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quarta-feira, 31 de julho de 2013

Guiné 63/74 - P11893: Conversas à mesa com camaradas ausentes - Estórias da História da Guerra Colonial – Guiné-Bissau (José Martins Rodrigues) (1): Mobilização

1. Primeiro episódio da série "Conversas à mesa com camaradas ausentes", pelo nosso camarada José Martins Rodrigues*, ex-1.º Cabo Aux Enf da CART 2716/BART 2917, Xitole, 1970/72:

A todos os ex-combatentes da Guiné
Só peço ao meu futuro que respeite o meu passado

No baú das memórias de cada um de nós existem inúmeras “Estórias da Guerra” por contar.
O convívio semanal na Tabanca de Matosinhos e o nascimento da ONG Tabanca Pequena-Amigos da Guiné a que me honro pertencer, despertaram-me para o desafio de retirar do baú as minhas “estórias da guerra”. Para ultrapassar a minha manifesta falta de jeito para a escrita, socorro-me de um método narrativo baseado na descrição cronológica de episódios, a que chamarei “Conversas à mesa com camaradas ausentes”. Do outro lado da mesa estará sentada a esperança de encontrar alguém que se reveja nas “estórias” relatadas e sinta a emoção do reencontro com realidades da nossa vivência na Guiné.


CONVERSAS À MESA COM CAMARADAS AUSENTES

ESTÓRIAS DA HISTÓRIA DA GUERRA COLONIAL - GUINÉ-BISSAU

1 - Mobilização

Lembras-te camarada, daquele dia em que recebemos a notícia da nossa mobilização para a Guiné, estávamos então colocados no RAP2 em Vila Nova de Gaia, e te dei conta do quanto iria sofrer para informar o meu PAI dessa má nova? Estávamos nessa altura com 18 meses de tropa, colocados bem perto de casa por mérito da nossa elevada classificação na especialidade de enfermagem e, já tínhamos como certo que por cá ficaríamos.
Má sorte a nossa.

E a esperada reacção do meu pai que, como também sabias, era completamente contra a minha participação na guerra colonial devido às suas arreigadas convicções políticas, contrárias ao regime de então.
Temendo uma reacção destemperada do meu PAI, pedi-te que me acompanhasses até casa para que, com a tua presença, me ser mais fácil dar-lhe a má notícia.
Lembras-te da sua reacção?

Vamos já tratar de te “pôr” em França - disse ele. O pior está para vir, pensei eu, que já havia decidido não desertar nem abandonar o país. Como a nossa especialidade era enfermagem, ainda alimentei a esperança de que o meu PAI não olhasse para a minha ida para a Guiné como “mais um ao serviço do colonialismo”.

Quando recusei a ida para França, assumindo dessa forma uma decisão contrária aos seus desejos, passei a carregar o fardo de uma rotura que sabia ser dolorosa num momento difícil de quem vai para um cenário de guerra e cujo desfecho é sempre imprevisível. Como foi importante camarada a tua presença nesses momentos. Na assunção dessa decisão por inteiro, percebi que o meu futuro começava ali.

Regressámos ao quartel e pouco tempo depois veio a informação de que o Batalhão a que iríamos pertencer seria formado no próprio RAP2, Unidade em que prestávamos serviço nessa data.

Vista aérea do RAP-2, em Vila Nova de Gaia, sobraceiro ao Rio Douro
Com a devida vénia a Crónicas de Angola

Lembras-te camarada com a tristeza que ficamos já em Viana do Castelo, cidade em que aquartelamos para fazer o IAO, quando soubemos que iríamos ficar em Companhias diferentes, nós que estivemos juntos na recruta, na especialidade, no estágio da especialidade e até no RAP2?

Já mais separados, deambulámos pelos montes por detrás de Santa Luzia em busca da preparação tida como necessária para o bom desempenho das nossas funções. Lembras-te dos desenfianços que, juntamente com o camarada que tinha uma Renault 4L, fazíamos algumas noites para vir a casa que no meu caso, era dormir em casa de uma tia da minha namorada?

Viana do Castelo - Vista da foz do Rio Lima a partir do Monte de Santa Luzia

Até que, após vários adiamentos, lá chegou a hora de apanharmos o comboio rumo a Lisboa, aconchegados com o saco dos nossos pertences, em que cabiam volumes de maços de tabaco, montes de cuecas e peúgas etc. Lembras-te daquele trambolhão que o meu saco deu no comboio e em que se partiu a garrafa de whisky que me havia dado um tio do meu pai que era Guarda-Fiscal?

Fiquei a fumar cigarros com intenso a sabor a álcool durante uma temporada porque não havia dinheiro para mais.

(Continua)
____________

Nota do editor

Vd. poste de 28 DE JULHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11877: Memória dos lugares (240): Xime (macaréu), Bambadinca e Bafatá (José Rodrigues)

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Guiné 63/74 - P10909: Blogpoesia (315): Em louvor da CART 566 (Bissau, Bissorã, Olossato e Bissorã, jul 64/ out 65) (Viçoso Caetano)






Guiné > Região do Oio > Morés > 3 de maio de 1965 > Armamento capturado ao PAIGC no decurso da Op Irã. Esta operação foi realizada pelo BART 733 (Bissau e Farim, out 64/ago 66), e envolveu as subunidades orgâncias CART 730 (Bironque, Bissorã, Jumbembem, Farim, out 64/ ago 66) e CART 732 (Saliquinhedim, Mansoa, Cuntima, Bissau, out 64/ ago 66) e bem como a independente  CART 566 (Bissau, Bissorã, Olossato, Bissorã, jul 64/ ou 65).

Nesta operação, foram encontradas arrecadações de material com metralhadoras Borsig,  Bren e M52, minas A/C TM-46, granadas de RPG e granadas de mão. O Morés era um dos santuários do PAIGC. Um  dos nossos helis foi atingido pelo fogo do IN, ao descolar com parte do material capturado. (Fonte: Carlos Matos Gomes e Aniceto Afonso - Os anos da guerra colonial, vol. 6: 1965 - Continuar a guerra. Matosinhos: QuidNovi, 2009, p. 32)

Fotos: © António Bastos (2013). Todos os direitos reservados. (Editada e legendada por L.G.)


1. Com a devida vénia, e a competente autorização do "patrão" do blogue Do Mirante, A. João Soares, reproduz-se aqui uns versos, da autoria de Viçoso Caetano, sobre a CART 566 (1964/65).

Nota do editor sobre a CART 566:

(i) Foi mobilizada pelo RAP 2, 
(ii) partiu para o TO da Guiné em 28/7/1964 e regressou a 27/10/1965;
(iii) esteve em Bissau, Bissorã, Olossato, Bissorã;
(iv) Comandante: Cap Art Adriano Albuquerque Nogueira.


CART 566-RAP 2, por Viçoso Caetano

[foto à esquerda, gentileza do blogue de A. João Soares, Do Miradouro]


Dado que fui convidado
Pelo vosso Capitão,
Aqui estou muito honrado
Com tão grande distinção
Que agradeço, penhorado,
Com uma ponta de emoção.

Sou só mais um entre vós
P´ra vos dizer viva voz
Aquilo que bem sabeis
 
–P´ra que sempre recordeis –
Pois que tudo mereceis.

Militares do meu País
 
 (Porque o destino assim quis) –
Vós fostes dele a raiz.
Quando olho e vos contemplo,
Eu vejo em vós o exemplo
Da coragem e valentia
Que no vosso peito ardia
Da 566, Companhia
Da Arma d´Artilharia,
Lá da Serra do Pilar
 
 (Onde se formou um dia) –
Para depois embarcar
Cabo Verde, Ilha do Sal,
E aí se fixar.

Depois outra ordem veio
E lá fostes mar acima
 
 (Contratorpedeiro Lima) –
Arrostando a tempestade
Que vos bateu forte e feio

 – (Mesmo sem dó nem piedade) –
Mas não vos quebrou a Fé
Nem vos esmoreceu a vontade.
 
 (Só angústia de permeio) –
P´ra aportardes finalmente
Sãos e salvos na Guiné.

E aqui foi o Olossato
Onde nunca entrara gente,
Só havia Céu e mato.

“Bravos e Sempre Leais”,
Destes tudo e muito mais
Do que a Pátria vos pedia,
Em actos de heroicidade.
Grandes na simplicidade
Que a qualquer ufanaria,
Mereceis toda a honraria!

Deus sabe que isto é verdade
E na sua majestade
Vos há-de pagar um dia.

P´ra terminar faço um voto
 
 (Que me sai do coração) –
Eivado de nostalgia:
Que Deus guarde o Capitão,
Que Deus guarde a Companhia,
Como eu vou guardar p´ra sempre
A lembrança deste dia.



NOTA [, de A. João Soares]: 

Aqui fica o último poema desta remessa que o Adry me entregou. Espero mais! 

Caro Vic, ao ler estas palavras sentidas de um convidado pelo comandante, senti-me soldado desta Companhia a recordar com os companheiros e suas famílias os melhores momentos de camaradagem e bom convívio. Sim, só esses, porque os momentos de dor e sofrimento próprios dos riscos e perigos que correram,  não são para reviver na memória.

Embora não tenha sido soldado da Cart 566,  agradeço os teus belos contributos para dares brilho a este espaço humilde e discreto.

Fonte: Blogue Do Mirante > 3  de março de 2009 > CART 566-RAP 2, por Viçoso Caetano

Fundador e editor: A. João Soares . (Uma pessoa preocupada com o mal do Mundo que procura melhorar com as suas intervenções pela escrita e por contactos pessoais"). É autor de 12 blogues.

Nota de L. G.: O Viçoso Caetano, poeta de Fornos de Algodres, tem vários poemas publicados no blogue Do Mirante. Foi alf mil em Moçambique.

______________

Nota do editor:

Último poste da série > 5 de janeiro de 2013 > Guiné 63/74 - P10901: Blogpoesia (314): "Caserna", poema inédito de Armor Pires Mota

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Guiné 63/74 - P7030: Memória dos lugares (100): O dia em que o RAP2 esteve sob ameaça terrorista (Joaquim Mexia Alves)

1. Mensagem de Joaquim Mexia Alves*, ex-Alf Mil Op Esp/RANGER da CART 3492, (Xitole/Ponte dos Fulas); Pel Caç Nat 52, (Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) e CCAÇ 15 (Mansoa), 1971/73, com data de 21 de Setembro de 2010:

Meus caros camarigos editores

Tenho lido alguns textos fazendo referência às Unidades militares onde alguns camarigos fizeram as suas recrutas ou especialidades, bem como, as que foram Unidades mobilizadoras dos Batalhões e Companhias que rumaram à Guiné.

Achei por bem então, escrever um texto, relembrando uma história engraçada que se passou comigo e com outros, no então RAP 2, na Serra do Pilar, onde formei Batalhão para servir na Guiné.

JMA


Regimento de Artilharia Pesada N.º 2 localizado na Serra do Pilar em Vila Nova de Gaia


O DIA EM QUE O RAP2 ESTEVE SOB AMEAÇA TERRORISTA

Cheguei ao RAP2, (julgo que juntamente com os outros oficiais, (Aspirantes), e sargentos, (Cabos Milicianos que iam formar Batalhão), aí pelo mês de Julho, findas que tinham sido as Especialidades de cada um.

Julgo que começámos a instrução do Batalhão por volta de Outubro de 1971, partindo para a Guiné no dia 21 de Dezembro do mesmo ano, a bordo do Niassa, a partir de Lisboa.

Houve então ali um período, entre Julho e Outubro, em que fizemos sobretudo Oficiais de Piquete e ao que me lembro pouco mais.

Havia então ali, à saída em frente da descida, o Café Mucaba e do outro lado da Ponte Luís I, do lado esquerdo de quem vai para o Porto, o Bar América, (onde umas raparigas de fino porte alegravam as noites), mas isso são outras histórias que talvez um dia conte.

Mas vamos à história, na qual omitirei os nomes, (tirando o meu), por razões óbvias que compreenderão, e que envolve dois Alferes Milicianos que não pertenciam ao Batalhão e julgo nem sequer foram mobilizados para lado nenhum.

Um, (a “vítima” da partida que vou contar), era bom rapaz, mas um pouco lerdo, se é que me faço entender, de tal forma que não podia, por ordens superiores ao que me lembro, ocupar as funções de Oficial de Dia.

Ora como o fruto proibido é o melhor, o homem ansiava por um dia poder andar de pistola à cinta, fazendo de Oficial de Dia.

O outro, o colaborador na partida, era um “gajo porreiro”, que andava por ali a passar o tempo à espera de acabar o tempo da tropa e que obviamente não levava nada daquilo a sério.

Claro que entre ele e mim se estabeleceu uma certa empatia, e se eu já estava apanhado do clima mesmo antes de chegar à Guiné, ele não estaria muito melhor, afectado com certeza pelos ares demasiado “puros” da Serra do Pilar.

Ora um dia em que por coincidência ele está de Oficial de Dia e eu de Oficial de Piquete, depois de uns uísques bebidos na Messe de Oficiais e com certeza de imensos “elogios” à família militar que nos dava cama e mesa naqueles tempos, decidimos concretizar o sonho do outro Alferes acima referido, e que nunca ou quase nunca saía do quartel.

Se bem pensámos, melhor o fizemos, e engendramos o seguinte esquema.

Ao fim do dia, (quando já tivessem saído os Comandantes), depois do jantar, (já noite dentro, para não haver surpresas de oficiais superiores), ele como Oficial de Dia chamaria o outro Alferes à minha frente, Oficial de Piquete, e dir-lhe-ia que tinha um problema grave em casa, e que obrigatoriamente tinha de se ausentar.

E a conversa continuava:
Ele como Oficial de Dia era no momento o Comandante do quartel e como tal investia-o nas funções de Oficial de Dia até que ele pudesse regressar.
Não havia problemas porque ele podia contar com a minha ajuda, etc., etc.

O outro, embora receoso, não cabia em si de contente vendo-se já de “pistola à cinta”!

Fez-se no gabinete do Oficial de Dia uma “cerimónia” de passagem de “testemunho”, com entrega da Bandeira Nacional e tudo!!!

O primeiro Alferes saiu então do quartel, tendo reentrado pouco tempo depois e ficado na Casa da Guarda logo junto ao portão.

Passado pouco tempo eu disse ao “Oficial de Dia” que tinha de inspeccionar qualquer coisa e vim para a Casa da Guarda, sem ele saber.

Daí, (e ele não se apercebeu de onde vinha o telefonema), telefonei para o gabinete do Oficial de Dia, imitando um suposto General Comandante-Chefe da Região do Porto, informando que tinha havido um aviso que um qualquer grupo terrorista iria atacar o RAP2 e como tal ele, Oficial de Dia, tinha que tomar as medidas necessárias à defesa do quartel.
Para tornar mais credível a coisa pedi-lhe para se identificar e sei lá mais o quê!

Claro que logo a seguir vim ter com ele como se nada se passasse!
Encontrei-o em pânico, sem saber o que fazer!

Entretanto e passado pouco tempo chegou o primeiro Alferes, (o Oficial de Dia a sério, que passo a designar como ODV – Oficial de Dia Verdadeiro), e perante a situação, (a coisa já estava combinada comigo), disse que não podia reocupar as funções visto que ele, (a “vitima”) se tinha identificado ao General e como tal teria de levar a coisa até ao fim.

A partir daí foi um crescendo de “asneirada” de tal modo que só a muito custo nos conseguíamos manter sérios, tendo que vir “desopilar” cá fora de quando em vez e até para avisar os oficiais, (Aspirantes), que iam chegando da noite.

“Solenemente” o ODV, comigo como testemunha, entregou a Bandeira Nacional ao ODF, (Oficial de Dia Falso), com o solene compromisso que a devia defender até ao limite da sua vida.

Eu fui incumbido de alertar o Piquete, o que verdadeiramente não fiz, obviamente, bem como avisar as sentinelas, o que também fingi.

Tratou-se então de defender o gabinete do Oficial de Dia, que ficava, salvo o erro, ao lado do bar de oficiais, pelo que, se decidiu instalar uma MG42 em cima da mesa do referido Bar, bem como se distribuíram por aqueles espaços as armas que estavam à mão.

O pessoal, (Aspirantes), que iam chegando, iam ajudando à “festa”!

Já não me lembro bem do que se fez mais, mas a situação era hilariante, com todas as histórias à volta e os avisos de defender o quartel até à morte!
Surge então a ideia mais estapafúrdia que era trazer, sob as ordens do ODF, (aconselhado por nós claro), um Obus 14 que havia no parque exterior e colocá-lo no cimo da rampa que dava acesso à Porta de Armas e apontado a esta!

Não sei se estão a ver a ideia de Obus apontado para baixo!!!!

Com toda a franqueza não me lembro se chegámos a concretizar esta “brilhante ideia”, embora eu pense que sim, (outros do meu Batalhão que ali estivessem se poderão lembrar), mas tenho a noção que, por um daqueles azares que só acontecem nestes momentos, o 1.º ou 2.º Comandantes vieram ao quartel à noite por qualquer razão.

Claro que aquele que veio se deparou com todo este aparato, e houve a necessidade óbvia de explicar o sucedido, o que segundo me lembro, foi recebido com os avisos de “porradas” a aplicar, mas no fundo com um sorriso condescendente e compreensivo, (caramba o pessoal ia para a Guiné), e julgo que não houve consequências de maior.

À distância parece uma coisa talvez sem graça, mas naquela noite “chorámos” a rir, e durante uns tempos foi conversa obrigatória.

Está bom de ver que fizemos as pazes com o “visado”, que sendo boa pessoa, engoliu a partida e tudo ficou “como dantes, quartel-general em Abrantes”.

À vossa consideração, camarigos editores, a publicação desta história.

Um abraço camarigo para todos do
Joaquim Mexia Alves
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 9 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6961: Depois da Guiné, à procura de mim (J. Mexia Alves) (11): Tempo presente, tempo de viver

Vd. último poste da série de 11 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6969: Estórias avulsas (95): A minha 2ª grande missão ao serviço do Exército Português (António Barbosa)

domingo, 14 de junho de 2009

Guiné 63/74 - P4521: Memórias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917, Dez 69/ Mai 71) (1): No RAP 2, V.N. Gaia, onde fez mais de 60 funerais

, A Zona Histórica do Porto e a Ponte de D. Luís, vistas pela objectiva e pelos olhos do Portojo, um dos melhores poetas-fotógrafos do Porto (o nosso camarada Jorge Teixeira, mais conhecido por Portojo) > "Depois da Invernia, subi ao adro do Mosteiro da Serra do Pilar, para ver as cores da minha cidade" (Portojo)... Foi aqui, no antigo mosteiro da Serra do Pilar, em Vila Nova de Gaia, no mítico RAP 2, que começou a aventura africana do Alferes Mil Capelão Arsénio Puim, em Novembro de 1969... (LG)


Foto: © Portojo (2009). Direitos reservados


1. Mensagens de Arsénio Puim, ex-Alf Mil Capelão, CCS/ BART 2917, e que esteve em Bambadinca entre Maio de 1970 e Maio de 1971 (A sua comissão terminou mais cedo, um ano depois de ter chegado a Bambadinca, por decisão do Com-Chefe, ao que se sabe). Vive actualmente em Vila Franca do Campo, Ilha de São Miguel, Região Autónoma dos Açores (RAA). Está reformado como enfermeiro do Serviço Regional de Saúde da RAA (*).


12 de Junho de 2009

Luís Graça

Como te havia dito no email anterior, começo a minha participação no Blogue, em forma de pequenos registos com alguma ordem cronológica e temática, se achares que tem interesse.

Um abraço amigo - Arsénio Puim



1 de Junho de 2009

Luis Graça

Chegado já há alguns dias a Vila Franca do Campo, devo dizer que o prazer que tive de encontrar velhos companheiros da Guiné em Viana e em Lisboa compensou, só por si, a minha deslocação a terras do continente português. E quero agradecer-te todas as atenções e referências que me dedicaste durante a minha estadia em Lisboa.

Como havia dito, tenho em mente participar no documental blogue de Luis Graça, talvez com o registo de alguns factos, à maneira de pequenas crónicas, que eu possa relembrar e que constituam mais uma achega para a nossa história comum na Guiné. Fá-lo-ei, porém, lentamente - sou mesmo muito lento naquilo que faço - e numa fase um pouco mais tardia, em que espero ter maior disponibilidade de tempo.
Recomenda-me com a tua esposa. Um abraço amigo - Arsénio Puim


2. RECORDANDO... I - NO RAP 2, EM VILA NOVA DE GAIA

por Arsénio Puim

Este é o primeiro duma série de pequenos relatos, para este histórico blogue de Luís Graça, respeitantes à minha vivência como alferes capelão do Batalhão 2917, que acompanhei desde a Serra do Pilar até Bambadinca, no centro da Guiné, entre Dezembro de 1969 e Maio de 1970.

É meu propósito essencial rememorar e partilhar com os antigos companheiros do Batalhão, por quem tenho muito apreço, alguns factos e acontecimentos que nos são comuns, sem nunca pretender atacar quem quer que seja.

Depois duma curta preparação na Academia Militar, em Lisboa, - tema a que gostaria de voltar mais tarde – vim parar, em finais de Novembro de 1969, ao RAP 2, na Serra do Pilar, em Gaia, para me juntar ao Batalhão [de Artilharia] 2917, que ali estava a ser mobilizado, com destino à Guiné, e me tinha sido atribuído por sorteio, realizado no final do referido curso de capelães militares.

À distância de 40 anos, e recolhido aqui em terras dos Açores, guardo ainda hoje algumas recordações desta estadia, durante três meses, naquele Regimento de Artilharia Pesada.


Guiné > Região de Tombali > Bedanda > CCAÇ 6 > 1971 > Um das famosas imagens da guerra da Guiné, a saída do obus 14, de noite, tirada com a máquina rente ao chão, pelo então Alf Mil Médico Amaral Bernardo (hoje médico do Hospital de Santo António, Porto, e membro da nossa Tabanca Grande)... A padroeira dos arilheiros era(é) a Santa Bárbara... O dia da Arma de Artilharia festeja-se a 4 de Dezembro (LG)

Foto: © Amaral Bernardo (2007). Direitos reservados.


A minha primeira participação em eventos mais assinaláveis desta comunidade militar do Norte foi a Festa de Santa Bárbara, padroeira das Unidades Militares de Artilharia, realizada no dia 4 de Dezembro com considerável aparato. Uma coisa que me intrigou na altura, e que ainda hoje não sei decifrar, foi esta relação de Santa Bárbara com a Artilharia: será por esta santa, algo mítica, ser invocada como protectora nas trovoadas, e o ribombar dos trovões ter alguma semelhança com o estrondo causado pelas armas pesadas?

Depois veio o Natal. Todo o mundo partira, nessa noite, para as suas terras, e o Quartel, ali sobranceiro ao Douro adormecido e olhando para o Porto entregue aos seus convívios familiares, ficara quase deserto. O pequeno grupo que restava – oficial e sargento do dia, capelão e uns poucos soldados – celebrou também a sua consoada, no bar dos oficiais, onde não faltava apetitosa comida, bom vinho e muita saudade.

Botei a palavra. Neste contexto natalício e de ausência familiar, para mais com a perspectiva da partida próxima para a Guiné e já alguns eflúvios vínicos a actuar (os quais são sempre propícios a gerar inocentes climas de comoção), vivemos alguns momentos de grande sentimentalidade, com algumas lágrimazinhas mesmo a aparecerem ao canto do olho. Lembro com simpatia esta noite, embora não recorde já os convivas.

Foi no final de Fevereiro de 1970 que teve lugar a Comunhão Pascal da Guarnição, presidida pelo «bispo brigadeiro» de Portugal, responsável pelo Vicariato Castrense e a assistência religiosa aos militares do País.

Os Comandantes do Regimento e eu esperámo-lo junto do Mosteiro do Pilar. Saindo dum carro grande do Estado, conduzido por um soldado, D. António percorreu, admirou, reclamou mais dinheiro para aquelas velharias do Mosteiro. Um pouco atrás seguia eu, quando se chegou junto do meu ouvido o capitão-capelão-chefe do Porto, que me segredou:
- Arranje uma batina (sotaina) e apareça com ela amanhã. O D. António ficou danado(Eu tinha estado, no dia anterior, na Comunhão Pascal da Reclusão do Porto, vestido, apenas, com o fato e o cabeção eclesiásticos).

Certamente uma questão bem fútil no contexto da problemática, já então acesa, dos capelães militares e da guerra colonial.

Era o RAP 2, em Gaia, que recebia os soldados de toda a região norte mortos no Ultramar. Várias dezenas de caixões empilhavam-se uns sobre os outros numa grande sacristia, mal iluminada, da igreja do Pilar, que eu atravessava – um pouco de corrida, confesso – quando ia celebrar missa. Não raro, alguns caixões abriam espontaneamente um pequeno orifício por onde vertia um líquido fétido de cor esverdeada, até que os soldadores fossem chamados para obturar a brecha.

Cabia ao capelão do Regimento fazer os funerais, de acordo com uma escala elaborada pelos serviços competentes, acompanhando a urna até à terra natal de cada soldado, que o pároco e a população em peso aguardavam, com grande consternação e incontido choro geral, num sítio próximo da igreja.

Foram mais de 60 funerais que fiz nestes três meses - 2 ou 3 deles apenas as caixas dos ossos - nas mais diversas e recônditas aldeias do norte de Portugal. Um sacrifício dramático da nossa juventude, merecedor de muito respeito e dignidade, mas que não podia deixar de fazer pensar qualquer pessoa.

Arsénio Puim

_________

Nota de L.G.:

(*) Vd. postes anteriores, rekacionados com o Arsénio Puim:

3 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 – P4455: Estórias cabralianas (50): Alfero, de Lisboa p'ra mim um Fato de Abade (Jorge Cabral)

26 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4416: Memória dos lugares (26): Bambadinca, CCS/BART 2917, 1970/72 (Arsénio Puim, ex-capelão)

25 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4412: Dando a mão à palmatória (20): O Arsénio Puim, capelão do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), só foi expulso em Maio de 1971

25 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4410: Cancioneiro de Bambadinca (4): Romance do Padre Puim (Carlos Rebelo † )

23 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4404: CCS do BART 2917: a emoção do reencontro, 38 anos depois (Arsénio Puim)

19 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4378: Arsénio Puim, o regresso do 'Nosso Capelão' (Benjamim Durães, CCS/BART 2917, Bambadinca, 1970/72)

18 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4372: Convívios (131): CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), com o Arsénio Puim e os filhos do Carlos Rebelo (Benjamim Durães)

17 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1763: Quando a PIDE/DGS levou o Padre Puim, por causa da homília da paz (Bambadinca, 1 de Janeiro de 1971) (Abílio Machado)

sábado, 21 de março de 2009

Guiné 63/74 - P4060: Meu pai, meu velho, meu camarada (2): Militar de carreira, herói da 1ª Grande Guerra, saiu do RAP 2 como eu (David Guimarães)

1. E que tal uma pequena homenagem ao nosso pai, nosso velho, nosso camarada ? Eu já dei o pontapé de saída (*)...

Fui agora recuperar um texto, já com quase 4 anos (!), do David Guimarães, o nº 3 (em termos de antiguidade) da nossa Tabanca Grande (originalmente, Tertúlia)...

Recorde-se que o David Guimarães (ex-Fur Mil At Atilharia e Minas, Xitole, sede da CART 2716 / BART 2917, 1970/73), vive em Espinho, é funcionário da Segurança Social, reformado, e membro do Grupo de Fado de Coimbra do Choupal até à Lapa. (Na foto acima, vêmo-lo, no Xitole, a partir mantenhas com a Helena).


O RAP 2 (Gaia) fez parte da minha família (**)
por David Guimarães


Sempre me preocupei, durante a guerra, em contar cá para a Metrópole (era assim que então se dizia) não propriamente as peripécias da nossa vida militar mas as coisas mais belas que encontrava na Guiné: os mangueiros carregados de mangas, os milhares de morcegos que povoavam o céu ao escurecer e ao amanhecer e que dormiam nas árvores, os macacos, as galinhas de mato, etc.

Eu achava que deveria poupar a minha família e que esta não teria que ouvir e até viver a guerra em directo: bastava para isso o sofrimento de saber que eu andava por lá...

Foi assim que eu senti e vivi a guerra. Lembro-me um dia, quando alguém me disse:
- Guimarães, este batalhão vai para a Guiné - ... Ainda estávamos no RAP 2 em Gaia. E eu exclamei:
- Ainda bem, é a província mais próxima de Portugal para vir de férias...

Não será aqui o sítio certo para falar do RAP 2. Mas na minha vida pessoal foi um marco importante. Foi de lá que foi mobilizado o meu pai, militar de carreira, para ir servir em França… na 1ª Grande Guerra (Ele nasceu em 1893 e eu nasci quando ele tinha 54). É de lá mobilizado o meu irmão que parte, com o BART 525, para Angola e sou eu mobilizado, no BART 2917, para servir na Guiné...

Ironias do destino ou coincidências de graus de parentesco... É que, entre o meu irmão e o meu pai, também é mobilizado para África um primo meu, em 1º grau. Não há dúvida, aquele Regimento entrou na nossa casa, muito antes de eu ter nascido... Se fosse isto um romance serviria para dizer que a minha existência como que começou ali. Mas isto é outra história que, não sendo menos curiosa, não vem agora a propósito...

Não pensem que há algum anacronismo quando eu refiro que o meu pai foi mobilizado, pelo RAP 2, para servir a Pátria, em França, em 1917... O meu pai nasceu em 1893 e eu em 1947, o que quer dizer que nos separam 54 anos... 2º Sargento de Artilharia de Campanha, segue para França, integrado no Corpo expedicionário, comandado pelo General Gomes da Costa.

Como mera curiosidade, sou eu que tenho a caderneta militar e as condecorações de meu pai: guardo com toda a estima sete medalhas, sendo uma delas a da Vitória... Por outro lado, e como sabem, nós estivemos na 1ª Guerra Mundial e não na 2ª.

__________

Notas de L.G.:

(*) 10 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - XCIX: Estórias do Xitole: 'Com minas e armadilhas, só te enganas um vez' (David Guimarães)

(**) Vd. poste de 20 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4059: Meu pai, meu velho, meu camarada (1): Memórias de Cabo Verde, São Vicente, Mindelo, 1941/43 (Luís Graça)

domingo, 18 de novembro de 2007

Guiné 63/74 - P2278: Estórias do Xitole (David Guimarães, ex-fur mil, CART 2716, 1970/72) (1): A triste sorte do sapador Quaresma... morto por aquela maldita granada vermelha

Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Xitole > CART 716 (1970/72) > Abrigo onde estavam alojados a maior parte dos furriéis da companhia. Na foto, o David, cronologicamente o nosso tertuliano nº 3...

Foto: © David J. Guimarães (2005). Direitos reservados.

Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Xitole > CART 2716 (1970/72) > O Fado da Guerra ou... das Minas e Armadilhas ? Os Fur Mil Guimarães (tocando viola) e Quaresma, sapadores...
Foto: © David J. Guimarães (2005). Direitos reservados.

Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Xitole > CART 2716 (1970/72) > Os Fur Mil Guimarães e Quaresma, sapadores, junto ao abrigo de sargentos.
Foto: © David J. Guimarães (2005). Direitos reservados.


Texto do David J. Guimarães, ex-furriel miliciano da CART 2716 (Xitole, 1970/1972). Originalmente publicado em 10 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - XCIX: Estórias do Xitole: 'Com minas e armadilhas, só te enganas um vez' (David Guimarães)


Estórias do Xitole (1): A morte do sapador Quaresma...

por David Guimarães


O RAP 2 (Gaia) semppre fez parte da minha família



Sempre me preocupei, durante a guerra, em contar cá para a Metrópole (era assim que então se dizia) não propriamente as peripécias da nossa vida militar mas as coisas mais belas que encontrava na Guiné: os mangueiros carregados de mangas, os milhares de morcegos que povoavam o céu ao escurecer e ao amanhecer e que dormiam nas árvores, os macacos, as galinhas de mato, etc.

Eu achava que deveria poupar a minha família e que esta não teria que ouvir e até viver a guerra em directo: bastava para isso o sofrimento de saber que eu andava por lá...

Foi assim que eu senti e vivi a guerra. Lembro-me um dia, quando alguém me disse:
- Guimarães, este batalhão [BART 2917] vai para a Guiné (ainda estávamos no RAP 2 em Gaia). E eu exclamei:
- Ainda bem, é a província mais próxima de Portugal para vir de férias...

Não será aqui o sítio certo para falar do RAP 2. Mas na minha vida pessoal foi um marco importante. Foi de lá que foi mobilizado o meu pai, militar de carreira, para ir servir em França… na 1ª Grande Guerra (Ele nasceu em 1893 e eu nasci quando ele tinha 54) (1). É de lá mobilizado o meu irmão que parte, com o BART 525, para Angola e sou eu mobilizado, no BART 2917, para servir na Guiné...

Ironias do destino ou coincidências de graus de parentesco... É que, entre o meu irmão e o meu pai, também é mobilizado para África um primo meu, em 1º grau. Não há dúvida, aquele Regimento entrou na nossa casa, muito antes de eu ter nascido... Se fosse isto um romance serviria para dizer que a minha existência como que começou ali. Mas isto é outra história que, não sendo menos curiosa, não vem agora a propósito...


O soldado Almeida: a nossa primeira baixa


Uma noite, no início da comissão no Xitole, ainda estava eu de serviço, de sargento de dia... O Leones, furriel miliciano, meu camarada, informa-me:
- Guimarães, um teu soldado está mal…

E estava mesmo: quando lá cheguei vi a equipa de enfermagem em volta dele mas já nada havia a fazer... O soldado Almeida tinha morrido no seu posto de sentinela, fulminado por um ataque... de coração!

Foi a nossa primeira baixa. No dia a seguir chega um médico à Companhia e lá vai autopsiar o Almeida... Confirma o óbito: enfarte do miocárdio. Assina: Alferes miliciano médico Horta e Vale. Curioso, este médico (quem o conheceu teve sorte, contava cada história!), hoje é um distinto médico dentista da Clínica da Circunvalação, aqui junto à cidade do Porto.

Bem, nada como pegar no pessoal mais chegado, eu era um deles, pois o Almeida era meu soldado (meu, e aí surge o termo militar de posse, meu). Mas como dizia, aquando da evacuação - e tudo foi rápido, mesmo! - aí fomos nós fazer patrulhamento para as zonas próximas de Seco Braima [vd. mapa do Sector L1, Zona Leste]. Nos céus do Xitole levantava um helicóptero e lá levava o Almeida: tinha adormecido no seu posto… Para sempre.... Deus o guarde!






Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > CCS do BART 2917 (1970/72) > Monumento aos mortos do batalhão e unidades adidas (este monumento foi destruído a seguir à independência da Guiné-Bissau). O Fur Mil Quaresma e o Sold Almeida pertenciam à CART 2617.

A vida lá volta à rotina, os patrulhamentos, as acções psico e a ida à Ponte dos Fulas... Ui, aqueles 3 a 4 Km que todos os dias eram picados e onde se ia sempre levar os géneros!... A Ponte dos Fulas, onde fiz o primeiro mês da minha comissão, a Ponte dos Fulas!...

Era o local onde efectivamente o repouso era enorme, mas cansativo. Ali é que não havia ninguém a não ser o pelotão de serviço... Comia-se, bebia-se e mais nada, além da missão de vigilância permanente, que consistia em guardar aquela ponte de origem militar sobre o Rio Pulon...


Era uma vez um granada instantânea com fio de tropeçar

O aquartelamento do Xitole estava bem minado em seu redor. Do lado da pista de aviação, tinha eu mesmo montado um poderoso fornilho às ordens do capitão. Esse fornilho era comandado do abrigo dos furriéis (vd. foto onde estou eu sentado em cima de um bidão). De resto todo o terreno à volta estava semeado de minas A/P m/966 (2)...

Para a protecção total e permanente do aquartelamento no Xitole só faltava um ponto por armadilhar: a estrada Bambadinca - Xitole - Saltinho... Os ex-combatentes da CCAÇ 12 conheciam-na bem e sabiam onde era a casa de Jamil Nasser, um comerciante libanês que vivia no Xitole (*) ... Pois era exactamente ali, naquela rampazinha que dava acesso ao aquartelamento.

Resolveu-se então que todas as noites essa entrada do quartel fosse armadilhada... Essa operação era sempre feita ao cair do dia. O material era simples: uma granada instantânea e arame de tropeçar, do mesmo tipo daquela granada que um dia matou o macaco.... Lembram-se dessa estória que eu aqui já contei [vd. post de 23 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXV: Minas e armadilhas ]

E lá foi naquele dia o Quaresma, sempre ele, que já tratava por tu essa maldita granada. E como gostava dela, o furriel miliciano Quaresma!

Mais um dia, e novamente o armadilhamento da entrada. Dessa vez ele até foi contrariado, estava a preparar uma galinha para churrasco, lerpou, não comeu…

O quadro é simples: ouve-se um rebentamento, só um. O Quaresma é decapitado (**), o Leones fica cego e sem dedos… Ficámos todos em estado de choque:
-Não podia ser!!!

Mas foi: um parte para a eternidade, o outro é evacuado... O Quaresma desta vez tinha falhado, nunca mais armadilharia na vida (3)...

David J. Guimarães

Notas do D.G.:


(1) Não pensem que há algum anacronismo quando eu refiro que o meu pai foi mobilizado, pelo RAP 2, para servir a Pátria, em França, em 1917... O meu pai nasceu em 1893 e eu em 1947, o que quer dizer que nos separam 54 anos... 2º Sargento de Artilharia de Campanha, segue para França integrado no Corpo expedicionário, comandado pelo General Gomes da Costa. Como mera curiosidade, sou eu que tenho a caderneta militar e as condecorações de meu pai: guardo com toda a estima sete medalhas sendo uma delas a da Vitória... Por outro lado, e como sabem, nós estivemos na 1ª Guerra Mundial e não na 2ª.
(2) Não sei se sabiam, aqueles que não eram de artilharia, mas uma CART como a 2716 tinha três Furriéis de Minas e Armadilhas e um Alferes. Todos levantámos uma PMD-6 do IN em diversos locais: o Alferes Sampaio, o Furriel Quaresma, 0 Furriel Ferreira e eu. A PMD-6 é exactamente aquela mina que se encontra já documentada em fotografia (vd. acima). De fabrico russo com espoleta MUV. Esta espoleta tinha uma particularidade curiosa: poderia funcionar por pressão ou tracção...



Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Xitole > CART 2716 (1970/72) > Mina antipessoal PDM-6 reforçada com uma carga de trotil de 9 kg (as barras do lado direito). Detectada e levantada na estrada Bambadinca-Xitole pelo furriel de minas e armadilhas Guiimarães da CART 2716 ("Bem, ia uma GMC ao ar, isso sim!!!".

Foto: © David J. Guimarães (2005). Direitos reservados.


Amigos, este caso que aqui relato foi, e ainda é, bastante doloroso para mim. Confesso que, ao evocá-lo trinta e tal anos depois, não consegui conter uma lágrima...

As grandes batalhas eram travadas nestas pequenas guerras surdas, que quase não se davam por elas. Muitos diziam que eram acidentes e não contabilizavam estas baixas como mortes em combate. Sempre tive opinião diversa, porque o combate estava exactamente sempre que havia necessidade de manusear uma arma de fogo, preparando-a para a defesa ou ataque...

Centenas, talvez milhares de indivíduos morreram a armadilhar… mas não morreram em combate, segundo as estatísticas. Dá-me vontade de perguntar:
- Terá sido a brincar ? E será que armadilhávamos os terrenos para apanhar gazelas, cabritos e cabras?
Pois, não era para caçar e muito menos para nos matarmo-nos a nós próprios....

Tive um amigo, alferes (antes andava embarcado, a tropa foi lá buscá-lo com 30 anos)... Isso é pouco interessante. O que eu quero referir, em concreto, é que, já no nosso tempo, na estrada de Mansoa - Mansabá ele levantou uma mina PMD-6 e… morreu a olhar para ela. Rebentou-lhe na mão!!!
- Como é que isso aconteceu ? ...
Ele já não está cá, entre nós, para contar o que aconteceu... Chamava-se Couto... Talvez haja alguém que um dia apareça na nossa tertúlia e saiba contar melhor esta estória…

(3) O Leones ainda hoje é vivo, está cego e trabalha na Previdência em Lisboa. O Rebelo, furriel sapador do BART 2917, escolhido para delegado do Batalhão em Bissau, era quem tomou conta do espólio do Quaresma. Quando estava doente com paludismo, assaltaram-lhe o espólio do Quaresma. Bem, acontece que eu, como estava de férias, lá fui a Algés (onde morava os pais do Quaresma) tentar negociar...

Sabem o que a mãe me perguntava? Se o filho estava interinho... E eu lá tive que mentir, dizendo que sim... Como é que eu podia contar-lhe a verdade, dizendo de chofre que ele ficara sem a cabeça no local onde armadilhava com uma granada instantânea, aquela maldita granada vermelha com espiras de aço !?... É claro que não podia contar essa história a uma mãe. Mais me perguntava ela pelo fio de ouro que ele usava...Eu tive que lhe dizer que possivelmente alguém tinha guardado, não se sabia aonde...

Mais tarde, o pai tentou negociar o espólio, tentando sei lá o quê (ganhar algum junto da tropa no Quartel General, extorquir o desgraçado do Rebelo...). Não conseguiu, mas o Rebelo passou uns maus bocados.
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Notas de L.G.:

(*) Vd. post de 11 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P952: Evocando o libanês Jamil Nasser, do Xitole (Joaquim Mexia Alves, 1971/73)

(**) Joaquim Manuel da Palma Quaresma, Fur Mil do Exército, morreu a 20 de Outubro de 1970... por acidente. É assim que consta, para a posteridade nos registos da tropa...