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segunda-feira, 12 de março de 2012

Guiné 63/74 - P9600: Álbum fotográfico de João Martins (ex-Alf Mil Art, BAC1, Bissum, Piche, Bedanda e Guileje, 1967/69) (2): Ainda a viagem, de LDG, em setembro de 1968, de Bissau a Bambadinca, com o meu Pel Art a caminho de Piche


Foto nº 2/199: Aproximação a Bissau, do avião da TAP que trouxe o nosso camarada João Martins, de regresso da metrópole, depois das suas férias em julho de 1968...


Foto nº 58/199: O Rio Geba, visto de Bissau, ao pôr do sol...



Foto nº 62/199: A LDM [, Lancha de Desembarque Média] 311, a navegar no canal do Geba, nas imediações do Ilhéu do Rei, frente ao porto de Bissau. (Distância aproximada: 1,5 km).



Foto nº 66/199: A LDG [Lancha de Desembraque Grande] nº 101, pronto a zarpar, rio Geba cima, carregada de artilheiros e de artilharia, rumo a Bambadinca, aproveitando a maré cheia...


Foto nº 70/199:  Margem direita do Rio Geba, Porto Gole... Ou não ?  Parece-me ser Porto Gole, pelo perfil do casario... A distância aproximada entre as duas margens é de 6,5 km..


Foto nº 71/199: Margem esquerda do Rio Geba, depois da foz do Corubal, quando o rio começava a estreitar, antes do Xime... A temível Ponta Varela, onde era habitual os fuzileiros das LDG fazerem fogo de morteirete, apanhando de surpresa os "viajantes"... Este era um dos pontos referenciados como provável local de ataque do PAIGC às embarcações... Mas, em geral, o IN não se metia com as LDG, tinha-lhes "muito respeitinho"... Atacava de preferência as embarcações civis, indefesas... A distância aproximada entre as duas margens era de 400 metros...


Foto nº 73/199: O inconfundível porto fluvial de Bambadinca e instalações do destacamento da Intendência... Era penosa a viagem pelo Geba Estreito, do Xime até Bambadinca, passando pelo perigoso Mato Cão, devido ao curso "tortuoso" do rio... De LDG, só na maré vazia... Hoje este troço do rio está completamente assoreado... A distância aproximada entre as duas margens era ligeiramente superior a 100 metros...

Fotos: © João José Alves Martins (2012). Todos os direitos reservados. (Fotos editadas por L.G.; legendas do autor das fotos e do editor).


Guiné > Zona leste > Rio Geba (Xaianga) Estreito > Percurso entre o Xime e Bambadinca > Carta de Bambadinca (1955) > Escala 1/50 mil> Detalhe


1. Segunda parte da mensagem, enviada ontem, por João José de Lima Alves Martins, respondendo à seguintes perguntas dos editores, a seguir listadas: (A primeira parte da mensagem será publicada, oportunamente, noutro poste, noutra série):

Gostavamos que o João Martins nos confirmasse:



(i) o trajeto da viagem (Bissau-Xime ou Bissau-Bambadinca, pelo Rio Geba);


(ii) o tipo de embarcação (inclinamo-nos para a LDG, já que uma LDM não aguentava com viaturas, 3 peças 11.4, caixas de granadas, mais os homens de um Pel Art e o resto da tralha, desde garrafões de vinho a colchões...).


A viagem pela picada Xime-Bambadinca, em meados de 1968, não era segura... Acreditamos que a LDG tenha ido mesmo até Bambadinca (aproveitando a maré cheia).  Nessa época, a passagem por Ponta Varela, antes do Xime, sempre temida, mas não tanto pelo Mato Cão, já no Geba Estreito. Eu fiz esse percurso, a caminho de Contuboel, nove meses depois, de Bissau, em LDG, partindo de madrugada com a maré cheia, mas só até ao Xime... O resto do percurso (Xime-Bambadinca-Bafatá-Contuboel) foi por estrada, onde chegámos ao fim da tarde... (LG).


2. Recorde-se que o João José Alves Martins foi Alf Mil Art do BAC 1 (Bissum, Piche, Bedanda e Guileje, 1967/69). Entrou para a Tabanca Grande em 12 de Fevereiro de 2012.

Na sua página, no Facebook, o João Martins  tem um notável álbum fotográfico, com 199 imagens, obtidas a partir de diapositivos, relativas à sua comissão de serviço no TO da Guiné. Parecem estar ordenadas cronologicamente e uma boa parte delas estão legendadas. O que nos permite, por exemplo, seguir o o nosso camarada e o seu Pel Art, ao longo da viagem desde BAC1 [ Bateria de Artilharia de Campanha nº 1], em Bissau, até Piche... Viagem essa que não foi em julho de 1968, como supunhamos inicialmente, mas sim em setembro.

3. Explicações dadas pelo João Martins:


Luís Graça


É com muito prazer que recordo o tempo que passei na Guiné; lá, encontrei a alma e a coragem dos nossos antepassados, e toda uma obra de colonização que, ao contrário do que muitos pensam, nos deve orgulhar. (...)

Quanto às tuas perguntas, a viagem para Piche fez-se em Setembro de 68, depois de ter regressado de férias, pelo rio Geba e até Bambadinca numa LDG.

É claro que para chegarmos a Piche, passámos por Bafatá e por Nova Lamego; no caminho [ entre Nova Lamego e Piche], como afirmas, apanhámos um valente susto porque ficámos "parados sozinhos" com um furo, e fomos ajudados por uns naturais aos quais dei umas moedas, mas que, se tivéssemos tido azar,  seriam de "outra cor"...(faz parte das minhas memórias).

Passei por Farim, mas foi no regresso, e ainda me lembro do Dakota que tremia que nem varas verdes e fazia uma barulheira que só visto...


Quanto ao dia 21 de Abril [, dia do nosso VII Econtro Nacional, em Monte Real], teria muito prazer em estar convosco, mas acontece que estou a fazer grandes obras numa casa que tenho em S. Martinho do Porto e vou lá aos sábados para as acompanhar pelo que terá que ficar para outra oportunidade.


Um grande abraço,


João Martins
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Nota do editor:

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Guiné 63/74 - P7480: Estórias avulsas (46): Desminagem entre S. Domingos e Susana (António Inverno)

1. O nosso Camarada António Inverno (ex-Alf Mil Op Esp/RANGER da 1.ª e 2.ª CARTs do BART 6522 e Pel Caç Nat 60 – S. Domingos -, 1972/74, enviou-nos uma mensagem com mais algumas das fotos do seu álbum de memórias. Camaradas,
Inicio esta mensagem com uma foto minha, com a inseparável AK 47 ao fim do dia, na magnífica e sempre bela Ponta Varela.



A seguir anexo uma sequência de fotos de uma desminagem, efectuada por mim num campo de minas anti-pessoal, que eu havia montado numa zona descampada e que servia de protecção estratégica contra eventuais e infiltrações do IN, por aquela parcela de terreno entre S. Domingos e Susana.
A instalação do dispositivo foi concretizada seguindo os habituais ensinamentos assimilados na instrução prática e teórica do C.I.O.E., partindo de um ponto de referência seguro e obrigatoriamente de fácil identificação no terreno, para melhor permitir em dias futuros, também de modo perfeitamente seguro, o posterior efeito de levantamento.

A selecção de um ponto de referência único e inequívoco, e o desenho de um preciso e claro croqui, foi sempre a minha principal preocupação, pois podia dar-se o facto de não ser eu, quando necessário fazê-lo, a efectuar a sua desinstalação ou levantamento, com queiram chamar-lhe.

A instalação do campo em apreço, decorreu normalmente, mina a mina, calculando e preservando sempre o perigoso risco que representava o cumprimento rigoroso de uma missão destas.

Este sistema havia sido montado aquando da nossa chegada a Susana, em fins de 1972, e teve que ser levantado antes da nossa retirada em Setembro de 1974.

Penso que não era preciso dizer aqui, que se a montagem foi, de algum modo, facilmente implantado no terreno, já não posso dizer o mesmo quanto ao acto de levantamento.

Quem sabe e, ou, viu os efeitos físicos e psíquicos num ser humano do rebentamento de uma mina anti-pessoal sabe do que eu falo.

Assim, lá parti para o terreno ciente que não podia errar, pois o lema que aprendera em Lamego com o monitor de Minas e Armadilhas, dizia que, com os explosivos deste género, só se podiam falhar 3 vezes: a primeira, a única e a última!

Tomadas todas as precauções e apesar da adrenalina e dos suores frios que nos causavam estes “trabalhinhos”, tudo correu bem felizmente.

Na última foto podem ver um buraco com as ossadas de um pequeno animal, que morrera ao fazer detonar umas das minas.

 
Melhor que uma excelente picagem, e tínhamos homens altamente especializados nessa matéria, era ter um detector de minas (metais)


Rapidamente começamos a decobrir (Eu, o Fur Mil Ferreira, o Sold "Castiço" e o Mulata) a primeira das piores e mais traiçoeiras assassinas da guerra
Dá-me aí uma faca se f.f.


Está aqui a "gaja"



Com cuidado... muito cuidado!


Aqui está ela fora da terra, vou retirar-lhe a espoleta e pronto, já não fará mal a ninguém

Esta não preciso levantá-la. Só um buraco e uns ossitos, 
como último sinal de que aqui acontecera uma morte

Um abraço, António Inverno Alf Mil Op Esp/RANGER do BART 6522 e Pel Caç Nat 60  

Emblema de colecção: © Carlos Coutinho (2010).
Direitos reservados.Fotos: © António Inverno (2010). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em: 14 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7432: Estórias avulsas (99): Reabertura da picada Galomaro-Duas Fontes-Saltinho (António Tavares)

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Guiné 63/74 - P7440: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (5): Do Bambadincazinho para Ponta Varela

Guiné > Zona Leste > Mapa do Xime (1955), 1/50000  > Detalhe: O Rio Geba, o Rio Corubal, à esquerda, Poindon, Ponta Varela, Madina Colhido, estrada Xime-Ponta do Inglês, Rio Geba Estreito,  Xime, estrada Xime-Bambadinca, Enxalé (em frente, na margem direita do Rio Geba), Samba Silate, Ponta Coli, Amedalai... Tudo lugares míticos, carregados de emoções para os camarigos que viveram e lutaram no Sector L1 (Bambadinca) ou que desembarcaram, numa LDG, a caminho de outras terras da vasta zona leste da Guiné, via Bambadinca-Xitole ou Bambadinca-Bafatá... (LG)


1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Dezembro de 2010:

A partir deste dia 21 de Novembro passei a andar às ordens do Fodé Dahaba. Procurei deixar tudo anotado e por ordem. Em vão. Na mesma folha onde escrevi o nome de Demba Embaló, o guarda-costas de Jorge Cabral, pus o nome de Aliu Baldé, Binta Seidi, e para baralhar mais as coisas escrevi os nomes dos comandantes do PAIGC em Madina e Belel: Santiago Mendes, Farazinho Pereira e Samper Mendes.
A partir daqui ainda vai ser pior. Felizmente que me posso guiar pela ordem, dia-a-dia, registada pela máquina fotográfica. Mas falei com tanta gente, perguntei por tanta gente, estou certo e seguro que vou cometer graves omissões.
Nem tudo o que queria ver e que pedi ao Fodé foi possível visitar: a estrada da Amedalai para Moricanhe estava praticamente intransitável, e só conheci muito tarde a solução salvadora, Lânsana Sori e a sua milagrosa motocicleta; chegar ao Buruntoni e ao Baio é muito difícil, e tem que ser a partir da Ponta do Inglês; a mesma coisa com a viagem da Ponta do Inglês até à mata de Fiofioli, onde se situa a tabanca de Tubácuta onde viveu o comandante Domingos Ramos.
O importante é que a viagem nunca acaba. E os sonhos do viandante permanecem.

Um abraço do
Mário
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Operação Tangomau (5)

por Beja Santos

Do Bambadincazinho para Ponta Varela

1. A partir de Bambadinca, chega-se num ápice ao Bairro Joli, contíguo de Santa Helena. Por aqui andei no passado longínquo em missões pacíficas e em nomadizações hostis. Durante a guerra, comprava-se aqui gado,  muito útil para os problemas de intendência de Missirá, os dois cabritos que Jobo Baldé ali assou no Natal de 1968, daqui vieram, seguiram pela bolanha de Finete num Unimog 411 e finaram-se na véspera de Natal, para gáudio de quem combatia e vivia naquele ponto do Cuor. Estes caminhos do Bairro Joli eram espiolhados devido à incontestável conivência de alguma população com os inimigos de Madina/Belel. Era o drama das relações de sangue de quem tinha optado pela luta ou ficado à sombra da bandeira portuguesa.

Em Santa Helena, Fá Balanta e Mero viviam comunidades balantas onde se acoitavam, à sorrelfa, civis e militares do mato, que procuravam informações, compravam tabaco ou sal, abasteciam-se de gado, traziam esteiras e produtos das suas hortas. Atravessavam o Geba estreito entre as bolanhas de Finete e Ponta Nova. Aparecíamos ao amanhecer em missões pouco conciliatórias e às vezes com inquirições duras. A verdade é que a comunicação, mesmo com mortes e feridos de permeio, nunca se interrompeu completamente. Ora é acima de Ponta Nova que eu vou habitar. Aqui se devotou Inácio Semedo a construir casa, destilaria e horta. A casa, basta ver a fotografia, é bem semelhante àquelas que se podiam ver em Malandim, Saliquinhé ou São Belchior, até mesmo no Enxalé, ao tempo.

O panorama que se desfruta é, no mínimo, deslumbrante. O Tangomau vai desfrutar das vistas do amanhecer e do entardecer, são momentos mágicos. De manhã, antes das sete horas, Bambadinca aparece submersa pelo sereno, uma neblina que se evola com o primeiro calor da manhã, deixa ver, em toda a sua majestade, as bolanhas, os palmares e os meandros do Geba estreito. À tarde, é o cerimonial do pôr-do-sol, a bola de fogo tisna-se de todos os tons ígneos, até se esconder entre Mato de Cão e Chicri. Nesta casa onde me acolhera, há muito da traça portuguesa adaptada ao calor tropical, as varandas são indispensáveis, os telhados prolongam-se para dar sombra sobre os alpendres.

O Tangomau e comitiva são recebidos pela Dada e Fernando Semedo, Mio. Há duas crianças (Tuinho e Thierry), uma menina de nome Florinda, a empregada, depois vai aparecer um outro empregado, Alberto Djata. Mostram-lhe o quarto, a casa de banho, a sala onde irão ver os canais franceses mais alguns filmes em DVD.

O Tangomau logo regista a casa, teve mesmo a pretensão de captar as duas bolanhas em sequência, saiu imagem amassada, desbotada, paciência. Vamos agora ao que importa, mentaliza-se que se avizinham emoções muito poderosas, vai rever gente que muito estima, vão ser expostos problemas (para ele) insolúveis, ser-lhe-ão feitos pedidos que não poderá atender, é preciso estar de ânimo forte.

A casa no Bairro Joli, perto de Santa Helena,  onde estou a viver. Foi erguida por Inácio Semedo, que pertenceu ao PAIGC e que por isso obrigado a viver em Angola durante 7 anos. Um dos seus filhos, o Eng.º Fernando Semedo, procura pôr de pé o sonho do seu pai, dar vida ao projecto agro-industrial


2. Para se sentir preparado, veio cedo contemplar a bolanha de Ponta Nova, trouxe “As Palavras”, de Jean-Paul Sartre, uma narrativa autobiográfica muito dolorosa e corajosa, não é qualquer um que se acomete a escrever assim:“Uma manhã, em 1917, em La Rochelle, aguardava alguns colegas que deviam acompanhar-me ao liceu; estavam a demorar; sem já saber o que inventar para me distrair, resolvi pensar no Todo-Poderoso. Logo ele se precipitou no azul-celeste e se sumiu sem dar explicação: não existe!, disse eu a mim próprio com um espanto cortês, e julguei o assunto arrumado. De certa maneira estava, visto que nunca mais, desde aí, senti a menor sensação de o ressuscitar. Mas o Outro subsistia, o Invisível, o Espírito Santo, o que garantia o meu mandato e regia a minha vida por grandes forças anónimas e sagradas. Deste, senti bem maior dificuldade em me livrar, pois que se instalara atrás da minha cabeça, nas noções adulteradas que eu usava para me compreender, me situar e me justificar. Escrever foi durante muito tempo pedir à Morte, à Religião, sob uma máscara, que me arrancassem a minha vida ao acaso. Fui da Igreja. Militante, quis salvar-me pelas obras; místico, tentei desvendar o silêncio do ser por um sussurrar contrariado de palavras e, sobretudo, confundi as coisas com os seus nomes: isto é querer”.

Divago sobre esta capacidade de falar sobre a perda da fé quando se começa a ouvir o motor da Renault Express. Fodé apresenta cumprimentos, não há tempo a perder, os eventos sociais estão marcados. Há só uma curta paragem no mercado de Bambadinca, o Tangomau vai abastecer-se de bolacha Maria, banana-maçã e alguma goiaba. Primeiro, e de acordo com a lei Mandinga, receber cumprimentos dos homens grandes, aparecem capitaneados por Aliu Fuma, mais do que octogenário, trazido pela mão de um genro. Há saudações e depois orações, dá-se graças a Deus por este reencontro. A seguir a família, mulheres, gente mais jovem e as crianças. Sucedem-se as reverências mandingas, o Tangomau é saudado com o profundo respeito da amizade que merecem os velhos. Aliás, o Tangomau vai passar repetidamente a ouvir o cumprimento: “Olá, velho! Corpo?”.

É neste grupo que aparece Mamadu Baldé, filho de Queta Baldé, chegara expressamente de Amedalai apresentar cumprimentos. E temos o último cerimonial, o pessoal da casa, mulheres e filhos. É nisto que o Tangomau acorda para um drama, a terceira mulher do Fodé, a quem chamam a Louca, aparece, profere uma frases ininteligíveis e desaparece. É a mãe de Calilo, Iaguba, Braima, isto só para falar dos machos, é impossível fixar o nome daquele rol de fêmeas a que constantemente Fodé grita para pedir coisas ou dar ordens.

Não fosse o Tangomau um obscuro fotógrafo amador e teria conseguido capturar a deslumbrante extensão das bolanhas de Ponta Nova e Finete, com Mato de Cão lá ao fundo. É o que há, pede-se desculpa por não se ter capturado um panorama magnífico do Geba estreito.


3. Súbito, o Tangomau é avassalado por uma emoção, diante dele, de braços abertos e riso bom aparece-lhe Samba Gebo, sempre jovem, distinto, mal se apresentou e já começa a pedir livros, lápis e papel. No seu caderninho, o Tangomau notou: o Samba trouxe-me a juventude de Missirá, é o porta-voz daquela gente abnegada, leal, sempre pronta a seguir-me.

Chegou igualmente Madiu Colubali, tem a vista turva, desfaz-se em ademanes. Fodé grita, a família Fati, os Sanhá e os Dahaba têm uma recepção à nossa espera em Amedalai. O primeiro choque surge quando o Tangomau pede uma curta paragem na ponte de Udunduma, depois de uma ligeira discussão Fodé condescende. Tiram-se fotografias e o Tangomau precipita-se ladeira acima, à procura do local onde esteve instalado o destacamento mais infecto da Guiné.

Encontrou uma tabanca, foi muito bem acolhido, explicou ao que veio e apanhou um instantâneo e uma festa de mulheres, só fixou que se tratava de um corte de cabelo. Pouco depois, chegaram a Amedalai, a tabanca é enorme, talvez tenha mesmo duplicado ou triplicado. Os Fati, os Sanhá e os Dahaba são uma pequena multidão. Fodé discursa, um homem grande responde e o Tangomau, inexplicavelmente, pede a palavra e conta onde e como nasceu a profunda amizade que nutre por Fodé. Fala-se de Finete, de uma colaboração muito leal, e no fim conta-se aquele desastre brutal no amanhecer de 22 de Fevereiro de 1969. Mudara a vida do Fodé e aquele menino alferes descobria que às vezes uma ordem pode dar um sinistro despropositado, como fora o caso daquele.

O almani presente na cerimónia levanta-se e reza uma nova acção de graças. O Tangomau gagueja: “Deus Todo-Poderoso tem compaixão de nós, perdoa os nossos pecados e conduz-nos à vida eterna”. Procura-se a seguir Mamadu Djau, não está, aproximam-se os familiares e até um homem que se apresenta como primeiro-cabo da CCaç 12, dá pelo nome de José Carlos [Suleimane Baldé], exige ficar numa fotografia para que lá em Portugal saibam que está vivo. E parte-se para o Xime, o alcatroado tem resistido bem ao tempo, o Tangomau viu-o nascer, em 1970. Pelo caminho, despontam as tabancas que surgiram depois da guerra, Taliurá e Ponta Coli, são os manjacos que exploram estas ricas de bolanha.

Uma variante da fotografia que já saiu no álbum, publicada há dias: estamos em Amedalai e alguém que se apresenta como José Carlos Suleimane Balbé [ex-1º Cabo, CCA>Ç 12, 1969/74] , pede para ser fotografado. Ei-lo, ladeado por Samba Baldé (Samba Gebo) e Madiu Colubali. O fundo é dado por membros da família de Mamadu Djau.


4. Chegados ao Xime, a primeira curiosidade é de visitar o porto. Este já existe, está reduzido a miseras meia-dúzia de estacas. Até o capim brota do alcatrão, como se protestasse por tão indigno abandono. Numa elevação, ergue-se uma estrutura monumental, ao que parece um silo para a mancarra, trata-se de uma infra-estrutura que nunca teve uso, quando Luís Cabral caiu em desgraça Nino Vieira votou ao desprezo os projectos do seu antecessor. Há ainda uma visita a fazer a membros da família Fati, aparece a viúva de Mankuma Biai, um guia muito capaz que prestou um óptimo serviço ao Tangomau na operação “Rinoceronte Temível”, tendo mesmo sido louvado.

O Xime é uma mistura de instalações ao abandono e da nova tabanca. Fodé adverte que vamos para o último itinerário da viagem, Ponta Varela. Tomou-se à direita a estrada Xime-Ponta do Inglês, seguiu-se por um estradão mal tratado, ao fim de meia hora entrei num território que percorrera sempre à espera de contacto com o inimigo. O que o levara ali era conhecer o local onde, nesse passado remoto da guerra, as forças do PAIGC desfechavam bazucadas sobre as embarcações civis que, arrastadas pela corrente, se aproximavam do tarrafe, à entrada do Geba estreito.

Nas operações que se destinavam ao Poindom ou Ponta do Inglês flanqueava-se as bolanhas e os velhos trilhos, que o PAIGC minara. Eram viagens que se faziam com luz, temia-se uma sarrafusca nocturna, com a desvantagem do inimigo saber retirar e de novo golpear. O importante é que mal chegados à tabanca, e feitos os cumprimentos da praxe, o Tangomau pediu para ir até à margem do Geba.

Um jovem, de nome Mussá, ofereceu-se mas logo avisou que havia passeata para cerca de 3km, o que não incomodou o Tangomau, ele segue excitado por mangais, picadas, hortas e palmares. Irá guardar a imagem dos fios de luz, uma luz coada a ouro, se ir infiltrando pelos cajueiros, tudo dentro de uma grande serenidade, não há mais presença humana, o passeio não cansa, depois surge o Geba, o terreno amoleceu e Mussá mostra o local, aponta para um pilar de cimento, era dali, dentro dos cajueiros fechados que vinha o fogo mortífero.

Captam-se várias imagens, o que era segredo deixou de o ser. E regressa-se em passo estugado. Dos aspectos essenciais, o Tangomau tomou nota: dentro de dias irá conhecer M’Fon Na Bra, comandante do bigrupo que actuava em Ponta Varela; a memória, vacilante, recuou até ao mês de Março de 1969, foi no HM 241 que o Tangomau conheceu aqueles membros da família Fati que vivem agora no Xime; na nova tabanca de Udunduma gostou muito de ser questionado pelos jovens que pretendiam mais informação sobre o quartel. Ainda havia umas folhas soltas com observações registadas,  perderam-se. E assim findou o primeiro dia organizado pelo Fodé, Calilo vai depositá-lo no Bairro Joli.

Demba Embaló, guarda-costas de Jorge Cabral, do Pel Caç Nat 63. Atenda-se à naturalidade da pose, quando se vêem estas fotografias acorre ao espírito as pessoas naturalmente aristocráticas. O Demba coligiu a folha que já aqui foi publicada com os nomes dos soldados do Pel Caç Nat 63. O Demba vende cola e tabaco no mercado de Bambadinca. Garanti-lhe que uma das razões que me trouxera à Guiné era preparar a compra da casa do Jorge Cabral. O Demba tomou-me a sério: “Fica tão contente, tão contente!”

5. Deixou-se para o fim um pormenor essencial: Fodé vive no Bambadincazinho, não há que enganar. Mal se apercebeu dessa realidade, o Tangomau foi visitar a Missão do Sono, a escassas dezenas de metros. Aí voltará na manhã seguinte, na companhia de Mamadu Djau. Mas não se quer adiantar mais pormenores, amanhã será um dia dedicado a Bambadinca, haverá baba e ranho de todo o tamanho, desde o quartel ao porto, também ele desaparecido. Será aí que o Tangomau, especado, olhará para a bolanha de Finete, exactamente no local onde a canoa de Mufali Iafai o conduzia, perto do fim do dia. Mufali também desapareceu.

Ao longo deste dia perguntou-se por muita gente, foram explosões, umas atrás das outras. Serifo Candé, que o Tangomau tanto ansiava abraçar em Biana, perto de Fá, morreu. Na semana anterior morrera Mamadu Silá, o 108, um gigante de corpo com um fiozinho de voz. O Tangomau chega cabisbaixo, com aquela sensação paradoxal que satisfez a curiosidade de visitar lugares anteriormente interditos mas ter perdido camaradas inesquecíveis. Depois cumprimenta a família Semedo, já anoiteceu, conta o que viu e quem visitou, adormeceu cedo, desta vez não teme só os encontros com as pessoas, teme os lugares que vai rever e que tanto estimou, um afecto que guardará até ao fim dos tempos.

Outra variante da fotografia já publicada sobre Ponta Varela, exactamente no local onde as forças do PAIGC atacavam as embarcações civis. É pena não se ficar com a ideia de como, também neste local, nascera o Geba estreito, o leito do rio afunila, à esquerda, não muito longe daqui, passa o rio Corubal [. Vd. detalhe da carta do Xime, 1955, acima].

Fotos: © Mário Beja Santos (2010). Direitos reservados.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 10 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7417: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (4): 20 de Novembro, de Bambadinca para o Bairro Joli

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5825: Pré-publicação de Mulher Grande, de Mário Beja Santos (5): São Domingos, 21 de Julho de 1961: É o princípio do fim, Benedita

Guiné > Bolama >  Agosto de 1935 > "Guarda do Palácio do Governador. Foto de Manuel Emídio da Silva, no âmbito do 1º Cruzeiro de Férias às Colónias de Cabo Verde, Guiné, S. Tomé e Princípe e Angola, uma inciativa da revista O Mundo Português,  que juntou cerca de duas centenas de "estudantes, professores, médicos, engenheiros, advogados, artistas, escritores, industriais e comeriantes"... O Director Cultural do Cruzeiro foi o Dr. Marcelo Caetano.  Esta "revista de cultura e propaganda, arte e literatura coloniais", era dirigida pro Augusto Cunha, sendo propriedade da Agência Geral das Colónias e do Secretariado da Propaganda Nacional.




Guiné > Bolama > Agosto de 1935 > A chegada do vapor Moçambique, com os participantes do 1º Cruzeiro dee Férias às Colónias.


Fonte: O Mundo Português, Vol II, nºs 21-22, Setembro-Outubro de 1935 (Exemplar oferecido ao nosso blogue por Mário Beja Santos; fotos digitalizadas e editadas por L.G.; reproduzidas com a devida vénia).



1. Pré-publicação de excertos do próximo livro do nosso amigo e camarada Mário Beja Santos, Mulher Grande. Trata-se da terceira parte do Capº III(*):



Mulher Grande > III > A Guiné em chamas ou o “Tubabo Tiló”
por Mário Beja Santos




[III. 5]  Décimo terceiro solilóquio

Sinto-me um pouco mal com tantas interrupções que introduzo na narrativa da Benedita (**). Caí na asneira de lhe dizer que os poucos relatos que encontrei na Net são discordantes quanto ao número de feridos, até mesmo quanto à natureza dos estragos daquele ataque. Ficou furiosa, como se todos os outros pudessem duvidar da tragédia daquela noite e das suas implicações. Devem ter sido noites horríveis. É nestas descrições que eu mais aprecio o seu fio de memória, como narra os acontecimentos que a mais afectaram, a descrição que faz sobre a luz apagada à noite, o desaparecimento das pessoas, a chegada de uma tropa que vinha pouco convencida da possibilidade de um ataque.

O Albano procurava sacudir a pressão bebendo uísque, fumando e trabalhando naquelas questões da habitação que tanto o interessava. A Benedita também não esqueceu que acabou por ser influenciada pelos interesses do Albano e deu consigo a ler um calhamaço intitulado “A habitação indígena na Guiné Portuguesa” que lhe fora oferecido por um colega do Albano, Amadeu Nogueira. É preciso estar à beira de uma guerra, disse-me ela em tom trocista, para ler atentamente coisas como a casa dos Felupes e Baiotes, considerados em S. Domingos como os melhores construtores de casas em taipa, trabalhando para outras etnias como verdadeiros construtores.

A Benedita mostra-me uns papéis desbotados onde ela transcreveu o que lhe pareceu mais relevante. Leio o seguinte: as casas rectangulares são mais frequentes; a cobertura de todas as casas é feita sempre com palha; todas as casas possuem a sua varanda, cuja largura varia entre 1,50 e 2 metros, mas só na traseira; serve de sala de jantar para a mulher, de cozinha e de depósito de lenha; é aqui que se encontram os cachos de chabéu, cujo óleo há-de condimentar o arroz; a casa de Felupes e Baiotes dura uma vida e é demolida quando o seu proprietário morre; algumas casas apresentam exteriormente pinturas murais, geralmente zoomórficas e a tinta preta.

Estas palhotas têm portas fabricadas de uma só peça, geralmente em madeira de poilão, com 60 cm de largura, sendo sinal de grande desconsideração arrancá-las, indicando que os restantes elementos da povoação pretendem expulsar o proprietário; as janelas, quando as há, são pequenos rectângulos de cerca de 40 cm de cumprimento por 20 cm de largura, defendidos por pau de grossura de uma polegada; a iluminação é dada pela lenha que acendem no chão; o mobiliário reduz-se a uma cama que existe em cada quarto dos adultos, é nestes quartos que se podem encontrar bancos conhecidos por tripeças; as prateleiras são orifícios cavados, de cerca de 60 cm de cumprimento.

É espantoso como o ser humano descarrega a sua tensão transcrevendo num papel as suas impressões sobre as casas dos Felupes e dos Banhuns que ele vê todos os dias!

Interrompo a leitura destas folhas descoloridas para perguntar à Benedita se antes deste tiroteio de madrugada não houvera quaisquer outros sinais de agressão. Ela respondeu-me que sim, tinha havido uma tentativa de incendiar pontões entre S. Domingos e Bissau (havia 18). Tinha-se descoberto uma tentativa de incêndio de 2 pontões só que a chuva apagou o fogo.

Quando olhei, surpreso, a Benedita ela disse-me com a maior das naturalidades: “Não se esqueça que estávamos em Julho, naquela região Norte chove intensamente nesse tempo. Aproveitou para me recordar que havia uma grande lealdade das populações de S. Domingos com o Albano, ele era querido por todos, os seus próprios colaboradores da administração encarregavam-se de divulgar como ele era incorrupto, incapaz de uma maldade ou brutalidade.

Depois da sua vinda de Ziguinchor, onde assistiu à manifestação contra a política colonial portuguesa, o Albano reuniu-se com as famílias dos chamados civilizados, a todos contou que estava iminente um ataque. Reuniu também com a secção da tropa branca que fora mandada apresentar-se em S. Domingos depois do incêndio dos 2 pontões. A Benedita não recorda o nome de ninguém, lembra-se que havia um Alferes, que a tropa dizia muitos palavrões, era muito ruidosa, levantou muitos problemas no contacto com a população civil. Não resisto, peço-lhe todos os pormenores daquela noite do ataque, a noite que anunciou o princípio das hostilidades na Guiné.


Mais recordações da Benedita (décimo terceiro trabalho de casa)

Há 3 meses atrás, o assunto da Guiné era para mim um dossiê completamente arrumado, não me passaria pela cabeça partilhar com quem quer que fosse recordações tão queridas, íntimas e intensas, como o dia do meu casamento, o prazer que tive em viver em Bissorã, a admiração progressiva que fui ganhando ao Albano, ele foi um funcionário colonial exemplar, também considerava que era tabu o que eu vi em brutalidade no tratamento dos nativos.

Aprendi muito quando voltei a Lisboa, em 1963, apercebi-me que as pessoas só me ouviam porque tudo era exótico, mas era-lhes indiferente o modo como os guineenses viviam, a sua cultura, os seus costumes. Nunca me atrevi a contar a ninguém os comentários dos soldados brancos em S. Domingos, referindo-se àquelas gentes como se fossem uns atrasados.

Admiradora que sou da obra de Salazar, naquele tempo comecei a perceber que a revolta que veio depois tinha a ver com a necessidade de justiça e mais bem-estar. Tive o privilégio de conviver com Amílcar Cabral, era um homem de cultura superior, conhecia a literatura portuguesa como eu não conhecia, houve um serão em que falou de José Régio e de Miguel Torga, fiquei impressionada com os seus conhecimentos, a sua estatura moral.

Continuo indecisa acerca da utilidade deste relato. Eu fechei o dossiê da Guiné, é-me indiferente que tenha sido a FLING ou o PAIGC a atacar S. Domingos. Nunca tinha sentido qualquer tensão, qualquer comentário hostil à nossa presença na Guiné. É claro que vi muitos maus-tratos, havia claramente racismo, julguei que fosse tudo uma questão de tempo, a nova geração de brancos viria com outros sentimentos e certamente com muito mais amor cristão. O Albano e tantos outros funcionários exaltavam o trabalho do comandante Sarmento Rodrigues que eles consideravam o grande Governador da Guiné do século XX. Só vim a conhecer o Sarmento Rodrigues quando o Albano teve o primeiro ataque de coração e ele nos veio imprevistamente visitar. Fiquei com a noção de que se tratava de um homem superior, uma alma de eleição e que merecia os elogios do Albano.

Perdi todas as minhas memórias daquele tempo, os cadernos, os livros, as fotografias, tudo desapareceu. É a minha memória que esvoaça numa tremenda escuridão. Aquela noite do ataque alterou tudo, sobretudo o Albano tornou-se noutra pessoa, irei ouvi-lo vezes sem conta: “É o princípio do fim, Benedita, não tenho coragem de mudar de profissão, já me ofereceram lugares em Angola e S. Tomé, cheguei aqui imberbe, aprendi línguas, todos os rudimentos da administração colonial desde a tarimba, conheci homens muito estudiosos da mesma maneira que convivi com exploradores miseráveis, alguma da gente mais sórdida que há ao cimo da Terra. Não sei o que é que vou fazer deste amor que tenho pela Guiné. Talvez o melhor seja refazer a nossa vida na Europa”.

A doença acelerou esta previsão amarga. Em 1963, regressámos de armas e bagagens, o Albano doentíssimo, eu sem saber se não era necessário trabalhar, sabíamos que a pensão dele iria ser baixíssima. De 1961 a 1963, vi todos os dias o Albano, amargurado, a despedir-se da Guiné, a obra da sua vida.

E começa o ataque!
Não sei se já lhe disse, eu recusei partir com os civilizados, pedi mesmo ao Albano que a tropa branca recém-chegada ficasse a viver na administração, ficaram aquartelados em instalações improvisadas e combinou-se que, no caso de um ataque ao edifício da administração, nós iríamos pedir a protecção a esta tropa. Tínhamos 2 pistolas e havia na administração umas armas do tempo da 1ª Guerra, umas armas de repetição que já ninguém utilizava. Penso que foi na tarde de 20 de Julho que chegaram 2 funcionários para fazer o recenseamento, mas que logo ficaram contagiados pela grande tensão que havia entre nós. Mal sabiam eles o que os esperava!

Recordo que cerca de um mês antes do ataque tinha lá estado um dos administradores da Casa Gouveia, um tal engenheiro Norberto Velez, que olhou para as nossas coisas, os nossos haveres na casa e fez o seguinte reparo: “ Vocês não podem ter todos estes objectos à mostra, pode ser mais uma razão para eles vos assaltarem e esquartejarem!”. O Albano replicou que não queria mostrar medo, não aceitava mexer em nada. Mas, tempos depois da partida deste engenheiro Velez, ele reconsiderou e enviou encaixotados muitos dos nossos objectos pessoais para Bissau. Então, senti uma grande angústia. Fiquei despojada de muitos dos meus objectos, que me faziam tanta companhia, sentia-me praticamente uma reclusa.

Bom, vou voltar ao princípio do ataque, escusa de voltar a perguntar quem era o grupo, quem estava por detrás deles, eu não sabia, ninguém me deu informações, em Bissau, como verá mais adiante, ninguém me falou nessa FLING, falavam sempre em terroristas.

O Albano tinha combinado connosco como se iria organizar a defesa, cada um de nós tinha sempre a roupa à mão, a arma ao pé. O Albano não aceitava as instruções dos militares, isto é, de irmos a correr até ao aquartelamento deles, logo que começasse o tiroteio. Dizia-me frequentemente: “Estão doidos, fazem contas de cabeça, julgam que isto é aritmética, imaginam um pequeno grupo de selvagens, mal equipados e armados a dar uns tirinhos, quem sabe se não aparece aí um grupo bem armado que nos vai dizimar ou esquartejar. Não, Benedita, nós iremos a correr para o mato, conheço tudo como as minhas próprias mãos, ali não nos apanham”.

Eu ouvia isto tudo e estremecia, a pensar nas cobras e andar aos tropeções dentro da mata, a imaginar uma perseguição e ser morta à catanada. Mas eu confiava absolutamente no Albano e não me atrevia a pôr objecções. Então, pelas 2 da manhã, mais ou menos ouvi o primeiro tiro, partiu da mata em direcção à nossa casa, o Albano deu o grito: “Eles aqui estão!”, eu sei que isto não tem pés nem cabeça mas senti uma sensação de alívio, fomos todos até à varanda, de pistola em punho, quando digo nós incluo todo o pessoal da administração.

Continuo sem saber os termos militares, só posso contar aquilo que vivi, com os meus conhecimentos. Eles atiravam da mata para casa, senti as balas perfurar as paredes, a partir as telhas, a desfazer os vidros. Eu olhava na varanda a saída do fogo, o Albano ordenou que devíamos ir para a casa da alfândega, ali, como só havia uma varanda à frente, era mais fácil responder ao fogo deles. Um dos funcionários da administração gritou que estava ferido, caiu no chão. Juro-lhe que eu estava muito calma, o homem parecia desmaiado, tirámos-lhe as calças, estava bastante ferido numa das virilhas, fora um puro acidente, a pistola dispara-se quando ele escorregara. Alguém lhe deu uma injecção de morfina, lá o arrastámos para a casa da alfândega. Como não havia fogo sobre a casa da alfândega, procurámos ir até ao aquartelamento e aí disseram-nos que já havia 5 feridos. É nisto que damos conta que as luzes ali estavam todas acesas, foram então apagadas e começámos a transportar os feridos para este edifício onde o enfermeiro tinha mais meios.

Não sei quanto tempo depois voltou o silêncio total, tinham acabado os tiros. O Albano sentou-se a uma secretária e escreveu um relatório e disse-me: “Benedita, não sei se estou a proceder bem, peço-lhe que leve esta carta a Bissau, ao amanhecer tenho que dirigir a evacuação das mulheres e das crianças, vai com uma escolta militar, fico à espera que mandem mais reforços, ninguém pode adivinhar quando será o próximo ataque”.

Sentia-me embrutecida e distante, eu tinha uma outra ferida, muitíssimo profunda, não sei com que coragem lhe vou agora contar o que me atormentava. Durante aquele tempo que precedeu ao ataque, todas as noites ouvíamos a rádio Dakar, era ali que se referia sem nenhuma discrição que em breve as povoações com colonialistas, junto à fronteira com o Senegal, iam ser atacadas.

Uma noite ouvi mesmo dizer que onde o Albano estivesse (nunca referiram S. Domingos, só falaram no nome dele) eles fariam o menor número possível de mortos porque ele tinha sido sempre humano para os africanos. Uma noite fiquei gelada quando eles disseram num francês impecável: “Lembra-te Albano Toscano que já tiveste filhos africanos!”. Não foi uma sensação de traição que eu senti, o Albano tinha-me dito que não havia outra mulher na sua vida, o que eu verdadeiramente senti é que devia ter partilhado aquela informação, não era agora que ia perguntar ao meu marido se ele tinha filhos de outras mulheres, se estavam vivos ou mortos, aquela omissão recebi-a como uma bofetada, não era agora que eu ia perguntar ao meu marido se era verdade ou se era mentira, ele estava ao meu lado a ouvir a rádio Dakar, fez que não ouviu, senti-me maltratada, eu merecia uma explicação.

Sentia-me aturdida, aceitei partir para Bissau, vi à minha volta toda a gente a trabalhar, o Albano a içar a bandeira portuguesa e depois a liderar os preparativos para que todas as mulheres e crianças fossem retiradas de S. Domingos, nem todas aceitaram partir, mas muita gente foi de barco para Cacheu. Da janela do edifício da administração assisti àquela debandada., todos partiam com os olhos postos no chão.

Ao amanhecer, uma avioneta veio-me buscar, parti cheia de sofrimento, deixando ali o Albano, não tenho a menor recordação daquela viagem, só sei que quando cheguei a Bissalanca desmaiei. Lá me recuperei e segui para o Palácio do Governador. Acompanhada pelo comandante militar, fui prontamente recebida pelo Governador (****), leram os dois o relatório do Albano, disse-lhes que ele pedia sacos para fazer barreiras de protecção, tinha extrema necessidade de enfermeiros e, se possível, pedia mais reforços. É nisto que o governador me pergunta: “Onde é que a senhora quer que eu vá arranjar estes sacos?”. Respondi-lhe: “Não tem dificuldade, basta chamar o Turco, aquele comerciante que trabalha com o Pintosinho, ele vai falar com os arrozeiros, é um instante enquanto se arranjam os sacos, depois em S. Domingos é só enchê-los”.

Nesse mesmo dia, as autoridades enviaram para S. Domingos um pelotão para reforço daquele contingente que ficara tão combalido com o ataque da madrugada. Não me recordo bem, já disse várias vezes que todos estes papéis se perderam nas malas que vieram de S. Domingos para Bissau e que desapareceram sem deixar rasto, mas o Albano enviara no seu relatório a informação de que os atacantes só tinham utilizado armas de repetição entre as 2 e as 6.30 da manhã, hora em que tudo acabou.

Ah, espere, temos que voltar aos sacos. Depois de uma grande correria, lá se encontraram sacos, cerca de 600, e o Governador perguntou aos comerciantes como é que eles iam fazer chegar os sacos a S. Domingos. Eu estava com a cabeça tonta, meio adormecida, sedada por um tranquilizante que me tinham dado, olhava para aquilo tudo e perguntava-me qual a capacidade de resposta daqueles políticos perante uma emergência, se não eram capazes de encontrar uma solução apropriada para enviar 600 sacos vazios para S. Domingos.

Fiquei em casa da Ivone Leal, mulher de um advogado, lembro-me que dormi muito mal, foi um sono sobressaltado, sempre a pensar num próximo ataque, e eu longe do Albano., numa atmosfera de segurança. Na manhã seguinte, alugou-se uma avioneta que foi a S. Domingos levar mantimentos e os sacos, o Turco esteve a conversar uma hora com o Albano, as notícias que trouxe eram tranquilizadoras, tinha-lhe chegado informação que as dezenas de atacantes regressaram à região de Kolda.

Nessa noite voltei ao palácio do Governador onde me foi anunciado que este decidira que eu durante um mês não voltaria a S. Domingos, a justificação era que tinha a casa cheia de tropa. Só espero até morrer não voltar a viver um tempo de tanta ansiedade como aquele, a Ivone Leal e marido, os Nobre Lemos e outros casais tudo fizeram para eu me sentir bem, deram-me amparo e carinho, serenaram-me como puderam. Felizmente que o Governador dera ordens para que sempre que uma avioneta fosse a S. Domingos me levasse e trouxesse. Não imagina as peripécias que eu vivi! Oiça algumas.

Houve um piloto aviador que me deu uma palmada nas costas, em pleno aeroporto e à vista de toda a gente, eram um miúdo simpático, tratava-me por mana e bonitona, eu não sabia se me havia de rir ou zangar. Uma vez um outro piloto largou-me no Ingoré, disse-me que tinha de ir levar correio a Camamudo, vim numa carripana velha até S. Domingos, apareceu-me na estrada o Albano, afogueado, com uma escolta militar, o louco do piloto enviara uma mensagem a dizer que vira grupos estranhos à saída de Ingoré, talvez fossem salteadores, o melhor era protegerem-me. Na segunda visita ao Albano apercebi-me de grandes mudanças, as famílias brancas e até as de comerciantes mestiços consideravam o ataque a S. Domingos como o princípio da insurreição, anunciavam que iam partir, não queriam ser mortos à catanada.

Desculpe-me, começo agora a ter consciência que este relato é confuso, estou a misturar coisas, até escrevi aqui no meu caderno: “Dizer ao Mário que ao lado do nosso quarto, em S. Domingos, estavam 10 soldados e o rádio das transmissões. Quando voltei, estive quase um mês sem dormir a ouvir aquele besoiro, era uma gritaria em que o soldado no quarto ao lado usava uma linguagem codificada que me dava vontade de rir”.

Também escrevi no meu caderno: “Na mesma noite que os guerrilheiros atacaram S. Domingos igualmente flagelaram Suzana e o Albano mandou chamar o chefe de posto para S. Domingos, ele ficou aqui mas a mulher foi para Cacheu. Varela foi atacada mais duramente cerca de um mês depois, a bonita estância turística ficou completamente desmantelada, as casas turísticas desapareceram”. Agora peço-lhe que paremos, não pode imaginar a comoção que tive quando voltei a Varela e vi desaparecidos objectos pessoais que tinham para mim elevadíssimo valor estimativo. Quando vemos a nossa casa em derrocada, sentimos uma devassa incontrolável ao nosso património, ao mais nosso íntimo do nosso ser.


Décimo quarto solilóquio


Há qualquer coisa de patético neste funcionário colonial cujos avisos são ignorados em Bissau, impotente e talvez resignado com a incapacidade de resposta dos políticos, indiferentes à insurreição iminente. No último almoço, a Benedita contou-me que o Albano tivera a informação de que Varela iria ser destruída, nessa altura ela já tinha regressado a S. Domingos. Com o zelo de sempre, ele apelara para que houvesse movimentação de tropas para Varela, não houve, aquela linda praia que dispunha de um casario moderno ficou irreconhecível depois da depredação dos assaltantes.

Continuo a entusiasmar-me com os relatos da Benedita. As suas viagens da avioneta de Bissau a S. Domingos tiveram momentos delirantes, aquela história de um piloto que queria que ela visse os crocodilos e que baixou o aparelho até quase à linha de água, foi um dos maiores sustos da sua vida; e também aquela história em que viajou com um leitão destinado a S. Domingos, entretanto foi necessário ir a Cacheu de emergência e o funcionário local mal a viu desatou a chorar, agradeceu-lhe a amabilidade de ter trazido um leitão, ela nem teve coragem de lhe contar a verdade...

Nesse almoço com a Benedita também ficou claro que no círculo íntimo do Governador havia também quem, perversamente, insinuasse que o Albano estava feito com os africanos, seria um pro-independentista. Tomei igualmente nota das peripécias vividas em S. Domingos, com a tropa à volta. Por exemplo, estava a Benedita a dar aulas, rebentou um tiroteio, ela atirou-se para debaixo da secretária, afinal era um exercício na carreira de tiro, ninguém a avisara de nada.

Três semanas depois de estar em Bissau, o Governador autorizou que ela voltasse para o pé do Albano. Quando ela ali chegou já S. Domingos vivia um simulacro de estado de sítio, a tropa a circular permanentemente de Bula para cá e de cá para Bula, as ruas rasgadas por trincheiras, o Albano furioso sabendo que aquelas valas iam ficar cheias de água e inúteis, mal surgisse a época das chuvas. Acho que chegou o momento de registar esta coabitação com a tropa, as questiúnculas entre a tropa brancas e os Felupes, o fim das idas a Ziguinchor, quando o Senegal cortou relações com Portugal.




"Jangada no Rio Geba. Passagem entre Bafatá e Contuboel"... Imagem reproduzida  em O Missionário Católico, Boletim mensal dos Colégios das Missões Religiosas Ultramarinas dos Padres Seculares Portugueses, Ano VIII, nº 81, Abril de 1931, p.  169 (Exemplar oferecido ao nosso blogue por Mário Beja Santos). 

Imagem digitalizada e editada por L.G.


Em S. Domingos, à espera de uma guerra que não veio


Tudo mudou quando cheguei a S. Domingos, sabia perfeitamente que o meu idílio com a região acabara. Cercada pela tropa, a viver com a tropa em casa, a ouvir permanentemente os palavrões, com Varela destruída, com as medidas de segurança que nos obrigavam a circular com todas as cautelas, sem poder ir a Ziguinchor, refugiei-me na escola, nos livros, nos arranjos da casa, às vezes com a cabeça à razão de juros com aquele infortúnio, para mim incompreensível. Desforrei-me na cozinha, o Omaia foi dispensado de muitas actividades (é nesta altura, creio eu, que se descobriu que ele tinha lepra, antes de regressar a Portugal ainda o fui visitar à leprosaria, em Cumura), aprendi a fazer compota de caju e, pasme-se, atirei-me à jardinagem.

Eu nunca experimentara viver rodeada de arame farpado, agora estava a acontecer, tinha a tropa em casa, aquela convivência de caserna, os palavrões e o sargento a pedir-me desculpa pelos palavrões dizendo também mais palavrões...Embora isto pareça desusado, digo com toda a convicção que foi a fé que me valeu, eu escorregava naquela falta de valores, via o Albano triste e sobretudo muito doente, estava a sofrer muito de cálculo renal, houve momentos em que desesperei e, Deus me perdoe, cheguei a desejar um novo ataque para sairmos dali.

Pois bem, em Julho de 1962, depois de pedidos insistentes com relatórios médicos a comprovar o débil estado de saúde do Albano, ele recebeu autorização para irmos a Bissau. É precisamente na viagem de S. Domingos para Bissau que ele teve um aperto, saiu aos tombos do carro, ouviu-o dar um grito medonho dentro da mata, fui a correr em seu auxílio, ele disse-me com uma expressão aliviada, quando me aproximei ofegante: “Ai, Benedita, estou muito melhor, o cálculo renal já saiu!”.

Olhando para trás, posso dizer que vivi um tempo muito acinzentado. Depois de termos saído de S. Domingos, constou-nos que mataram um capitão num ataque àquela estrada e que continuaram de vez em quando a tentar destruir os pontões (havia na região de S. Domingos/Ingoré 18 pontões até Bissau como já lhe disse).

Agora apetece-me sorrir e até ser brincalhona no comentário que vou fazer: assentei praça em S. Domingos com a idade major e nem a cabo fui promovida, a recruta era de 3 meses, a minha excedeu um ano e meio.

Quando me vim embora, os soldados da companhia de S. Domingos colectaram-se para me dar um boné camuflado como presente. Até essa lembrança desapareceu naquelas malditas malas que se extraviaram, foi assim que perdi doces recordações.

O Albano fez tratamentos em Bissau, pela primeira vez senti que ele era um homem com o coração irremediavelmente destroçado e com a saúde arrasada e com cada vez menos sonhos. Quando comparo as fotografias que ele me enviou em solteiro, as que tirámos em Bissorã, em Teixeira Pinto ou no Gabu, com aquelas que guardámos dos últimos meses, em Bissau, que diferença! Ainda voltámos a S. Domingos, o Albano foi fazer a entrega oficial da administração ao seu substituto.

A despedida deixou-me debulhada em lágrimas. O aeroporto de S. Domingos, como em tantas outras pequenas localidades, limitava-se a uma pequena faixa de centenas de metros de terreno saibroso para o aterrar e o levantar voo das avionetas. Tínhamos uma multidão à volta da pista, os nossos criados com a tristeza estampada na cara, não sabiam quando voltariam a ver os seus patrões, vários régulos Felupes, Brames, Manjacos, trouxeram as suas numerosas famílias, o Albano e eu tínhamos um cortejo de afilhados com flores e outros presentes, não houve comerciante que não tivesse comparecido para nos ver partir. Guardo na retina aquela avioneta que deslizava aos roncos e os jovens a correr, com grande sorriso, e a saudar-nos entusiasticamente. Não aguentei, chorei muito.

Quero voltar à minha mágoa das malas desaparecidas. Tínhamos malas de porão, ali guardei a nossa roupa e os nossos haveres mais importantes. E foi graças a esta estúpida classificação que metemos em malas ligeiras as fotografias, os documentos, os livros e os mapas. Pedi ao condutor para entregar tudo (eram aí umas 5 ou 6 malas) em casa da Ivone Leal, dois dias depois de chegarmos a Bissau apurámos que as malas não apareciam, procurámos o condutor, ele garantiu a pés juntos que deixara tudo à entrada, ninguém assaltava as casas, naquele tempo. A verdade é que as malas nunca mais voltaram a aparecer, deve ter sido alguém que supôs que andavam por ali pratas e jóias, eu perdi coisas muito importantes para a minha memória, desapareceu a preciosa escultura dos Nalus, os panos Manjacos, os arcos de caça dos Felupes, lindos panos da Gâmbia, desenhos e aguarelas oferecidos por artistas locais.

Olhe à minha volta, está aqui tudo que testemunha o mundo em que nasci, bisavós, avós, pais e o Toninho, veja-me aqui no dia do casamento, ali com o Albano em cima de um hipopótamo morto, em plena ria de Cacheu (sempre lhe chamei ria, o Teixeira da Mota dizia mesmo que a Guiné só tinha um rio, o Geba). Tenho aqui os álbuns organizados, naquelas caixas de sapatos estão as fotografias que entraram nos livros do Albano ou ilustraram os seus artigos, guardo memórias de quase tudo, pode imaginar a falta que me faz o extravio daquelas malas. Felizmente, que muitos dos livros voltaram a ser comprados ou oferecidos, já lhe disse que nos primeiros tempos não me sentia atraída por todas aquelas histórias e por aquela diversidade cultural. Tudo mudou quando fui para o Gabu, agarrei-me aos livros, procurei compreender.

Num dos nossos próximos encontros até lhe queria falar dos artigos que o Albano escreveu no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, os objectos que ele ofereceu ao museu, este funcionava no edifício do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa onde o Mário esteve tantas vezes, como observei na leitura dos seus livros, estudiosos como o Armando Cortesão, o Teixeira da Mota, o Rogado Quintino pediram ao Albano para comprar artesanato, ele comprava e não foram poucas as vezes que comprou com dinheiro do seu bolso objectos que iam para o Museu. Eu sei que sou muito má «aluna», registo caoticamente as minhas lembranças, ando permanentemente para trás e para a frente, mas tomei ainda nota de duas coisas que ainda lhe queria falar, depois paramos, estou muito cansada.

Tenho aqui escrito: jantar no palácio, em minha honra. Houve um ror de brindes, toda a gente queria discursar, o reitor do liceu comparou-me com a D. Filipa de Vilhena, desta vez ia desmaiando de riso; o Albano era tido por “trouxa” porque não fazia negociatas, punha na rua todos aqueles que lhe vinham propor negócios escuros ou procurar envolvê-lo em corrupção.

Deixe-me contar mais uma história. Nos últimos tempos de S. Domingos, foi lá almoçar um funcionário de Bissau que passava criminosamente cartas de condução. Alguns dos soldados vieram pedir-me para meter uma cunha a este senhor para lhes emitir carta, eles explicaram-me que não tinham dinheiro. Em pouco mais de duas horas ele passou para cima de 30 cartas de condução. No final, voltou-se para mim e perguntou-me se eu também não queria uma carta. É nisto que chega o Albano, tinha ido à povoação de Barro, por cauda das obras da estrada. Vendo-me aflita, perguntou-me o que se estava a passar e eu respondi que me estava a ser oferecida uma carta de condução. Olhou furioso aquele funcionário de Bissau e disse-lhe sem papas na língua: “Já chega de asneiras! Espero que durma mal a pensar nos desastres que vai provocar com a sua irresponsabilidade».

Verá mais adiante que o Albano me trouxe dissabores e grandes desgostos. Eu prefiro exaltar o funcionário incorruptível que tratou sempre correctamente os nativos e cuidou dos interesses da Guiné, nunca pactuando com qualquer tipo de crime. Só casei duas vezes, foram amores distintos, talvez a idade pese no juízo que fazemos dos homens que amamos, mas eu tive muito orgulho neste marido que desde que me conheceu me disse a verdade sobre a Guiné, foi bondoso e carinhoso comigo, tudo fazia para me ver feliz.

Bom, estou quase a sair da Guiné, agora preciso de descansar, ainda há alguns episódios que lhe quero contar, prometa-me que só vai escrever 2 ou 3 histórias se acaso vai publicar algum livro com esta maçadoria, é para mim mistério insondável o Mário encontrar algum encanto ou pitoresco nestes episódios que têm quase 50 anos e que estão definitivamente perdidos no tempo., dispensados pela História. Ou não estão?

(Continua)



[ Revisão / fixação de texto / título: L.G.]

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Notas de L.G.:

(*) Vd. postes anteriores da série:

31 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5737: Pré-publicação de Mulher Grande, de Mário Beja Santos (1): Um Gabu de poucas e fracas recordações

2 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5747: Pré-publicação de Mulher Grande, de Mário Beja Santos (2): Da Guerra do Turu-Ban ao Tubabo Tiló, passando pelo deslumbrante Corubal

4 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5758: Pré-publicação de Mulher Grande, de Mário Beja Santos (3): Dois anos maravilhosos: S. Domingos, Varela, Ziguinchor, antes da guerra...

9 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5793: Pré-publicação de Mulher Grande, de Mário Beja Santos (4): S. Domingos, 21 de Julho de 1961: Benedita, eles já aqui estão!

(**)  Sobre o processo narrativo, explicou o autor:
 
"Queridos amigos, o livro 'Mulher Grande' é uma narrativa ficcionada, um relato de uma vida de memórias (memórias de uma vida). É a Guiné que aproxima a narradora e o seu arquivador/escriba. Benedita Dantas Estevão possui uma memória prodigiosa, viveu as agonias e os êxtases de toda a gente. A estrutura da narrativa baseia-se num processo literário explorado magistralmente por John Dos Passos, limitei-me a seguir-lhe as pisadas: há um episódio inicial em que o narrador descreve acontecimentos, o arquivador/escriba reflecte sobre eles (solilóquio) e o narrador dá uma explicação íntima para o que contou (recordações e trabalho de casa), é um círculo fechado de duas pessoas que falam a três vozes.
 
"O que ofereço ao blogue é matéria que se prende com a essência do nosso blogue: a Guiné em vias de entrar na guerra. O resto, caso venha a entusiasmar os tertulianos, fica para a leitura de cabo a rabo. Sugiro a sua publicação em pequenos episódios de duas ou no máximo três páginas, em consonância com a própria construção dos diálogos. Aguardo a vossa apreciação. Um abraço de amizade, Mário" (...)


(***) Excertos do Cap I:

(...) Vim ao mundo ao nascer do dia 24 de Novembro de 1920, em Lisboa. Nasci na Avenida da República, 70, no rés-do-chão de uma moradia que também tinha 1º andar e mansarda. (...)




(...) A casa fora alugada pela minha avó brasileira, a vovó Januária ou vovó Xanoca. No dia em que vim ao mundo, bateu à porta da nossa casa o capitão Edmundo Barreto, um dos fiéis de Sidónio Pais, e que era muito amigo do meu pai, vinha almoçar, isto era muito comum assim, recebíamos informalmente todos os amigos, eram poucos os que se anunciavam. Sabiam que o meu pai acabava as consultas no Curry Cabral pelas 13 horas, e que vinha imediatamente para casa, quem batia à porta almoçava. O meu pai contou-me que o foi receber à entrada, eufórico, estava todo desalinhado, sem plastrão, e lhe dissera: “Olha, desculpa, hoje não pode ser, nasceu-me uma filha, sou pai pela primeira vez, estou radiante, isto está tudo uma desordem mas estamos felizes. A Estrelinha está de boa saúde!”. A Estrelinha era a minha mãe. (...)


(...) Nasci num meio burguês, filha de um clínico geral que trabalhava no Curry Cabral e no banco de S. José e tinha consultório na Praça José Fontana, e de uma brasileira de Santos, menina prendada. Era um casal que se amava muito. À distância destes anos todos, reconheço que tive o privilégio de nascer num meio excepcional, rodeada de pessoas excepcionais. O pai, a quem meio mundo chamava o Catarinho (Catarino Palma d’Abreu Dantas) viera estropiado da Flandres, era um homem de uma curiosidade insaciável, uma grande alma, um grande carácter. (...)


(...) O Catarinho era monárquico por tradição e convicção, mas era um homem verdadeiramente popular, não aceitava injustiças, falava com toda a gente com a mesma elegância de modos. Uma vez, era eu pequena, ele foi abordado nos Restauradores por alguém, eu, a minha mãe e o meu irmão, não percebíamos o entusiasmo daquela conversa. Despediu-se do senhor e depois disse-nos: ”Era um dos meus doentes lá da Penitenciária, creio que era um grande criminoso que se regenerou. Ainda bem que o voltei a ver”. (...)


(...) O meu pai vivia politicamente na oposição à balbúrdia republicana, veio a aderir à Liga 28 de Maio, admirava profundamente Salazar e a sua obra. Fez sempre campanha a seu favor, tudo à sua custa, nunca quis cargos, o que ele queria era ser médico, viver com a família, estudar genealogia, história de arte, até mineralogia, tudo lhe interessava. Não passava uma semana que não fosse investigar na Torre do Tombo. A minha mãe era adorável, acabou por ser a minha filha. Isto é difícil de compreender até se conhecer a relação que estabelecemos, sobretudo nos últimos anos da sua vida, morreu já nos anos 80. Sempre que falo da minha mãe emprego o termo que usei sempre: a Estrelinha (Maria Augusta dos Santos Pimenta), ela era de facto uma estrela reluzente ao pé de nós, delicada no trato e sempre delicada na sua saúde. (...)


(...) A abundância em que nasci começou a desaparecer quando eu tinha 10 anos. Com a crise de 29, o meu pai perdeu as economias amealhadas que pusera no Banco do Minho e a Estrelinha perdeu muito do que tinha nos negócios de Santos, tudo herança do avô Valentim, que não conheci, ele morreu quando a avó Januária veio com duas filhas até à Europa. É verdade que ele era um nome na medicina mas não era suficiente, houve que cortar nas despesas, desapareceu o chofer e desapareceram criadas. E desapareceram muitas das visitas lá em casa. (...)


(...) Com o desaparecimento do meu pai, tudo mudou, eu ia fazer 21 anos. (...)


(...) Em 1950, soube que havia uma vaga na Embaixada dos Estados Unidos da América, na Duque de Loulé, fiz provas, no Verão, fui aceite. O meu emprego não era propriamente na Embaixada mas sim junto do serviço do adido militar, eu depois explico o que fazia. Por essa altura, o Raimundo pediu à minha tia para ir ter com ele ao Norte. A Ada pediu-me para a acompanhar. E foi assim que fomos para a Póvoa, de 15 a 30 de Agosto. Na primeira noite, fiquei em casa da Luísa Palma. Fui com ela ao Casino (...).


(...) Nisto chegou o meu primo Manuel Dantas Amorim que vinha a falar com um outro senhor e apresentou-me o Albano da Graça Toscano. Pouco depois, fui dançar com este senhor que era funcionário colonial, tinha ido quase adolescente para a Guiné, vivia lá há muitos anos, mais de 16, estava agora de férias. Ia começar o meu romance. No Casino da Póvoa, mal sabia eu, tinha o meu destino traçado para ir para a Guiné, onde vivi momentos tão belos mas também tão dramáticos. Ao longo destes anos, digo-lhe agora sem ironia, eu achava que era exótico falar da Guiné, quando eu falava os outros ouviam com atenção, ninguém sabia onde é que era a Guiné e como é que lá se vivia. Dou comigo agora a pensar que ir contar tudo quanto eu vivi tem aspectos melindrosos, ainda há algumas pessoas vivas, nem sei se vou contar tudo.


(...) E foi assim que ficámos noivos. Mas o Albano tinha que partir em Setembro, tinham acabado as férias, só poderia voltar dentro de 4 anos, encarou-se logo a hipótese de casarmos por procuração. É bom não esquecer que eu ia trabalhar para a Embaixada, em Outubro assinei contrato como operadora telefonista. Eu vivia uma situação de grande dilema, nem ele nem eu tínhamos idade para perdermos mais tempo, naquela época só havia cartas uma vez por semana, não me estava a ver num namoro como se fosse uma adolescente.


Era um dilema: pela primeira vez na vida eu estava a ter um emprego que me interessava, que me entusiasmava verdadeiramente, mas também a Guiné estava no horizonte, eu queria casar com o Albano. (...)


Casei na Igreja do Campo Grande, fui de braço dado com o maninho, fizemos a festa em nossa casa. E naquele mês de Setembro, com a Estrelinha e a Ada a chorar, emocionadas, parti da Portela, de madrugada. Eu saía pela primeira vez de Portugal. (...)

(****) Na altura dos acontecimentos em S. Domingos (21 de Julho de 1961), era governador da província da Guiné  António Augusto Peixoto Correia (1959-1962).  Sarmento Rodrigues tinha sido Governador do pós-guerra (25 de Abril de 1945 a 1950).

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Guiné 63/74 - P3172: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (42): Cartas de um militar de além-mar em África... (5)


Texto de Beja Santos
ex-Alf Mil,
Comandante do Pel Caç Nat 52,
Missirá e Bambadinca,
1968/70

Fotos (e legendas): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.


Operação Macaréu à vista

Episódio XLII

CARTAS DE UM MILITAR DE ALÉM-MAR EM ÁFRICA PARA AQUÉM EM PORTUGAL (5) E OUTRAS PARAGENS EM ÁFRICA

Beja Santos

Para Comandante Avelino Teixeira da Mota, em Luanda


Sr. comandante e meu querido amigo,

Cá recebi as suas notícias, vejo que está asfixiado em papel e sempre a investigar nas poucas horas disponíveis. Surpreende-me vê-lo tão indiferente com as atracções de Luanda. Peço-lhe que não se esqueça de contactar o meu primo José Augusto Gândara de Oliveira, ele está ansioso por o conhecer. Estou agora nos Nhabijões, o reordenamento é enorme, mais de mil e seiscentas pessoas estão envolvidas, a obra de engenharia é de grande fôlego, estamos a fazer policiamento, tem havido raptos, roubos e episodicamente os nossos vizinhos de Madina lançam umas canhoadas da outra margem do Geba. Não percebo muito bem para quê, é puro fogo de vista, eles sabem que nós sabemos que é aqui que se abastecem, aqui têm familiares que lhes dão informações. Depois dos policiamentos, aproveito as últimas horas de luz, leio o que posso.

Venho revelar-lhe o meu espanto quanto a um documento de que já me tinha falado, confessando-lhe que a sua leitura foi uma feliz surpresa. Trata-se do relatório do administrador da circunscrição de Geba, Vasco Calvet de Magalhães, referente a 1914. Foi uma neta do régulo Mamadu Sissé que mo emprestou através de uma professora de Bambadinca. Nunca li nada igual, o desassombro, o recorte literário, o entusiasmo das descrições tanto dos usos e costumes como das lutas entre etnias; Calvet de Magalhães fala inclusivamente de termos linguísticos locais e até da maneira como se deve resolver o assoreamento do rio Geba.

É evidente que não lhe estou a dizer nada que não saiba, quem foi apanhado de surpresa fui eu. Pergunto-me se este relatório é único, tal o inédito destas informações. Por exemplo, fico a saber que o régulo do Cuor, na época, se chamava Abdul Jujaz (não era Abdul Indjai?). Ele escreveu este relatório para o governador em Bolama ou queria fazer chegar as suas preocupações a Lisboa, candidatar-se a um qualquer cargo político? Não acredito que fosse comum na época escreverem-se coisas como estas: "O corpo de guardas é insuficiente! Não chegam mesmo para policiar a população; daí resulta que esta administração tem constantemente de encarregar diversos indígenas para irem desempenhar funções inerentes aos guardas, sem receberem remuneração alguma"; "Estes indivíduos recebem apenas uma instrução superficial e quando já sabem soletrar e juntar duas letras dão por finda a sua instrução, sendo, no futuro, uns descontentes, porque não vêem realizadas as suas aspirações, na escola não lhes criaram hábitos de trabalho"; "Os sírios começaram a aparecer em 1911 e são hoje uma elevadíssima colónia... O indígena é uma vítima nas mãos destes indivíduos que sem consciência nem escrúpulos o exploram". Estes são exemplos avulsos da linguagem crua de Calvet Magalhães. Penso que no futuro não se poderá estudar a situação da Guiné nesta época sem o ter em conta. Tomei nota do que ele escreve sobre os empregados aduaneiros: "Quando tomei posse do lugar de residente nesta circunscrição, em 1909, havia apenas um posto fiscal a que se chamava posto fiscal do Boé. Nunca houve, porém, posto algum no Boé, pois o que havia era em Pai-Ai, muito aquém do Boé. O aspirante ali destacado fazia o que queria. Apreendia borracha, mercadorias e dinheiro aos indígenas do nosso território, enfim, um verdadeiro salteador de estradas e nunca um funcionário da Alfândega. O que é, porém, uma verdadeira lástima, é o corpo de guardas fiscais. São recrutados entre indivíduos que já têm longa permanência na província, cheios de vícios e de uma indisciplina inacreditável. O guarda que estava em Bambadinca embriagava-se todos os dias, acabando por querer agredir o chefe de posto daquela localidade com um faca. O que estava em Che-Che encontrei-o no caminho a chorar, dizendo-me que ia para Bafatá, porque não podia viver sozinho no mato! O que foi para Che-Che substituir o primeiro não vem a Bafatá quando é chamado pelo chefe de posto fiscal e cada mês apresenta apenas o rendimento de cinquenta a sessenta centavos... Isto é para que V. Exa. possa avaliar a qualidade de pessoas que existe na classe de guardas fiscais!" Ele devia ser esforçado, procurou conhecer os rudimentos da etnografia e da antropologia. Fala da raça fula como formada por nómadas que vieram residir para os territórios dos mandingas e beafadas. E escreve: "A cor do fula varia entre a cor do bronze florentino e o negro mais carregado. Reputam-se brancos, a estatura é regular, têm a fronte bem desenvolvida, nariz aquilino, boca grande, os incisivos proeminentes, os membros perfeitamente bem modelados. Uma diferença enorme existe entre a mulher fula e a mulher fula-preta. A primeira tem glândula mamária perfeitamente esférica enquanto que a segunda tem-na em forme de pêra... Os mandingas têm as espáduas altas, o pescoço mais curto, o esqueleto mais forte do que os fulas". Decididamente, ele tinha pendor por estes estudos etnográficos, escreve sem hesitar, como se dominasse a matéria. "Todos os fulas-pretos ou fulas cativos da região Geba guardam respeito aos fulas forros. Todos os fulas-pretos da região são descendentes de mandingas, beafadas e soninqués... As crianças, criadas de pequeninas no meio dos fulas, e vivendo com eles em comunidade, herdavam-lhes todos os hábitos e esquecendo as suas línguas primitivas só falavam a fula. Daí resulta o chamar-se-lhes fulas pretos porque sendo os fulas forros de tez acobreada e não se julgando pretos fizeram esse distinção". Desculpe estar a ser enfadonho, até pretensioso, falando-lhe do que conhece muito bem. Mas tomei este Calvet Magalhães como um funcionário raro na observação, na crueza da narrativa, embalado por encontrar soluções, por combater a corrupção, por querer conhecer a religião, a organização social, a língua dos povos que administra.

Para lhe ser sincero, sinto que a minha missão aqui está prestes a findar. Vi partir os meus camaradas com quem convivi praticamente vinte e três meses, os que acabam de chegar parece que não precisam da minha experiência. Muitos dos meus soldados partem também, o contingente actual não tem praticamente nada a ver com aquele que eu conheci em Agosto de 1968. E é ingrato repetirmos dia após dia, semana após semana, as mesmas colunas de reabastecimento, as idas ao correio, as emboscadas nocturnas, a protecção das populações. Não é cansaço que sinto, é falta de aproveitamento. Ninguém nos pergunta como tem evoluído a guerra, como responder à implantação do inimigo no terreno. Não o incomodo mais com os meus desabafos, vou pôr agora os meus aerogramas a Bambadinca e passo a noite a montar segurança na ponte de Udunduma, sempre com o meu pelotão repartido. Até breve e, por favor, continue a escrever-me.

O comandante Teixeira da Mota, em aerograma de Agosto de 1969, falou-me pela primeira vez nos sónôs, perguntou-me se já vira alguma e se não me importava de perguntar junto das gentes do Cuor. Ele escreve numa comunicação que apresentou em 1963: "Objectos constituidos por hastes de metal com cerca de 1,20m de altura e com a parte inferior adelgaçada ou terminando em ponta de seta. Ao longo da haste há por vezes braços laterais, terminando frequentemente em pequenas figuras de bronze, quase sempre representando fuguras humanas. No topo da haste principal estão encaixadas esculturas de bronze representando cavaleiros. São simbolos da realeza ou da chefia, antes da islamização". Contituem um património de incalculável valor sobre a velha arte animista, bem gostava de ter um.


Teixeira da Mota vive afogado em papéis, no Comando Naval, em Luanda, viaja pelos rios Zaire, Zambeze, Cuíto e Cuanza. Fala da sucessão de Amílcar Cabral e suspira por regressar ao Centro de Estudos de Cartografia Antiga, onde, aliás, irá produzir as suas últimas magníficas obras de investigação.


Para Ruy Cinatti

Ruy, Dear Father,

Chegaram os seus livros, comecei logo a ler "Cien años de soledad", de Gabriel García Márquez. Meu Deus, que livro assombroso, mesmo não percebendo eu muitas da expressões deste castelhano da Colômbia. Já devorei quase cem páginas, a família Buendía e a povoação de Macondo vão ficar na literatura universal, estou absolutamente certo: magia , feitiço da palavra, a atmosfera das Caraíbas, gente retirada da literatura das fadas e dos génios de encantar. Muito obrigado por tudo.




Capa dos estúdios das Publicações Europa-América, tradução de Eliane Zagury. O exemplar que li devolvi-o ao Ruy Cinatti em 1970, era edição em espanhol, bem sofri mas deslumbrei-me. É um dos livros da minha vida, embora prefira Amor em tempos de cólera, a paráfrase do amor eterno. Todos os elogios apoucam ouvir falar deste colosso literário e não o devorar, primeiro, saboreando-o, a seguir: Muitos anos depois,diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo... Penso que o livro surgiu entre nós aí por 1971, continua êxito imparável.



O que se passa por aqui tem pouco interesse: estou nos Nhabijões, vejo uma nova povoação crescer, ando entretido com várias lides, desde destruir canoas do inimigo, a fazer autos de justiça militar, regresso às tarefas de professor, às emboscadas e apoio, quando me pedem, com informações o novo batalhão que acaba de chegar a Bambadinca. Em princípio será assim até ao fim do mês, parece que depois irei montar a segurança de uma estrada que está a ser alcatroada a partir do Xime, até Bambadinca.

Todo o tempo que posso reservar aos meus cadernos é destinado a leituras sobre a Guiné, aqui não há bibliotecas, nem mesmo em Bafatá encontro publicações que permitam conhecer o meio local, leio o que me emprestam. Imagine que eu já tinha a separata que me ofereceu sobre a casa timorense, comunicação que V. apresentou num congresso internacional de etnografia, em 1963. Pois as actas desse congresso foram-me agora emprestadas, reli o seu artigo que vem junto à comunicação de Teixeira da Mota, a dele sobre os bronzes antigos, os sónôs. O comandante já me tinha escrito em Agosto do ano passado a pedir-me para eu perguntar no Cuor e aqui em Bambadinca se havia vestígios de sónôs. Ninguém tinha visto essas esculturas que são ferros com mais de um metro e vinte de altura que têm braços laterais, também de ferro, que terminam frequentemente em pequenas figuras de bronze, quase sempre representando figuras humanas. De acordo com o nosso comum amigo, são símbolos da realeza ou de chefia antes da islamização. Certos actos importantes para a vida colectiva, como fazer a guerra, não eram decididos sem previa consulta ao sónô. Estas esculturas entraram em declínio no século XIX, com a islamização dos soninqués. Estes registos que vou fazendo despertam-me para a realidade dos meus estudos, se é verdade que ainda tenho deveres com os meus soldados, os Nhabijões têm metas próprias, não me provocam o fascínio de Missirá, não são a minha gente. Qualquer dia estou por aí, tenho muitas saudades suas, não pode imaginar como a sua presença é poderosa, as suas cartas têm sido um dos pilares da minha resistência. Mais uma vez muito obrigado por tudo e que Deus cuide da saúde do Dear Father.


Tinha estado a ler o livro de Apollinaire, que Ruy cinatti me enviara. É poesia sem interesse nenhum, é mesmo a última incursão no género. Retive 2 ou 3 imagens com alguma expressão intrínseca: «abicagem da galáxia numa cabana»; «falo do amor no açude dos tímpanos»; «ano versado, na parede brota um palavrão: guerra», nada mais. Mas senti os meus 25 anos, queria recomeçar a vida, estava apreensivo pela separação em marcha da solidariedade cimentada com os meus soldados.


Foi indiscutivelmente um grande poeta, inclassificável, um ilustre antropólogo, um amigo devotado de Timor. Deu-me uma companhia exemplar nos dois anos da Guiné, tenho legítimo orgulho em referir as suas cartas, os seus poemas que ali recebi, guardo a profunda saudade dos seus cuidados, comigo e com os meus soldados feridos. Encarou com o maior estoicismo a sua morte, em 1986, no Hospital de Santa Marta. Legou todos os seus bens à Casa do Gaiato.

Para Cristina Allen Santos

Meu adorado amor,

Bambadinca mudou muito com a partida destes amigos a quem tanto devo. Penso que o David Payne em breve vai para Lisboa, levei ao Xime o Augusto e o Calado, foi a segunda e a última leva do BCaç 2852. Não me perguntes como vai ser o meu futuro, aguardo instruções do novo comando. Por ora, a minha base está nos Nhabijões, mas não penses que são férias, as idas ao Xitole, as noites na ponte de Udunduma, as patrulhas às populações em autodefesa fazem parte do meu quotidiano. Também o pelotão começa a estar irreconhecível: partiu o Queirós, perdi um dos meus colaboradores mais preciosos, o Cruz, que viera substituir Alcino, baixou ao hospital com doença tropical. O Domingos já tinha partido, não resta nenhum dos cabos do tempo em que aqui cheguei.

Esta atmosfera não é a de Missirá, embora as populações do Cuor não percam uma visita a Bambadinca para me cumprimentar. Aliás, vieram convidar-me a ver a instalação eléctrica, o gerador está finalmente em funcionamento. Disse inicialmente que não, depois disse que sim, trouxe aquele gerador a ferros da engenharia de Bissau. O Mamadu Camará e o Queta Baldé vão partir para os Comandos, o Cherno já me informou que também partirá quando eu abandonar o pelotão, o mesmo me disse Adulai Djaló, o Campino. Fazemos toda a rotina mas aqui não há a chama de todo o regulado do Cuor, não me sei explicar. Leio muito, mas as tarefas de rotina também têm o seu peso: quase uma vez por semana vamos ao Xitole, ando a tratar do processo de Bacari Soncó para receber o prémio "Governador da Guiné", o processo de atribuição da Cruz de Guerra ao Mamadu Camará foi-me devolvido para dar informações complementares, voltei a ir a cerimónias de condolências. Desta vez, fui cumprimentar Fatu, a minha lavadeira, está inconsolável com a morte do seu Zé, um furriel dos Comandos que chegou a andar em operações comigo, pertencia ao pelotão do Saiegh, nos Comandos em Fá, ficou despedaçado por uma mina anti-pessoal na bolanha de Ponta Varela.

Bom, sigo agora para os Nhabijões, fico lá dois dias. Depois vou combinar com a D. Leontina dos Correios e telefono-te. Os meus soldados Serifo Candé e Ussumane Baldé foram premiados e vão passar férias a Bolama, podes imaginar o orgulho que sinto.

Depreendo da tua carta que não tens parado de procurar casa para nós. Sei que vais ser bem sucedida, vamos ter uma casinha muito bela e tu vais fazer milagres com o teu talento de decoradora. Mil beijos, toda a devoção, toda a minha saudade, está próximo o nosso sonho de Agosto, o nosso reencontro.

Para Emílio Rosa, em Bissau

Meu querido Padrinho,

Só duas palavrinhas para te agradecer tudo: a casa que nos emprestaste com a Elzira, a companhia que nos ofereceste com os Payne, os pequenos mas tão agradáveis passeios a Ponta Biombo, a Safim, a Nhacra. Foste um padrinho exemplar, tornaste a nossa lua-de-mel aprazível nessa cidade fardada. Por aqui o tempo corre, oiço música, acabo de ler "De Profundis", de Oscar Wilde, um Simenon memorável, estou a ler um colombiano de nunca ouvi falar, Gabriel García Márquez, toma notas dos livros que me emprestam sobre a Guiné (acalento o sonho de escrever sobre ela, mais tarde ou mais cedo), o resto é rotina, há mesmo um certo marasmo na actividade operacional de parte a parte, parece que o PAIGC está a avaliar o novo batalhão que chegou a Bambadinca.

Perguntas-me quando é que passo por Bissau. Recebi hoje uma convocatória do tribunal militar, vai ser julgado o meu soldado Quebá Sissé, por homicídio involuntário de outro, o Uamsambo. Será uma viagem muito rápida, não deixarei de te comunicar, vamo-nos encontrar, para mim é sempre uma grande alegria estar contigo. Fica a aguardar as minhas notícias, recebe a profunda estima do afilhado a quem forneceste toneladas de material de construção civil e toneladas de cordialidade e apreço.

Para Ângela Carlota Gonçalves Beja

Minha querida Mãezinha,

Obrigado pelas suas notícias, folgo que esteja muito melhor do seu reumático. Está ansiosa por me ver, que direi eu? É previsível que em Agosto, na pior das hipóteses Setembro, eu esteja de regresso. A guerra por aqui está muito calma, houve mudança de tropa em Bambadinca, passo a maior parte do meu tempo numa povoação que está a ser construída na margem esquerda do Geba, Nhabijões. Obrigado pelas notícias que me dá do Paulo, do Fodé e do Alcino. O estado de saúde do Paulo é muito preocupante, o Fodé adapta-se á prótese, o Alcino coxeia, penso que vai ficar com deficiência para toda a vida. A Cristina continua a procurar casa para nós, está a fazer exames, sei que tudo vai correr muito bem. Penso que dentro de dias vou de fugida a Bissau, terei o cuidado de lhe telefonar. Um dos meus camaradas de Bambadinca que dentro de dias segue para Lisboa ofereceu-se para lhe levar umas lembranças, espero que goste dos tecidos que lhe mando e uma pulseirinha em prata. Não esteja preocupada comigo, gozo de saúde, voltei a fazer ginástica, sinto o prazer de dar aulas aos meus soldados sempre que é possível. Prometo-lhe escrever amanhã uma carta mais longa, vou para os Nhabijões, à noite tenho um petromax e conto-lhe com mais tempo tudo quanto tenho feito Receba muitos beijinhos deste filhos que nunca a esquece e que tento lhe deve.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 8 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3120: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (41): Um mês nos Nhabijões