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quarta-feira, 27 de maio de 2015

Guiné 63/74 - P14669: Os nossos seres, saberes e lazeres (96): Tomar à la minuta (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 29 de Abril de 2015:

Queridos amigos,
Por muito insólito que pareça, tenho casa em Tomar, troquei uma casa em pedra no concelho de Pedrógão Grande por um andar junto de um lugar mágico, a magia é sempre produto da nossa imaginação ou dos nossos credos. Vou conhecendo Tomar, tateia-se aqui e acolá, descobre-se o cineclube, o espaço dedicado a Lopes Graça, um museu de arte contemporânea com a doação do professor José Augusto França à cidade, percorro as ruas do centro histórico, vou ao Café Paraíso, impecavelmente Arte Deco, há muitíssimos pontos a descobrir. E por isso tomei a liberdade de escancarar algumas imagens para vos convocar ao idílio tomarense.
Espero que gostem.

Um abraço do
Mário


Tomar à la minuta (1)

Beja Santos

Trago uma relação idílica com este local que é, sem qualquer exagero, um dos berços da Nacionalidade. Berço e berçário: aqui se afirmou a Ordem do Templo, os guerreiros guardiães que afugentavam mouros e que partiam em cruzada para Jerusalém, quando extintos o gémeo de um rei concebeu a nacionalização dos seus bens, a Tomar vinha o Infante D. Henrique avaliar as suas posses, daqui partiu muito capital para as expedições para cá e para lá do Bojador; o Convento de Cristo é mesmo património da Humanidade, visita-se a charola, ali perto a mais bela janela que existe em Portugal, a do Capítulo, um devaneio de D. Manuel I, de que o filho certamente considerava excêntrico, aquele D. João III que resolveu entaipar o ponto alto da arquitetura tomarense construindo um convento para que ninguém tivesse acesso aos delírios do grande patrocinador do estilo manuelino.

Tomar oferece muito: o Nabão, que serpenteia entre vales dulcíssimos; tem a Igreja dos Templários, que comove e arrepia; tem a Festa dos Tabuleiros, um dos fenómenos mais mirabolantes do culto do Espírito Santo; tem cineclube, teatro amador, bandas, futebol e hóquei; tem sinagoga, raríssimo exemplar de templos judaicos medievais; tem espécimenes de valor absoluto na arte da Contra-Reforma, basta pensar-se no claustro de D. João III, ali muito perto dos delírios manuelinos; tem a singularidade de um museu dos fósforos, aparentemente uma estopada, e de facto um regalo para os olhos; tem um centro histórico onde apetece passear, numa atmosfera apaziguante; e tem o RI 15, daqui partiram muitos mancebos do nosso tempo para a Guiné e outras paragens. Habito em cima de uma lezíria, no termo do Ribatejo, da janela da sala avisto castelo, convento e charola e também os choupos do Nabão, a ventania apresenta-se com regularidade, sibilante, lavando os ares e torcendo a ramaria das árvores. Ponho-me a caminho, e centenas de metros à frente encontro monumentos de valor incalculável, a recordar o encontro das hostes do Contestável D. Nuno com os homens do Mestre de Avis, uma memória a El Rei D. Sebastião, sigo depois por uma avenida onde habita a comunidade cigana, seguem-se stands, lojas dos chineses, de roupa para noiva, aqui e acolá moradias magníficas e vestígios da Tomar industrial, pois aqui pontificou Jácome Ratton e Manuel Mendes Godinho. E estou no centro histórico, o Nabão corre desalmado e entro naquela que é a minha rua mais bela, a Serpa Pinto ou a Corredoura. Daqui perto, minha avó partiu com 14 anos, levando bonecas, destinada a casar com um homem de 36, a viver no Cuanza Norte. Chega de conversa, vou dar-vos algumas imagens em passo de corrida, são imagens ligadas a lugares da minha atração, pode muito bem acontecer que depois, pelo adiante, se dê sequência e se faça uma apresentação mais acabada e até mais vistosa.



Estamos no Museu dos Fósforos, chama-se Aquiles da Mota Lima, este senhor foi assistir à coroação de Isabel II, viu caixas de fósforos, tomou-lhe o gosto e juntou-as aos muitos milhares, de muitos países. Doou a sua coleção à edilidade tomarense, prantaram o museu no antigo RI 15, resulta bem, entra-se e temos uma infinidade de compartimentos, com fósforos por todos os lados. É impressionante, recomendo a visita ao forasteiro.



Estamos na Igreja da Misericórdia, deixo-vos duas imagens contrastantes, a riqueza polícroma e ao fundo uma nave típica da Contra-Reforma, severa, é uma das grandes peças da arquitetura religiosa tomarense, uma das demonstrações do poder das misericórdias.


Por aqui se entra para visitar o Convento de Cristo, o guardião da Ordem, o Infante D. Henrique passou muito provavelmente por aqui, bem perto está o Paço, são ruínas imponentes nem dá para perceber como D. Catarina de Áustria, que foi regente do reino até D. Sebastião atingir a maioridade, pode viver com o mínimo de conforto.



Recomenda-se a visita guiada a quem se afoitar a entrar pelas muralhas do castelo, é tudo extenso e muito é indecifrável. Quando estamos para entrar no convento avista-se uma construção monumental arruinada, o teto há muito que desapareceu. Nesse lugar celebraram-se as Cortes de Tomar onde Filipe II de Espanha foi aclamado como Filipe I de Portugal, percebe-se o incómodo logo a seguir à Restauração. O que não se entende são as belas paredes pejadas de salitre e o Paço Real todo desconjuntado.



Lá dentro as coisas fiam mais fino. Fiz a visita no Dia Internacional dos Monumentos e Sítios, havia descontos chorudos na loja de vendas, comprei um álbum de desenhos de Domingos Sequeira ao preço da chuva. E o teto da loja é a magnificência que vos mostro. E a seguir entrei na charola, é sempre a primeira vez, à falta de uma Capela Sistina temos outra sorte de fausto, é um cocktail de arte oriental, opulência de ouros, frescos, tudo cheio de telas em madeiras que vieram do Báltico, o monarca não se poupou a despesas, convocou grandes mestres flamengos e o produto final é o deslumbramento, ficamos de garganta seca, aturdidos com tanto e tal esplendor.



Sai-se da charola e deparam-se detalhes de como o severíssimo D. João III quis esconder o estilo manuelino, a primeira imagem é quase um entaipamento, os motivos escultóricos ficaram encobertos, o piedoso fomentador da Inquisição exigiu que o desafogo se concentrasse numa peça feita ao estilo italiano, o claustro, reconheça-se que é muito belo, mas fica-se indignado como o monarca absoluto, ao tempo que o nosso Império atingira a sua máxima extensão e se encaminhava para o declínio, escondeu manuelino só para que o visitante se sinta enfeitiçado por esta arte depurada do neoclassicismo, um pouco da Itália em Portugal. Isto assombra, mas volto as costas a D. João III e aos seus rigores, vou-me desenfastiar a contemplar a mais linda janela que foi feita em Portugal.

(Continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 22 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14649: Os nossos seres, saberes e lazeres (95): Se fosse presunto... (Manuel Luís R. Sousa)

domingo, 26 de abril de 2015

Guiné 63/74 - P14527: No 25 de abril eu estava em... (25): Tomar, RI 15, era 1º cabo miliciano e fui destacado para defender a estratégica barragem de Castelo de Bode, com mais 14 homens, e descobri, nessa missão, que a solidariedade afinal não era uma palavra vã (Eduardo Magalhães Ribeiro, ex-fur mil op esp, CCS/BCAÇ 4612/74, Mansoa, 1974)




Leiria > Monte Real > Palace Hotel Monte Real > X Encontro Nacional da Tabanca Grande > 18 de abril de 2015 > O Eduardo (em cima) e o filho, Carlos Eduardo (em baixo, à esquerda, tendo a seu o José Almeida e a Antónia, de Viana do Castelo...).

O Eduardo foi buscar o filho ao aeroporto, a Lisboa. Trabalha na... Roménia.  Presumo que tenham vindo de férias... Ainda passaram, a correr, por Monte Real, a caminho de casa. Almoçaram connosco e continuaram a viagem até casa... Um gesto de grande camaradagem e de carinho que todos apreciámos... [No foto acima, o Eduardo, de pé, está a falar com o Mário Fitas (Cascais), o Rui Silva e a esposa Regina Teresa (Feira), habituais participamtes do nosso encontro anual.] (LG)

Fotos: © Manuel Resende (2015). Todos os direitos reservados.


Capa dos cadernos do ex-ranger Magalhães Ribeiro, que fez parte do lote dos últimos soldados do império... Recorde-se quie ele foi furriel miliciano da CCS do Batalhão 4612/74 (Mansoa, 1974). Foi mobilizado para a Guiné já depois do 25 de Abril de 1974. Chamei a esses cadernos o "Cancioneiro de Mansoa"... Na capa, reproduzida acima,  pode ler-se: (i) em Lamego... ser ranger; (ii) em Tomar... participar no 25 de Abril; (iii) em Mansoa, Guiné... arriar a última Bandeira.


Foto: © Magalhães Ribeiro (2005). Todos os direitos reservados.


1. Num caderno, de 47 páginas, de que  o nosso camarada Eduardo Magalhães Ribeiro [ foto à esquerda,  "quando pira"], me ofereceu um cópia quando o conheci pessoalmente, no seu local de trablho, no centro do Porto, ele conta, em verso, as peripécias da sua atribulada vida militar. 

 Esses versos já foram aqui reproduzidos, originalmente, há largos anos (*)... Como escrevi na altura, o "Cancioneiro de Mansoa" está imbuído da ideologia (ou da mística) dos rangers, mas tem a curiosidade de ser um documento pessoal,  escrito por um dos últimos guerreiros do império e, para mais, ao longo dos anos que se sucederam ao 25 de Abril de 1974 em que o autor também participou... com um missão de retaguarda: a defesa da barragem de Castelo de Bode, um ponto absolutamente estratégico (já que a grande Lisboa dependia dela para o abastecimento de água e de energia elétrica)... 

A barragem era gerida então pela CPE - Companhia Portuguesa de Electricidade (nascida, no final da década de 1960, resultante da fusão das empresas concessionárias da produção e Transporte da rede eléctrica primária; nacionalizada em 1975, estaria mais tarde,  em 1976, na origem da  EDP)

Esta sua participação nas operações no 25 de abril, mesmo que fora dos holofotes da ribalta e da história, é conhecida dos mais antigos membros da Tabanca Grande, mas não da maioria que chegou depois de 2007 (*)... Justifica-se por isso a reedição destas quadras singelas do nosso "ranger" (que eu depois convideu  para coeditor).  

É uma dupla homenagem, (i) ao 25 de abril de 1974 (com tudo aquilo que ele significa para todos nós, independentemente da leitura que cada um possa faz desse acontecimento histórico, que todos vivemos); e (ii) ao nosso camarada Magalhães Ribeiro que merece todo o nosso apreço, amizade e camaradagem... 

Curiosamente, o Eduardo estaria longe de imaginar, em 26 de abril de 1974, que ainda haveria de ir trabalhar para a EDP como técnico de manutenção de barragens... Enfim, mais uma terceira razão para dar a conhecer esta versão poética de uma missão que ele executou, com prontidão, galhardia  e espírito de desenrascanço, que são timbre de qualquer "ranger", e longe de imaginar que, quatro meses depois, estaria em Mansoa a arriar a última portuguesa no território da ex-Guiné portuguesa (**)... (LG)



O 25 de Abril, a Barragem [de Castelo de Bode] e a CPE [, Companhia Portuguesa de Eletricidade]

por Eduardo Magalhães Ribeiro

Depois das Caldas da Raínha,
Lamego e Évora longe vão,
Seguiu-se a cidade de Tomar,
1ª Companhia de Instrução.

Regimento de Infantaria 15,
Ía eu no décimo mês militar,
Em Abril de setenta e quatro,
Aconteceu numa noite de luar.

Gerou-se confusão no quartel,
Alguém correu a dar o alarme,
Corria o dia vinte e cinco
Ordem: "Toda a gente se arme!"

Falava-se numa revolução,
Tropas a avançarem p’rá Capital,
A ocuparem as rádios e a TV
E outros d’importância vital.

Como achei aquilo estranho
E estava a ficar ensonado,
Fui tomar um banho e deitei-me;
De manhã... ruídos por todo o lado!

Os ouvidos todos nos rádios,
Seguiam os acontecimentos,
Alguns mostravam indiferença,
Outros devoravam aqueles momentos.

- O nosso Capitão quer vê-lo, já!, 
Diz-me de repente um soldado;
Ao chegar junto dele reparei
No seu ar nervoso e preocupado.

- Meu capitão, bom dia, dá-me licença?
- Tenho uma missão p’ra lhe confiar...
Há um levantamento militar geral...
Com intenção do regime derrubar!

- Veio ordens para os Pides prender,
E controlar todos os pontos vitais...
Por isso, tenho aqui neste mapa
Já definidos todos os locais!

E, perante a minha curiosidade,
Disse: - Em Lisboa rein’a confusão...
O Movimento das Forças Armadas
É dono do Poder e da Decisão.

- Dividi as missões e o pessoal,
A si, tocou segurar a barragem…
Castelo de Bode, veja aí no mapa…
Um Cabo, treze homens, siga viagem!

Chegado lá, estudei a área,
Rio, coroamento, margens e central,
Sete homens vigiam, sete descansam,
Olhos atentos a algo anormal.

Mandei montar a tenda no jardim,
As horas passaram rapidamente,
O tempo do almoço passou e, nada…
- Liga o rádio p’ró quartel, urgente!

Diz o Cabo: - Está avariado!-...
Ora, sem rádio e sem almoço,
Também se passou a hora de jantar
E, para comer, nem um tremoço.

O Cabo começou então a divagar:
- Ou está tudo morto no quartel,
E s’esqueceram de nós aqui,
Ou foram p’ra Lisboa, c’um farnel!

Entretanto no nosso controle auto,
Os civis davam sinais de alegria,
Faziam-me perguntas suspeitas
Qu’eu declinava, e não respondia.

Ao fim da manhã do outro dia,
Deleguei o comando ao Cabo,
E fui pesquisar os arrabaldes,
Pois à vista, p’ra comer, nem um nabo.

Contado todo o dinheiro, concluí:
- Nunca vi gajos tão tesos, porra!
Lembrei-me da regra simples da tropa:
Quem não se desenrasca, que morra!

Na margem direita, um pouco abaixo,
Vi uma estalagem da CPE,
Qualquer coisa da Electricidade,
E com coragem avancei, pé ante pé.

Expus ao chefe o meu problema
E descobri, naquela fresca manhã,
Que a palavra solidariedade
Afinal não era uma palavra vã.

A tropa não era só marcar passo!,
Permitia conhecer outras terras,
Com belas paisagens e monumentos,
Por entre cidades, vales e serras.


Autor: Magalhães Ribeiro - 1º Cabo Miliciano
1ª Companhia de Instrução - 4º pelotão

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10712: Meu pai, meu velho, meu camarada (34): Tropas expedicionárias portuguesas, em São Vicente, Cabo Verde, 1941/45, mostram solidariedade com o povo sofrido da ilha (Adriano Miranda Lima, cor inf ref, Tomar; cortesia de Praia de Bote)


Reprodução (parcial) do poste nº 8 da série Tropas expedicionárias portuguesas em Cabo Verde durante a II Guerra Mundial, da autoria de Adriano Miranda Lima, publicado no blogue Praia de Bote


1. Já aqui falámos do blogue Praia de Bote e do nosso leitor Adriano Miranda Lima, cor inf ref, residente em Tomar, e natural de São Vicente, Cabo Verde. O cor Miranda Lima serviu, durante muitos anos, no RI 15, o prestigiado RI 15, donde saíram, ao longo da nossa história, milhares e milhares de combatentes. E tem um especial carinho não só pela sua terra de origem, Mindelo, São Vicente, Cabo Verde, como pelos "nossos pais" que estiveram lá, em missão de soberania durante a II Guerra Mundial... 


Sobre esses "expedicionários" ele tem vindo a escrever no blogue Praia de Bote, estando de resto autorizado a utilizar textos, vídeos e fotos do nosso blogue, e nomeadamente da série "Meu pai, meu velho, meu camarada"... Com data de ontem, 22, saiu mais um poste, que traz um sugestivo título: "Levaram na mochila o espírito de solidariedade"... Tenho pena que o "meu velho" já não esteja vivo para lhe poder ler alguns excertos... 

 Aqui vão eles, de qualquer modo, para conhecimento dos nossos leitores, enquanto ao mesmo tempo reitero o meu convite ao Adriano Miranda Lima para aceitar o meu convite para ingressar na Tabanca Grande (ambos temos no coração Cabo Verde, e esta terra está intimamente ligada à história da Guiné e da guerra colonial) (*): 

(i) (...) " Até as praças do contingente expedicionário arranjaram o seu 'impedido', glosando-se aqui, claro, o significado militar do vocábulo. E quem eram esses 'impedidos'? Nada mais que a miudagem que se acercava dos portões dos quartéis à procura de um pouco de alimentação. As praças precisavam de alguém que lhes levasse a roupa a uma lavadeira, que lhes desse um recado ou até que lhes engraxasse as botas".

(ii) (...) "Em relatos que ouvi a muitos desses ex-militares, raros são os que não conservaram para sempre na memória o triste episódio da fome que assolava o arquipélago e dizimava impiedosamente vidas humanas (cerca de 50.000 mortos entre 1943 e 1945). É por esta razão que o coração dos militares não era insensível ao espectro da fome estampado nos rostos dos rapazinhos que se abeiravam dos quartéis. Muitos reservavam um pouco da sua alimentação diária aos seus 'impedidos', quer fosse pão quer fosse comida confeccionada nos caldeiros do rancho geral. Só quem nunca sentiu a tortura da fome não imagina o valor que teria naquela altura uma simples côdea de pão ou uma tijela com uns restos de sopa". (...)




Cabo Verde, Ilha de São Vicente > "Luís Henriques, em 10 de maio de 1942. Na praia do M. [Monte] Branco, Lazareto, São Vicente". Foto do álbum de Luís Henriques (1920-2012). No verso, além da legenda transcrita, há  um carimbo com os dizeres: "MELO Foto. Secção de amadores. São Vicente".

 Foto: © Luís Graça (2012). Todos os direitos reservados



Cabo Verde, São Vicente, Mindelo (?) > "Festa em San Vicente, nosse terre. Nativos em festa. Recordação da minha estada em C. Verde, expedidição 1941-1943. Luís Henriques". Foto do álbum de Luís Henriques (1920-2012).

Foto: © Luís Graça (2012). Todos os direitos reservados


(iii) (...) "De entre muitos testemunhos, vale a pena registar aqui o do antigo expedicionário 1º cabo Luís Henrique, do Batalhão de Infantaria 5, aquartelado em Lazareto, que me foi transmitido em mail pessoal pelo seu filho (,..), editor do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, espaço no qual o mesmo testemunho foi reportado há alguns anos, assim como factos relevantes da vida militar do seu pai em terra cabo-verdiana. 

Textualmente, transcreve-se esta seguinte passagem do citado mail: 'O meu pai lembra-se da epidemia de fome que assolou as ilhas, no tempo em que lá esteve (1941/43). O seu 'impedido', o Joãozinho, que ele alimentava com as suas próprias sobras do rancho, também ele morreu, de fome e doença, em meados de 1943. Comove-se ao dizer que deu à família do miúdo todo o dinheiro que tinha em seu poder (cerca de 16$00), para ajudá-la nas despesas do funeral'. Luís Graça explicou que o seu pai estava na altura hospitalizado mas que acompanhou o triste episódio da morte do seu 'impedido' .(...) 

 Não há exemplo mais tocante e mais grandioso do que o daquele que dá o pouco que tem para mitigar a fome e o sofrimento do seu semelhante. Foi o caso do senhor Luís Henrique e de muitas praças dos contingentes militares expedicionários" (...).

(iv) (...) "Em narrativas anteriores, referi a importância particular que para mim reveste o Batalhão de Infantaria 15, nomeadamente a sua 3.ª Companhia de Atiradores, a que ficou em S. Vicente enquanto o grosso do Batalhão foi destacado para a ilha vizinha. Vamos ver o porquê desse meu sentimento. Essa companhia, sob o comando do capitão Fernando de Magalhães Abreu Marques e Oliveira, ficou aquartelada no centro do Mindelo (...). Aquele capitão era venerado pelos seus antigos subordinados, que o recordavam pela sua competência profissional e pelo espírito humanitário oculto atrás do seu ar sóbrio e grave. (...)

(v) (...) "Condoído com aquela dramática situação [, a fome que lavrava na ilha], o capitão Oliveira ordenou ainda a montagem de um mais organizado serviço de distribuição de sobras de rancho, autorizando que aqueles pobres civis entrassem mesmo para dentro da área militar. À certa altura, reparando que o número de necessitados crescia a olhos vistos, disse ao furriel que tinham de arranjar um processo de maximizar as sobras de alimentação de forma a responder melhor àquela situação. Perante as dúvidas do subordinado, explicou-lhe que era preciso recorrer a todas as situações administrativas e meios possíveis". (...)





" Foto pertencente à família do capitão Paiva Nunes e por ela cedida ao autor [, Adriano Miranda Lima]. Os oficiais presentes são todos capitães. (...) À frente, e da esquerda para a direita, o capitão Mário de Paiva Nunes e o capitão Fernando de Magalhães Abreu Marques e Oliveira (aos 40 anos de idade), benfeitor do povo faminto do Mindelo", assinalado com elipse a vermelho. 




(vi) (...) "Recorda-se ainda [, aquele antigo furriel,] de o seu comandante de companhia ter ido falar com o comandante do Regimento de Infantaria 23, designação da unidade que englobava os batalhões de infantaria de S. Vicente, no sentido de sugerir ao seu superior hierárquico que todas as companhias procedessem de igual forma, e dentro dos possíveis, para ajudar as pessoas carentes de alimentação. E a verdade é que o gesto humanitário do capitão Oliveira em prol dos necessitados de S. Vicente não tardou a ser seguido nas outras companhias e baterias destacadas na ilha de S. Vicente". (...)

(vii) (...) "Mas o apoio e o espírito de solidariedade das forças militares tiveram uma expressão alargada e transversal, passando por actos individuais e colectivos e por diferentes sectores das estruturas militares. Destaca-se a acção médica e medicamentosa que a população recebeu durante a permanência das tropas de uma forma sem precedentes na história colonial das ilhas, sobretudo em S. Vicente. Essa acção permitiu salvar inúmeras vidas mediante intervenções cirúrgicas e uso de meios terapêuticos que não teriam sido 
possíveis sem a presença dos militares". (...)


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Nota do editor:

Último poste da série > 7 de outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10496 Meu pai, meu velho, meu camarada (33): Mais notícias das forças expedicionárias da ilha de São Vicente, Cabo Verde (1941/45) (Adriano Miranda Lima, cor inf ref)


domingo, 7 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10496 Meu pai, meu velho, meu camarada (33): Mais notícias das forças expedicionárias da ilha de São Vicente, Cabo Verde (1941/45) (Adriano Miranda Lima, cor inf ref)


1. Comentários, ao poste P10284 (*), de Adriano Miranda Lima, nosso leitor, cor inf reformado, natural de Cabo Verde, São Vicente, antigo combatente da guerra do ultramar (Angola e Moçambique), residente em Tomar [,  foto atual à esquerda, ] , e que gostaríamos que aceitasse o nosso convite para integrar esta Tabanca Grande:

(i) Manifesto ao senhor José Martins a minha admiração pelo excelente trabalho de pesquisa que empreendeu e permitiu a publicação desta lista dos militares portugueses falecidos em Cabo Verde. O meu reparo em relação ao lapso de registo respeitante ao major Nicolau de Luizi deve-se ao conhecimento muito particular que tenho do caso. Sou militar (coronel reformado) e servi grande parte da minha carreira no RI 15, sobretudo depois de finda a guerra de África. Essa condição permite-me conhecer muito bem o historial desse regimento, que beneficiei com pesquisas, reescrevendo algumas das suas páginas.


Como sou cabo-verdiano de nascimento, toca-me também de modo muito particular o historial das tropas expedicionárias durante a II Guerra Mundial. É por isso que me atrai este blogue, cuja consulta me tem facultado alguma ajuda para poder escrever alguns textos que comecei a publicar no blogue Praia de Bote, cujo nome se deve à praia com o mesmo nome existente na cidade do Mindelo, na orla do Porto Grande.

Ainda participei em 3 convívios realizados em Tomar pelos expedicionários do RI 15, que incluíam também expedicionários de outras unidades mobilizadas, como os de Infantaria 5 e 7. O grande entusiasta e organizador desses convívios era o senhor Francisco Lopes (que era conhecido no Mindelo como o Chico da Concertina). Infelizmente, faleceu há para aí 2 anos. Estava muito lúcido e ainda vigoroso, mas bastou terem-lhe tirado a carta de condução (conduziu até idade muito avançada) para entrar numa depressão a que seguiu uma pneumonia que foi a causa da sua morte. Julgo que ele tinha 89 anos.

Fiz duas comissões, uma em Angola e outra em Moçambique, mas na Guiné nunca estive.
(ii) Consultando de novo a lista dos militares inumados em S. Vicente, atentei no seguinte caso: Ovídio de Deus da Silva Buiça - 2º Sargento nº 51-42, da Companhia de Comando do 1º Batalhão Expedicionário da Regimento de Infantaria nº 5 [, Caldas da Rainha], idade não referida, natural de Portalegre, faleceu de ferida perfurante do crâneo, por arma de fogo, em 3 de Abril de 1943 [Possivelmente, suicídio]. Inumado na 14ª campa de Rua 56, do Cemitério do Mindelo, Ilha de São Vicente.

Confirmo que se tratou, de facto, de suicídio. Infelizmente, o sargento pôs termo à vida por irregularidades que lhe foram detectadas na administração de contas que tinha a seu cargo. Esse sargento era amigo de um familiar meu.

Visitei em Julho passado o talhão militar e não deixei de me comover com a visão das campas de dezenas de militares que morreram em terra distante longe das suas famílias. É a mesma comoção que me provoca a recordação de duas praças que deixei enterradas em Angola, por lá continuando ainda os seus restos mortais. Em Moçambique, os meus mortos foram já enviados para a metrópole, pois os enterramentos locais deixaram de se fazer. Tarde demais, quanto a mim, pois o efeito moral da situação contrária era arrasador.



2. Apontamentos do cor inf ref Adriano Miranda Lima, no blogue Praia do Bote, sobre as forças expedicionárias em São Vicente, durante a II Guerra Mundial:

(...) Vejamos agora alguns dados constantes da História do Exército Português (1910-1945), obra organizada sob a coordenação do general Arménio Nuno Ramires Oliveira, oficial que, por coincidência, serviu no comando militar de S. Vicente como capitão e major.

A organização militar, que devia ser estabelecida de acordo com o Decreto nº 29686, de 14 de Julho de 1939, acabaria por não ser efectivada em Cabo Verde. Assim, teve-se de recorrer ao envio de forças expedicionárias da metrópole para a sua defesa.

A ocupação das ilhas e a organização das forças foram sofrendo as adaptações que os efectivos iam permitindo. Uma das condicionantes foi a carência de material, em especial de artilharia. Mas em Julho de 1941 encontravam-se prontos a embarcar em Inglaterra com destino a Cabo Verde, 3 peças de artilharia 4,7", 3 jogos para plataformas e 450 munições. (Este material diz respeito à artilharia de costa). As autoridades inglesas ofereceram ainda pessoal para instruir e montar estas peças.


Em 1941, foi criada na cidade do Mindelo, em S. Vicente, uma Bateria de Artilharia de Costa. Em fins de Agosto de 1941, era transferida a título provisório, da cidade da Praia, em Santiago, para a cidade do Mindelo, em S. Vicente, a sede da Repartição Militar. A evolução da guerra mostrou a urgência de criar um dispositivo defensivo na ilha de S. Vicente, pelo que foi ordenada a mobilização das seguintes forças:

Para a Ilha de S. Vicente:

- Comando Militar de Cabo Verde, sendo comandante o brigadeiro Augusto Martins Nogueira Soares, desde Agosto de 1941 até Dezembro de 1944;
- Comando do Regimento de Infantaria 23, integrando os batalhões seguintes;- 1.º Batalhão expedicionário do Regimento de Infantaria 5 (Caldas da Rainha);
- 1.º Batalhão Expedicionário do Regimento de Infantaria 7 (Leiria);
-  1.º Batalhão Expedicionário do Regimento de Infantaria 15 (Tomar);
- Bataria de Artilharia de Costa 1;
- Bataria de Artilharia de Costa 2;
- Bataria de Artilharia Contra Aeronaves 9,4 cm;
- Bataria de Artilharia Contra Aeronaves 4 cm;
- Bataria de Referenciação;
- 2.ª Companhia de Sapadores Mineiros do Regimento de Engenharia 2;


Apoiavam estas unidades as formações dos serviços militares seguintes:

- Parque de Engenharia;
- Tribunal Militar;
- Hospital Militar Principal de Cabo Verde;
- Depósito de Subsistência e Material;
- Laboratório de Análise de Águas;
- Depósito Sanitário;
- Secção de Padaria.

O conceito de defesa da ilha de S. Vicente consistia essencialmente numa sólida ocupação e, em caso de emergência, manter a posse a todo o custo das regiões de João Ribeiro e de Morro Branco e a cidade do Mindelo. Para tal, 2 batalhões ocupavam posições de defesa e 1 batalhão, reduzido, encontrava-se em posição de reserva.

Para a ilha do Sal:

- 1.º Batalhão Expedicionário do Regimento de Infantaria 2:
- 1.º Batalhão Expedicionário do Regimento de Infantaria 11;
- 3.ª Bataria de Artilharia Contra Aeronaves.
O Hospital Militar do Sal apoiava essas unidades.

O conceito de defesa da ilha do Sal, embora previsse a defesa das costas contra acções provenientes do mar, tinha como principal finalidade a defesa do aeródromo e a sua posse a todo o custo.

Na ilha de Santo Antão, a guarnição era constituída por forças destacadas da ilha de S. Vicente, normalmente uma companhia de atiradores reforçada do batalhão em reserva. Tinha por missão ocupar a povoação de Porto Novo, mantendo a posse da água de abastecimento e a vigilância do canal, em especial na zona correspondente ao Porto Grande de S. Vicente.

Na ilha de Santiago, na cidade da Praia, estava uma companhia de caçadores de praças de recrutamento local/regional, podendo eventualmente ser reforçada com meios atribuídos pelo Comando Militar de Cabo Verde, sediado em S. Vicente. Competia-lhe a defesa da cidade da Praia, como capital de Cabo Verde.

Com o fim da guerra mundial, regressaram à metrópole os efectivos expedicionários. O regresso efectuou-se progressivamente, sendo extintas as unidades, comandos e serviços ali criados. O regresso do Comandante Militar, brigadeiro Nogueira Soares, em Janeiro de 1945, e sobretudo a extinção do Comando Militar criado para o efeito, em 30 de Novembro de 1946, marcaram o final do reforço militar de Cabo Verde, embora várias comissões liquidatárias se tenham mantido pelo tempo necessário à conclusão das suas tarefas.




Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Monte Sosse > c. 1941-1945 > "Peça de 9,4 cm de uma das duas antigas baterias de artilharia anti-aérea de Monte de Sossego (Foto oferecida pelo filho de um antigo oficial que serviu, à época, em Cabo Verde)" [Legenda: Adriano Miranda Lima] [Foto reproduzida aqui com a devida vénia...]


(...) À época da segunda Guerra Mundial, a artilharia antiaérea vigiava o Porto Grande. E a nossa “Praia de Bote” estava, implicitamente, sob o chapéu protector, claro está. Que isto fique desde já assegurado, ou não tivesse a dita Praia sobrevivido até agora, vivinha da silva.

Ora, esta antiga peça de artilharia anti-aérea de calibre 9,4 cm presente nas fotos pertencia, entre outras, a uma das baterias (unidade táctica elementar de artilharia comandada por um capitão) instaladas no cimo do Monte de Sossego. 

A outra bateria era equipada com peças de 4 cm. Fazia também parte desse dispositivo artilheiro uma unidade de referenciação, constituída por projectores (holofotes), fonolocalizadores, preditores de tiro [, aparelho que calcula a posição futura do alvo aéreo,] e seguidores visuais. Desconheço se integrava também radares tácticos e de tiro. Uma vez que este conjunto integrava duas baterias, de comando de capitão, é de supor que o conjunto justificasse o comando de um major. A ser assim, aquelas duas unidades constituiriam um Grupo de Artilharia, embora reduzido nas suas componentes orgânicas, que é sempre de comando de oficial superior (major ou tenente-coronel). Mas admite-se que o conjunto pudesse estar sob o comando apenas de um capitão, já que nessa altura não havia grande abundância de oficiais superiores e o posto de capitão se mantinha até idade bem madura (mais de 40 anos), o que conferia um saber de experiência acumulada ao longo de anos.


Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > 2006 > Monte Sossego [, ou Ponta João Ribeiro ?,]> Restos da peça de arttilharia antiaére 9,4, do tempo da II Guerra Mundial... Ao fundo, a cidade do Mindelo, o Porto Grande, o oceano, o ilhéu dos Pássaros.

Foto: © Lia Medina (2009) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados

Este dispositivo e outros disseminados pela ilha de S. Vicente fazia parte das Forças Expedicionárias Portuguesas a Cabo Verde durante a Segunda Guerra Mundial (activadas entre 1941 e 1945).

Quem for ao cimo do Monte de Sossego encontra ainda quase intactas as estruturas entrincheiradas, tipo bunker, desse antigo dispositivo militar, construídas então pela engenharia militar portuguesa. E tem também oportunidade de reparar em algumas peças enferrujadas (só se mantiveram as de calibre 9,4 cm) e amputadas de alguns componentes.

Eu fui lá em 2003, e pela primeira vez na minha vida. Não estavam lá soldados nem equipamentos, à excepção das referidas peças enferrujadas. Estavam, sim, pessoas a viver no que resta daquelas instalações construídas em subsolo. Disseram-me que eram pessoas de S. Antão que chegavam a S. Vicente à procura de trabalho e não tinham outra hipótese de abrigo senão os bunkers. Mas penso que actualmente essas instalações estão desocupadas, conforme parecem demonstrar fotos de data mais recente que tive oportunidade de ver mas que não possuo. 

Tenho de dizer que me impressionou o estado deplorável em que vivia aquela gente. Cheguei ao local acompanhado de um tio e de um primo e fomos imediatamente rodeados por um rancho de crianças, que nos olhavam como se fôssemos extra-terrestres.

Como afirmei atrás, eu nunca tinha ido ao local, mas ao longo da minha meninice algumas manifestações da existência desse dispositivo artilheiro chagavam até mim de vez em quando. Sim, porque alguma coisa ainda lá se manteve depois da saída das Forças Expedicionárias. Lembro-me, nos anos da década de 1950, dos ensaios nocturnos dos projectores (holofotes). Iluminavam tudo em redor e até a distâncias consideráveis. Morava em Fonte Cónego e era uma festa, para a meninada, quando os focos de luz atingiam as casas e mesmo os nossos corpos. Interrompíamos as brincadeiras de “mangatchada” (brincar às escondidas) para nos deliciarmos com o espectáculo de luz que subitamente quebrava a rotina. (...) 
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Nota do editor:

(*) Vd. poste de 21 de agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10284: Meu pai, meu velho, meu camarada (31): Expedicionários em Cabo Verde, mortos entre 1903 e 1946 e inumados nas ilhas de São Vicente e Sal (Lia Medina / José Martins)

Último poste da série > 22 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10420: Meu pai, meu velho, meu camarada ( 32): Luís Henriques (1920-2012) evoca, em entrevista gravada em 10 de março de 2010, os sítios onde passou 26 meses, na ilha de São Vicente, em plena II Guerra Mundial: Mindelo, Lazareto, Matiota, São Pedro, Calhau...

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9421: O Nosso Livro de Visitas (124): Recordando as forças expedicionárias do RI 15 (Tomar) no Mindelo, São Vicente, Cabo Verde (1941-1943) (Adriano Miranda Lima, Cor Inf Ref)


Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > Hospital de São Vicente, fundado em 1899, no reinado do Rei Dom Carlos I (1889-1908). Foto do álbum do expedicionário, 1º Cabo Luís Henriques, nº 188/41 (1º Pelotão, 3º Companhia, 1º Batalhão, RI 5, Caldas da Raínha). Natural da Lourinhã, onde nasceu em 19 de Agosto de 1920,  Luís Henriques tem hoje 91 anos e memórias muito vivas dos difíceis tempos que passou no Mindelo (26 meses, entre julho de 1941 e setembro de 1943; nos últimos 4 meses esteve hospitalizado, por problemas pulmonares, entre maio e agosto de 1943).

Foto: © Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2010). Todos os direitos reservados


 
1. Comentário, de um camarada de armas e leitor do nosso blogue, com data de 21 do corrente, ao poste P5109:

Luís Graça:


Sou Adriano Miranda Lima, coronel reformado, residente em Tomar, e nascido em Cabo Verde, S. Vicente. Não estive na Guiné, apenas em Angola e Moçambique.

Tive acesso ao seu blogue e só tenho razões para o felicitar efusivamente por esta belíssima e interessante iniciativa.

Revisitar estas saudosas memórias é recolocar a história no seu devido lugar e com ela reencontrar-se num abraço fraterno em que o coração se dá inteiro.

Como servi longos anos no RI 15 [, Tomar], aliás, a minha unidade de colocação, após o termo das comissões no ex-Ultramar, acompanhei sempre o convívio dos antigos expedicionários mobilizados pelo Regimento.

Algumas vezes coube aos expedicionários do RI 15 a organização do convívio, com participação dos camaradas de outros regimentos e unidades mobilizadoras. Cada "regimento" organizava o convívio de todos os que serviram em S. Vicente, [Cabo Verde].

Com o meu apoio pessoal, sendo eu então major, por duas vezes o convívio realizou-se no meu Regimento, em Tomar, e numa das vezes ele foi integrado nas comemorações do Dia da Unidade. Noutra ocasião, foi num restaurante em Tomar, e também estive presente, por simpático convite do elemento organizador, Sr. Francisco Lopes (Chico Concertina), infelizmente falecido há cerca de 4 anos. Dava-me muito bem com ele, e era sogro de um amigo meu, advogado.

Se estiver interessado em saber alguma coisa sobre o Batalhão que saiu de Tomar, terei o maior gosto em prestar informações ao blogue. Por acaso, publiquei um artigo num jornal online, sobre a memória desse batalhão. (**)

Há um blogue chamado Praia de Bote (nome de um local de S. Vicente), em que tenciono publicar uns spots sobre as forças expedicionárias a Cabo Verde. Como tenho poucas fotos, queria pedir a sua autorização para me servir das que constam do seu blogue respeitantes ao BI 5, que eram do seu pai. Apenas como ilustração. Naturalmente que me refiro a fotos de carácter genérico, não pessoais.

Apraz-me também registar o afecto e a admiração com que cultiva a memória do seu pai neste Blogue. (***)

Um abraço
Adriano Lima

[, criador e editor do blogue Ademos, cujo objetivo é a defesa do património ambiental e construído da cidade do Mindelo, São Vicente, Cabo Verde]



Blogue de Joaquim Saial, Almada, Portugal:

"A Praia de Bote é o genuíno coração do Mindelo. Sítio de catraeiros, lojas de aprestos marítimos (em desaparição), vendedeiras de fruta e legumes, botequins com cheiro a grogue, mancarra e tabaco americano, pescadores e seus botes, plurim d'pêxe (mercado de peixe), contrabandos vários, patifes de navalha afiada e também gente boa... Começa na velha Alfândega (hoje Centro Cultural do Mindelo) e termina na Torre de Belém (ou ao contrário...). É dela, da cidade e também da ilha onda se encontra que o blogue PRAIA DE BOTE trata".

Joaquim Saial é Professor e investigador de Arte e História. O blogue tem mais de 20 mil visitantes, desde o seu início (7 de fevereiro de 2011).

2. Comentário de LG:

Adriano, muito obrigado pelo seu comentário, pelo seu elogio ao nosso blogue,  mas também pelo seu pedido. Começando por este, disponha das fotos do meu pai, para os efeitos que julgar convenientes, citando sempre, naturalmente, o nosso blogue. (Temos, aliás, mais fotos de mais outros dois expedicionários, na série Meu pai, meu velho, meu camarada, nomeadamente do Ângelo Ferreira de Sousa e do Armando Lopes).

Todos temos o dever de memória, deixando às gerações seguintes notícias sobre a nossa passagem por este planeta que é único, o berço da humanidade, é a nossa casa, ou é a aldeia onde todos somos vizinhos... Cabo Verde e Portugal têm uma longa história em comum, além de uma língua. Eu tenho um especial afeto por São Vicente e, em particular, pelo Mindelo que um dia destes espero poder  finalmente conhecer ao vivo. (Não conheço Cabo Verde, de todo: estive apenas uma escassa hora ou duas no Sal, em paragem técnica do avião da TAP que me trouxe de férias, de Bissau a Lisboa, em 1970).

Transmiti, este fim de semana,  ao meu pai, Luís Henriques, (a caminho dos 92 anos) o seu interesse e o seu pedido. Até aos 80 anos, costumava ir ao convívios anuais da malta de Cabo Verde. Disse-me que nunca foi ao RI 15 (Tomar), a nenhum dos convívios dos antigos expedicionários, já que ele pertencia ao RI 5 (Caldas da Rainha). Em todo o caso, lembra-se bem das jogatanas de futebol, no Lazareto, entre uns e outros. Como também se lembra da epidemia de fome que assolou as ilhas, no tempo em que lá esteve (1941/43). O seu "impedido", o Joãozinho, que ele alimentava com as suas próprias sobras do rancho, também ele morreu, de fome e de doença, em meados de 1943. Comove-se ao dizer-me que deu à família do miúdo todo o dinheiro que tinha em seu poder (c. de 16$00) - na altura, estava hospitalizado -,  para ajudá-la nas despesas do enterro.

Desejo-lhe, por fim, meu caro Adriano, a si e aos seus amigos,  todo o sucesso na defesa do património daquela terra mágica, o Mindelo, berço de grandes poetas, músicos e cantores.
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 15 de outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5109: Meu pai, meu velho, meu camarada (18): Do Mindelo a... Bambadinca, com futebol pelo meio (Nelson Herbert / Luís Graça)

(**) Vd. excerto do artigo de Adriano Miranda Lima no jornal Liberal, "on line",

edição de 31 de Março de 2009:

Adriano Miranda Lima > Tropas expedicionárias a Cabo Verde durante o período da Segunda Guerra Mundial - Memória que perdura

(...) Como é sabido, Portugal não teve qualquer envolvimento na Segunda Guerra Mundial, tendo optado por uma posição de neutralidade que se manteve ao longo de todo o conflito. No entanto, sabedor da importância estratégica das suas ilhas atlânticas, nomeadamente os arquipélagos dos Açores e de Cabo Verde, alvos apetecidos por qualquer dos contendores, Portugal entendeu que seria curial guarnecer aqueles territórios com forças militares suficientes para dissuadir qualquer veleidade por parte dos beligerantes. O conflito assumira uma dimensão considerável no Atlântico e aqueles arquipélagos eram, com efeito, detentores de elevado potencial estratégico, sobretudo do ponto de vista aero-naval. Uma fraca presença militar de forças nacionais poderia indiciar um sintoma de desleixo, susceptível de encorajar uma ocupação estrangeira à revelia do direito internacional, em manifesto atropelo da soberania portuguesa.
 
O Regimento de Infantaria nº 15, de Tomar, foi das unidades do exército que enviaram forças expedicionárias a Cabo Verde. Conheço muito bem o historial deste Regimento por nele ter servido durante longos anos. E é assim que me capacito a divulgar a curiosa memória afectiva que os expedicionários deste Regimento de Infantaria desde sempre vêm cultivando e perpetuando. A par de outros Regimentos do Exército, competiu ao Regimento de Infantaria nº 15 organizar e mobilizar para Cabo Verde um Batalhão de Infantaria (cerca de 800 homens). As quatro companhias do Batalhão ficaram instaladas em S. Vicente e S. Antão, tendo partido de Portugal agrupadas em três contingentes. O primeiro embarcou em Portugal em 19 de Outubro de 1941, o segundo em 17 de Novembro do mesmo ano, e o terceiro em 8 de Janeiro de 1942.
 
Mas este acontecimento teria sido mais um episódio normal da história militar portuguesa não tivesse marcado indelevelmente o espírito dos antigos militares, sobretudo a classe de praças (soldados e cabos) e os oficiais e sargentos milicianos (serviço obrigatório). Os capitães já eram na altura homens maduros (quarentões) e habituados às andanças e contingências da vida militar, pelo que é natural que o impacto emocional das grandes “aventuras” tocasse mais a faixa etária dos vinte anos. O facto é que, desde a sua desactivação, os ex-militares que serviram no citado Batalhão vêm promovendo reuniões anuais em almoços-convívio para recordar a sua passagem por Cabo Verde, nomeadamente pelas ilhas de S. Vicente e de S. Antão, por onde se distribuíram as suas companhias.
 
Estive presente num desses convívios, pela primeira vez em 1986, pela circunstância de o mesmo ter sido realizado nas instalações do Regimento de Infantaria nº 15, por convite do seu Comandante. Competiu-me, na altura com o posto de major, ser o oficial a apoiar a organização desse evento, que se inseria nesse ano nas comemorações do aniversário do Regimento, condição que me permitiu assistir do princípio ao fim à confraternização dos ex-militares.

O leitor nem imagine a satisfação daqueles homens quando lhes disse que eu era cabo-verdiano de origem. E isto porquê? Porque, quando se juntam, a intenção é celebrar a memória de uma experiência militar vivida na intensidade anímica dos seus 20 anos, mas também recordar e celebrar a terra cabo-verdiana com eflúvios de uma saudade que eu não imaginava possível.  (...).
 
Um deles, Francisco Lopes, na altura cabo, era um exímio acordeonista (ainda hoje anima as romagens de saudade com o mesmo instrumento), e, como tal, fazia parte de grupos de animação recreativa em S. Vicente, juntamente com outros músicos da terra, frequentando as festas e os bailes das colectividades. Tanto assim foi que aprendeu, e ainda se recorda bem de mornas então em voga que ele recupera e interpreta nestes convívios, acompanhado por outros intervenientes.

Mas achei digno de registo o facto de muitos deles fazerem questão de introduzir nas suas conversas expressões em crioulo, demonstrando que não foi em vão o seu convívio com as gentes cabo-verdianas. São inúmeras as histórias que se contam nestes convívios, citando-se amizades contraídas com cabo-verdianos, namoricos com raparigas da terra, nomes de ruas, praças, botequins, enfim, um reportório variado de emoções e aventuras que a sua memória regista como as mais indeléveis recordações das suas vidas (...).

(...) Mas há um nome cuja memória estes homens veneram. Trata-se do capitão Fernando de Magalhães Abreu Marques e Oliveira, [1903-1975,] comandante da 3ª Companhia do Batalhão, recordado como oficial de alta competência e dotado de grande espírito humanitário. E então recordam que, naqueles tempos difíceis, em que grassava a fome em Cabo Verde, vitimando muita gente entre a população (como bem sabemos), o capitão Oliveira, condoído com aquela dramática situação, ordenou a montagem de um conveniente serviço de distribuição de sobras de rancho (alimentação das praças) às pessoas que se acercavam da portão do quartel. A certa altura, reparando que o número de necessitados crescia a olhos vistos, disse ao Sargento do Rancho que tinham de maximizar as sobras de alimentação. Perante as dúvidas do subordinado, explicou-lhe que era preciso “inventar” todas as situações administrativas e recursos possíveis. O Sargento mostrou-se então com dúvidas, mas a pertinácia do seu capitão não permitia qualquer hesitação ou tibieza. Sublinho que este facto foi-me contado, emocionado, pelo próprio Sargento interveniente, que era na altura um jovem furriel miliciano, infelizmente hoje já falecido.

O capitão Oliveira era, de facto, de uma natureza humana invulgar, um homem de grande nobreza de carácter e estatura moral, às ordens de quem nunca servi, mas que sempre ouvi citado pelas suas altas qualidades humanas e profissionais. Faleceu de morte súbita em 1975, já general reformado, tendo no seu cortejo fúnebre um número infindável de antigos subordinados. Todos os anos, estes veteranos do ex-Batalhão Expedicionário aproveitam o convívio para cumprir uma romagem ao jazigo do cemitério de Tomar onde estão os restos mortais do seu “capitão”. Ele era filho desta cidade de Tomar. Escusado é dizer que me venho incorporando no séquito de homenagem, em intenção a um oficial de estirpe, mas, sobretudo, em nome de todos os meus conterrâneos a quem o oficial mitigou a fome com a sua atitude de grande compaixão e solidariedade humana.

Registe-se que o gesto humanitário do capitão Oliveira em prol dos necessitados em S. Vicente não tardou a ser seguido por outros comandantes das companhias destacadas na ilha de S. Vicente. Creio que por longos anos ficou gravada na memória dos pobres e desprotegidos do Mindelo a figura humana do valoroso capitão. Um homem que aparentava um ar sóbrio e mesmo severo, mas que tinha um coração de ouro, do tamanho do mundo. Havia uma rua em Mindelo que se chamava rua Infantaria 15, provavelmente uma homenagem da cidade por tudo quanto foi aqui referido. Ainda me recordo dessa rua, mesmo no centro da “morada”, que hoje terá certamente outra designação toponímica. Provavelmente, o nome de algum estrangeiro que nenhuma relação teve com Cabo Verde e a cidade do Mindelo.

Num breve apontamento, resta referir que o Batalhão de Infantaria 15 regressou a Portugal em Julho de 1943. Seria interessante citar outros factos do seu historial, em meu poder, mas não o faço para não saturar este texto. No entanto, não deixo de referir que o comandante do Batalhão, major Nicolau de Luizi, faleceu por doença em S. Vicente, em pleno exercício do seu comando. Realizou-se então um cerimonial militar fúnebre em S. Vicente, mas a sua urna foi transferida para Portugal, estando sepultado num jazigo no cemitério desta cidade de Tomar, de onde era também natural. (...)

O capitão Oliveira era, de facto, de uma natureza humana invulgar, um homem de grande nobreza de carácter e estatura moral, às ordens de quem nunca servi, mas que sempre ouvi citado pelas suas altas qualidades humanas e profissionais. Faleceu de morte súbita em 1975, já general reformado, tendo no seu cortejo fúnebre um número infindável de antigos subordinados. Todos os anos, estes veteranos do ex-Batalhão Expedicionário aproveitam o convívio para cumprir uma romagem ao jazigo do cemitério de Tomar onde estão os restos mortais do seu “capitão”. Ele era filho desta cidade de Tomar. Escusado é dizer que me venho incorporando no séquito de homenagem, em intenção a um oficial de estirpe, mas, sobretudo, em nome de todos os meus conterrâneos a quem o oficial mitigou a fome (...).

(***) Vd. último poste da série >22 de janeiro de 2012 >  Guiné 63/74 - P9386: O Nosso Livro de Visitas (123): Fernando Gomes Pinto da CCAÇ 4945/73 (Guiné, 1973/74)

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Guiné 63/74 - P7118: Cartas, para os netos, de um futuro Palmeirim de Catió (J. L. Mendes Gomes) (2): Oficial e cavalheiro: De trânsito por Tomar a caminho da Madeira



Tomar > Regimento de Infantaria 15 > Fachada do quartel > "O Regimento de Infantaria 15, no período de 1961 a 1975, torna-se uma das maiores unidades mobilizadoras de tropas que combatem na Guerra do Ultramar"...   Foto (e legenda) de Vitor Pessa, ex-Fur Mil, CCS/BCAÇ 3843 (Moçambique, 1971/73)... (Foto editada por L.G.)


Fonte: Blogue Batalhão de Caçadores 3843 (2009) (Com a devida vénia...)


1. Continuação da série Cartas, para os netos, de um futuro Palmeirim de Catió (*).  Autor: Joaquim Luís Mendes Gomes, membro do nosso blogue, jurista, reformado da Caixa Geral de Depósitos, repartindo actualmente o seu tempo entre Lisboa, Aveiro e Berlim e, por fim, ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Os Palmeirins, (Como, CachilCatió, 1964/66).




OFICIAL E CAVALHEIRO: Passagem por Tomar




Após breves dias, não de férias, como era costume, naquele ambiente de Pedra Maria, mas de descanso e espera pela designação da Unidade Militar onde iria ser colocado, se o resultado do curso em Mafra (COM) tivesse sido positivo, a carta com insígnias militares chegou. Surpresa. Aprovado ou não? Quando e para onde iria. Ia vê-lo, de seguida, mal o carteiro, chegasse à sua beira, depois do toque de corneta habitual, lá ao fundo da estrada.


Regimento de Infantaria nº 15, em Tomar, como Aspirante a oficial.


Óptimo. Uma sensação de segurança o invadiu, à mistura com a satisfação natural do resultado.


Durante os próximos anos, haveria rendimentos certos, para si e para sustentar o irmão mais pequeno. Era preciso  puxar por este, já que, andava arredio da escola primária. Onze anos e apenas na 3ª classe!… A guerra de África, essa, até podia  livrar-se de lá cair…quem sabe.


A guia de marcha, em 1ª classe de comboio até Tomar, para um dos dias primeiros de Janeiro, próximo, ali estava. Cama e mesa e um ordenado limpo de 1.500$00 ao fim do mês… uma  independência que nunca tinha sentido, até aí.


O futuro estava a começar… Mais cedo do que pensara. O curso superior tão desejado, ver-se-ia como, depois da tropa.


A notícia espalhou-se depressa por toda a família e lugar. Com alegria. A meia dúzia de ex-colegas seminaristas das bandas de Felgueiras estava em férias de Natal. Já não era seu colega, mas a ligação era muito forte. Não sabia girar ali sem eles. Havia que lhes dar conhecimento. Fariam muito gosto em saber.


Uma merenda em casa do Lemos, de Moure, ficou logo agendada como despedida. O Sebastião Hernâni, os 2 irmãos Simões e o Lemos. O vinho verde da adega dos pais do Lemos era uma maravilha. Estava ao dispor, como sempre. O presunto e o salpicão com broa, também…


Daquela vez, porém, era diferente. Além da alegria geral acompanhada das habituais cantilenas mais atrevidas, na escala seminarística…(a da caserna, essa, eles, não conheciam nem faziam ideia) só se lembra de ser tirado, para casa, ao colo, a partir do Morris Mini do Hernâni…


O resto ficou para eles contarem. Era a  primeira bebedeira da sua vida, a valer…


Chegou o dia da marcha. Vestido com farda cinzenta de cadete, de fino recorte, pôs os galões de aspirante nos ombros, que comprara, pelo sim, pelo não, em Mafra…. Uma fita dourada oblíqua sobre o fundo preto. Nem queria acreditar que já era um oficial como os seus instrutores de Mafra. Que iria fazer o mesmo que estes faziam, com os soldados recrutas. Vaidade e um sentimento de receio o invadia.


A mesma camioneta das 5 e meia da manhã para o comboio, em Paredes, até ao Porto. Daí até Santarém e depois no ramal de Abrantes.




QUARTEL DE TOMAR


Pela tarde desse dia, chegou pela 1ª vez a Tomar. Outros colegas conhecidos e desconhecidos de Mafra seguiam e desceram em Tomar. Uma camioneta militar aguardava-os, para transporte das malas.


Era o 1º quartel em que entrava, por direito próprio  e com um estatuto superior. A sentinela da porta de armas pôs-se e permaneceu em sentido enquanto os novos oficiais entravam.


Os aposentos dos oficiais e os corredores com um certo fausto abriam-se-lhes. A sala de oficiais, a biblioteca e o refeitório, tudo ficou ao dispor.


O  sentimento de dignidade que o envolvia recompensava todo o esforço que fizera nos 4 longos e duros meses de Mafra. Sentia-se bem. Sem esperar, atingira, enfim, um ambiente condigno como desejara nos tempos de seminário. Aqui, só ao cabo de mais uns 4 anos viria a encontrá-lo, se encontrasse…


Além disso, o mundo militar, embora diferente e despido de moralidades, era mais transparente e… são. Pão... pão..., queijo..., queijo… As beatices e hipocrisias do seminário surgiam-lhe, agora, mais ridículas que nunca… 


No entanto, este continuava a exercer uma influência perturbadora e permanente sobre ele. Como desejava  não ser reconhecido como ex-seminarista. E conseguiu-o, durante muito tempo, perante os colegas de pelotão em Mafra.


Só o Mendonça o sabia, porque era natural de Airães,  uma das muitas freguesias de Felgueiras. O seu pai era um conceituado médico da região…Os seus últimos anos de Coimbra foram de total quebra de relações com o rigoroso e preconceituoso pai, a censura parda das suas travessuras académicas e coimbrãs. Para sobreviver, teve de ir vender alfinetes e carrinhos de linha, nas feiras em redor de Coimbra, durante as férias.


Depressa reconheceu que a sua irreverência era só aparente. No fundo era um rapaz como outro qualquer. Com uma vantagem. Um óptimo colega, fixe e felgueirense. Com uma habilidade excepcional para lidar com os duros militares…sem os enfrentar, mas dando-lhe sempre a volta, com êxito. Apesar de ser o protóptipo do que um militar não devia ser.


No dia seguinte à chegada, seguiu-se a cerimónia da recepção aos novos oficiais, pelo corpo de oficiais superiores, general à frente.


Sentia-se um senhor. Os breves dias seguintes foram de organização e distribuição de tarefas, pelas várias companhias que iriam formar-se com os recrutas que haveriam de chegar.


Segunda companhia. Comandante do terceiro pelotão. Instrução de recruta. Ordem unida, preparação física, armamento e ética militar. Tudo constava de um programa perfeitamente definido e apoiado.


Dar instrução metia um certo medo. A primeira manhã começou com a preparação física, depois da apresentação própria ao pelotão. No fundo, estaria a repetir o que lhe fizeram em Mafra, numa escala de exigência muito maior.


Instrução física foi a 1ª aula que teve de dar naquela manhã gelada, como são as manhãs de Janeiro, em Tomar. Com o pelotão, em passo de corrida, em círculo, iniciava-se a sequência de exercícios que constavam do programa estabelecido e que tinha de ser cumprido.


Primeiro, exercícios de pernas, depois de tronco e a seguir de braços. A falta de experiência, porém, provocou o grande fiasco, de que nunca mais se haveria de esquecer.
Ao cabo de 20 minutos, estava esgotado todo o programa… Repetir, nem pensar.


Tomado do embaraço que lhe parecia espelhado na cara, teve de dar ordem de destroçar ao pelotão e correr para a casa de banho, no bar de oficiais, quase em pânico. Afinal, sentia a responsabilidade a pesar-lhe e, ainda estava no começo…


Apetecia-lhe desaparecer. Num esforço supremo de auto-controle, conseguido, não sabe como, pensou de si para si:
-Se os outros conseguem, também hei-de conseguir… 


Levantou-se e veio ter com os camaradas que já tinham chegado à sala de oficiais, com a aula dada. A semana passou-se a correr. Veio o 1º fim de semana. Deu para conhecer a cidade, pacata, de interior:


O centro, onde se encontrava todo o comércio e cafés; o rio Nabão, ainda com águas cristalinas; o largo e frondoso açude, onde laborava, em pleno, um moínho, aproveitando o escorrer das águas, em cataratas de espuma, para o leito fundo do estreito rio que, a seguir, se despedia da cidade, fluindo bucólico, rumo ao gordo Mondego; a igreja do convento de Cristo, lá no alto, a tal jóia do manuelino, com a sua rosácea enorme e a janela floreada, tudo ficou visto naquele fim de semana pelo grupo de novos oficiais, que se passeou à vista das gentes que os olhavam com visível veneração. As moças espreitavam, tímidas, atrás das cortinas.


Em Tomar, sem o quartel militar, morrer-se-ia de tédio…


Ao fim de duas semanas, com os passeios nocturnos, depois do jantar, já se começavam a sentir em casa. Estavam traçadas as perspectivas. Com o combóio, à porta, Abrantes e Coimbra ficavam ao pé.


O voto de obediência forçada a que estavam sujeitos, porém, assim o não quis. No início da 3ª semana a notícia espalhou-se com grata surpresa. Uma dezena dos novos aspirantes iriam partir para a Madeira e Açores. Faltava saber quem e para onde.


Começava a saborear os imprevistos e a reparar nas possibilidades que a vida militar é capaz de abrir. Nada que se comparasse à carreira anterior, a clerical, embora um tanto semelhante. Por isso, não lhe fora difícil a adaptação, ao contrário dos seus camaradas.


No dia seguinte, teriam de tomar o paquete Funchal, em Lisboa. Para a Madeira, uns; para os Açores, outros. O B.I.19, no Funchal seria o seu próximo destino, soube-o em pleno jantar. Da boca do comandante da unidade.


Que sorte. Os Açores estavam a braços com o drama da erupção súbita do vulcão dos Capelinhos. Muito trabalho aguardava os camaradas destacados para lá.


Ilha da Madeira?! Nunca lhe passara pela cabeça aquela grata eventualidade. Duma penada, antes de ir para a guerra do ultramar, deixaria a terra firme e sulcaria as águas do oceano rumo a uma realidade desconhecida, embora nacional. Sabia apenas que era muito bonita. Mas, como se viveria lá, ou como seria a cidade do Funchal, não fazia a mais pequena ideia.


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Nota de L.G.: