder de fogo era inesgotável, transformando num inferno os aquartelamentos junto à fronteira. Na fronteira norte o problema na altura ainda não era tão grave, pois o apoio do Senegal, ainda não era um apoio declarado.

Nesta mata, segundo as informações existentes na altura, a guerrilha possuía uma força estimada em 900 homens bem equipados, onde se incluíam forças especializadas, cubanos, armas pesadas, anti-aéreas, abrigos subterrâneos contra bombardeamentos, hospital subterrâneo, etc.

Abrigo subterrâneo na base de Morés

Apesar de ser uma certeza de que possuía forças consideráveis na zona, era sempre difícil avaliar a dimensão das forças que iríamos enfrentar, pois a guerrilha facilmente as dispersava pelos vários acampamentos existentes, ou as concentrava se existisse um alvo que quisesse destruir.

No centro desta mata existia a tabanca do Morés, mas sem grande importância, e sem grande possibilidade de defesa, pois encontra-se em terreno aberto.

As bases do PAIGC estavam espalhadas pela mata, bem camufladas e era frequente a sua mudança, para evitar a sua localização.

O sucesso de uma operação nesta mata, dependia muito das informações conseguidas por dissidentes do PAIGC, nomeadamente quando se conhecia a localização de depósitos de material, não era este o caso da nossa “visita”, pois creio que se queria apenas afirmar ao PAIGC, que não existia nenhum local onde não pudéssemos ir.

Pelo que nos foi dado observar na nossa rápida “visita”, a mata possuía caminhos muito estreitos e alguns deles minados, ladeados por um mato tão cerrado que era impossível passar, ou lançar uma granada, nos lados desses caminhos trincheiras, para ninhos de metralhadoras, nas copas de algumas árvores uma placa de madeira e uma caixa, indicavam locais de vigia e talvez a existência de um sistema de comunicações, os abrigos anti-aéreos eram muito rudimentares, e consistiam num enorme buraco cavado no chão, sem qualquer estrutura que o suportasse.

Uma cozinha em Morés

Combater no meio da mata do Morés colocava grandes dificuldades, a primeira era que ficávamos privados de apoio aéreo (a vegetação é de tal modo cerrada que não se consegue sinalizar a nossa posição, para a aviação nos dar apoio, são escassas as clareiras e normalmente estão sob a mira dos morteiros), as progressões são difíceis ( tem que se caminhar agachado ou a rastejar, para conseguir passar entre as árvores), a alternativa de seguir pelos trilhos existentes tinha os problemas referidos anteriormente, pois existia um sistema defensivo implementado, que mesmo sendo rudimentar, dava-lhes vantagem, uma grande vantagem, num confronto com as nossas tropas.

Apesar de a actividade da guerrilha se caracterizar por acções de flagelação e fuga, a verdade é que nalguns casos excepcionais esta começava a defender terreno, como o caso do Morés.

Uma ocupação deste tipo de terreno, implicava muitas baixas, e a guerrilha acabaria sempre por fugir e regressar mais tarde.

O PAIGC considerava-se invencível nesta mata.”
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 18 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 – P8684: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (13): Como se apanha uma alcunha logo no primeiro dia de Guiné

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Guiné 63/74 – P8684: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (13): Como se apanha uma alcunha logo no primeiro dia de Guiné

1. Mensagem de Rui Silva (ex-Fur Mil da CCAÇ 816, Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67), com data de 16 de Agosto de 2011:

Caríssimos Luís e Vinhal:
Vai, sem mais demora, um grande abraço para vocês, extensivo aos co-editores e outros colaboradores deste fantástico Blogue gerador da grande família que são os ex-Combatentes da Guiné (há quem defenda que se deve tirar o “ex”).

Em anexo vai mais uma história (100% verídica, claro) para o Blogue, que vocês usarão no indiscutível critério de a pôr ou não e sempre de resultado por mim aceite e de cara alegre.

Pronto e às ordens.
Rui Silva


Como sempre as minhas primeiras palavras são de saudação para todos os camaradas ex-Combatentes da Guiné, mais ainda para aqueles que de algum modo ainda sofrem de sequelas daquela maldita guerra.


Uma história de “Guiné minha”

Dos tais salpicos, das minhas memórias “Páginas Negras com Salpicos cor-de-rosa”

Como se apanha uma alcunha logo no primeiro dia de Guiné e fica-se com ela até (pelo menos) à despedida da malta no Cais da Rocha Conde de Óbidos.

Ainda hoje muitos conhecem-se pelas alcunhas e, em alguns casos, sem se ficar a saber os nomes próprios. E isto passados 44 longos anos após o regresso da Guiné.
Pois, nos nossos encontros anuais de Convívio, ainda as alcunhas funcionam e alguns até fazem questão de por assim serem chamados. Nomes de guerra, como se pode dizer, não deram para esquecer.

O Seiscentos, o Barrumas, o Pele-e-osso, o Passarinho, o Trovoada, o Paparôco, o Doutor, o Cow-boy, etc, e mais este que passo a contar:

Chegamos a Bissau, a bordo do Niassa, aos 26 dias do mês de Maio de 1965. Meio-dia, sol brilhante e muito quente este a prenunciar o tempo das chuvas que estava a chegar (não sabíamos, mas ficámos logo a saber).
O Niassa ficou ao largo, devido ao calado (o do barco), e seguia para Angola, aqui também de passagem a deixar tropas e em viagem até Timor.

A última meia milha para o cais de Bissau foi feita em LDG.

Saltámos para as viaturas ali pertinho da Fortaleza d’Amura e, em grande velocidade, a Companhia foi auto-transportada até ao aquartelamento de Brá.

Ficaríamos ali 13 dias. Depois, ala que se faz tarde: OIO. Manga de chocolate, disseram-nos, à despedida de Brá os que ali ficaram de fato amarelo já algo coçado e aterrado, “comandos” e do Briote se calhar.

Nos dias que ficámos em Brá tínhamos transporte por viatura militar a horas pré-determinadas para Bissau e volta.

O primeiro jantar resolvemos, uns poucos de Furriéis da 816, ir comer a um restaurante a Bissau.
Fomos cair ao Tropical, não sei como.

No Tropical comiam-se boas ostras passadas por molho picante num pires e, o que até não era preciso, a puxar por a cerveja. Garrafas de (julgo de 66cl) bebidas em dois ou três tempos.

Isto, mais tarde, quando se passava por Bissau e em transito para férias na metrópole.

Aqui as garrafas vazias de cerveja iam-se amontoando no chão junto à pedreira (as conchas das ostras) e ao lado de cada um, isto é do responsável pelo “lixo” que fazia.
O restaurante ficava numa rua paralela à avenida da República e do lado norte da cidade e na mesma rua do Solar do Dez que ficava mais abaixo lá prá marginal, julgo que relativamente perto do Pidjiguiti.

Falar em Pidjiguiti lembra a foto seguinte:

Dentro de um barco no cais de Pidjiguiti. Eu, à direita, armado em doutor e, do lado esquerdo, é mesmo o “doutor”, camarada da minha Companhia.

O restaurante tinha uma sala bonita e acolhedora. Bem frequentada. Com ar condicionado e tudo.
Gente fina nas mesas, e senhoras muito elegantes também.

Ficámos numa mesa, aí uns seis, e frango assado foi o escolhido da ementa, esta não muito diversa.
Até parecíamos uns turistas. Tudo de roupa à civil e já de indumentária tropical, mas branquinhos de epiderme. A guerra aqui, ficava ao lado, mesmo muito ao lado. Era curioso que só ao entrarmos no mato e de G3 na mão, é que nos lembrávamos que estávamos em guerra. Afora isso, borga, bola, e um uísque ali à mão também dava cá um jeitão.
Vinte anos de idade, de tanta perspectiva e expectativa!

No passeio-esplanada do Tropical, um ataque às ostras. Eu estou mais interessado na bebida do que no fotógrafo

Depois de bem comidos (salvo seja) e bem bebidos, alguém pensou em mandar vir sobremesa, mas naquela altura só havia fruta de calda. Foi a primeira vez que vi fruta em calda. Latas de um litro e em entre outras, havia de pêra, uvas, etc.

Gostei daquilo, e, no futuro, já no mato, muitas vezes ia à cantina comprar uma lata, bem fresca também.

Ainda no Tropical, abrem-se então duas latas e dividem-se as peras, irmãmente, claro.

Após a divisão da iguaria e naquele ambiente fino onde só se sussurrava (uma mesa não ouvia a outra) levanta-se no topo da minha mesa o Furriel Enfermeiro e, para que se ouvisse bem o que ele queria, diz naquele tom de acentuado sotaque algarvio ao homem que ainda tinha a lata na mão:
- Dá-me mais molhinho.

Acabou então ali a prosápia daquele grupo de Furriéis da 816 e ficou ditada a sentença. Dali para a frente, o homem que queria mais molho, passou a ser conhecido pelo Molhinho.
Nem foi preciso alguém alvitrar. Foi automático. Todos passamos a tratá-lo por Molhinho.
E quando nos despedimos no Cais da Rocha Conde de Óbidos, passados perto de dois anos, foi um:
- Até sempre… Molhinho.
____________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 1 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8623: In Memoriam (87): Fur Mil João Fernandes Machado da Silva da CCAÇ 816, morto numa emboscada no dia 1 de Agosto de 1965 (Rui Silva)

Vd. último poste da série de 1 de Junho de 2011 > Guiné 63/74 – P8354: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (12): Baile de Fim de Ano na Associação Comercial, mesmo ao lado do Palácio do Governador

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Guiné 63/74 – P8354: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (12): Baile de Fim de Ano na Associação Comercial, mesmo ao lado do Palácio do Governador

1. Mensagem de Rui Silva* (ex-Fur Mil da CCAÇ 816, Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67), com data de 26 de Maio de 2011:

Caríssimos Luís e Vinhal:
Recebam as maiores saudações, extensivas ao amigo Magalhães Ribeiro e outros co-editores e colaboradores deste extraordinário e insuperável Blogue.

Destas vez vai um “salpico cor-de-rosa” das minhas memórias.

Um abração
Rui Silva

Como sempre as minhas primeiras palavras são de saudação para todos os camaradas ex-Combatentes da Guiné, mais ainda para aqueles que de algum modo ainda sofrem de sequelas daquela maldita guerra.

- Uma história de “Guiné minha”-

-Dos tais Salpicos cor-de-rosa das minhas memórias “Páginas Negras com Salpicos cor-de-rosa”-

Baile de fim d’Ano (1966/67) na Associação Comercial em Bissau, ali na Praça do Império mesmo ao lado do Palácio do Governador.

Eu e um amigo meu do Porto, militar também, bem enfarpelados, entramos logo atrás do Schultz, pois então!

Estávamos em 31 de Dezembro de 1966 e havia passagem de Ano na UDIB e na Associação Comercial, pelo menos; também no Benfica e no Sporting. Deste ficaram as saudades das Verbenas e o “Penalty” na barraca, ao altifalante, sempre a dizer e a malhar no mesmo, até dizer chega: “Gatão é um gato com uma bengala na mão”. Vendia ou sorteava o vinho Gatão. Sala para um pezinho de dança também, e bem frequentada. A loira do Taufik Saad também.

O edifício da Associação Comercial, era um edifício de linhas modernas com um bom salão de jogos no rés-do-chão, do lado direito, e, atrás, virados para a estrada que ligava o Quartel da Amura cá em baixo junto da marginal para Santa Luzia lá em cima, onde estava o Quartel General, serviço SPM e outras instalações militares, estrada alcatroada e marginada de mangueiros, havia 1 ou 2 bons campos de ténis.

Fachada principal da Associação Comercial, vista do lado da Praça do Império e de junto ao Palácio do Governador
Foto reproduzida do ACTD (Arquivo Científico Tropical Digital, com a devida vénia

Vista da Associação Comercial do lado de trás, isto é, do lado da estrada que ligava o quartel da Amura, cá em baixo, até Santa Luzia onde estava o Quartel General e outras instalações militares. Campo de ténis em primeiro plano.
Foto reproduzida do ACTD (Arquivo Científico Tropical Digital, com a devida vénia

Quando se passava lá era olhar e andar. Aquilo era tabu para nós. A nossa vida era no mato aos tiros.
Só que na passagem de ano eu e o meu conhecido há pouco, armamo-nos em finos e apostamos no baile na Associação.
Boas instalações. Vida boa para o colono e militares de patente super. Também se viam lá negros, mas… a servir à mesa.

Então eu e o meu amigo do Porto, como já disse, conhecido (há pouco), do Hospital Militar de Bissau, onde estávamos internados, eu por uma lesão no joelho, vestidos a rigor, camisa branca “casca d‘ovo” que muito se via por lá, brancas e azuis clarinhas, diziam que vinham de Macau, gravata à maneira e fato tirado do fundo da mala, com vincos saturados nas dobras, agora bem disfarçados com a ajuda dos joelhos, e então escolhemos tentar a sorte na Associação. Era mais chique.

Tanto eu como o meu amigo apostamos com parada alta.

Cerca das 23 horas aproximamo-nos da entrada, um pouco timidamente e era só saber como é que havíamos de entrar, o que se antevia difícil. Fardados bem à civil estávamos nós, mas isso podia não chegar.

Até que chega de automóvel o dono da Ancar. Estabelecimento e fabricante (?) de artigos de livraria ali em Bissau, julgo que nas imediações do mercado. Parecia-me ser cabo-verdiano e como era empresário… devia ser mesmo.

“Alto (!)” é agora, pensei. Eu quando vinha a Bissau defendia as cores da Ancar em Andebol de Sete e portanto era aqui a grande chance. E ali o meu presidente mesmo à mão.

Dirigi-me a ele a dizer que era uma atleta da Ancar o “grande” guarda-redes de andebol e ele, sim, disse que me conhecia bem, mas, mais palavra menos argumento, “mandou-me prá bicha”, que não era ele que mandava, etc. e tal, que tivesse paciência, que era afinal o que nós tínhamos menos na altura, digo eu.

As equipas da Ancar e do Benfica antes de um jogo. Sou o 2.º em pé e a contar da esquerda. Ringue nas instalações do complexo desportivo Sarmento Rodrigues em Bissau, onde também se jogava o basquetebol. E ao lado o campo de Futebol, onde os Fuzileiros e os Páras eram assistentes com muita rivalidade. Não raras vezes havia refrega…

Recorte de um jornal, julgo que trissemanário, na época (1966) na Guiné. Este recorte jornalístico é posto à evidência, apenas para que algum nome nas equipas recorde com saudade o evento.

Pronto, gorada aquela que me parecia ser uma grande hipótese!

Passa-se mais alguns minutos e já pertinho da meia-noite eis que chega um grande carro (Mercedes?) preto e sai de lá Arnaldo Schultz, o Governador, com comitiva e com grande pompa.

Entrou com as devidas honras. Recebido, julgo, por elementos da Comissão organizadora, um casal de brancos, muito elegante, meia-idade. Subiram os degraus para o piso superior (Salão de Festas) e tudo voltou ao normal, isto é, o porteiro indígena, de luvas brancas e uma secretária (mesa) à sua frente e ali perto dois maduros desenfiados do HM 241, que não desarmavam.

- Vamos dar qualquer coisa ao preto e ele deixa-nos entrar.

- Não, isso pode ser pior - respondeu o outro.

- Carago, o que havemos de fazer?

Estávamos ali a cogitar quando nos saiu a taluda!

O porteiro dirige-nos e pergunta se nós éramos os convidados do Sr. Virgílio.

- Somos, somos - dissemos a uma só voz.

- Já podiam ter dito. Façam o favor de entrar.

Antes que houvesse alguma dúvida galgamos os degraus de acesso ao salão sem antes termos esbarrado no porteiro que queria a nota, e entramos no Salão de Festas com aparente calmaria e de peito inchado.

Caiu a meia-noite!

Ainda hoje estou por saber quem era esse Sr. Virgílio, ou se foi uma bela jogada do preto que viu ali uma rara oportunidade para ganhar algum, pois mal ele nos abordou e ao ver-nos passar por ele como flechas teve tempo de estender a mão e não era para nos cumprimentar, sabíamos nós. Lá que ficamos os três bem na fotografia lá isso foi verdade e ninguém saiu a perder.

Olha que dois! Ou que três!

Passado o reconhecimento do terreno já estávamos a dançar, cada um com o seu par, claro.

No salão, encostada a uma das paredes laterais, estava um mesa bem decorada com leitão, cabrito e mariscos variados com a lagosta a sobressair de diversos comes bem apetitosos.

Era para nós o segundo golpe de mão!

Vista do Salão, no 1.º andar, na Associação Comercial. Ao fundo o palco aonde actuou um conjunto jovem cabo-verdiano cujo nome (sugestivo) me escapa, na dita Pasagem d’Ano (1966/67)
Foto reproduzida do ACTD (Arquivo Científico Tropical Digital, com a devida vénia

À hora da mesa, aproximamo-nos e um pouco timidamente comecei então a puxar pelas barbas de um camarão fazendo-o aproximar da minha zona, e para dentro do arame farpado, a que ele logo gentilmente acedeu. O meu amigo, noutro ponto estratégico, fazia-se rogado, mas por pouco tempo. Vencidas as “sentinelas” comemos bem a nossa parte. Lá no hospital o rancho era bem diferente.

Bela noite. Um sonho realizado em palco de guerra.

Saímos já madrugada alta e viemos por a Avenida abaixo. Passamos por a UDIB e o baile também estava a terminar. Ainda deu para ver porrada à porta. Afinal a porrada estava na moda por toda a Guiné.

E pronto, foi regressar ao HM e tudo voltou à normalidade. Aí, farda branca, de algodão fininho, e havaianas. Rancho do hospital, servido à mesa, mãos no pão, na fruta, e todo o mais, (não me esqueço que na altura que o soube andei com náuseas uns dias) nada mais nada menos que servido pelo Cabo que na morgue, atrás do Hospital, lavava os mortos e os punha nas urnas. E esta!

No HM241 um grupo de camaradas (Furrieis) de ocasião, ali internados por várias razões - cada um com o seu problema -, no terraço no 1.º andar daquela unidade hospitalar. Eu estou sentado no muro.
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Notas de CV:

(*) Vd. último poste de 11 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8257: Convívios (329): Convívio da CCAÇ 816, dia 7 de Maio de 2011, em Barcelos (Rui Silva)

Vd. último poste da série de 2 de Março de 2011 > Guiné 63/74 – P7887: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (11): Operação Gamo à base inimiga do Biambe

quarta-feira, 2 de março de 2011

Guiné 63/74 – P7887: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (11): Operação Gamo à base inimiga do Biambe



1. Mensagem de Rui Silva* (ex-Fur Mil da CCAÇ 816, Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67), com data de 1 de Março de 2011:

Como sempre as minhas primeiras palavras são de saudação para todos os camaradas ex-Combatentes da Guiné Portuguesa, mais ainda para aqueles que de algum modo ainda sofrem de sequelas daquela maldita guerra.




10 de Julho de 1965 (a 816 tem mês e meio de Guiné)
Operação “Gamo” à base inimiga de Biambe


Localização de Biambe na estrada de Bissorã para Binar

-Tanto estica, tanto encolhe, que a coluna parte e ficam cerca de 20 homens para trás, grande parte nativos de granadas à cabeça. Isto já em plena zona de Biambe, e o inimigo ali tão perto. Ainda escurecia e muito. Tempo de chuvas e tornados. Isto numa coluna inicial de cerca de 150 homens (Companhia completa da 816 mais o Grupo de combate “os Lordes” dos Águias Negras da 643, ambos sediados em Bissorã-


Das minhas memórias: “PÁGINAS NEGRAS COM SALPICOS COR-DE-ROSA”

Volvidos mais alguns dias e quando estávamos a festejar um aniversário, de quem não me ocorre agora, eis que surgem na nossa casa (casa dos Sargentos) os Alferes Castro e Costa.

Visita agradável e logo os fizemos partilhar da festa também, mas pelo semblante deles logo nos apercebemos que eles não vinham juntar-se à festa e muito menos participar dela.

Humm,… a visita devia-se a outra coisa…

Depois de breves minutos de convívio, chegou a altura de se ir directamente ao assunto. Tratava-se de uma operação a Biambe. Ao falar-se de Biambe a malta entreolhou-se, pois Biambe era uma zona de grande concentração inimiga e muito forte. Ali, os “turras”, e como já disse em histórias anteriores, tinham fama de serem bons atiradores, subiam às árvores para melhor campo de visão, os sentinelas estavam também em árvores e até já usavam uniforme de campanha, etc., etc.. Portanto era já uma tropa organizada.

Então de copo de whisky na mão com dois cubos de gelo a boiarem neste nosso apreciado líquido, o Alferes Costa sentado sobre uma pequena mesa, num papel qualquer, fez um esquema de como a coisa se iria processar. Assim, além da 816, colaboravam na operação os comandos de Bissau, por outro itinerário (isco ?), os “Lordes” da 643 (Grupo de Comandos com o efectivo de um Grupo de Combate e a Companhia “irmã” da nossa, a 818 (então sediada em Bissau), esta em missão de segurança. O assalto era então perpetrado pelos “Lordes” e a 816. Como a festa dos anos arrefecesse notoriamente, o que não passou despercebido ao Alferes Costa, este, que também não sabia esconder um certo nervosismo, teve palavras de moralização para com a malta, antes de se retirar.

A orquestra de instrumentos improvisados, com garrafas, copos a serem batidos por colheres, o bombo da Companhia à mistura que era a predilecção do “baterista” Belchior, etc., que momentos antes tocava em grande escala, deixou praticamente logo de actuar.

Ouvia-se ainda um ou outro dos improvisados instrumentos, mas estes já eram tocados mais instintivamente do que por vontade própria dos seus manipuladores. Tudo aquilo se transformou um pouco e, então agora, em pequenos grupos, a malta conversava prevendo e imaginando aquilo que poderia acontecer em Biambe. Afinal ainda éramos periquitos.

Ao fim e ao cabo isto não passava de uma compreensível apreensão que a todos dominava. Sabíamos que para além de todos os escolhos que um assalto a uma casa-de-mato podia proporcionar, teríamos de enfrentar um grupo bem armado, munido de “bazookas” (ou lança-rockets) e metralhadoras pesadas, material este que ainda não equipava a maioria dos refúgios inimigos.

Os que quiseram, ou puderam, descansaram um pouco o corpo, já que o espírito, esse, jamais sossegaria. À hora pré-estabelecida, a Companhia 816 marchava em direcção à Outra Banda, passando primeiro pela ponte sobre o rio Armada e em caminho para Biambe. O meu Grupo de Combate era o último. À frente, os “Lordes”.

Uma vez embrenhados no mato, o silêncio que até aí foi quase absoluto, começou a ser necessariamente sepulcral. Ouvia-se só o de todo em todo inevitável que era o estalar de uma ou outra folha seca ao ser pisada e ao agitar de um ou outro arbusto quando roçado pelos camuflados, e nada mais.

De olhos desmesuradamente abertos, como a quererem ver mais c’o que era humanamente possível, a malta, felinamente e em fila indiana, ia serpenteando, seguindo o estreito e acidentado carreiro que nos levaria às proximidades do objectivo. Por vezes a mata era tão densa que quase mergulhávamos na mais completa escuridão, deixando portanto de enxergar fosse o que fosse. A progressão fazia-se, ora apressadamente ora parando, pois em fila indiana, uma coluna com cerca de 150 homens, fora os nativos voluntários – os tais que recebiam uns pesos, à jorna-, a deslocar-se, de noite fechada e em terreno tão sinuoso e desconhecido de todo, era impossível manter uma marcha em cadência mais ou menos regular.

Bastava um ligeiro atraso de um homem dos da frente para que se estabelecesse um reagrupamento com muita dificuldade, principalmente nos lugares da retaguarda, aonde por vezes era preciso correr para que a coluna não partisse, o que a acontecer podia ser fatidicamente irremediável. Quando a coluna partia, a parte perdida, naturalmente a de trás, com um leve assobiar, simulando o piar de um pássaro, tentava detectar a outra parte que, logo alertada, correspondia com outro piar e assim fazia-se o reagrupamento, para grande alívio dos perdidos o que muitas das vezes resultava. Daquela vez porém os esticões estavam a dar-se com muita frequência e nós, os que íamos atrás na coluna, víamo-nos em dificuldades para manter a integridade da coluna.

Mas o que se estava a prever, aconteceu mesmo. Foi inevitável. Num dos esticões a coluna desuniu-se para jamais se unir. Como irremediavelmente perdidos, ficamos ali cerca de 20 homens, o que não chegava a um pelotão. Eram cerca das 3 horas da madrugada. Logo o pânico se estabeleceu. Aconselhou-se calma e mais calma, mas a malta logo perturbada, só minutos depois sossegou e na medida do possível.

Estávamos já em plena zona de Biambe e claro, sem guia, pois este ia à cabeça da coluna, como era óbvio.

Connosco estavam alguns carregadores pretos o que, ao lembrarmo-nos, iluminou-nos logo a alma, pois era natural que conhecessem o terreno, mas logo começaram a cair em contradições quanto ao caminho a seguir; enquanto um dizia que era por ali, outro indicava o lado oposto, e então vimo-nos mesmo perdidos, para desespero nosso. Falou-se da orientação pela lua, pelas estrelas (sabíamos que estávamos no hemisfério sul do planeta onde o “Cruzeiro do Sul” era uma constelação que podia dar alguma orientação), etc. mas, não havia hipótese. Os minutos iam passando e o alvorecer não tardaria. Estávamos receosos por tudo. Alguém, mais pessimista disse: ”Ainda acabamos por ficar entre os dois fogos!”. Outro dizia isto, outro dizia aquilo, etc., etc.. Então era tudo frases de conteúdo dramático. Enfim, estávamos atónitos e sem saber o que era melhor fazer. O melhor ainda seria ficarmos por ali estacionados, permanecendo calados e camuflados e aguardar. Aguardar também o alvorecer, aguardar o possível tiroteio resultante do assalto perpetrado por parte da coluna que avançou para o refúgio inimigo, aguardar também pelo apoio aéreo à operação, e… aguardar.

O espírito da malta estava perturbadíssimo pela situação. Nós, perdidos decididamente e o efectivo que avançou para o objectivo reduzido significativamente mormente desprovido de muitas granadas de “bazooka” e morteiro que ficaram connosco, à cabeça dos carregadores nativos. Mas era preciso tomar uma decisão, só faltava saber qual.

Entretanto o alvorecer foi aparecendo e assim as trevas foram dando lugar, em leve sequência, à luz solar. Como sempre, o alvorecer fazia-se acompanhar do chilrear diverso e incessante da imensa e variada passarada. À hora pré-fixada, surgiram então, bem ao longe, mas bem ouvidos, os bombardeiros T6. Aliás estávamos todos atentos ao primeiro ruído denunciador da proximidade destes. Olhávamos o espaço e tínhamos os ouvidos apurados como nunca. Em mais alguma situação visaríamos tão cedo o pássaro de metal, de ruído forte, que muitas vezes nos fazia respirar fundo, e então ali...

A propósito, uma pequena curiosidade: os pilotos dos T6 usavam um emblema no seu fato de campanha que dizia exactamente isto: “TROTE LENTO - COICE FORTE”, sobre um avião desenhado. Na verdade os bombardeiros T6 eram lentos de progressão no espaço, mas as bombas que largavam eram de grande potência, daí a explicação da frase no dito emblema.

Bom, e voltando à operação Biambe, logo que apareceram ao longe os bombardeiros, alguém se lembra de atiçar o ambiente. “A aviação vê aqui um pequeno grupo e lança alguma bojarda pensando que somos um grupo de “turras”, pois haviam muitos nativos no grupo. “Camisa branca” poucos. E pronto, só nos lembrávamos do pior.

De facto, no grupo não havia um único temperador para a situação. O pessimismo tinha mesmo assentado arraiais.

Tínhamos um radiotelegrafista connosco (valeu-nos isso) o que nos podia servir de muito. Com um radiotelegrafista munido do respectivo rádio, podíamos estabelecer contacto com os bombardeiros, pondo-os ao corrente da situação. Para frustração nossa não foi possível, pois o nosso rádio não sintonizava com o dos bombardeiros. Tentamos desesperadamente o contacto, mas todas as tentativas foram vãs.

Até que, EUREKA! Conseguimos entrar em contacto com o PCA - Posto de Comando Aéreo - que, e como habitualmente, se fazia transportar num “Dornier” - pequena avioneta de construção rudimentar (lembro-me de ver uma no Olossato acidentada encostada a um canto. Quando vi que a fuselagem era feita de Dexion – cantoneira de aço aligeirada, mais aplicada em móveis - e forrada a lona, até me arrepiei, pois já tinha andado naquilo algumas vezes)-.

Logo comunicamos o sucedido e então sim, o alívio apareceu no seio da malta.

Pelo PCA, os bombardeiros ficaram ao correr da nossa situação também.

Entretanto soa o tiroteio e logo deduzimos tratar-se do ataque. Tiroteio intenso, o que não nos surpreendeu a avaliar pela força que se esperava naquela casa-de-mato, e alguns rebentamentos à mistura e eis que o silêncio de novo pairou. Normalmente ao primeiro estoiro de um nosso morteiro, com boa pontaria, acabava a festa.

Logo nos interrogamos sobre o que se teria passado. O mais provável, concluímos nós, era que após dura resistência eles abandonaram a base.

Soube depois que a base era constituída por diversas barracas e que foi logo abandonada após os tiros de aviso de um sentinela.

Na busca apanharam-se 4 granadas de mão, 1 cinturão e vários livros de escola a pressupor que havia por ali escola e à semelhança de outras grande bases inimigas.

Não houve portanto verdadeiramente ataque e o tiroteio que ouvimos foi a flagelação inimiga com a tropa dentro da base (o tal tiroteio que eu pensei ser o do ataque à base como atrás descrevo), o que normalmente também acontecia. O tiroteio durou cerca de 25 minutos e depois veio-se a confirmar o inimigo ter tido 2 baixas.

Muitas vezes acontecia assim: nós de assalto tomávamos a base, entretanto abandonada, e o inimigo já do lado de fora tinha ali um novo alvo e bem conhecido dele.

Depois, também o costume: barracas incendiadas e atenções redobradas pois já sabíamos que os íamos ter à pega dali para a frente.

E então eis que do PCA surge a ordem para o nosso pequeno e desorientado grupo, que nos emboscássemos rapidamente, pois cerca de 30 “turras” fugiam em direcção ao ponto em que nos encontrávamos. Rapidamente o Alferes Esteves que ficou no pequeno grupo com dois Furrieis, sendo eu um deles, procuramos instalar os nossos homens da melhor maneira. Ouvimos depois dizer que esse grupo estava agora acoitado sob uma grande árvore, (provavelmente ao abrigo da aviação) mas que aguardássemos, pois eles podiam prosseguir, involuntariamente, ao nosso encontro. Momentos de rara expectativa e o coração a querer saltar para fora do peito. Íamos ter contacto com um grupo de efectivo superior ao nosso, nós com poucas G3, pese embora que os emboscados éramos nós… e, nós é que jogávamos com a surpresa e esta era sempre uma boa vantagem.

De armas aperradas e olhos bem abertos, aguardávamos aquele grupo inimigo. No entanto chega-nos depois a informação aérea, de que afinal o grupo tomava agora outro rumo.

Mais uma operação falhada! O inimigo detectou-nos mais uma vez com a “colaboração” do nosso guia (“deles”) e um sentinela avisa com três tiros seguidos. Sim, nada de baixas ao inimigo, nada de material significativo aprisionado. Somente, e tal como já vinha sendo hábito, a coisa saldou-se com o refúgio incendiado e completamente destruído, o possuir de alguns parcos víveres e animais domésticos que eles abandonavam intempestivamente, e para gáudio da tribo indígena. O circo do costume…

Entretanto o PCA tratou de nos fazer reagrupar à Companhia, no caso a 818 a tal que fazia a segurança nesta operação. A pequena avioneta indicava-nos o rumo a tomar cortando o ar segundo a direcção que devíamos seguir, a partir da altura que passava por cima de nós e em voo muito baixo. O “Dornier” repetiu esta operação tantas vezes quantas foram precisas para nos levar ao encontro, e uma vez este ter acontecido foi juntar-se lá além aos bombardeiros que entretanto bombardeavam posições inimigas. Ouvíamos os rebentamentos longe o que nos fazia deduzir que o inimigo bem longe andava. Entretanto o nosso pequeno grupo, ainda em progressão ao encontro do outro, atravessa uma enorme bolanha e com uma árvore de grande parte no meio. Alguém diz: “Meu Alferes eles vão além” e aponta para dois ou três pretos que se viam, não muito longe, embrenhados no mato. Então o “cow-boy” instala o morteiro, pois a distância não dava partido a uma outra arma, aponta-o e logo saem duas granadas uma atrás da outra. Passados breves segundos ouvimos os rebentamentos daquelas e pronto, como não mais os víssemos, abandonamos o pensamento neles. Mas, logo de seguida, eis que surgem tiros da orla da bolanha. “É uma emboscada”!, alguém grita. Então, todos à uma, fomos abrigar-nos no único abrigo ali possível: a grande árvore referida atrás. Tudo ao molhe.

Ficamos todos empilhados, numa situação grotesca. Os tiros foram poucos e isolados e portanto mantivemo-nos em expectativa e não respondemos. Em boa hora assim pensamos pois de imediato surgiram do capim colegas nossos da 818. Periquitices…

 Mais tarde já com o ouvido bem apurado saberíamos que a bala ao sair do cano era de G3 ou Thompson, ou da costureirinha...

Esta operação tinha sido o baptismo desta Companhia e esta, ou aliás, um elemento entre estes, ao ouvir ruído, não esteve com meias medidas e à que disparar.

Caramba, o que podia ter acontecido! Já conhecíamos casos de tropa atingir tropa, pois por vezes e devido à sinuosidade do terreno parte da fila indiana situava-se no sentido oposto da outra parte, fazendo conjecturar que o inimigo estava ali mesmo à nossa frente. Só a experiência e o sangue frio aconselhava a ter calma e a melhor atenção.

Bom, mas nada aconteceu do muito que podia acontecer, principalmente se nós abríssemos fogo também.

Todos juntos agora, prosseguimos de regresso à base. Entretanto surge no ar um helicóptero. Claro, ao vermos tal objecto voador logo suspeitamos de haver feridos por ali. Mas como e porquê naquele sítio? Afinal aquele sítio tinha sido aonde momentos antes tínhamos visto o pequeno grupo de “turras”. Chegados junto do helicóptero, logo constatamos que afinal era para levar um preto… carregador nosso, ferido com estilhaços de uma granada de morteiro… precisamente do morteiro do “cow-boy”. Os dois ou três pretos que tínhamos visto ao longe, quando estávamos na bolanha, eram afinal carregadores nossos e que na altura alinhavam com a 818. Foram confundidos, pois as suas roupas, à maneira indígena, levaram-nos a supor que se tratava de um pequeno grupo de “turras”. Que confusão! Tudo foi confuso e o resultado dramaticamente desastroso!

A operação não tinha começado nada bem e estava a acabar ainda pior.

Havia agora a lamentar este ferido, e ainda por cima, ferido por nós próprios.

O helicóptero levantou verticalmente e depois, em voo paralelo, seguiu a todo o gás em direcção ao hospital de Bissau.

Mais adiante encontramos o resto da 816 e ainda os “Lordes”. A coluna formou-se, agora completa e regressamos a Bissorã. Um regresso frio, consequente de uma operação frustrada, mas restava-nos a consolação - o que não era pouco - de não ter havido também qualquer azar, para além do ferido atrás citado.

Alguns quilómetros antes de Bissorã e quando aguardávamos as viaturas ainda tivemos uma pequena emboscada - ou flagelação - que nem sequer foi merecedora de qualquer esboço de reacção da nossa parte. Eles apareciam sempre ao longe ou ao perto. Com muitos tiros ou poucos. Eles queriam era dizer que estavam ali, que existiam, que estavam atentos.

E pronto, aquela operação tinha chegado ao fim. Operação sob o signo do azar, pois este começou com a desunião da coluna em plena progressão ao encontro do refúgio inimigo, em plena noite cerrada, e em pleno mato, o que veio a precipitar os acontecimentos subsequentes, e nunca mais nos largaria.

Foi clarividente que a progressão de uma extensa fila indiana, feita em noite muito escura, (tempo das chuvas) feita por caminho de mato desconhecido e bastante sinuoso, nunca pode ser feita com pressa, sem que isso não custe uma cisão na coluna que se pode tornar irreparável como tinha sido o caso. Ainda a total inexperiência da 818, aliada à nossa (816) que ainda era pouca, veio tudo resultar numa operação eivada de aspectos negativos e azarentos.

Cervejada, dormir e bola e venha outra que esta já era, o que ia acontecer dois a três dias depois, regularmente.

“Pelo menos vou estar vivo mais dois dias” como dizia muitas vezes o meu amigo, e também Furriel, Martins (o Mansores).
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 26 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7674: Doenças e outros problemas de saúde que nos afectavam (4): As abelhas (Rui Silva)

Vd. último poste da série de 12 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 – P6579: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (10): Golpe-de mão à “casa-de-mato” de Cussondome

sábado, 12 de junho de 2010

Guiné 63/74 – P6579: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (10): Golpe-de mão à “casa-de-mato” de Cussondome


1. O nosso Camarada Rui Silva (ex-Fur Mil da CCAÇ 816,
Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67), enviou-nos mais uma mensagem desta sua série, com data de 8 de Junho de 2010:
Camaradas,
Como sempre as minhas primeiras palavras são de saudação para todos os camaradas ex-Combatentes da Guiné, mais ainda para aqueles que de algum modo ainda sofrem de sequelas daquela maldita guerra.

Golpe-de mão à “casa-de-mato” de Cussondome

O Cerco… só que os cercados fomos nós.

Entretanto mais uma operação se fez. Esta ao refúgio inimigo de Cussondome.

Estávamos a 18 de Junho de 1965, portanto 8 dias passados da operação a Queré (a primeira) e com 23 dias de Guiné.

Periquitos, mas já com ares de papagaios.

Desta vez e dado que o refúgio era considerado forte, o nosso efectivo foi de 2 Grupos de combate da 816, mais, e sempre (nos primeiros tempos em Bissorã), os experimentados “Lordes” (Grupo de Comandos com o efectivo de perto de um pelotão) da CART. 643.

A zona de tal refúgio, era muito difícil, pois, além de denso mato, era infestada de terroristas, os quais primavam também por serem bons atiradores e especialistas em subirem às árvores, sobretudo, para de lá fazerem fogo. A presença de sentinelas era também tida em conta.

Foi das operações mais problemáticas; a única, que me lembre, em que nos vimos cercados numa emboscada aquando da nossa retirada.

Embora com poucos homens e colocados de forma esporádica no mato, o inimigo ofereceu muita resistência, pois uma vez colocados nas árvores, estavam bem protegidos e ao mesmo tempo a detectarem-nos com facilidade.

Bem nos fartamos de fazer rajadas e de lançar granadas de “bazuca” na direcção das árvores, mas o “cantar” das pistolas-metralhadoras inimigas não acabava.

Esta terrível emboscada e chamo-lhe terrível, pois embora o efectivo inimigo fosse reduzido ao que se supôs, e o nosso andasse à volta de 80 homens, o efeito de um cerco, feito para mais por quem conhecia bem o terreno, é sempre de temer, pois ao abrigarmo-nos numa direcção, oferecemos, obviamente, o corpo à direcção oposta.

Como muitas das vezes acontecia, levantamo-nos ainda debaixo de fogo e fomos avançando, terminando o contacto com uma morteirada acertada. O morteiro normalmente era como os morteiros (foguetes) cá, que põem fim à festa.

Esta emboscada aconteceu já no regresso da operação, o que era vulgar, uma operação que não surtiu o efeito desejado, pois, o guia, como muitas vezes iria acontecer, não quis colaborar, pretextando desconhecimento ou outra coisa qualquer e fazia-nos andar ali às voltas até sermos detectados. Depois as contas eram ajustadas.

Acabamos por ser detectados por presumíveis sentinelas e daí eles terem abalado e preparado a emboscada do tal cerco quando já regressávamos.

O que se fez de positivo, foi queimarmos algumas moranças, previamente abandonadas por pessoal terrorista ou pró-terrorista. Da “casa-de-mato” nem o cheiro.

Ao abandonarem as moranças não o fizeram sem antes fazerem algumas rajadas em nossa direcção, daí uma resposta pronta nossa também.

Ainda assim um casal de velhotes nativo, impossibilitados de fugirem, vergados aos muitos anos de existência e bem marcados nos seus rostos a vida de agrura que levaram e… ainda levavam, tiveram ali o seu fim. Algumas rajadas disparadas em resposta ao fogo inimigo vindo da Tabanca levaram as balas a encontraram no seu trajecto um casal de velhotes que não puderam fugir.

Quadro pungente: separados alguns metros, quando abatidos, arrastaram-se um para o outro morrendo abraçados numa poça de sangue. Os sentimentos não têm cor, cultura ou religião.

Resultado duma guerra fria, traiçoeira, invisível, sem olhos, sem cor… sem regras, letal.

Estes velhos indígenas não eram certamente terroristas na verdadeira acepção do termo mas colaboravam com eles. Colaborariam? Como... e em que sentido? Vivendo com “turras”, “turras” eram… era a sina. Que raio de jogo este desta guerra.

Como já disse noutras histórias atrás, nestas alturas, não éramos seres humanos a pensar, mas sim selvagens ou coisa parecida. E essa até era se calhar a melhor maneira de pensar, ali.

Perto da morança dos velhotes, um “turra” jazia também, e este sim, era-o mesmo, notava-se bem pelo seu aspecto e de canhangulo na mão.

Fortemente atingido por estilhaços supostamente de granadas de morteiro, ali ficou pronto a ser servido aos macabros e sempre por perto, abutres.

Captura bélica: 2 Canhangulos!… carregados!



O que poderia ser um turra de canhangulo a “tirar-nos uma foto”.

O canhangulo (*) era quase como uma arma artesanal, de carregar pela boca tudo servia para isso: pregos, vidros, pedaços de ferro e outros metais, etc.

Arma desfasada dos tempos, mas quem fosse atingido de perto…

*) O canhangulo foi a primeira arma usada pelos turras para além da inconsequente catana; depois veio a Mauser, depois a PPSH (vulgo costureirinha) e a Thompson (um balázio de 11,7 mm. de diâmetro), e os fornilhos, a kalashnikov, as minas anti-pesssoais e anti-carro, o helicóptero (?)

O Lança Granadas Foguete (RPG), - ou lança-rockets como lhe chamávamos - o canhão e finalmente os mísseis terra-ar “Strella”. Isto ao longo do tempo de 11 anos de guerrilha.

Nota: este (*) é um acréscimo à escrita e feito “à posteriori” já se vê, pois quando escrevi as minhas memórias, estas então feitas no tempo e no lugar (1965-67), a arma mais poderosa que se conhecia no inimigo era a metralhadora anti-aérea – apanhamos uma mais tarde, para além, claro, das pistolas e espingardas metralhadoras, das minas anti-pessoal e anti-carro e o do Lança Granadas Foguete (RPG). O canhão, outras armas mais desenvolvidas e sofisticadas e os mísseis, surgiriam depois.

Falando ainda da dita emboscada, com o cerco inimigo a levar-me a proteger-me atrás de um baga-baga. Que sorte, este ali perto!

Aos primeiros tiros o baga-baga ficou entre mim e os tiros inimigos. Dois mais parceiros, um deles o infortunado do Furriel Silva que em Agosto seguinte seria morto em combate na estrada Olossato- K3, estavam comigo.

Ao atirarmo-nos para trás do baga-baga houve forte choque de cabeças (a minha e a de outro), logo esquecido. Havia mais em que pensar ali, afinal.

Depois os tiros começaram também a surgir do outro lado e depois ainda de outro lado isto é, vinham de toda a volta. Quando vi que era assim, cá para mim, disse. “É desta”.

O nariz até furava o chão par ver se protegia melhor a cabeça no intervalo de 2 rajadas de G3.

Por sorte o baga-baga já não era habitado pois se o fosse ainda tínhamos as ferroadas daquela avermelhada térmita de tenazes á cabeça. Era o tributo a pagar por abuso de aproveitamento de casa alheia. Quantas ferroadas!

Como sempre, e perante o olhar suspeito dos habitantes de Bissorã, chegamos em apoteose. O regresso, ou essa não fosse palavra sagrada em guerra, era sempre em festa, se bem que desta vez e uma vez mais a satisfação fosse relativa, pois a operação falhou quase totalmente.

Valeu apenas pelo extermínio das moranças em Cussondome privando assim da habitação e haveres aquele pessoal terrorista, com o consequente efeito psicológico, e ainda pela baixa confirmada provocada ao efectivo inimigo.

Os animais domésticos ou domesticáveis faziam-nos companhia em grande alarido (pareciam que tinham sido libertados da guerrilha). Como não tivemos qualquer ferido, sempre foi algum êxito.

Cussondome não passaria ao esquecimento e a gente bem o sabia. Lá continuaria a “casa-de-mato”, graças à habilidade do guia que soube ludibriar a tropa, procedimento esse que lhe custou caro.

A justiça impunha-se, mas… qual justiça? Que raio de guerra!

Como disse, Cussondome não passaria ao esquecimento, pois a gente sabia que uma vez gorados os intentos, teríamos que voltar à carga e o que não devia se fazer esperar muito.

Raramente nos aparecia um guia inteiramente fiel ou que colaborasse incondicionalmente com a tropa. Diga-se entretanto, e em abono da verdade, que os guias, mesmo que se tratasse de ex-“turras” eram bem tratados - pudera! - quer antes quer depois da sua prestação se esta tivesse sido bem sucedida.

Comiam do rancho como qualquer soldado, arranjava-se roupa e, tinham, de um certo modo, uma situação privilegiada. Alguns até ficavam a saber para que servia um par de sapatos. Se se tornassem irreverentes e assim não quisessem colaborar, eram castigados sobremaneira.

As regras eram fáceis de perceber. Tinham portanto dois caminhos diametralmente opostos e extremos à escolha. O que é certo é que a maioria escolhia o do pior sentido, para nós evidentemente.

O guia que era fiel incondicional ao seu povo era até por mim admirado, cá no meu íntimo.

Seguia-se: “Oh Rui (!), olha a nossa cervejinha”. Dizia sempre o Furriel (açoriano) Vieira para mim no regresso, já garantido. Primeiro a cerveja bebida de enfiada até só ficar o vidro na mão.

Depois é que se pousava a arma, tiravam-se as pesadas cartucheiras, tirar do camuflado já com peso multiplicado e que muitas vezes parecia de papelão (água e lama secas e quantas vezes a rechapar).

O banho, a bola e depois, à falta de melhor, partidas uns aos outros que nem sempre acabavam bem.

Nota: As duas fotos aqui reproduzidas de um negro com um canhangulo na mão, foram retiradas de um Site a cujo autor agradeço com a devida vénia.

Um abraço,
Rui Silva
Fur Mil At Inf da CCAÇ 816
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Nota de MR:

Vd. último poste da série em:

6 de Março de 2010 >
Guiné 63/74 - P5939: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (9): A minha primeira vez (na guerra)

sábado, 6 de março de 2010

Guiné 63/74 - P5939: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (9): A minha primeira vez (na guerra)

1. Mensagem de Rui Silva (ex-Fur Mil da CCAÇ 816, Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67), com data de 24 de Fevereiro de 2010:

Caros Luís, Vinhal, Briote e M. Ribeiro:
Recebam um grande abraço mais votos de muita saúde, extensivos a todos os ex-Combatentes da Guiné, mais ainda para aqueles que, de algum modo, ainda sofrem de sequelas daquela maldita guerra.


Em 21 De Maio de 1965 pelas 12h (meio-dia) entrava no Niassa de forma descontraída e com ares de turista para cruzeiro, para embarcar para a Guiné; Volvidos 20 dias entrava às 12h (meia-noite) no mato, algures numa zona de África, armado de G3 e de cartucheiras cheias de carregadores, à caça do inimigo, meu semelhante, mas “pintado” doutra cor.

- Das minhas memórias: “Páginas Negras com Salpicos cor-de-rosa”-

A minha primeira vez (na Guerra).


…Entretanto fez-se a minha primeira saída para o mato, que não se fez esperar muito, pois deu-se na segunda noite que passávamos em Bissorã. O meu Grupo de combate, que era o 3.º Pelotão da Companhia, seria portanto o primeiro a sair para o mato para um “golpe-de-mão”. (2 Secções de outro Pelotão já tinham feito uma escolta a uma coluna de reabastecimento até Maqué - estrada Bissorã-Olossato-).



Em conjunto com o Grupo de Comandos - os chamados “Lordes”- da Companhia 643 (os Águias Negras) íamos actuar de assalto o refúgio inimigo de Queré.



Embora não esperasse uma saída tão cedo, não fiquei surpreendido, pois até não estava ali para outra coisa. Foi depois de jantar e quando já nos encontrávamos nos quartos, que ouvi uma voz lá fora, uma voz e uma frase que se iriam repetir muitas vezes futuramente, para mal dos nossos pecados. O “Braga” mais para diante até dava o recado a uma razoável distância e com alguma precaução, pois havia quem, mais na brincadeira, lhe atirasse uma bota ou outra coisa que tivesse à mão. Não podíamos ver o “Braga” quando ele se aproximava. Então a voz e o recado do Braga: “Os sargentos do 3.º Pelotão - na circunstância era este - ao nosso Capitão”. Ficou para valer esta macabra mensagem. Como era a primeira vez que aquele recado acontecia, desconhecíamos a razão de tal convite, mas, passados breves minutos logo ficámos ao corrente. O nosso Capitão – o Capitão Riquito – acompanhado do Comandante do meu Grupo de Combate - o Alferes Esteves - e com o Hipólito e o Graça (estes dois, Sargentos dos “Lordes”), deu conhecimento da Operação a efectuar.

Antecedidas de breves horas, as saídas para o mato iriam ter sempre aquela necessária e imprescindível reunião, para aí ouvirmos da missão, progressão no terreno, táctica, dispositivo a adoptar, hora de saída, e dados referentes ao inimigo, nomeadamente do seu efectivo, do seu armamento, se haviam sentinelas, e se haviam qual a sua localização, etc.

Toda esta informação era para transmitirmos depois às respectivas Secções, ficando assim todo o efectivo operacional ao corrente da Operação.

Não encarei com muita preocupação esta minha primeira saída para o mato, como até seria de supor, pois para mim tudo seria novidade, desconhecendo e ignorando como era aquilo de andar aos tiros, uma espécie de brancos contra os pretos.

Vesti então o camuflado, apertei bem o cinto com as cartucheiras, coloquei a G3 em bandoleira, fiz a minha oração e segui então para o lugar de partida para o mato com um cigarro apertado nos lábios.
Assim, parti com um relativo à-vontade e uma certa confiança, não conseguindo porém, disfarçar um nervoso miudinho.

Lá estavam os soldados já agrupados para tomarem o tonificante café, ritual que se repetiria sempre antes de formarmos a fila indiana para sair do quartel.

Aproximei-me do local – cozinha dos soldados - para fazer o mesmo. Sabia sempre bem aquela tigela de café antes de sairmos. Servia-nos de lenitivo e aquecia-nos o corpo. Como de costume a noite já ia bem dentro. Com o Sargento Tavares, sentados no degrau do passeio, troquei algumas palavras com ele e as nossas expressões denotavam relativa preocupação, mais a minha que a dele, pois ele já tinha uma certa prática nestas andanças, uma vez que já tinha feito uma comissão em Angola.

Entretanto os “Comandos” da 643, já muito habituados àquilo, demonstravam uma nítida descontracção e ligeireza de movimentos que me causaram impressão. Barbudos, queimados, camuflados coçados e desbotados pareciam que iam para uma festa. Eu já não via a coisa tão bem assim.

Em breves segundos puseram-se ordenadamente em fila indiana prontos para saírem. Depois de agruparmos as nossas Secções nas posições definidas pelo Comandante do Grupo de Combate, começámos então a caminhar, abandonando o quartel e rumo ao objectivo. À frente os “Comandos” (os Lordes) e atrás os “periquitos” do 3.º Grupo de Combate da 816. Ou seja à frente os que tinham os camuflados coçados, desbotados rotos e rostos queimados e atrás os ainda branquinhos periquitos de camuflado novo e passado a ferro (passe o exagero).

Eram cerca das 11 horas da noite quando deixámos o aquartelamento de Bissorã rumo à casa-de-mato de Queré, algures nesta zona, aonde um grupo de terroristas se acoitava. A estrada tomada era a que ia para a “outra banda” mas não chegámos a cruzar o rio Armada, pois cortámos num carreiro à esquerda.

Segundo as informações dadas na reunião que antecedeu a Operação, o refúgio tratava-se mais de um Posto Administrativo (?), apenas com as armas e efectivo suficientes para a segurança deste. Portanto contava-se com relativa fragilidade por parte do inimigo. Caso insólito: nesta Operação o guia era uma “bajuda”! (rapariga nova, indígena).

Para as Operações de “golpes-de-mão”, necessitávamos, naturalmente, de um guia indígena, conhecedor da zona e do caminho. Muitas das vezes os nativos do nosso lado (milícias) também conheciam mais ou menos as paragens, salvaguardando as alturas em que entravam em contradição (uns diziam que era para a esquerda outros para a direita) e baralhavam mais as contas. As deslocações para este tipo de Operações eram feitas normalmente de noite, através do sinuoso mato (muitas das vezes evitávamos trilhos e caminhos para fugir às minas e a não darmos azo a sermos mais facilmente detectados), atravessando, não raras vezes, alagadas bolanhas e outros obstáculos. Assim era indispensável alguém da região que nos conduzisse e se para além de conhecedor do percurso, soubesse-nos informar do local exacto do refúgio, quantidade de terroristas, seu armamento, da existência e posição de eventuais sentinelas, etc., ainda bem melhor.

Muitas das vezes sabíamos de antemão todos estes pormenores pois o nosso guia tratava-se de alguém que tinha já pertencido ao refúgio e que o abandonou, por fome, por maus tratos ou outro motivo qualquer, ou então fora apanhado inadvertidamente no mato pelas tropas e instigado a colaborar.

A maioria dos guias no entanto, não queria colaborar, (outra situação a reflectir) nem à força, chegando muitas das vezes a pagar caro a sua recusa. Saíam sempre com a tropa, mas, uma vez no mato, e na maior parte das vezes, faziam-nos andar às voltas e mais voltas até sermos detectados, o que se julgava ser de forma propositada e gorando assim o objectivo da Operação. Eram castigados duramente ou liquidados mesmo ali.

Voltando à Operação Queré, a rapariguinha negra, envolta numa grande túnica(?) que lhe cobria a cabeça e grande parte do rosto e até a terminar nos pés – para não ser reconhecida - lá nos foi conduzindo pelo mato fora e com grande determinação. O motivo que levou a “bajuda” a querer ajudar a tropa é que ela tinha sido vítima de tentativas de violação, e não só, por parte dos componentes de tal acampamento, daí o desejo de se vingar e para nós uma boa oportunidade, uma vez que tínhamos um guia que conhecia completa e detalhadamente o refúgio e muito decidida à retaliação.

À medida que nos afastávamos de Bissorã as luzes desta povoação iam-se tornando, naturalmente, menos visíveis, sempre que as olhava, virando-me para trás, para certificar-me da distância, até que a coluna mergulhou na completa escuridão do mato, entregues ao destino e, vejam lá (!), aquela frágil mas corajosa e decidida rapariguinha. Logo à entrada do mato, o que mais tarde acharia ridículo, comecei a olhar para todos os lados como prevendo, num possível esconderijo – uma árvore, um “baga-baga” (montículo de terra endurecida que chegava a atingir 2 metros e mais de altura e que era construído por uma formiga - leia-se milhares e milhares - com uma disciplina militar e guerreira na defesa do seu laborioso habitat - o tal montículo de terra - e a que se dava o mesmo nome também de formiga “baga-baga”. Não sei se foi o nome do montículo que deu nome à formiga se foi o contrário), um arbusto, o capim, etc. - uma possível posição inimiga pronta a atacar, o que me provocava alguma tensão. A minha arma ia terrivelmente apertada nas mãos e, com o corpo hirto, a respiração entrecortada e de olhar extasiado, ia galgando assim o acidentado e desconhecido terreno do mato.
Ainda deu para apanhar um cagaço mal tínhamos entrado no mato:

Próximo de mim caiu com algum barulho (presumi, mas só depois, que algum fruto ou coisa parecida tenha caído ao chão) qualquer coisa que quase e instintivamente me fez deitar no chão (uma granada queres ver!). O que vinha atrás ainda riu-se do que eu ia fazendo, mas se calhar só parou de tremer muito depois de mim. Refeito, coração em batida normal, toca a seguir. Este meu estado de espírito foi-se desanuviando à medida que ia ganhando experiência nestas andanças, pois mais tarde, só quando estávamos próximo do inimigo é que tomava cuidado e o coração batia mais vezes. Nessa altura é que a G3 mudava de posição já com o indicador próximo do gatilho e a mão esquerda a segurar a arma junto ao cano. Até essa altura, e com a arma segura na mão como um saco, pensava em tudo menos na guerra. Assim o tempo parecia passar mais depressa e o sistema nervoso era mais controlado. Mas naquela minha primeira saída para o mato o meu estado de espírito era de facto como atrás conto.

A missão do meu Grupo de combate era a de segurança ao grupo de assalto, grupo este que era o dos “Lordes”. Devíamos formar um semi-anel em torno do refúgio e à retaguarda dos “Lordes”. Este nosso dispositivo permitiria assim uma segurança pelas costas aqueles, ao mesmo tempo que evitaríamos, por esse lado qualquer fuga inimiga.

As horas, que pareciam longas, foram passando até que chegamos perto do refúgio e, tal como estava previsto, alguns minutos antes da hora prevista para o ataque. Estes minutos de espera serviam para nos refazermos do esforço e da tensão acumulados ao longo da caminhada e para ultimarmos pormenores ou desfazer qualquer dúvida sobre o assalto a perpetrar. Sentamo-nos então, procurando a todo o transe não fazer qualquer espécie de ruído. Ouvia-se eventualmente o barulho provocado pelo movimento de um ou outro animal furtivo e como já estávamos perto do alvorecer do dia ouviu-se também o chilrear incessante e ensurdecedor da imensa e variada passarada que infesta aquelas paragens. Nunca tinha imaginado e muito menos ouvido tão variada e estridente sinfonia. O chilrear de uns dava a sensação de uma serra mecânica a cortar madeira; o de outros parecia o de autênticas gargalhadas de pessoas; outros ainda pareciam crianças a berrar, etc., etc…. Espectáculo!!

Enfim uma complexa orquestra espalhada e oculta naquela emaranhada floresta, utilizando os mais diversos instrumentos. Todas as notas musicais e mais algumas eram ali ouvidas.

Seria sempre esta a música de fundo quando fazíamos Operações do género: ataques a “casas-de-mato” e, como normalmente se fazia, era ao amanhecer.

Como na altura desconhecia tão diversidade de cantares e chilreares, confundia por vezes com a presença próxima de crianças ou até de adultos que, afinal ali perto deviam estar e que eu, “periquito”, os adivinhava em todo o lado naquela tenebrosa mata.

E então ecoa um batuque!!..., todos (os da 816) tomámos uma expressão de alerta. O rufar enervante daqueles tambores parecia avançar para nós para logo voltarem ao seu ponto de origem num frenético vai-e-vem. Lembrei-me dos filmes de índios só não via era sinais de fumo. Claro que o nosso estado de espírito na altura redobrava as sensações também. Que sensação! Que pesadelo! O que é isto? O que será? É um sinal? Ordem para atacar? Interrogavam-se uns aos outros. Confesso que senti um pouco de medo naquela altura. Logo, porém, o meu coração começou a compassar normalmente quando os “velhinhos” dos “Lordes” nos fizeram sossegar dizendo que se tratava de um “choro”.
Choro, mais um termo a descodificar.
Não muito longe dali, em alguma tabanca, um grupo de indígenas e de uma certa raça ou etnia, manifestavam-se no tradicional “choro” em honra de um defunto. Eles batiam os tambores fortemente e a um ritmo estonteante, que no silêncio e quietude da madrugada pareciam estar ali mesmo à beira dos nossos ouvidos. Acompanhando o ritmo dos bombos eles pulavam e dançavam também. “Uivavam”, atiravam-se para o chão, dando cambalhotas, etc., como mais tarde tive ocasião de assistir a um em Bissorã, e na outra Banda.
Não cheguei a saber se eles riam ou choravam, se lamentavam a perda de uma vida ou se davam graças e rejubilavam arreigados a alguma crença ou fiéis ao Deus deles. Nunca os chegaria a compreender. Também foi coisa que não me interessou muito. Mas que o faziam com grande fervor e devoção, lá isso era verdade. Meditei muito sobre os ideais daquela gente e como eles religiosamente os seguiam embora tão humildes e com grande deficit de civilização. Uma coisa a respeitar, tive sempre cá comigo.

E ali estávamos, prostrados no chão, dissimulando os nossos vultos com a vegetação, aguardando tensamente a chegada da hora conveniente para o ataque. O barulho infernal dos tambores não cessava… nunca mais cessaria. Os nervos pareciam ser agora comandados pelas pancadas dos tambores. Pancada mais forte acelera coração.

A hora aproxima-se! Não era uma hora fixada pelo relógio, antes uma altura cruciante do dia, que era logo que a claridade começasse a despontar, isto é, ao “lusco-fusco”.
E pronto, é o momento, decidiram os “Lordes”. As sucessivas interrogações não paravam no meu cérebro e os nervos, esses, eram difíceis de dominar. E os bombos sempre a rufar.

Começámos então a actuar. Fomos dando terreno ao grupo de assalto que, felinamente, se foi introduzindo de forma estratégica no mato. Impressionou-me a rapidez e a destreza nos movimentos daqueles calejados homens. Nós, os da 816, começámos também a formar o semi-círculo, como fora previamente planeado e…, para surpresa minha, quando ainda dispunha os homens da minha Secção, vi o Graça dos “Lordes” juntar-se a nós e para minha perplexidade dizer que já tinham feito o assalto! “Devem estar no choro”, acrescentou ele. Ouve-se um agitar de arbustos e eis que surge o Hipólito que traz na mão uma espingarda “Mauser” (!) e duas rudimentares granadas de mão, armas que o inimigo, inadvertidamente ou não, deixara na casa-de-mato. Pedi ao Furriel Graça que me levasse ao dito refúgio para satisfazer a minha curiosidade ao que ele logo acedeu. Ainda se notavam vestígios de uma recente presença, atendendo a uma pequena fogueira que se dissipava lentamente. O refúgio, apesar de chão de terra, mostrava-se, como sempre verifiquei noutros, bem varrido, asseado, bem ordenado com todos ao apetrechos naturalmente usando arbustos, folhagem de palmeiras, troncos destas e de outras árvores, etc. com boa ordenação. Seria sempre assim e então aquela escola em Iracunda!! Muita disciplina ali.
Pendurado num pau estava um “ronco” – um cordel com um cornicho de um animal qualquer-.
Dentro do cornicho encontravam-se vários papeis cuidadosamente dobrados, e escritos em hieróglifos, (árabe, ou escrita muçulmana, talvez), que se trataria de qualquer oração, prece ou algo relacionado com uma religião, talvez muçulmana, pois algumas etnias na Guiné seguem esta doutrina. Aquilo era de trazer pendurado ao pescoço, como supus. Peguei naquilo e trouxe comigo pois parecia-me tratar-se de um amuleto para quem o usasse.
Embora trouxesse aquilo no bolso do camuflado não vinha muito tranquilo. Sou dos que não acreditam em bruxas, mas…

Voltando à Operação, esta tinha-se saldado por um pequeno fracasso mas, achei que para começar foi melhor assim para os “periquitos” da 816 já que os “Lordes” denunciavam uma grande frustração por o inimigo não aparecer. Estes pareciam que dias sem refrega nem era dia.

Irreflectidamente, nós, os “periquitos” fomo-nos amontoando e em ares de quem foi só ali para assistir a qualquer coisa. Ainda me lembro então do Radiotelegrafista dos “Lordes” que ao ver-nos em grupo vociferou, gritando: “Tomem as vossas posições que vamos ter aqui manga de “chocolate”. Viria mais tarde a saber que ele, com “chocolate” queria dizer tiroteio e que “manga” queria dizer muito. Estes e outros termos em crioulo ou não, foram também por nós adaptados futuramente fazendo parte do nosso vocabulário corriqueiro.

Mas porque é que ia haver muita porrada se não estava ali ninguém, interroguei-me eu?
Tal interrogação ainda não tinha saído da minha mente quando uma rajada inimiga fez-me rebolar pelo chão. Era a resposta de um sentinela. Sim, porque se a nós, “periquitos” nos desse a impressão de total deserção, eles não iam deixar a “casa-de-mato” completamente abandonada assim de barato, como se fez entender um dos “Lordes” que contava sempre com alguma retaliação inimiga. Eis uma outra rajada, outra ainda, até que uma nossa “bazookada” bem apontada, fez calar o matraquear da arma inimiga e se calhar também o seu utilizador. Pus-me de pé e respirei fundo. Sorri um pouco como que para demonstrar alguma descontracção, que era o que tinha menos naquele momento. Mal refeito, o pânico instala-se de novo: Ouve-se “cuidado está um a subir à árvore!”. Deitei-me de imediato atrás de um arbusto, pois foi pró que o meu instinto me deu. Que valeria um simples e pequeno arbusto ante a ameaça de pistolas-metralhadoras? Bom, pelo menos podia servir de abrigo às vistas inimigas.
O alerta tinha sido dado pelo Sargento Tavares da 816, mas, afinal, não se tratava de um terrorista…, era o fumo provocado pelas chamas que envolviam o refúgio ao qual momentos antes os “Lordes” tinham posto fogo. O fumo ao emergir para o espaço infiltrava-se por entre a folhagem da árvore, agitando-a e dando realmente a sensação de que alguém estava a trepá-la. Mais uma exclamação de alívio, e então dirigimo-nos para a tabanca que estava ali próxima e onde acontecia o referido “choro”. Presumivelmente os “turras” do refúgio estavam lá também. Também estavam alertados, por certo, da nossa presença, pois concerteza ouviram o tiroteio instantes antes e junto à sua “casa-de-mato”.
Avançando cautelosamente, como a situação aconselhava, e em fila indiana fomo-nos aproximando da tabanca.
O terreno era agora descampado e por isso dificultávamo-nos a possibilidade de surpresa, pois íamos todos ali vem à vista. A cada metro que avançávamos esperava-se por fogo inimigo, pois este podia muito bem estar já emboscado - pelo menos tiveram tempo para isso - e nós ali a peito descoberto e a formarmos um bom alvo. Não, não houve um único tiro. Encontramos a tabanca também abandonada, recentemente abandonada.

Animais domésticos, como porcos, galinhas, cabritos, etc., deambulavam de um lado para o outro, alvoraçados. E então começava sempre aqui o jogo do gato e do rato. Principalmente os nativos, que nos acompanhavam fazendo parte da nossa tropa, e já se vê por mais necessitados, alheavam-se completamente da guerra, para também, e numa corrida desenfreada, tentarem apanhar este ou aquele animal, que bem jeito lhes fazia. Era uma cena grotesca que dava para rir à farta pois, logo atrás de um animal em fuga surgia o seu perseguidor que era fintado pelos ziguezagues da presa. Ora da esquerda para a direita, ora da direita para a esquerda a coisa ainda demorava o seu tempo e muitas das vezes o animal é que se ficava a rir. Muitas das vezes nem era o perseguidor “oficial” que apanhava o animal, pois bastava este esbarrar nas pernas de um, que este aproveitava logo para, sem qualquer trabalho, ficar com ele. Para tudo se queria sorte…
No regresso, todos os “caçadores” exibiam os seus troféus garbosamente.

E pronto, foi o regressar à base. Estava assim cumprido o programa, que não a jornada. Programa que pouco resultou: refúgio e tabanca próxima e cúmplice arrasadas pelo fogo e o inimigo posto em debandada, e o saldo bélico de uma espingarda “Mauser” e duas granadas de mão.

Foi um caso sério para que a malta se agrupasse e se dispusesse em fila indiana, pois era sempre este o dispositivo de progressão pelo desconhecido mato, já que a malta da 816 estava aos magotes e em jeito de arraial, como aquilo fosse uma festa ou uma feira, mas, com mais grito ou menos grito, as posições foram tomadas, a ordem restabelecida, e a coluna pôs-se então em marcha de regresso a Bissorã. ”Ainda lá ficou um cabrito”!... “e aquele frango que quase o apanhava”!. Frases como estas ou parecidas ouviam-se sempre naquelas circunstâncias, aquando do regresso de uma “visita” ao inimigo.

E pronto, com a arma sobre o ombro, numa posição que expressava alguma fadiga, lá foi andando. Os comentários sobre as diversas peripécias não cessavam: este diz que foi assim; aquele diz que não, foi antes “assado”, etc., etc..

Entretanto os “Lordes” foram-nos avisando que no regresso era de contar com emboscadas ou, no mínimo, flagelações, pois uma vez sendo nós detectados, o inimigo vinha no nosso encalço, exercendo para além do mais, uma represália por aquilo que lhes fizemos ou lhes queríamos fazer. Sempre que tentávamos atacá-los, isto salvo um possível, mas pouco provável, encontro que o acaso poderia proporcionar, teríamo-los sempre à pega, muitas das vezes até às portas do quartel. Portanto, a parte final duma Operação, ou seja o regresso ao aquartelamento, e depois de termos sido detectados no mato, era sempre temerosa. No entanto, e agora que já fiz diversas Operações a “casas-de-mato”, posso dizer que esta a Queré foi uma das raras em que não tivemos qualquer emboscada ou simples flagelação durante o regresso.

Naquele clima de suspense e expectativa, fomos encurtando a distância que nos separava da estrada aonde se encontrariam as viaturas que nos levariam depois até ao quartel, poupando-nos assim o esforço de uma caminhada total. Sempre que possível, as viaturas, devidamente escoltadas, ia-nos buscar até onde o trajecto fosse possível ou conveniente.

Acontecia porém, e o que era normal, e por razões de segurança também, que nós chegávamos primeiro ao local de encontro e com bastante antecedência muitas das vezes, e então aproveitávamos essa altura para repousarmos um pouco de fadiga, quer física quer psicológica. Lia-se bem nos nossos rostos, transtornados e desfigurados, as consequências de uma noite perdida em caminhada através do sinuoso mato, através das por vezes alagadas e cheias de lama, bolanhas. Chegávamos às vezes a atravessar zonas de água que nos cobria quase completamente. O efeito causado por este tipo de Operações era bastante desgastante e isso então era bem visível nos nossos rostos.

Enfim, quase rendidos ao esforço, para ali jazíamos, sempre com o ouvido alerta no roncar das bem-vindas viaturas, que a todo o momento se aguardavam e que muito se ansiavam. E o rufar dos tambores ainda parecia estar nos ouvidos. Nesse tempo de espera tomávamos, no entanto, as devidas cautelas quanto a segurança e assim distribuíamo-nos em leque, pois o inimigo não enjeitaria uma distracção nossa. Mas valha a verdade que nesta altura de ressaca o que queríamos era deitarmo-nos ao comprido e que a guerra fosse pró… outro lado.

E elas aí estavam!!. Primeiro o ruído dos motores, depois as viaturas mesmo aparecendo ao fundo da curva. Subimos para as viaturas e fiquei sentado junto ao Alferes Costa. Ao lado deste a bajuda que nos tinha servido de guia e, logo a seguir, quem havia de estar? O Baião, claro. Havendo mulheres, não era difícil encontrar o Baião. Lá estava ele com o braço por cima do ombro da rapariga com todo o seu ar paternal. A moça continuava com a manta a envolver-lhe o rosto, pois ela adivinhava o que lhe acontecia se os homens de Queré a apanhassem, sabendo do seu cometimento. Pessoalmente e em face das circunstâncias que rodearam e levaram à execução daquela Operação, não dava nada por a vida daquela rapariga, para mais Bissorã estava cheia de bufos e informadores que colaboravam com o inimigo. Sabia-se e sentia-se isso, como com o tempo se foi constatando.

E pronto, eis-nos finalmente a caminho de Bissorã.

Risos de alegria e alívio, comentários piadéticos, chacota com este ou aquele, etc, foi este o quadro durante aquele curto trajecto, pois ao fim e ao cabo tudo tinha corrido mais ou menos bem, não houve qualquer ferido ou acidentado, pois também, verdadeiramente, não chegou a haver um recontro com o inimigo. Isto estaria reservado para mais tarde, e de que maneira, mas, para começar, para nós “periquitos” da 816, talvez fosse melhor assim, o que não deixaria de contrastar com a frustração dos “comandos” dos “Águias Negras”, que, por certo, queriam que aquilo tivesse corrido de maneira bem diferente.

Chegados a Bissorã, tinha-se assim consumado o baptismo da 816, mais propriamente o do meu Grupo de Combate, que, na circunstância, foi o primeiro a “procurar” o inimigo.

Grande parte da população, (o que me causou alguma surpresa) e como sempre acontecia, aguardava-nos à entrada da povoação e, formando alas, partilhavam, pelo menos aparentemente, da nossa alegria e satisfação, mas, muitos daqueles olhares eram olhares que mal disfarçavam o ódio e a decepção por chegarmos em euforia. Viríamos mais tarde a constatar, e, como anteriormente disse, que a maior parte da gente de Bissorã tomava acção, de forma velada, na actividade terrorista. Portanto, convivíamos com uma população indígena, que se nos pudesse fazer mal….

Completamente esgotado, tomei um apetecido duche, recostei-me na cama e deixei-me adormecer. A cerveja fresca, essa, já cá cantava. Quando acordei, a Operação Queré tinha tomado lugar no passado e não era para recordar.
Vamos jogar a bola, que está a chover…
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 8 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5610: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (8): O périplo da 816 em dois anos de Guiné - Mansoa