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sexta-feira, 19 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P19992: Historiografia da presença portuguesa em África (168): a colónia das terras vermelhas, por Machado Saldanha: excertos de "O Império Português na primeira Exposição Colonial Portuguesa : álbum-catálogo oficial" [, Porto, 1934,] capa + pp. 279-283.












Guiné: a colónia das terras vermelhas, por Machado Saldanha. In: O Império Português na primeira Exposição Colonial Portuguesa : álbum-catálogo oficial [, Porto,  1934,] capa, + pp. 279-283. (*)


1. No início da década de 1930, a colónia portuguesa da Guiné tinha pouco mais de 340 mil habitantes, dos quais apenas 983 eram "brancos" (0,29 %) e 1310 "mestiços (0,38%)... 

No catálogo da Exposição Colonial do Porto,  de 1934, faz-se a apologia da Guiné como "colónia de exploração", dando-se algumas "dicas" para a fixação do europeu: a parte oriental (região leste) era "mais saudável", devido à disposição orográfica, sendo a vinda do colono aconselhada na estação "seca ou fresca", de dezembro a abril...

Não se esconde que a "ocupação" total e efetiva do território só se efetuou a partir de 1913 (início das campanhas de pacificação do capitão Teixeira Pinto)... A festa do "fanado", as festas do Ramadã e o regime matriarcal dos bijagós são três notas marcantes da "idiossincrasia" guineense, segundo o autor do texto, Machado Saldanha, que não esconde a sua "simpatia" pelos povos guineenses, os "aborígenes", termo muito em voga na época, mas hoje arcaico e até depreciativo... (O "africanista" Machado Saldanha usa até um termo, não grafado nos dicionários, para expressar a sua admiração por estes povos, o "maravilhosismo"...).

Pelas fotos publicadas, Bolama, a capital,  ainda era uma cidadezinha colonial com alguns belos edifícios, mas Bissau parecia caminhar, rapidamente, para a suplantar e substituir como capital da colónia, uma década depois.

Trata-se de um escrito jornalístico, e não propriamente propagandístico, O  autor, por exemplo, não deixa de sublinar que a economia local ressentia-se da grande crise do capitalismo em 1929, havendo excesso de produção das oleaginosas em todo o mundo...  A "mancarra" e o arroz eram já os dois principais produtos da agricultura guineense. E até aos finais da década de 1920, e desde 1917, a balança comercial era equilibrada, as exportações excedendo as importações.

Era uma terra "pujante", plena de potencialidades, na perspetiva deo "desenvolvimento económico da colónia". Machado Saldanha destaca também  algumas das recentes realizações da administração da colónia, como a rede de estradas e a rede de linhas telefónicas e telegráficas (c. 800 km, 16 estações). Não deixa de apontar para 3 vertentes essenciais para o futuro: a saúde, a educação e o fomento agropecuária, embora a perspetiva ainda fosse meramente "assitencial"... Um dos graves erros da administração colonial, como sabemos, foi a tardia aposta na formação de quadros técnicos e superiores... Privilegiava-se ainda, desde a I República,  a construção de infraestruturas, mas era preciso esperar pelo pós-guerra e o "desenvolvimentismo" do Sarmento Rodrigues...

Machado Saldanha compara o litoral da Guiné ao "sistema fiórdico da Noruega" (sic), "entrecortado por diversos braços de mar e por um grande número de canais, constituindo uma espécie de rede aquática, engrossada por alguns rios que nascem em território francês, a leste da colónia", sem citar os nomes dos grandes rios como o Geba e o Corunal. Curioso, o rio Corubal era navegável até ao Xitole (ou Xitoli...), por navios de cabotagem, o que deixou de acontecer com o início da guerra na década de sessenta, obrigando ao abandomo das férteis "pontas" que existiam na bacia hidrográfica do Corubal (como, por exemplo, a ponta do Inglês, a ponta João da Silva, a ponta Luís Dias...).

Além de Bissau e Bolama, os principais centros comerciais eram já Bafatá, Canchungo, Mansoa e Farim ... Bissau, por sua vez, já possuía um cais de cimento armado aonde podiam acostar navios de 8 mil toneladas... Curiosamente, as fotos são todas de... Bolam, incluindo a do terreno da futura Escola de Artes e Ofícios...

2. Surpreendentemente, Machado Saldanha  tem nome de rua na cidade de Luanda, uma rua comprida de mais de 3 km, no Bairro Neves Bendinha (ex-Bairro Popular), na parte sudeste da capital. Pelo que apuramos, ele foi um elemento influente, liberal,  da redação do diário ABC - Diário de Angola, fundado em 1958. (**)

Nascido possivelmente no início do século, temos dúvidas sobre a sua região de origem: ou Aveiro ou Cabo Verde. De qualquer modo, ao longo da sua vida, como jornalista, teve uma relação especial com a Guiné, Cabo Verde e Angola.

João Manuel Rocha, que fez um estudo recente sobre a imprensa diária de Luanda, antes da independência, diz o seguinte: "De forma resumida e muito simplificada, pode traçar-se uma paisagem que coloca o Diário de Luanda no papel de porta-voz do regime (...) ; O Comércio como entusiasta da política colonial; o Província como arauto de aspirações autonomistas da sociedade colonial; e o ABC como pólo de aglutinação de oposicionistas ou pelo menos críticos relativamente ao regime e às suas políticas coloniais. (**)

Este investigador cita, entre outros, o testemunho de Adelino Torres, que integrou a redacção do ABC em 1961 e 1962, antes de partir para o exílio, e que escreveu o seguinte em 2000: "É justo relembrar a actividade do quotidiano ABC de Luanda que, cercado (e, poder-se-ia dizer, constantemente 'trucidado') pela Censura, sobrevivia em 1961 com quatro elementos: o director Machado Saldanha, um velho e honrado democrata; o chefe de redacção Acácio Barradas, hoje no Diário de Notícias de Lisboa; e dois redactores: Adolfo Rodrigues Maria e o signatário". (**)

Há pelo menos 10 registos bibliográficos do Manuel Machado Saldanha, na biblioteca digital do portal Memórias de África e do Oriente, da Fundação Portugal-África, Universidade de Aveiro. Tem vários escritos sobre a economia e o comércio coloniais. (LG)

PS - Em 1934, a colónia portuguesa da Guiné ainda era um projeto de país... Será que alguém, no  Estado Novo,  alguma vez pensou ou pôs a hipótese de vir a ser um país independente, como aconteceu com os seus vizinhos, francófonos, embora  com relações privilegiadas com Portugal ? E nós, hoje, podemos fazer a pergunta, meramente teórica e seguramente ingénua: o que seria a Guiné-Bissau sem a maldita guerra colonial / guerra de libertação ? E o que seria o nosso país, hoje, sem o 25 de Abril de 1974 ?
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 Notas do editor:

 (*) Último poste da série > 17 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19985: Historiografia da presença portuguesa em África (167) “A Cultura do Poder, a propaganda nos Estados autoritários”, com coordenação de Alberto Pena-Rodríguez e Heloísa Paulo, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016 (Mário Beja Santos)

 (**) Vd. João Manuel Rocha, « Os jornais diários de Luanda em vésperas da guerra colonial », Ler História [Online], 74 | 2019, posto online no dia 25 junho 2019, consultado no dia 07 julho 2019. URL : http://journals.openedition.org/lerhistoria/4898  ; DOI : 10.4000/lerhistoria.4898

quarta-feira, 17 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P19986: (Ex)citações (355): Mortes por afogamento - A morte por afogamento, sem recuperação do corpo, do 1.º Cabo Radiotelegrafista Manuel Andrade da CCAÇ 2701 (Mário Migueis da Silva)

1. Em mensagem datada de 17 de Julho de 2019, o nosso camarada Mário Migueis da Silva (ex-Fur Mil Rec Inf, Bissau, Bambadinca e Saltinho, 1970/72), fala-nos das circunstâncias da morte, por afogamento no Corubal, nos Rápidos do Saltinho, em Agosto de 1970, do 1.º Cabo Radiotelefonista Manuel Andrade da CCAÇ 2701, cujo corpo não foi recuperado.

A morte por afogamento, sem recuperação do corpo, do 1.º Cabo Manuel Andrade, especialidade de Radiotelefonista, foi a única baixa fatal sofrida pela CCAÇ 2701 durante a sua comissão de serviço no Saltinho desde Maio/70 a Fev/72.

Segundo o José Sargaço, ex-1.º Cabo Operador Cripto, com o qual, por coincidência, estivera a falar sobre o afogamento do Andrade, duas horas antes da publicação do post de 15/07, tudo se passou assim:

O Andrade, dias após a chegada ao Saltinho, em Maio/70, foi, com um grupo de combate da CCAÇ 2701, destacado para Cansonco, tabanca em autodefesa situada a sensivelmente quinze quilómetros do aquartelamento, onde se manteve cerca de dois meses. Na tarde - seriam mais ou menos dezasseis horas - do próprio dia em que regressou de Cansonco, isto é, em 09/08/1970, o Andrade, ainda empoeirado da viagem, convidou o José Sargaço para irem tomar uma banhoca no rio (a Companhia dispunha de balneários, mas era aquela vontade de se refrescar no rio, tal como fizera antes).

Como, desde a ida do Andrade para Cansonco, o caudal do Corubal engrossara imenso (estava-se já em plena estação das chuvas - Maio a Novembro) e a corrente das águas era tremenda, eram eles dois os únicos elementos presentes junto ao rio e limitavam-se a ensaboar-se e a refrescar-se sentados numas pequenas pedras da margem. A certa altura, o Andrade, excelente nadador, talvez por ignorar a terrível força da corrente que se fazia sentir (quando partira para Cansonco, os rápidos eram ainda de grande mansidão), levantou-se e mergulhou num local em que a profundidade das águas não iria além de um metro. Só que, levado pela corrente, quando emergiu já estava nas proximidades dos pegões da ponte do Saltinho, sendo arrastado irremediavelmente naquele turbilhão tremendo, onde desapareceria para sempre.

Impotente para lhe valer, até porque o Andrade logo desapareceu sob as águas, limitar-se-ia o José Sargaço a alertar imediatamente os camaradas da Companhia. Mas, apesar das diligências efetuadas por nativos e tropas apeadas ao longo das margens do rio no próprio dia e no dia seguinte ao desaparecimento, sempre apoiados por um helicóptero, o corpo jamais seria recuperado.

Esposende, 16 de Julho de 2019
Mário Migueis


A bordo do Carvalho Araújo, rumo à Guiné, em Abril/70. Da esquerda para a direita: José Simão, 1º cabo escriturário (já falecido); José Sargaço, 1º cabo operador cripto; com a farda nº3, Manuel Andrade, 1º cabo radiotelefonista (morto por afogamento em 09/08/70).

Ainda a bordo do Carvalho Araújo, o José Simão, o José Sargaço e, mais à frente, o Manuel Andrade

Aspeto do Corubal, junto à ponte do Saltinho, durante a estação seca 

Aspeto do Coruba,l junto à Ponte do Saltinho, durante a estação das chuvas

A ponte do Saltinho
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Notas do editor:

Comentário de Mário Miguéis  no poste Guiné 61/74 - P19982: Jorge Araújo: Ensaio sobre as mortes por afogamento no CTIG: atualização: o caso do 1º cabo Henrique Manuel da Conceição Joaquim, do BENG 447, afogado em 31 de julho de 1974, na ilha da Caravela e cujo corpo não foi recuperado

Por coincidência, hoje mesmo estive a falar com o José Sargaço, ex-1.º cabo operador cripto da CCAÇ 2701 (Saltinho), a propósito de uma fotografia por ele afixada no Solar do Marquês, em Cantanhede, onde, no mês passado, decorreu o último convívio da Companhia. 
Na foto, que vou remeter a/c do Vinhal, para eventual publicação, estão presentes três 1.ºs cabos da CCAÇ 2701, a bordo do navio que os levou à Guiné em Maio/70: José Simão, José Sargaço e Manuel Andrade. Este último é precisamente o morto por afogamento no R. Corubal em 09/08/70. Um abraço, 
Mário Migueis

Último poste da série de 16 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19983: (Ex)citações (354): como é que a máquina burocrática do exército fazia chegar, à família, a notícia funesta da morte ou desaparecimento em combate de um militar ? O caso do sold at cav nº 711/65, José Henriques Mateus, desaparecido no rio Tompar, afluente do rio Cumbjiã, no decurso da Op Pirilampo, em 10/9/1966 (Jaime Silva, seu colega de escola, no Seixal, Lourinhã, ex-alf mil paraquedista, BCP 21, Angola, 1970/72)

quarta-feira, 15 de maio de 2019

Guiné 61/74 - P19788: Jorge Araújo: Ensaio sobre as mortes por afogamento no CTIG: Os três acidentes na hidrografia guineense (Parte III)

Foto 2 - Rio Corubal (Ché-Ché; 06Fev1969) durante a «Op Mabecos Bravios». Entrada e saída de viaturas na jangada que fazia a travessia do rio entre as margens sul e norte. [in P5866: Ainda o desastre de Cheche, em 6Fev1969 (5): uma versão historiográfica (?) (Luís Graça). Imagens do Arquivo Histórico-Ultramarino. Fonte: Carlos de Matos Gomes e Aniceto Simões - Os Anos da Guerra Colonial - Vol 10: 1969 - Acreditar na vitória. Matosinhos: QuidNovi. 2009, p 23 (com a devida vénia).


Foto 1 - Rio Corubal (Ché-Ché) – Jangada utilizada na travessia do rio. Foto de José Azevedo Oliveira; in P5920 “Ainda o desastre do Ché-Ché, em 6 de Fevereiro de 1969: Missão da Liga dos Combatentes resgata corpos”, e P15713 (com a devida vénia).

Foto 3 - Rio Corubal (Ché-Ché; 06Fev1969) urante a «Op Mabecos Bravios». Entrada e saída de viaturas na jangada que fazia a travessia do rio entre as margens sul e norte. [in P5866: Ainda o desastre de Cheche, em 6Fev1969 (5): uma versão historiográfica (?) (Luís Graça). Imagens do Arquivo Histórico-Ultramarino. Fonte: Carlos de Matos Gomes e Aniceto Simões - Os Anos da Guerra Colonial - Vol 10: 1969 - Acreditar na vitória. Matosinhos: QuidNovi. 2009, p 23 (com a devida vénia).



Jorge Alves Araújo, ex-Fur Mil Op Esp/Ranger, CART 3494 (Xime-Mansambo, 1972/1974); 
coeditor do blogue desde março de 2018



ENSAIO SOBRE AS MORTES POR AFOGAMENTO DE MILITARES DO EXÉRCITO DURANTE A GUERRA NO CTIG (1963-1974): OS TRÊS ACIDENTES NA HIDROGRAFIA DA GUINÉ (PARTE III)



1. INTRODUÇÃO

Nos dois primeiros fragmentos – P19679 e P19710 – demos a conhecer alguns dos resultados globais já apurados neste projecto de investigação titulado de "ensaio" sobre o número de militares do Exército que morreram afogados nos diferentes planos de água existentes na Guiné, durante o conflito armado (1963-1974). 

Ainda que continuemos a expandir os campos de consulta fora do âmbito das fontes "Oficiais", a presente análise demográfica, quantitativa e qualitativa, reporta-se aos "casos da investigação" já coletados, onde se procedeu à sua organização estratificada em dois grupos (amostras): "corpos recuperados" e "corpos não recuperados", com identificação das suas respectivas Unidades.
No primeiro fragmento, a análise estatística foi apresentada com quadros de distribuição de frequências, simples e acumuladas, em função das variáveis categóricas ou quantitativas relacionadas com os objectivos de cada contexto. No segundo, o método seguido foi a representação gráfica de distribuição de frequências, simples e acumuladas, expressa através de gráficos de barras ou de gráficos circulares, metodologia que continuaremos a utilizar no presente.

Como complemento à introdução estatística, a que corresponde um segundo ponto em cada um dos fragmentos, serão descritas as causas, factos e resultados que fazem parte da "história" dos três principais acidentes na hidrografia da Guiné, como foram os casos ocorridos no Rio Cacheu, em 05Jan65, durante a «Operação Panóplia» [já abordado no P19710]; no Rio Corubal, em 06Fev69, na «Operação Mabecos Bravios», em Ché-Ché [a desenvolver na presente narrativa]; e no Rio Geba, no Xime, no âmbito de uma missão das NT, em 10Ago72 [a incluir no próximo poste].


2.  ANÁLISE DEMOGRÁFICA DAS MORTES POR AFOGAMENTO DE MILITARES DO EXÉRCITO DURANTE A GUERRA NO CTIG (1963-74) (n=144)

Recordamos que a análise demográfica que comporta esta investigação incidiu sobre os casos das mortes por afogamento de militares do Exército durante a guerra no CTIG (1963-1974), identificados nos "Dados Oficiais" publicados pelo Estado-Maior do Exército, elaborados pela Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974), 8.º Volume; Mortos em Campanha; Tomo II, Guiné; Livros 1 e 2; 1.ª Edição, Lisboa (2001).


Quadro 1 – Distribuição de frequências segundo a relação entre as variáveis "ano das mortes por afogamento", "corpos não recuperados" e "corpos recuperados".

O estudo mostra que durante o período em análise (1963-1974) em todos os anos ocorreram mortes por afogamento. No final foram contabilizados cento e quarenta e quatro náufragos. Durante os doze anos em que decorreu o conflito, por quatro vezes (1/3) o número de mortes ultrapassou a dezena de casos, com destaque para o ano de 1969, onde os números ultrapassaram a meia centena, em consequência do «desastre da Jangada do Ché-Ché». Para esses valores globais muito contribuíram os "acidentes" nos principais rios da Guiné – Cacheu, Corubal e Geba – como foram os três casos referidos na introdução, equivalente a 40,3% (n=58). Quanto aos "corpos não recuperados", estes representam 43,8% (n=63), contra 56,2% (n=81) dos "recuperados". Sobre esta cifra não se consideraram os "corpos recuperados" no Ché-Ché, por desconhecimento do número exacto, ainda que no P6073 se refira que foram onze (23,4%).


Gráfico 1 – Distribuição de frequências segundo a relação entre as variáveis "mortes por afogamento e "corpos não recuperados"

Da análise global ao quadro e gráfico acima, verificou-se que nos anos 1963 (n=3), 1971 (n=8), 1973 (n=6) e 1974 (n=5), todos os náufragos foram "recuperados". Durante o segundo triénio (1966-1968), dos vinte e sete afogamentos, só três, um em cada ano, não foram "recuperados" (1,1%). Em sentido contrário está o caso do ano de 1969, pelas razões já analisadas anteriormente, com 96,1% (n=49).


Gráfico 2 – Distribuição de frequências segundo a relação entre as variáveis "Corpos recuperados! e "corpos não recuperados".


Gráfico 3 – Distribuição de frequências segundo a relação entre as variáveis "Posto" e "corpos recuperados".


3. OS TRÊS ACIDENTES NOS RIOS DA GUINÉ: CONTEXTO DE CADA UMA DAS OCORRÊNCIA


Gráfico 4 – Identificação dos anos em que ocorreram os acidentes nos rios da Guiné

Para a estruturação deste ponto, relativo a cada uma das três ocorrências identificadas no gráfico acima, foi relevante a consulta efectuada ao vasto espólio de informação disponível no blogue da «Tabanca». No caso particular do episódio da "Jangada do Ché-Ché", ocorrido no âmbito da «Operação Mabecos Bravios", existem algumas dezenas de referências, onde se cruzam os dois conceitos, por exemplo, as dos PDXXVI [P526]; P509; P5778; P5858; P5866; P5954; P6063 e P6073 (as mais antigas) e P12136; P18871; P19473 e P19474 (as mais recentes). Para além desse significativo contributo, e mantendo a metodologia anterior, os conteúdos utilizados neste capítulo têm por base os documentos "Oficiais", publicados pelo Estado-Maior do Exército, elaborados pela Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974), 6.º Volume; Aspectos da Actividade Operacional; Tomo II, Guiné; Livros II; 1.ª Edição, Lisboa (2015).


3.1 - O CASO NO RIO CORUBAL EM 06FEV1969 = O SEGUNDO 

Vd. Fotos nº 1, 2 e 3 (acima)


Infogravura (Rio Corubal). No estuário do Geba (a Oeste) vem desembocar, entre a Ponta Varela e Gampará, um dos mais importantes cursos de água da Guiné, talvez mesmo o maior. É o Corubal (traço a vermelho). Este rio nasce a cerca de 160 kms da fronteira, no maciço de Mali, pertencente ao grupo de montanhas do Futa-Djalon, na sua parte norte, recebendo vários tributários importantes, até que entra no território da Guiné pelo norte de Cadé, servindo aí de fronteira entre Candica e os rápidos de Chibata. […] Inflecte então para oeste, passa através de alguns rápidos e vaus, desviando-se finalmente para noroeste até desembocar no Geba. Na parte inferior do seu curso, até ao vau de Ugui [onde há a possibilidade de passagem a pé através do rio, dada a sua escassa profundidade], é navegável. Aí fica a Tabanca de Xitole, na margem direita. Este rio tem para montante várias secções navegáveis por canoas, o que facilita as comunicações com o Forreá [Aldeia Formosa /Mampatá/ Chamarra] e as demais regiões ricas que atravessa. Contudo, os seus rápidos e secções de perfil diferenciado tornavam impossível a navegação por embarcações um pouco maiores.

Fonte: João Freire (2018) – A Colonização Portuguesa da Guiné (1880-1960): Contributos sobre o papel da Marinha - com dois apêndices sobre Cabo Verde e São Tomé e sobre a caça aos negreiros de Angola. Lisboa. Edição: Comissão Cultural da Marinha. Maio de 2018, p. 242.


3.1.1 - O CONTEXTO DA «JANGADA DO RIO CORUBAL» EM 06FEV1969

Na sequência do trágico acidente no Rio Corubal, em 06 de Fevereiro de 1969, uma das datas mais dramáticas vividas pelas Forças Armadas Portuguesas durante a Guerra do Ultramar, ou da Guerra Colonial, foi elaborado pelo Cmdt da CCAÇ 1790, Cap Inf José Alberto Ponces de Carvalho Aparício [hoje, TCor Apos.], um relatório [classificado de "NOTA"] do qual retirámos a seguinte passagem sobre a "história da Jangada" [vd. Foto nº 1, acima].

"Na Guiné [Bissau] nos anos 60 [do século passado] a travessia do Rio Corubal para a região do Boé era feita [como naquela data] junto à povoação do Ché-Ché onde durante a guerra se encontrava ali em permanência uma força militar de um pelotão de infantaria, reforçado com uma secção de morteiros 81 mm.

"Esta travessia era então obrigatória para a rendição das forças militares portuguesas estacionadas em Madina do Boé e Beli, e ainda para o reabastecimento daquelas forças que na época das chuvas (cerca de seis meses) ficavam completamente isoladas. Por isso, durante a época seca realizavam-se normalmente duas colunas por mês, cada uma escoltada por uma companhia reforçada com um pelotão de autometralhadoras "Fox" ou "Daimler" e com protecção aérea permanente. Cada Coluna era constituída por um elevado número de viaturas, cerca de 20 a 30, carregadas com munições e reabastecimentos.

"A travessia do Rio Corubal era então feita por uma jangada constituída por uma plataforma sobre duas canoas; um longo cabo ligando dois pontos fixos instalados em cada margem corria numa roldana instalada na plataforma; a impulsão necessária para mover a jangada erar dada pela força braçal dos militares puxando manualmente o cabo. Como segurança do movimento, uma embarcação "Sintex" com motor fora de bordo acompanhava lateralmente cada movimento de vaivém, pronta para qualquer emergência." (Op. Cit; 6.º Vol, p 353).



3.1.2 - ANTECEDENTES HISTÓRICOS QUE LEVARAM AO ABANDONO DAS FORÇAS INSTALADAS EM MADINA DO BOÉ E NO CHÉ-CHÉ

Com a chegada a Bissau, no início de Junho de 1968, do então Brigadeiro António Sebastião Ribeiro de Spínola [1910.04.11-1996.08.13], em substituição do General Arnaldo Schulz [1910.04.06-1993], são elaboradas pelo novo Governador e Comandante Militar da Guiné [promovido a General em 04Jul69], as primeiras directivas.

A primeira Directiva – a n.º 1/68, de 08Jun – tinha em vista a remodelação do dispositivo na região do Boé. Determinava a transferência do aquartelamento de Madina do Boé para local mais adequado, na região do Ché-Ché. Ordenava a recolha imediata a Madina do Boé do Destacamento de Béli, devendo ser destruídas as instalações e material que não fosse recuperável. Determinava, ainda, o reconhecimento da região do Ché-Ché, em ordem a escolher o local do novo aquartelamento, devendo satisfazer as seguintes condições: situar-se em "área-chave" da região do Ché-Ché, de modo a permitir o lançamento de acções dinâmicas na região do Boé e na margem norte do Rio Corubal. Se possível, que desse garantias de segurança à passagem deste rio no Ché-Ché (Ibidem. p.175).

Uma outra Directiva – a n.º 59/68, de 26Dez – mandava executar a manobra esquematizada na Directiva anterior – a n.º 58/68, de 16Dez – onde se determinava a execução de diferentes acções/missões no Sector Leste, entre elas: (i) - Exercer acções de reconhecimento, em ordem a detectar eixos de infiltração do IN na faixa fronteiriça com a República do Senegal e República da Guiné-Conacri até ao "marco 49" e a norte do Rio Corubal a partir deste "marco", com especial incidência nos regulados de Pachisse, Maná e Chanha. (ii) - Reforçar o efectivo das NT na ponte do Saltinho, com vista a garantir a defesa efectiva da ponte e a exercer acção dinâmica no regulado do Corubal. (iii) - Consolidar o esforço de autodefesa nas tabancas marginais da estrada Bambadinca-Xitole-Saltinho. (iv) - Retirar as forças instaladas em Madina do Boé e em Ché-Ché, minando e armadilhando as instalações para que possam ser utilizadas pelas NT em fase ulterior da manobra de contra-subversão. (…) (Ibidem. p 206).

Para a execução da manobra prevista nas Directivas acima mencionadas, foi organizada uma operação, designada por «Mabecos Bravios», a levar a cabo entre 02 e 07Fev1969. Para esse efeito foram mobilizadas as seguintes Unidades militares: CCaç 1790, CArt 2338, CCaç 2403, CCaç 2405, CCaç 2436, CArt 2440, 1 GC/CCaç 5, PMil 161, PAMetr "Daimler" 1258, PSap BCaç 2835, com APAR, as quais efectuaram uma escolta no itinerário Nova Lamego - Madina do Boé - Nova Lamego. (…) Na travessia do Rio Corubal, um acidente com a jangada que transportava forças de segurança da retaguarda provocou a morte de quarenta e sete militares das NT (2 sargentos, 43 praças e 2 Milícias). (Ibidem. p 353).

Sobre o desenrolar desta operação, no relatório acima citado, elaborado pelo Cap Inf José Carvalho Aparício [hoje, TCor Apos.], Cmdt da CCAÇ 1790, é referido o seguinte: 

"Em Fevereiro de 1969, após a decisão do Comando-Chefe da Guiné de abandonar todo o Boé – Beli já tinha sido abandonado meses antes retirando para Madina do Boé todas as forças ali estacionadas – foi desencadeada a operação "Mabecos Bravios" sob o Cmd do Agr 2957 [sedeado em Bafatá]. Uma enorme coluna com cerca de 50 viaturas pesadas escoltadas por duas CCaç's, e dois pelotões de autometralhadoras, e com apoio aéreo permanente, chegou a Madina do Boé na tarde de 05Fev69.

[Vd. Foto nº 2, acima]

[Antes] a esquadra de helicópteros simulou durante a tarde lançamento de forças nas colinas de Madina para tentar evitar as habituais flagelações por morteiros e canhões sem recuo. Durante toda a noite desse dia as viaturas foram carregadas com toneladas de munições, armamento pesado, e todo o equipamento e material aproveitável ali existente. Na manhã de 05Fev iniciou-se o movimento para o Ché-Ché, onde a coluna chegou no final da tarde desse dia. Por decisão do comandante da operação [TCor Hélio Augusto Esteves Felgas (1820.8.25-2008.6.23)], o número de dias previsto para a sua realização foi reduzido de vários dias, para libertar os meios aéreos empenhados; e a travessia do Rio Corubal iniciou-se logo de seguida, com inúmeras travessias efectuadas durante a noite com muitas dificuldades e problemas no embarque na jangada das viaturas carregadas ao limite." (Ibidem. pp 354-355).

[Vd. Foto nº 3]

O relatório refere ainda:
"Para a realização da operação de evacuação do Boé foi contruída uma jangada nova, maior que a anterior, com um estrado sobre três canoas. Em vez da corda inicial, o movimento da embarcação era garantido pelo "Sintex" com motor fora de bordo amarrado à jangada, do lado de jusante do rio, e operado por um sargento da Marinha requisitado para o efeito. A velha jangada esteve sempre acostada na margem direita. Nas travessias do rio durante a noite, com as viaturas foram também indo passando secções dos militares empenhados. No início da tarde de 06Fev69, na última e fatídica viagem, embarcaram a parte que restava dos militares das CCAÇ 2405 e da CCAÇ 1790, cerca de 80 a 90 militares. A meio do rio, uma aceleração brusca do motor do "Sintex" fez erguer a frente de bombordo da jangada, tendo sido dada logo ordem para reduzir a velocidade, a jangada fez o movimento pendular inverso, desta vez mergulhando ligeiramente no rio a frente de estibordo, as canoas ficaram cheias de água mas o tabuleiro ficou flutuando, com os militares a bordo com água pelos tornozelos. Chegados à margem direita, ao proceder-se à contagem constatou-se a falta de quarenta e sete militares das duas Companhias". (Ibidem. p 355). [sendo: 26 da CCAÇ 2405, 19 da CCAÇ 1790 e mais dois milícias, conforme se indica nos dois quadros abaixo]:





No final, o relatório refere que "o acidente em causa deu origem a um Auto de Corpo de Delito, e a longas e complexas averiguações, incluindo todos os aspectos da operação, que em 1970 terminaram em julgamento em Lisboa, no 3.º Tribunal Militar Territorial, que durou várias sessões e que terminou com a absolvição do único réu, o alferes miliciano comandante do Destacamento estacionado no Ché-Ché." (Ibidem. p 355).


3.1.3 - AS DECISÕES QUE FORAM TOMADAS PARA RECUPERAR OS CORPOS DOS MILITARES NAUFRAGADOS EM 06FEV1969 NO CHÉ-CHÉ

Em reunião de Comandos realizada em Bissau, o Comandante-Chefe Militar entregou ao CDMG [Comando de Defesa Marítima da Guiné] e ao CZAGCV [Comando da Zona Aérea da Guiné e Cabo Verde], com data de 19Fev, a Directiva n.º 16/69, determinando a realização de uma «Operação no Rio Corubal», constituída por quatro pontos, a saber:

1 – Confirmando a ordem verbal dada em reunião de Comandos, determino a realização de uma operação no Rio Corubal, com o fim de recuperar os corpos dos militares mortos no trágico acidente de 06Fev69, que se encontram à superfície das águas.

2 – A operação deve realizar-se na base do helitransporte de uma vaga de "Fuzileiros Especiais", fortemente apoiada por meios aéreos.

3 – Os corpos devem ser agrupados e enterrados no local, devendo as campas ser assinaladas com cruzes de ferro.

4 – Desejo ser helitransportado ao local, conjuntamente com um capelão para assistir à cerimónia fúnebre, e colocar nas campas e lançar ao rio coroas de flores com a legenda "A Pátria agradecida". […] (Ibidem. p 317).



Sobre esta "Operação", no P6073, como indicado no ponto 2, o camarada Rui Ferrão, acrescenta que "foi do seu Destacamento de Fuzileiros Especiais – o 10.º - que saíram duas secções, passados alguns dias [?], para o local do acidente, com a missão de recolher os corpos a boiar no referido rio. Dos 47 afogados, foram resgatados 11 cadáveres, que foram sepultados com todas as honras militares na margem do rio. Os restantes [?] ficaram dispersos pelo rio à mercê dos crocodilos e doutras espécies afins." […]

Entretanto, como complemento desta informação, o camarada Vítor Oliveira, ex-1.º Cabo Melec, BA 12 (1967/1969), na sua narrativa no P5853, a que chamou "O desastre do Cheche visto do ar", afirma no ponto 7º: "passados uns dias [?] com uma DO 27 o TCor Pilav Costa Gomes, um Ten Pilav, do qual não recordo o nome, e eu, sobrevoámos o rio e vimos cenas horríveis, os corpos a boiar e os crocodilos à volta deles. O TCor Pilav Costa Gomes entrou em contacto com os Fuzileiros para recolher os corpos. Creio que fizeram um pequeno cemitério próximo do Cheche onde colocaram os corpos."

Eis, em suma, algumas das memórias que fazem parte da "historiografia" deste trágico acidente, impregnado de dor e sofrimento, não só para os sobreviventes, como para todos os camaradas que nele estiveram envolvidos directamente, ou indirectamente, os familiares e amigos de todos aqueles jovens que pereceram nas águas do Rio Corubal.

[Continua]


Fontes consultadas:

Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 6.º Volume; Aspectos da Actividade Operacional; Tomo II; Guiné; 1.ª edição, Lisboa (2015).

Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 8.º Volume; Mortos em Campanha; Tomo II; Guiné; Livro 1; 1.ª edição, Lisboa (2001); pp 23-569.

Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 8.º Volume; Mortos em Campanha; Tomo II; Guiné; Livro 2; 1.ª edição, Lisboa (2001); pp 23-304.

Outras: as referidas em cada caso.

Termino, agradecendo a atenção dispensada.

Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.
Jorge Araújo.
10Mai2019.
_______________

Nota do editor:

Último poste da série > 23 de abril de 2019 >  Guiné 671/74 - P19710: Jorge Araújo: Ensaio sobre as mortes por afogamento no CTIG: Parte II - Os três acidentes na hidrografia guineense

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

Guiné 61/74 - P19536: (D)o outro lado do combate (45): A morte de Rui Djassi - II (e última) Parte - A Op Alvor, península de Gampará, de 22 a 26 de abril de 1964 (Jorge Araújo)


Guiné (1964) - Operação militar. Foto de Manuel Parreiras (1941-2017), natural de Elvas, o 1.º da direita [Unidade desconhecida], pai da minha aluna Ana Parreiras, filha de mãe guineense, de Bafatá. (vou fazer um poste… com mais detalhes).



Mapa da península de Gampará. Território batido pelas NT durante a «Operação Alvor» onde morreu Rui Djassi (Faincam) em 24 de Abril de 1964. Fonte: Carta de Fulacunda (1955), escala 1/50 mil

Infografia: Jorge Araújo (2019)



 Jorge Alves Araújo, ex-fur mil op esp / Ranger, CART 3494 
(Xime-Mansambo, 1972/1974); coeditor do blogue



A «OPERAÇÃO ALVOR», DE 22 A 26ABR64, NA BUSCA DO "QUARTEL-GENERAL" DE RUI DJASSI (FAINCAM) - A PRIMEIRA MISSÃO DAS NT NA PENÍNSULA DE GAMPARÁ,  15 MESES APÓS O INÍCIO DO CONFLITO ARMADO - 




1. INTRODUÇÃO


Como complemento à narrativa anterior – P19532 – onde caracterizamos algumas das vicissitudes da vida do guerrilheiro do PAIGC, Rui Demba Djassi (Faincam), primeiro cmdt da Zona 8 (região de Quinara), com particular relevância para o desconhecimento do seu paradeiro desde o início do ano de 1964, vimos hoje ao fórum dar conta como foram os últimos 'combates' da sua vida, e dos seus subordinados, travados em redor do seu "Quartel-General", algures na Península de Gampará.


2. A «OPERAÇÃO ALVOR», DE 22 A 26ABR1964


A execução da «Operação "Alvor"» foi determinada pelo Comandante Militar do CTIG, à data o Brigadeiro Fernando Louro de Sousa, através da Directiva de Operações n.º 1/64, ficando agendada para o período compreendido entre 22 e 26 de Abril desse ano, um mês depois de concluída a Operação "Tridente". A missão tinha como área de intervenção a península de Gampará, uma vez que, desde o início do conflito, esta região ainda não tinha sido percorrida por forças militares.

Para cumprir esta "Directiva de Operações", a primeira de 1964, a responsabilidade de comando foi atribuída ao BCaç 599 (Sector G), com sede em Tite, que abrangia, do ponto de vista operacional, os subsectores de Tite, S. João e Fulacunda. 

De referir que o BCaç 599, Unidade mobilizada pelo RI 15, de Tomar, era comandada pelo tenente-coronel Carlos Barroso Hipólito, sendo apenas composto de Comando e CCS, não dispondo, por isso, de subunidades operacionais orgânicas. Este Batalhão sucedeu, em 18Out1963, ao BCaç 237, dele transitando os elementos de recompletamento.


 2.1. AS FORÇAS MILITARES ENVOLVIDAS


Tendo em consideração as distâncias que havia que percorrer, os meios logísticos à disposição da Unidade de quadrícula [BCaç 599], bem como os efectivos operacionais que esta podia empregar em acções prolongadas, foi considerado que uma operação de "reconhecimento e controlo da população" na península de Gampará, só poderia ser levada a efeito com êxito por efectivos mais numerosos, com forte apoio aéreo e o concurso de meios navais, operacionais e de transporte. 

Para esse efeito, a operação mobilizou os seguintes efectivos:

● Forças do Sector G:

> Companhia de Cavalaria 353 (CCav 353) – 2 Gr Comb;

> Companhia de Artilharia 565 (CArt 565) – 2 Gr Comb.

● Reforços:

> Companhia de Artilharia 643 (CArt 643) – 3 Gr Comb;

> Destacamento de Fuzileiros Especiais (DFE 2). 

O DFE2 e as restantes Forças Navais tinham a seu cargo o transporte de pessoal, água potável e reabastecimentos com as LDM 302, 303, 304 e 305 e a fiscalização dos rios Geba e Corubal compreendidos na ZO, com especial atenção para as "cambanças" e flagelações do IN partindo de Ganjeque, Ponta do Inglês e Ponta Luís Dias.

A Força Aérea, por outro lado, apoiava os desembarques e reembarques e a actividade das forças de superfície durante a acção; fiscalizava o rio Pedra Agulha, bem como os rios Geba e Corubal dentro da ZO impedindo "cambanças"; fazendo ainda a ligação, PCA e a evacuação sanitária. 


2.2. AS RAZÕES QUE JUSTIFICARAM A OPERAÇÃO

O facto da península de Gampará nunca ter sido percorrida por forças militares desde que se iniciou o conflito armado [23 de Janeiro de  1963], embora se soubesse que a maioria dos habitantes das tabancas limítrofes de Fulacunda as tivessem abandonado, passando a residir em locais desconhecidos, situados nos matos existentes nessa península. 

Por reconhecimentos feitos a Uaná Porto e à região marginal do rio Geba, junto à foz do rio Pedra Agulha, sabia-se que o IN se tinha revelado com fraco poder combativo. Em função dos factos anteriores, ainda não se tinham realizado contactos entre a população e as forças militares estacionadas nessa área. Acresce, por outro lado, terem sido referenciadas dez canoas na orla marítima, bem como observadas de Porto Gole, entre as 18h00 e as 20h00, luzes da outra margem. De referir, também, que em 16 de Abril de 1964, pelas 00h30 ter sido atacada uma embarcação das Forças Navais (FN) com MP [, metralhadora pesada].


2.3. A MISSÃO


i) - Percorrer os matos e as povoações de toda a área da península de Gampará, contactando com a população a fim de avaliar do seu grau de lealdade. Sempre que estas se manifestarem pacíficas procurar acalmá-las quando for caso disso, incutindo-lhes confiança e sensação de segurança pela presença das NT.

ii) - Obter, por meio de interrogatórios a PG [prisioneiros de guerra] ou civis, os elementos de informação que conduzam à detecção de elementos lN, seus acampamentos, ligações, pontos de "cambança", chefes de zona, etc.

iii) - Explorar, imediatamente, as notícias ou informações obtidas no decorrer das operações e que se refiram à localização de órgãos de apoio do IN, à identificação destes ou dos seus chefes, de elementos activos ou de simples simpatizantes.

iv) - Procurar, sempre que possível, fazer prisioneiros por necessidade e conveniência em se obterem os elementos de informação desejados, que venham a permitir avaliar-se do grau de confiança que essas populações possam merecer.

v) - Deixar intactos os géneros, a água, o gado ou outros bens pertencentes aos habitantes encontrados, desde que os seus proprietários não tenham hostilizado as NT, incluindo mesmo os daqueles que tiverem fugido quando da sua aproximação. Mas, destruir ou recuperar, conforme os casos e as possibilidades, as habitações, o gado, os géneros, os poços de água, ou outros bens ou pertences existentes nas povoações donde tenham sido hostilizadas as NT ou tenha havido reacção à presença das mesmas.

vi) - Abater ou destruir, por qualquer meio, todo o elemento IN que reaja ou actue pelo fogo contra as NT assim como todo o indivíduo armado que não entregue acto contínuo a sua arma ou que pretenda fugir, bem como ainda todas as instalações que lhe sirvam de guarida ou apoio, todas as canoas encontradas e ainda as povoações abandonadas donde tenham sido hostilizadas as nossas forças.

vii) - Explorar o sucesso, imediatamente a seguir à neutralização de núcleos do ln quer esta tenha sido levada a cabo pelas Forças de Superfície ou pela FA, por forma a tornar possível a apreensão do armamento ou a recolha e identificação dos mortos e dos feridos, do lN.

viii) - Destruir todas as casas de mato e outras instalações de fortuna, localizadas fora das áreas das povoações, permitindo-se porém aos seus proprietários a recuperação dos seus bens uma vez que não tenham mostrado hostilidade à presença das NT.


2.4. A EXECUÇÃO


Com vista ao reconhecimento da península de Gampará, a fim de permitir o controlo e a assimilação da sua população pacífica e a destruição dos núcleos de elementos do IN aí existentes, seriam realizados desembarques simultâneos na foz do Rio Agulha e em Uaná Porto, conjuntamente com as restantes forças saídas de Fulacunda e com o apoio da FA, de modo a isolar a península de Gampará e criar as condições favoráveis ao reconhecimento e à limpeza desta área segundo três eixos de progressão paralelos.




2.5. O DESENROLAR DA OPERAÇÃO


No dia 22 de Abril de 1964, quarta-feira, pelas 03h00 da madrugada, deu-se início à «Operação Alvor» na península de Gampará com desembarques simultâneos das CCav 353, CArt 565, CArt 643 e DFE 2, utilizando quatro LDM, na foz do rio Pedra Agulha e Uaná Porto, conjugados com forças progredindo de Fulacunda e com apoio aéreo, a fim de isolar essa região. 

As forças desembarcadas ocuparam posições ao longo da linha Gansambo-Uaná Porto-Uaná Beafada. A partir dessas posições executaram uma batida conjunta e simultânea na península de Gampará.

No dia 23 de Abril, quinta-feira, elementos In armados, escondidos no tarrafo, detectados pelo PCA, foram batidos pela CArt 643, com a colaboração da FA e fugiram. O DFE 2 venceu uma ligeira resistência em Canquecuta, que destruiu com o apoio da FA. O IN opôs resistência à progressão da CArt 643. Foi isolado e aprisionado um grupo da população que escondia 8 guerrilheiros. A CArt 565, emboscada pelo IN, reagiu prontamente, dispersando-o. As NT tiveram um guia auxiliar morto e dois feridos. Foram mantidos os horários de coordenação e as forças atingiram os objectivos estabelecidos para este período.

No dia 24 de Abril, sexta-feira,  também foram atingidos os objectivos determinados para o terceiro dia de operações. Foi capturado material e documentos. As NT não tiveram baixas e foram mortos três guerrilheiros [, um deles pondendo ser o Rui Djassi... ] e feitos mais de vinte prisioneiros. 

O IN estava sitiado e a operação prosseguia. Durante a noite os estacionamentos das NT foram flagelados, sendo o IN posto em fuga. Em toda a zona revelaram-se guerrilheiros isolados, alguns dos quais foram abatidos. Foram evacuados para Bissau oito prisioneiros, mulheres e crianças. O IN, cercado no extremo da península de Gampará, exerceu violenta repressão na população que pretendia apresentar-se às NT. Estas recolheram três centenas de pessoas, no mato e no rio, das quais foram evacuadas noventa, para Bissau. 

No dia 25 de Abril, sábado, o IN flagelou a CArt 565 que recolheu a Fulacunda, sem baixas. O DFE 2, em colaboração com a CCav 353, fez batidas na orla do rio. As NT acompanharam a população, na reocupação das tabancas, antes do reembarque.

No dia 26 de Abril de 164, domingo,  recolheram a quartéis todas as forças que tomaram parte na operação.



3. MAIS DUAS NOTAS DA PARTICIPAÇÃO DAS FORÇAS NAVAIS NESTA OPERAÇÃO


Para concluir o contexto sobre a «Operação Alvor", e como adenda ao modo como a mesma decorreu, importa dar conta de alguns testemunhos individuais de camaradas que nela participaram, ainda que as mesmas já tenham sido publicadas neste espaço.


No primeiro caso, cito uma passagem do livro "Homem  Ferro - memórias de um combatente", da autoria de Manuel Pires da Silva [SMor Grad FZE (Ref) do DFE 2] – P11521: "Notas de Leitura", de Mário Beja Santos, onde se pode ler:


"Tudo se agrava no rio Corubal, as embarcações são constantemente alvo de emboscadas, atacam navegação na Ponta do Inglês, e mesmo no canal do Geba. Volta-se à península de Gampará, vão com o apoio de forças terrestres, conclui-se que o inimigo não estava até então implantado no terreno. E depois atacam Cafal Balanta, Cafal Nalu e Santa Clara, há fogo do inimigo que só deixa de reagir quando chegam os T6. E no mês de Junho [1964] acabou a guerra para o DFE 2". 


No segundo caso, a narrativa está ligada à "LDM 302", recurso logístico utilizado na "Operação Alvor", e que é contada em livro de A. Vassalo, em BD, Edições Culturais da Marinha, 2011, com o título "A Epopeia da LDM 302".

No P15003, de novo em "Notas de Leitura", de Mário Beja Santos, retiramos a seguinte passagem: 


"Em 22 de Abril [1964, a LDM 302] conheceu o baptismo de fogo. Frente a Jabadá quando, em conjunto com mais três LDM [303, 304 e 305] procedia a um desembarque de fuzileiros [DFE 2], o inimigo tentou opor-se com fogo de armas ligeiras, mas não conseguiu evitar o desembarque".


Também no P10084 – "A Vida e morte da gloriosa LDM 302", o marinheiro fogueiro Ludgero Henriques de Oliveira [, lourinhanense, vizinho, amigo de infância,  e colega de escola primária do nosso editor e camarada Luís Graça, nascido em 1947 e falecido em 2011, ]  que pertenceu à guarnição desta Lancha de Desembarque Média, atribuída ao DFE 2, em 18 de Março de 1964, para fiscalização da zona do Rio Geba, conta-nos alguns dos aspectos mais relevantes da sua existência. 




A LDM 302 no rio Cacheu onde viria a ser violentamente atacada e afundada por duas vezes com baixas pessoais dramáticas, com mortos, feridos graves e feridos ligeiros. Fonte: Cortesia do blogue Reserva Naval, do Manuel Lema Santos [1.º Tenente da Reserva Naval, Imediato no NRP Orion, Guiné, 1966/68]


4. A OCUPAÇÃO [?] DE GAMPARÁ PELAS NT

Por último, depois de consultada a bibliografia a que tivemos acesso, nada encontrámos para satisfazer a curiosidade relacionada com a instalação das NT em Gampará (e em Ganjauará)  Apenas temos, como referência, o Monumento ali existente, onde constam as diferentes Unidades de quadrícula que por lá passaram, conforme imagem abaixo (vd. P12247).



Guiné > Zona Leste > COP 7 (Bafatá) > Margem esquerda do Rio Corubal > Península de Gampará > Gampará > 1972 > Monumento da CART 3417 (Magalas de Gampará), assinalando a passagem por Gampará (e Ganjauará) da 38ª CCmds e de outras tropas especiais.

Vê-se que por ali também passaram, ao serviço do COP 7 (Bafatá), vários DFE - Destacamentos de Fuzileiros Especiais (4, 8, 13, 21, 22), a CCP 121/BCP 12, a 2ª CCA - Companhia de Comandos Africanos, o 29º Pel Art e o Pel Mil 331.

A última Unidade que aí esteve instalada, até à independência, foi a CCAÇ 4142 (1972/1974) "Herdeiros de Gampará".

Foto (e legenda): © Amilcar Mendes (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Fontes consultadas:

«Operação Alvor» (texto adaptado): Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 6.º Volume; Aspectos da Actividade Operacional; Tomo II; Guiné; Livro I; 1.ª edição, Lisboa (2014); pp 252/257.

Outras: as referidas em cada caso.

Termino, agradecendo a atenção dispensada.

Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.

Jorge Araújo.

26Fev2019.

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Nota do editor:

quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

Guiné 61/74 - P19356: Historiografia da presença portuguesa em África (143): Meu Corubal, meu amor (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Junho de 2018:

Queridos amigos,

O mínimo que se pode dizer deste relatório que se julga ter sido elaborado pelo antigo administrador de Buba, Capitão Castro Fernandes, e datilografado nos anos 1930 por António Pereira Cardoso, importante funcionário colonial, é que se trata de um documento cheio de informação, de muita história e de saber de experiência feito. 

O administrador, a fazer fé no que escreveu, palmilhou todo o território e sabia do que falava quando descrevia etnias e culturas. à distância de um século, revela preconceitos e ideias feitas sobre etnias, mas o que aqui importa é o seu poder de observação e o vigor do seu testemunho.

Um abraço do
Mário


Meu Corubal, meu amor (2)

Beja Santos

Nos Reservados da Sociedade de Geografia de Lisboa consta um dossiê assim apresentado: Província da Guiné – Relatório de autor ignorado (mas que julgamos ter sido elaborado pelo antigo administrador de Buba, Capitão José António de Castro Fernandes, natural da Índia, cujo filhos residem, ainda, na Guiné. 

O original existia em poder do falecido Capitão Alberto Soares, antigo administrador do concelho de Bolama, combatente das campanhas de pacificação). Quem datilografou em 1931 diz que faltam as primeiras páginas, o que reproduz inicialmente está cheio de tracejado, é manifestamente incompreensível. O manuscrito, como iremos ver, é da década de 1910.

O documento datilografado (presumivelmente em 1931) começa por dizer tratar-se de Cópia – Extraída de um relatório, feito por autor desconhecido. Quem terá datilografado foi António Pereira Cardoso, funcionário colonial vastamente referido em diferentes relatórios das décadas de 1930 e 1940.

Depois de ter falado sobre o rio Corubal, e correspondendo às perguntas do inquérito: Que raças habitam a sua circunscrição? Qual a que predomina? Responde que as raças predominantes eram: Fulas-Forros, Futa-Fulas, Fulas-Pretos, Mandingas, Beafadas, Brames ou Mancanhas, Balantas e Manjacos. 

E dá-nos um quadro bastante rigoroso de quem é quem na circunscrição de Buba.

Os Fulas-Forros povoavam todo o território do Forreá, encontrando-se também no Corubal. É raça bastante simpática e nada tem de comum com as outras que habitam a Guiné, distinguem-se pelo seu temperamento linfático e uma constituição fraca, cor mulata, nariz saliente, boca e face regulares, cabelos lanudos e voz suave. 

O aparecimento desta raça na Guiné data de 1851, ter-se-iam estabelecido no Forreá pouco a pouco e como emigrantes vindos do Norte e Oriente de África. Para se estabelecer, tiveram de pagar um imposto aos Beafadas, destes receberam toda a qualidade de represálias e vexames, e exemplifica: não lhes era permitido que se deitassem em camas ou esteiras no sentido do seu comprimento; não lhes deixavam possuir qualquer espécie de armamento, ou mesmo instrumento cortante; aos cadáveres só era permitido que dessem sepultura dentro das próprias palhotas. 

Assim oprimidos os Fulas-Forros, prepararam a rebelião, nomearam vários cabecilhas, entre eles Bacar Guidali, pai do atual régulo Monjur, do Gabu, e este, auxiliado pelo régulo Délabé, na colónia vizinha, conseguiu livrar os Fulas-Forros do jugo dos Beafadas, mas ao mesmo tempo foi nesta época que se iniciou o aniquilamento do falado comércio e das feitorias do Rio Grande.

Descreve assim os Futa-Fulas: distinguem-se por Futa-Fulas os cativos de Alfa Iáiá, isto é, Futa-Fulas Pretos, que povoam a região do Forreá entre o rio Corubal e os marcos da fronteira 20 a 24; e por Futa-Fulas Forros, que andam em grande número espalhados nas mais densas florestas sem domicílio certo. Estes não se dedicam à agricultura, empregam-se na colheita de produtos naturais, especialmente a borracha. Procuram evitar a aproximação da autoridade, esquivam-se ao pagamento do imposto de palhota. Os processos que esses Futa-Fulas Forros empregam na extração da borracha causam grandes prejuízos às matas.

Os Fulas-Pretos povoam todo o território do Corubal. Antigos escravos dos Fulas-Forros, libertaram-se das opressões destes, por uma revolta estabeleceram-se no Corubal. O Fula-Preto constitui um grupo étnico de filhos espúrios nascidos no cativeiro, sendo assim mestiços de Fulas e Beafadas, por quanto durante as lutas entre estas duas raças escravizavam os seus prisioneiros de guerra. São bastante trabalhadores. Embora amigos de álcool, os seus costumes assemelham-se aos dos Fulas-Forros.

Os Mandingas constituem um grupo oriundo das raças Beafadas, Oincas e Soninqués, que deixaram de beber vinho e se tornaram sextários de Maomé. A origem da raça Mandinga propriamente dita é na região de Pacau, do território francês, ao Norte de Farim. Na circunscrição, como em toda a nossa Guiné, são governados pelos Fulas ou outra raça predominante onde se estabelecem. A sua índole denota uma pronunciada falta de caráter, tendo em pouca conta o princípio da honestidade e honradez; mentirosos por hábito, todos os seus atos são regulados para os fins que têm em vista, não se importando com os meios para os alcançar. Dedicam-se principalmente ao trabalho comercial, sendo a lavoura entregue às mulheres.

Os Beafadas são os primitivos habitantes do Forreá e Corubal, donde sucessivamente foram expulsos pelos Fulas. Povoam o centro do território do Quínara, onde vivem na maior miséria, furando palmeiras e bebendo o vinho que extraem. As suas mulheres, pode-se dizer, são as que pensam no passadio quotidiano, empregando-se na agricultura.

Os Brames ou Mancanhas são emigrados do território da circunscrição de Cacheu e de Mansoa, povoam todo o território marginal do Quínara, desde a confluência do Rio Grande com o de Bolama até ao canal das Arcas. Empregam-se, especialmente, na plantação de mancarra. É considerada a raça mais inferior da Guiné e distinguem-se das outras raças não só pelo seu vestuário como por trazerem a cabeça e o corpo untados com azeite de palma, o corpo tatuado com salientes cicatrizes com variados desenhos feitos com instrumento cortante. São muito trabalhadores e ágeis no manejo de pau e espada.

Os Balantas povoam o território marginal do Quínara desde o canal dos Arcos até Gampará. Vieram emigrados da margem oposta, sendo os que vêm de Nhacra até Colicunda, oriundos da primitiva raça Papel; os que vêm de Gole até Malafo, da raça Beafada e os que vêm de Contoiá, uma mistura de Papéis, Beafadas e Brames. De caráter independente, cada um é chefe de sua casa, não têm régulo.

Os Manjacos são emigrantes de Pelundo, Cacheu, Pexixe e Bissau, povoam geralmente todo o território marginal do Rio Grande e seus afluentes. São muito trabalhadores.

O inquérito irá seguidamente abordar a duração da vida humana (natalidade e mortalidade), os produtos naturais da região, a borracha, a escultura, a habitação, e algo mais.

(Continua)


Publicidade publicada no jornal ‘O Comércio da Guiné’, numa edição de 1931.


O Quartel Militar de Bolama, fotografia de Francisco Nogueira, retirada do livro “Bijagós Património Arquitetónico”, Edições Tinta-da-China, 2016, com a devida vénia.

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Nota do editor

Último poste da série de 26 de dezembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19336: Historiografia da presença portuguesa em África (141): Meu Corubal, meu amor (1) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

Guiné 61/74 - P19336: Historiografia da presença portuguesa em África (142): Meu Corubal, meu amor (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Maio de 2018:

Queridos amigos,
O relato que se segue é já da I República, o manuscrito foi datilografado em 1931. O Capitão José António de Castro Fernandes, natural da Índia, faz-nos um empolgante registo da região de Buba, de que foi administrador. Percorreu rios e braços de mar, é uma vivência e um saber feitos de comprovada experiência, como se poderá ver.
Depois do Geba, o Corubal é um rio da minha vida, pelo que fui ao Xitole, ao Xime, à Ponta do Inglês. E a experiência que tive, em novembro de 2010 quando percorri de mota a estrada Xime-Ponta do Inglês foi inesquecível, eu ia embevecido por aqueles campos frondosos em torno do Corubal, que atravessei em várias direções com a G3 nas mãos, quem aqui combateu conhece o significado da Ponta do Inglês, Ponta Varela, Poidom, Buruntoni.
Uma das tristezas que guardo dessa viagem é não ter ido a Ponta Luís Dias, Tabacuta, Mina e Galo-Corubal, vindo depois por Xitole, e regressando a Bambadinca por Moricanhe, Taibatá e Amedalai.
Prometi a mim mesmo que será itinerário obrigatório na próxima viagem, o Corubal é muitíssimo belo.

Um abraço do
Mário


Meu Corubal, meu amor (1)

Beja Santos

Nos Reservados da Sociedade de Geografia de Lisboa consta um dossiê assim apresentado: Província da Guiné – Relatório de autor ignorado (mas que julgamos ter sido elaborado pelo antigo administrador de Buba, Capitão José António de Castro Fernandes, natural da Índia, cujo filhos residem, ainda, na Guiné. O original existia em poder do falecido Capitão Alberto Soares, antigo Administrador do Concelho de Bolama, combatente das campanhas de pacificação. Quem datilografou em 1931 diz que faltam as primeiras páginas, o que reproduz inicialmente está cheio de tracejado, é manifestamente incompreensível. O manuscrito, como iremos ver, é da década de 1910.
E o que é compreensível começa exatamente com o rio Corubal, deste modo:
“O rio Corubal é muito profundo mas cheio de baixos; e maior profundidade apresenta na margem esquerda ou na margem do lado do Forreá. Não é navegável senão para barcas que não demandem mais de duas braças de água, e isto mesmo até Xitole, e dali até próximo à cachoeira de Cussilinta, perto de Gambessé, com bastante dificuldade e perícia, por parte do respectivo piloto do barco.
Impedem a navegação, além das diversas cachoeiras e o banco que forma logo à entrada defronte de Gampará e, que na baixa-mar, se vê que é, em uns quilómetros de extensão, os bancos de areia e lodo, que, segundo as estações e outras circunstâncias, e entre estas o macaréu, são arrastados pela caprichosa natureza, em diferentes sentidos, afirmando os pilotos práticos neste rio que um banco encontrado num mês nem sempre se encontra, passados dias, no mesmo local, pelo que a navegação, mesmo até ao Xitole, deve ser feita cuidadosamente. Na época pluviosa, acresce a este inconveniente de mudanças de baixos a vertiginosa corrente do rio que atrasa e dificulta bastante a navegação.
A dificuldade de não se ter ainda conseguido a navegação além das cachoeiras dá ocasião a que variados produtos, designadamente arroz, que em grande quantidade se planta e colhe no Alto Forreá (parte do Boé) sejam desviados para o território francês, onde fazem a permuta, principalmente na época das chuvas, durante essa época torna-se impossível conservar-se em estado de ser transitado um caminho que eu mandei abrir na cambança de Juda – Maganacho até Xitole”.

O relator apresenta-nos agora o rio Grande de Bulola ou de Buba, dizendo:
“É antes um braço do mar do que rio propriamente dito. Muitos anos se julgou que tinha comunicação com o rio Corubal, sendo talvez o motivo de o chamarem Rio Grande. Nas suas margens divisam-se extensas e graciosas colinas cheias de verdejantes matas e uma infinidade de cibes (palmeiras). Estas margens cortadas quase a pique, com bastante altura, oferecem assim dispostas um seguro abrigo aos navegantes contra os tornados (ciclones especiais da costa da Guiné, tendo por foco a Serra Leoa).
Bastante profundo e sem baixos, pode ser facilmente navegado por navios de longo curso até próximo do rio Regina, onde, pelo constante assoreamento, formou-se um baixo que uma sonda o encontra a duas braças de profundidade, porém, passado este baixo, pode continuar-se a navegar até próximo de Buba, em navios que não demandem mais de quatro braças, se bem que, com muita cautela se deve fazer, por causa do constante e progressivo assoreamento do rio desde o referido baixo do rio Regina até Buba.
De Buba até à sua confluência com o rio de Bolama, na Ponta Colónia, faz um percurso aproximado de 50 milhas, em constantes ziguezagues, formando pontas ou antigas e ricas feitorias que existiram em número superior a 60 e que aqui atraíram, outrora, pelo seu importante comércio e pela facilidade de navegação do Rio Grande, navios de longo curso. Em algumas pontas vêem-se ainda restos destas feitorias com as suas cisternas, armazéns, prisões, etc, feitorias, que, senão fora as lutas havidas lá pelos anos de 1882 a 1885-86, entre Fulas e Biafadas, ainda hoje existiriam, e o Rio Grande não teria perdido a sua importância e nem estaria na decadência em que hoje se encontra; se bem que, ainda se espera pelo constante repovoamento dessas pontas, que nos últimos dois anos se tem acelerado bastante, vem a aproximar-se, pelo menos, da sombra do que foi.
Tem este rio ou braço de mar um grande número de afluentes, alguns importantes pela sua profundidade e largura, principalmente no praia-mar, onde se encontra mais de 3 a 5 braças de profundidade, sendo pena que na baixa-mar fiquem por completo desaguados, conservando, apenas, em certos lugares, bacias que têm servido de ancoradouros a barcos à espera da praia-mar para dele saírem”.

O Capitão Castro Fernandes é minucioso, não se contentou em descrever o rio de Buba, dá-nos igualmente a relação dos afluentes que ele percorreu em lancha a vapor ou em escaler a remos: rio Regina, rio Banin ou de Mato-Grande, rio Buduco, rio Tinto, rio Cumbijan, rio Mansole, Rio Ocaz, Canal da Ilha Seca, rio Bissilão. Diz que o rio Regina é bastante largo, o rio Banin situa-se na margem direita, lado do Quínara, o Buduco é bastante largo, tem um braço do lado direito para o Posto Administrativo de Fulacunda.
Como é minucioso, deixa no seu relatório que julga importante:
“À entrada deste rio, encontra-se um grande baixo de pedra, deixando ver na baixa-mar um grande recife, pelo que se torna bastante perigoso, sendo por este motivo e ainda para se poder seguir a favor da corrente que se entra no rio depois de principiar a enchente e antes do recife ficar coberto; o rio Tinto fica na margem esquerda no Rio Grande; o rio Cumbijan é bastante largo e profundo, atravessa a circunscrição de Cacine".
E o nosso relator comenta:
“Não o conheço por mar, mas por várias vezes estive nas suas margens, no local de Cumbijan, onde existe um estabelecimento comercial. Na época pluviosa, dizem ser perigosa a navegação, devido a grandes troncos de árvores arrastadas pela corrente. Durante as chuvas constantes e torrenciais, transbordando as superfícies pantanosas, formam-se no Forreá vários regatos que junto com as nascentes existentes, correm para este rio Cumbijan; o Mansole é um afluente do rio de Bolama, bem como o rio Salanca ou de Nhala, este com largura de mais de 400 metros e extensão até à Ponta de João Preto; falando do rio Ocaz, diz que contornado a ponta de Nhala, fica do outro lado a povoação Balanta de Bissásema; regista que entre o Quínara e o Ilhéu do Rei, um pouco mais para cima, fica a Ilha Seca. Entre esta ilha e o Quínara é o canal da Ilha Seca".
E regista:
“Na entrada tem um baixo; contudo, um barco que não demande mais de duas braças o transpõe na praia-mar facilmente e sem perigo algum. Passado este baixo, o canal acusa, invariavelmente, cinco ou seis braças folgadas. Na saída para o rio Geba, perto de Jabadá, há um outro baixo nas mesmas condições do da entrada”.

(Continua)

Rápidos de Cusselinta, rio Corubal
Fotografia de José António Sousa publicada no site http://geoview.info/, com a devida vénia.

Che-Che, rio Corubal
Fotografia retirada da rede social Pinterest, com a devida vénia.

O Corubal visto da Ponta do Inglês
Tirei esta fotografia em novembro de 2010, acompanhou a viagem do Tangomau, pertence ao nosso blogue.
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Nota do editor

Último poste da série de 19 de dezembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19307: Historiografia da presença portuguesa em África (140): As tribos da Guiné Portuguesa na História, pelo Padre A. Dias Dinis (3) (Mário Beja Santos)