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sábado, 19 de janeiro de 2013

Guiné 63/74 - P10966: Amílcar Cabral, um agrónomo antes do seu tempo (Carlos Schwarz, Pepito, eng agr) (Parte I)


Amílcar e Maria Helena recentemente chegados a Bissau


1. Em 11 do corrente, o sítio oficial da AD - Acção para o Desenvolvimento publicou um notável texto do nosso amigo Pepito sobre o eng agr Amílcar Cabral e o seu pensamento pioneiro, no domínio da agronomia. A meu pedido, ele de imediato me mandou esse texto, para publicação no nosso blogue.  Dividimo-lo em duas partes, a publicar por ocasião dos 40 anos do seu bárbaro e cobarde assassinato em Conacri, em 20 de janeiro de 1973. Cabral e a mulher, Maria Helena, portuguesa, silvicultora,  sua colega do ISA - Instituto Superior de Agronomia, eram amigos da família Silva (Artur Augusto Silva e Clara Schwarz Silva). Há um texto introdutório na página da AD. Aqui vai:  representa o ponto de vista dos nossos amigos, guineenses,  da AD,  não vinculando naturalmente o nosso blogue e os seus editores (LG).



Página oficial da AD - Acção para o Desenvolvimento


AD - Acção para o Desenvolvimento > Pensar Amílcar Cabral
11 jan112013

Este ano, no dia 20 de Janeiro, assinala-se o 40º aniversário do primeiro assassinato de Cabral, em Conakry.

Depois destes anos todos, os dados são mais claros, conhecendo-se muito melhor os organizadores, os mandantes e os coniventes, já que os executores nunca houve dúvidas sobre eles.

Embora haja quem persista em considerar, ao mesmo nível, a eventualidade da implicação de três organizadores: Spínola, Sekou Touré e alguns dirigentes do PAIGC, cada vez fica mais evidente que o principal organizador foi Spínola, que obteve aí a sua única vitória na vida.

Não foi uma vitória militar, porque ele nunca a teve, mas sim política. O ponto mais forte e simultaneamente mais fraco da Luta, era o da “unidade Guiné-Cabo Verde”. Ele conseguiu jogar essa cartada e mobilizar para a sua causa, militantes politica e mentalmente pouco preparados, predispostos para a traição e com uma ambição desmedida.

No 14 de Novembro, Cabral volta a ser assassinado no golpe de estado dirigido por Nino Vieira. Se durante 3 dias não se falou de PAIGC, já de Cabral então foi o silêncio completo durante longos anos.

Hoje, golpistas e seus mentores, voltam a agitar a bandeira de Amílcar Cabral, dizendo-se seus verdadeiros continuadores. Mas, porque nunca perceberam nem entenderam o pensamento de Cabral, falam do Cabral morto, não das suas ideias, posições políticas e opções ideológicas.

Saberão eles que Cabral recusou, no início da luta, deslocar-se à Argélia após o golpe de estado que derrubou Bem Bela, porque não pactuava com estes métodos?

Conta o jornalista-cronista francês, Gérard Chaliand, que acompanhou e divulgou a Luta de Libertação da Guiné-Bissau, no seu livro de memórias “A ponta da navalha” que quando disseram a Nelson Mandela “tu és o maior”, este respondeu com toda a simplicidade “não, o maior é Cabral”.

Quarenta anos depois, a AD partilha com todos um ensaio sobre o pensamento agronómico de Amílcar Cabral, “Um agrónomo antes do seu tempo”.

É o nosso pequeno contributo. 


2. AMILCAR CABRAL: UM AGRÓNOMO ANTES DO SEU TEMPO


Por Carlos Schwarz
(agrónomo)
Novembro
2012






À memória de meu pai Artur [Augusto Silva] que, desde criança
me incentivou, sem que eu me apercebesse,
a seguir os caminhos da agronomia;


À minha mãe Clara [Schwarz] que sempre esteve solidária 
com as minhas opções e nas mãos de quem vi, 
pela primeira vez e ainda nos tempos da ditadura, 
os símbolos do PAIGC; 

À Isabel [Levy Ribeiro] , minha forte e decidida companheira de sempre
nesta caminhada difícil mas extraordinária;


Aos meus filhos Cristina, Ivan e Catarina 
que partilham corajosamente e sem hesitações 
os sobressaltos políticos da vida dos seus pais;

Às minhas netas Sara e Clara com a esperança
de um dia poderem viver tranquilamente
na terra adiada com que Cabral sonhou.



AMILCAR CABRAL, 
UM AGRÓNOMO ANTES DO SEU TEMPO [, foto à direita,]


Aos 28 anos de idade, em Setembro de 1952, poucos meses após ter terminado o curso, regressava à terra que o viu nascer, o agrónomo Amílcar Cabral.

No pensamento trazia certamente as palavras que seu pai, Juvenal Cabral, escrevera no livro “Memórias e Reflexões”, quando se instalara em Bissau em 1911, após “ter deixado as rochas nuas da Paria Negra, da Achada Grande, do Lazareto, e cujo aspeto, severo e triste, parece simbolizar o sofrimento e a dor, meus olhos, maravilhados, contemplaram sem cessar a paradisíaca majestade da flora que, de modo misterioso parece emergir do mar! Por toda a parte árvores frondosas, lindos e esquisitos arbustos que, verdejantes, se espalham pelo solo como tapetes no chão”. “Tudo isto é opulência e vigor, é maravilha que encanta, é riqueza que seduz e predispõe um rapaz a encarar com otimismo a vida neste país.”

Esta visão de seu pai terá influenciado Amílcar Cabral a optar por exercer a sua profissão na Guiné, para além de que, naquela época, a agricultura em Cabo Verde estar votada ao abandono e onde a maior parte dos homens emigrava para o norte (EUA, Portugal e Holanda) à procura da sobrevivência e da vida, tanto mais que outros, desde o final do século XIX, demandavam a Guiné para se dedicarem à agricultura, especialmente cana-de-açúcar, quase sempre associada ao fabrico de aguardente de cana.

Um agrónomo que quisesse de facto exercer a sua profissão, teria de optar pela Guiné, onde tudo podia ser feito, onde tudo estava por fazer e onde a quase totalidade dos habitantes eram pequenos agricultores “indígenas”.

Acompanhava-o a sua primeira mulher, Maria Helena Rodrigues, silvicultora, que chegando 3 meses depois dele, ia conhecer pela primeira vez a cidade de Bissau, nessa altura uma pequena urbe com muito poucos habitantes, espalhados por duas zonas distintas: de um lado a cidade colonial, dita “civilizada”, que incluía a Fortaleza da Amura, o agora chamado “Bissau Velho”, o porto de Pindjiguiti e a avenida da Republica, hoje Amílcar Cabral. Esta parte estendia-se até ao monumento “Esforço da Raça” e Palácio do Governo, nessa altura ainda em construção; do outro, à volta do centro, localizava-se a parte popular, dita dos “indígenas”, onde vivia maioritariamente a etnia pepel.

Era na parte colonial que moravam os poucos intelectuais presentes no país e se encontravam localizadas as grandes firmas estrangeiras como a NOSOCO e a SCOA, às quais se juntavam as portuguesas (A.C. Gouveia, Barbosa & Comandita, Álvaro Camacho e Sociedade Comercial Ultramarina, entre outras) e uma enorme plêiade de pequenos comerciantes libaneses como Mamud ElAwar, Aly Souleiman, Michel Ajouz, etc.

No resto do país o comércio de produtos e bens elementares era fundamentalmente assegurado pelos “djilas”, comerciantes ambulantes que percorriam de bicicleta e canoa todo o território.



Fotografia atual da casa onde Cabral e Maria Helena viveram na Granja de Pessubé


A agricultura, então chamada de “indígena”, assentava na produção de arroz para o autoconsumo das comunidades rurais, a qual era praticada há cerca de 3.000 anos e na produção de uma cultura de exportação, a mancarra (amendoim) incentivada pelas empresas estrangeiras que se revezam na sua exportação para a Europa (em bruto ou em óleo). O ciclo da mancarra começa na zona de Buba, incentivada por alemães e percorre um itinerário fácil de identificar pela erosão e degradação dos solos que provoca na Guiné e que passa por Bolama, norte do Oio, Bafatá e Gabú.

Os serviços oficiais de apoio aos agricultores eram praticamente inexistentes ou inoperacionais, confinando-se dentro das infraestruturas técnicas e administrativas que construíam. Não existia nenhum centro de experimentação, de formação de quadros ou de vulgarização.

Este foi o contexto global que se deparou a Cabral à sua chegada a Bissau, ele que vinha para como dizia, “viver o seu tempo e a sua época”, iniciar os desafios políticos da luta pela conquista da independência, defender um desenvolvimento centrado na agricultura e promover a dignidade da população guineense.

Ele e Maria Helena instalam-se na casa da Granja Experimental do Pessubé, atribuída ao seu diretor, na altura situada muito longe do centro de Bissau, num bairro popular da periferia e numa zona isolada e de difícil acesso. A Granja dispunha de cerca de 400 ha onde existia grande número de essências florestais e um pequeno número avulso de algumas espécies frutícolas, como por exemplo cacaueiros.

Nesta altura, quando começa a exercer a sua profissão, Amílcar está convencido de que o processo de independência decorrerá de forma pacífica, nos moldes como se virá a processar nos outros países africanos, pelo que decide começar a construção do novo edifício conceptual agrícola que iria substituir gradualmente o modelo colonial existente.

A Granja de Pessubé vai ser o ponto de partida, para começar a pôr em prática uma estratégia, em três vertentes principais, que ele considera importantes para o desenvolvimento da agricultura guineense:


A primeira, foi a de transformar a Granja de mera unidade de produção de legumes destinados às autoridades politicas e administrativas coloniais da praça e num local de piqueniques e passeios recreativos, num centro de pesquisa agrícola, enquanto instrumento para melhorar e modernizar a produção dos agricultores. 

Cabral concebe e põe em aplicação um programa de experimentação baseado na identificação de técnicas culturais para diferentes espécies agrícolas (compasso, armação do terreno, adubação e época de sementeira), de ensaios de adaptação varietal (arroz, cana-de-açúcar, mancarra, banana, algodão e hortícolas), identificação de pragas e doenças, valorização de variedades locais de certas espécies, como a “juta”, e a introdução de novas espécies como o gergelim (sésamo), soja e girassol.

Começa um trabalho de aproveitamento dos terrenos agrícolas da Granja, utilizando critérios inovadores, em função da natureza dos solos e da sua aptidão, apostando na sua fertilização orgânica com base nas camas dos animais da Granja da Pecuária, na consociação de culturas (mandioca-bananeiras), identificação de pragas e doenças, caracterização das diferentes variedades de cada espécie.

Dá início, pela primeira vez, à publicação de resultados da experimentação e de reflexões sobre a agricultura guineense, criando para isso o “Boletim Informativo” trimestral da Granja Experimental de Pessubé onde, para além da descrição das atividades, propunha a reflexão sobre temas importantes, como a “cultura mecanizada”, o “vírus da roseta da mancarra” e a “cultura da juta”.


Amílcar Cabral, Maria Helena e Clara Schwarz [, decana do nosso blogue, à beira dos 98 anos,]na estrada de regresso de Dakar para Bissau em 1954. 

[As presentes fotos do arquivo pessoal de Clara Schwarz. O seu marido, o escritor e jurista Artur Augusto Silva, é que conviveu mais com Amílcar Cabral. Clara, que foi professora no Liceu de Bissau, traduziu textos de Cabral para francês. Pepito, o filho mais novo, nasceu em Bissau, em 1949.] [LG]


Com uma regularidade notável, foram publicados, desde Novembro de 1952, cinco “Boletins Informativos”. 

A  segunda, foi o de romper os muros internos em que se confinavam os serviços agrícolas, para os aproximar dos agricultores, que deviam ser os seus principais beneficiários.


Para Cabral, mais do que o refrão da época, “a agricultura é a base da economia”, ele defendia claramente que “a agricultura era a própria economia da Guiné” pelo que era importante os serviços aproximarem-se dos pequenos agricultores.

É assim que a Granja de Pessubé passa a executar ensaios e experiências agrícolas nos postos de Bula, Safim, Bigene, Nhacra e Prábis, fazendo aquilo a que hoje em dia se chama de “ensaios em meio camponês”, como forma de testar a sua adaptabilidade às diferentes condições ecológicas e sistemas de cultura dos agricultores.

O projeto FAO de recenseamento agrícola aprovado pelo governo português em 1947 e logo metido na gaveta, onde pernoitou mais de 4 anos, é rapidamente retomado por Cabral, poucos meses depois da sua chegada a Pessubé, o qual estuda, planeia e executa. Para ele, o censo não era apenas um conjunto de quadros e números, mas também a possibilidade de ler, compreender e agir sobre a dinâmica agrícola prevalecente. 

Este trabalho permitiu-lhe definir de forma precisa a contribuição dos diferentes grupos étnicos guineenses para a produção agrícola, servindo ainda hoje, passados 60 anos, para compreender os sistemas de produção e de cultura por eles praticados.

Por outras palavras, o censo fez sair os serviços agrícolas da sua torre de marfim em direção aos campos dos agricultores, confrontando-os com a realidade que deviam servir e possibilitando a procura de soluções para os seus problemas fundamentais e para a modernização agrícola.


A  terceira, foi a da interação da agricultura guineense com as dos países vizinhos da sub-região


Consciente que o reduzido número de quadros técnicos e a constante falta de recursos impediriam que a pesquisa agrícola fosse realizada e trouxesse resultados úteis e práticos aos agricultores, Cabral fomentou a vinda a Pessubé de diversos técnicos, como a missão pedológica francesa de Dakar, especialistas em cana-de-açúcar, entomologistas, etc. 

A participação de Amílcar Cabral na “Conferência internacional Mancarra-Milheto”, realizada em Bembey, Senegal em 1954, onde apresenta a comunicação “Queimadas e pousios no ciclo cultural Mancarra-Milheto”, é uma prova eloquente da sua estratégia de conhecer os resultados experimentais de estações estrangeiras mais antigas, com maior número de técnicos e para marcar a presença e capacidade dos técnicos guineenses nos circuitos científicos da sub-região, aspeto que ele considerava determinante para o período pós-independência.

Internamente, vai começando a criar um núcleo de quadros técnicos que possa garantir a continuidade e reforço destes programas. Deles, realçam-se dois:

(i) Bacar Cassamá, monitor agrícola da Granja, é a primeira pessoa de quem se aproxima e com quem criará relações de amizade e confiança até ao final da sua vida; alto, forte, sério, de riso difícil, com quem terá repetidamente discussões sempre ultrapassadas, porque na sua maneira de ser, a melhor forma de ser honesto era dizer claramente ao “engenheiro” a sua posição e o que pensava; homem que nunca dobrou a coluna, continuou seu amigo e fiel ao PAIGC, mesmo depois do Golpe de Estado de Nino Vieira, quando houve a tentativa de apagar Cabral da história da Guiné-Bissau; acaba por falecer em 2012, esquecido e abandonado por muitos companheiros, com algumas exceções como a de Pedro Pires, ele que foi quem mais tempo acompanhou Cabral; 

(ii) Júlio Mota Almeida, prático agrícola na Granja, que acaba por estar presente na fundação do PAIGC em Bissau, em Setembro de 1956. Morre em Portugal em 1982.


Durante dois anos e meio, Cabral percorre a Guiné de lés-a-lés, observando, estudando e escrevendo sobre o fácies da agricultura guineense. Cite-se o caso do estudo local das queimadas e pousios em Fulacunda. Determinante foi a realização do recenseamento agrícola onde, à frente de uma equipa técnica, contactou agricultores, lideres comunitários, jovens e mulheres, apercebendo-se das diferentes lógicas de pensamento e ação de cada grupo étnico, as suas potencialidades e as fraquezas e, sobretudo, as prioridades mais sentidas na promoção da sua forma de vida. 

Em Março de 1955 sai de Bissau num avião da Air France, por imposição das autoridades políticas governamentais coloniais, que o acusam de exercer atividades conspiratórias pela independência da Guiné, o que efetivamente correspondia à verdade, mas não lhes dava esse direito. Autorizam-no a vir anualmente a Bissau, o que ele aproveita em 1956, para colaborar com outros nacionalistas na fundação do PAIGC, num dia de Setembro que mais tarde acaba por ser arbitrariamente fixado como sendo o dia 19. Também em 1959, já com 35 anos de idade, vem a Bissau no ano do Massacre do porto de Pindjiguiti, momento determinante para Cabral perceber que a conquista da independência teria de ser obtida pela luta armada de longa duração e não da forma pacífica pela qual ele sempre pugnou.

Desde que foi expulso da Guiné, Cabral continuou a desenvolver a sua atividade agronómica em Portugal e Angola, dedicando-se sempre à reflexão sobre a agricultura guineense, salientando-se a publicação na revista AGROS, da Associação de Estudantes de Agronomia, do seu texto: “A agricultura na Guiné, algumas notas sobre as suas características e problemas fundamentais”.

Em 1960, estimulado pela independência da Guiné-Conakry e do NÃO à França dado em 1958, decide estabelecer-se definitivamente em Conakry, certo que era o local ideal tendo em consideração a forma como o Senegal tinha decidido aceder à independência. As vicissitudes que a guerrilha passou neste país durante os 11 anos de Luta, veio mostrar que a sua visão estava correta.

Poucos anos antes do seu assassinato, em 1972, consciente de que a vitória militar era um dado adquirido e surgiria a curto prazo, começa a dedicar mais do seu tempo à conceção do futuro Estado da Guiné-Bissau e aí volta a agricultura a estar presente no futuro programa. A vivência em Conakry permitira-lhe identificar os reais perigos com que o novo país se iria confrontar no pós-independência. Um deles são os “atrativos” que a cidade de Bissau iria exercer na cúpula dirigente dos guerrilheiros, a tendência para a intriga e complot político e, finalmente, o descanso do guerreiro. O outro, era o do inevitável esquecimento e afastamento gradual dos dirigentes em relação às populações que haviam participado na Luta. 

Uma das ideias que Cabral estava a desenvolver quando é assassinado, era o da criação dos diferentes Ministérios governamentais, um em cada uma das capitais regionais do país. Mantinha os dirigentes perto dos cidadãos, empurrava-os para resolverem os problemas concretos das populações e diminuía o risco do “diz que diz”, da conflitualidade estéril e da intriga política. É o retomar da tese de agrónomo de que os técnicos e decisores não se devem fechar entre portas, mas estar perto dos beneficiários do seu trabalho.

(Continua)

Texto e fotos;  © Carlos Schwarz (2013). Todos os direitos reservados

sábado, 23 de outubro de 2010

Guiné 63/74 - P7164: Meu pai, meu velho, meu camarada (24): Bijagós, memórias de menino e moço (Manuel Amante)



Guiné-Bissau > Bolama > s/d > Cais > Uma canoa nhominca, para transporte de passageiros 

 Foto: © Patrício Ribeiro (2009). Todos os direitos reservados.


1. Eis um belo texto sobre uma das mais belas regiões da Guiné, os Bijagós, que  a maior parte de nós, antigos combatentes, não conhece, não conheceu nem nunca  terá, infelizmente, oportunidade de conhecer... 

O embaixador Manuel Amante da Rosa, que foi nosso camarada de armas em 1973/74, e que tem hoje funções de responsabilidade na CPLP - Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, autorizou-me em tempos a reproduzir esse texto, que ele escreveu para a sua filha, Carla,  autora do blogue Amante da Rosa, e que vive (ou vivia na altura) em Cabo Verde... É um blogue que eu visitava regularmente mas que infelizmente fechou, entretanto (embora continua a ser pesquisável na Net). Apresenta(va)-se nestes termos: "Meu Cabo Verde. História e Estórias. Minhas raízes, família e recordações. A Guiné. Pensamentos e Imagens. Sem ordem cronológica"...

Com a devida vénia, e como homenagem à Carla, ao pai Manuel Amante e ao avô paterno, em cujo barco, o Bubaque, muitos nós, malta da zona leste da Guiné, deve ter viajado entre Bissau e Bambadinca, entre 1961 e 1974, permito-me transcrever este texto de antologia, que o Manuel Amante escreveu para a sua filha Carla, em memória do seu velho... (Julgo que as ilustrações são da responsabilidade da autora do blogue).

Uma resslava: apesar de termos na nossa posse, digitalizadas, todas as cartas do arquipélago dos Bijagós - oferta do nosso camarada Humberto Reis, em 2005 - , nunca as chegámos a pôr  "on line", por razões de segurança... Ficam, no entanto, à disposição dos amigos e camaradas que precisaram delas, por razões de turismo, solidariedade, investigação ou outras razões a avaliar, caso a caso e mediante pedido pessoal ao editor Luís Graça. (LG).

Fonte: Blogue Amante da Rosa > Setembro 10, 2007 > Bijagós, memórias de um pai


2. Meu pai, meu velho, meu camarada > Bijagós, memórias de menino e moço
por Manuel Amante (**)


Após a separação dos meus pais, aí por volta dos meus dez anos, passei a fazer parte do espólio do meu velho. Ele, aos 33 anos, com o fim do casamento, reinventara-se marinheiro errante e pescador, desventurado que estava com o início da guerra que o impedia de circular pelas estradas da Guiné. Já lhe estava na matriz de ilhéu o destino de ser um deambulante incansável e, na altura, a pretexto de uma fuga imaginária, transferiu a sua sanha de aventuras para a descoberta um arquipélago desconhecido, onde poderia livremente saltar de uma ilha para outra. Um lugar onde as lágrimas que foi vertendo, certamente a olhar para lá das ilhas de Caravela e de Unhocomo, se foram diluindo na mistura baça resultante do encontro das águas do Rio Geba e do Atlântico.

O horizonte longínquo que em algumas ocasiões pairava no seu olhar perdido foi-me decifrado numa manhã solarenga, de mar prateado, com vento de través, no canal entre as ilhas de Uno e Orango, quando murmurou, agarrado à cana do leme que aquela canoa, a sua Ave do Paraíso como carinhosamente a apelidava, certamente que aguentaria ir até à ilha de Santiago,  em Cabo Verde. Mal sabíamos os dois que, quase 40 anos depois, milhares de africanos, a fugir da miséria e instabilidade, desafiariam o destino e as intempéries nessas frágeis embarcações para chegarem tanto às ilhas de Canárias como às ilhas creolas.

O desterro voluntário do velho, por longos períodos, tinha sido a encantadora ilha de Sogá,  no arquipélago dos Bijagós. E eu, orgulhosamente só,  em Bissau. Os meus outros dois irmãos mais novos, o Rui e o Djoi, tinham acabado por regressar à protecção e segurança do lar materno. Lá ia aguentando menos mal a casa da madrasta onde nunca me integrei.

Tornei-me também, junto de outros companheiros de mais idade do Bissau Velho, um aventureiro incorrigível de caça, dos banhos e pesca de bentaninhas e bagres nas bolanhas próximas da segunda ponte, lá para os lados de Bulola. Nadávamos em grande algazarra e descontraidamente junto de grandes saltões, de sapos, de lagartixas, de garças, de raras linguanas e de cobras que por vezes se entremeavam, de cabeça erguida, no nosso meio à procura de sossego ou da outra margem, sem contar com os crocodilos que, sempre que alguém gritava lagarto,  saltávamos em debandada para fora da água. Apesar de alguns terem dito que lhes viam, ali na segunda ponte, nunca os vi. Inventávamos os saltos mais arrojados para a água,  em especial o arratchacoco, que repetíamos vezes sem conta em cima dos mais incautos.

[bjg2.bmp]Outras vezes, num grupo mais pequeno embarcávamos na lancha Barreiro ou no pequeno Gouveia 16 e íamos para o ilhéu do Rei com os operários da fábrica de óleo de amendoim. Esta aventura era somente para os mais destemidos e que aguentavam fome. Ali não havia árvores de fruto ou quem se condoesse connosco. Voltávamos cedo e durante dias sentíamos o odor do óleo de mancarra para onde fossemos.

Por vezes, caminhávamos bem mais longe. Até vermos Cumeré do outro lado de um pequeno rio lodoso, o Impernal. Outras vezes ainda caminhávamos alegres, nus ou semi nus, com a roupa enrodilhada na cabeça, cana de pesca no ombro e a indispensável fisga ao pescoço, sempre em bicha de pirilau, através dos diques das bolanhas e canaviais, através de grandes extensões de terra alagada, até sairmos atrás do quartel de Santa Luzia e entrarmos na Granja do Pessubé (***). Aqui, num jogo de esconde-esconde com os guardas, surripiávamos fruta e nos banhávamos, se possível, no tanque que apelidávamos de piscina. Depois, ao anoitecer, era o regresso ao Bissau Velho sem sapatos ou algumas peças de roupa, arrependidos e com promessas repetidas de que nunca mais faríamos a pirraça de faltar às aulas. A entrada no Bissau Velho despertava em todos o receio das cintadas ou da palmatória de cinco buracos. Dividíamos no Zé da Amura para não dar nas vistas.

Pai fora e madrasta ocupada com afazeres profissionais. Vida boa. O que mais poderia almejar naquela idade? A vontade de continuar livre foi tanta que, após um bom final de exame do segundo grau,  disse orgulhoso a uma vizinha da minha Mãe, perante um olhar dela de comiseração e surpresa, que não tencionava mais voltar à escola porque o meu Pai tinha dito que para ser pescador não era preciso mais que a quarta classe. Ainda acabei, por alguns meses, como aprendiz de mecânico, nas oficinas navais.

Mas antes, num certo dia, numa das inúmeras passagens pelo porto do Pidjiguiti, após as aulas, soube que a canoa a motor de cerca de nove metros a flutuar desajeitadamente a uns metros, para além da cabeça de ponte, era do meu velho e que se prestava a sair com a vazante, de regresso aos Bijagós. Não hesitei e arranjei forma de embarcar. Ninguém mais conseguiu de lá me tirar por mais argumentos que me fossem apresentados.

[bjg4.bmp]Época das chuvas, com uma brisa irregular do Sudoeste, horizonte escuro lá para os lados de Tite e de Enxudé a avisar da aproximação de um tornado e mar algo encapelado lá fomos, meia força avante, apontando, num fim de tarde triste, para a embocadura desse largo rio de onde por vezes não se via a outra margem.

Uma hora depois, resguardado, por uma manta fortuita do arrais Nhô André, compadre do meu velho, fascinou-me ver a água fosforescente a deslizar para trás, as luzes de Bissau a desaparecerem e um farol, o Pedro Álvares, muito ao longe pela proa, por vezes, a piscar. O bater compassado do esporão da canoa nhominca a cortar as ondas altas, as inclinações laterais e a chuva miudinha pouco me amedrontaram. Sentia-me o herói de uma aventura da banda desenhada do Príncipe Perfeito e do Simbad.

Mesmo assim, lá para as nove, já com a lua a iluminar o rastro deixado pela canoa, após ter tentado imitar os outros, mijei em equilíbrio precário para sotavento, mastiguei a custo um pão duro e bebi, por um dos orifícios, quase meia lata de leite condensado que me deram. Adormeci depois todo enrolado e a tiritar em cima de uma prancha, logo a seguir à arca de gelo.

Uma avaria inesperada no único motor, ao largo da ilhas das Galinhas, faria com que continuássemos, a custo por causa da enchente, à vela e a remos até ao nascer do sol. Lá pelas nove, já com a força da maré de vazante, desembarcamos, perante a fuga de mais de uma dezena de macacos e debandada ocasional dos habituais caqres, numa praia da lindíssima ilha de Rubane. O meu primeiro desembarque de muitas outras paragens pela maioria das mais de 60 ilhas e ilhotas. 

Achei que aquela paisagem deslumbrante seria a tradução do que deveria ser o paraíso. E nunca me arrependi desse juízo. A viagem continuou ainda para uma outra ilha (Canhabaque) algumas milhas adiante, para recolher o meu Pai, que um dia quase que se tornava um nobre desse pequeno reino dos Bijagós. Muito certamente o primeiro espaço da África negra a sofrer um bombardeamento aéreo na guerra dos Bijagós de Canhabaque contra os poderes coloniais por volta da década de 20 do século passado. Só seriam considerados completamente pacificados após sucessivas campanhas que terminaram em 1936.

[bjg1.bmp]Mas, depois contar-te-ei com mais detalhes e também do meu encontro com um pai assustado até dizer chega, por ver a loucura que eu tinha feito e naquelas condições de tempo. O meu receio de poder levar uma valente sova quando ele me visse e as ilhas que percorremos, numa breve semana, até retornar, a toque de caixa, a bordo do lento e estafado Ametite, à enfadonha turma da quarta classe da Escola Oliveira Salazar, em Bissau. Poucos dos colegas acreditaram que tinha feito tamanha proeza por ser dos mais novos, franzino e não passar de um brancucinho que, apesar de brigador e rápido, jogava desajeitadamente à bola e que até ia para a escola de tchacual. Ainda hoje, julgo que partilho da mesma praga que tombou sobre Cassandra.

Até aos meus 21 anos nunca mais lá deixei de ir sempre que podia. Aprendi com vários arrais, sem cartas e ou outros instrumentos, a não ser a bússola, a navegar no arquipélago, aproveitando as estrelas à noite e o pulsar regular das marés, por entre aquelas ilhas e canais, ao ponto de, aos 13 anos, levar o LP3 de Bissau a Bubaque e regresso, sem supervisão do arrais, sem encalhar e demorar mais tempo. Surpreendia-me sempre o Arrais Avião, cego de um olho, que me instruía assim:
- Segue paralelo à Sogá, passa o canal de Bubaque, até veres a ponta mais afastada de Rubane, aproas à ponta e deixas a popa na extremidade norte de Sogá até estares dentro do canal. Atenção ao descaimento provocado pela enchente e na vazante à malhadeira na ponta de Bubaque à entrada do canal. 

Um autêntico desafio seguir estas instruções na roda do leme. Umas vezes de canoa a remo ou à vela ou outras vezes no barco de pesca e navios de passageiros fui conhecendo o último paraíso desta costa africana que até há pouco tempo ainda detinha resquícios de uma sociedade matriarcal.

[bjgs1.bmp]
O site dar-te-á o alumbramento do que pude ver pela primeira vez. O encanto das ilhas, suas gentes, flora e fauna nunca se perderam dos meus olhos apesar de ter percorrido mais de meio mundo e visitado lugares exóticos. Vê e diz-me se não é mesmo um paraíso o que descobri ainda na infância.

Manuel Amante da Rosa

[ Revisão / adaptação / fixação de texto: L.G.] (****)
___________

Notas de L.G.:

(*) Vd. postes de Manuel Amante publicados no nosso blogue:


28 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5555: A navegação no Rio Geba e as embarcações do meu tempo: Corubal, Formosa, BOR... (Manuel Amante da Rosa)


 12 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5455: Memória dos lugares (60): O Rio Geba e o navio Bubaque, do meu pai (Manuel Amante da Rosa)

27 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1787: Embaixador Manuel Amante (Cabo Verde): Por esse Rio Geba acima...


 (**) Recorde-se que o nosso camarada Manuel Amante nasceu, em 19 de Dezembro de 1952,  na Guiné, de pais caboverdianos, tendo passado pelas fileiras do Exército Português,  em 1973/74. 

Depois da independência de Cabo Verde, exerceu, entre outros cargos e funções, os seguintes (de acordo com um currículo, desactualizado, de que dispomos: conselheiro do Ministro dos Negócios Estrangeiros do Governo de Cabo Verde (2005), embaixador de Cabo Verde no Brasil (1992/2002) e em Angola (1995/99), observador internacional da OUA no processo de democratização da África do Sul (1993/94), diplomata em Moscovo, colocado na embaixada de Cabo Verde (1986/90) bem como na missão permanente de Cabo Verde nas Nações Unidas, em Nova Iorque... Entrou em 1980 para o Ministério dos Negócios Estrangeiros.


O Manuel Amante exerce actualmente o cargo de Secretário Geral Adjunto do Fórum para as Relações Económicas e Comerciais entre a China e os Países de Língua Portuguesa, com sede em Macau. No exercício desse cargo, passa uma larga temporada em Macau, lugar de onde acompanha o nosso blogue com assiduidade, atenção e carinho.

Como ele recorda, "também fui militar (73/74), de recrutamento local, no CIM de Bolama onde fiz a recruta e especialidade antes de ser colocado no QG (Chefia dos Serviços de Intendência) em Bissau. No momento de ser incorporado, tal como muitos da minha geração, estava relativamente familiarizado com as questões de foro castrenses. Não se podia viver na Guiné e ficar alheio ao que se passava e à inutilidade que essa guerra significava em termos de vidas humanas.

"Na minha infância e adolescência fiz muitas viagens pelo interior da Guiné-Bissau durante a luta de libertação. Mas o que mais me encantava (70/73), pelas paisagens e desafios, era subir o Rio Geba, nas férias ou mesmo nos fins de semana, num dos barcos de passageiros do meu Pai (o Bubaque, antiga traineira algarvia, adquirida pela Marinha portuguesa e transformada, nos inícios da guerra, em Lancha Patrulha nº 4, até ser comprada pelo meu Pai e transformada em navio de transporte, mais popularmente conhecido por Djanta Kú Cia)". (...)


(***) Granja de Pessubé, nos arredores de Bissau: estação agronómica onde trabalhou o Engº Amílcar Cabral entre 1952 e 1955.

(****) Último poste desta série > 20 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6874: Meu pai, meu velho, meu camarada (21): Parabéns a vocês! Luís Henriques e Armando Lopes, 90 anos, uma vida! (Luís Graça)